Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11039/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:12/04/2014
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:TRIBUNAL COMPETENTE – EMPREITADA – PAGAMENTO DO PREÇO
Sumário:I – O contrato de empreitada é um contrato sinalagmático na medida em que dele emergem obrigações recíprocas e independentes: a obrigação de realizar uma obra por parte do empreiteiro tem como contrapartida a obrigação do respectivo dono de pagar o preço.
II – De acordo com o disposto no artigo 1211º, nº 2 do Cód. Civil, o preço deve ser pago no acto da aceitação da obra, portanto a final, caso não haja convenção em contrário.
III – No que toca à determinação do tribunal competente, o artigo 19º do CPTA dispõe que “as pretensões relativas a contratos são deduzidas no tribunal convencionado ou, na falta de convenção, no tribunal do lugar de cumprimento do contrato”.
IV – Os contratos da Administração são, muitas vezes, de âmbito ou cumprimento plurilocal, pelo que pode haver mais do que uma prestação contratual e mais do que um lugar para o seu cumprimento, pelo que a melhor interpretação para a norma em questão seja a de considerar o tribunal competente como o do lugar do cumprimento “do contrato ou da prestação que estiver em causa, a título principal, no processo”.
V – O recebimento do preço, consistente na entrega de certa quantia em dinheiro, consubstancia uma obrigação pecuniária, relativamente à qual o artigo 774º do Cód. Civil determina que deve ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.
VI – A regra do lugar do cumprimento de cada prestação [na exacta medida em que as mesmas são autónomas e separáveis] mais não é do que a aplicação aos contratos sinalagmáticos de âmbito ou cumprimento plurilocal da regra contida no artigo 19º do CPTA, que determina que “as pretensões relativas a contratos são deduzidas no tribunal convencionado ou, na falta de convenção, no tribunal do lugar de cumprimento do contrato”, tanto mais que não se discute na acção o incumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação a que o empreiteiro se obrigou.
VII – Estando apenas em causa na acção o incumprimento da obrigação a cargo do dono da obra de pagar o preço acordado, a decisão recorrida, ao declarar a incompetência territorial do TAF de Leiria, procedeu a uma errada interpretação do artigo 19º. do CPTA, nomeadamente sobre o que deve entender-se por " tribunal do lugar de cumprimento do contrato”.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO
I….. – S….., SA”, com sede em Coruche, intentou no TAF de Leiria contra o Município de Beja uma acção administrativa comum com processo ordinário, na qual peticionou a condenação da ré a pagar-lhe a importância de € 106.516,50, acrescida de juros de mora, a título de pagamento parcial da empreitada de “Construção de gavetões no cemitério de Santa Clara – Beja” que a autora executou.
Por decisão datada de 9-5-2013, o referido tribunal declarou a sua incompetência em razão do território para conhecer da acção, por ser competente para tal o TAF de Beja [cfr. fls. 48/54].
Inconformada, a autora recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A. A obrigação de pagamento do constitui o objecto imediato do contrato de empreitada.
B. O contrato de empreitada é um contrato oneroso [vd. artigo 343º do CCP] e sinalagmático.
C. O cumprimento do contrato de empreitada, por banda do dono de obra, ocorre com o pagamento do preço.
D. O tribunal "a quo" ao ter considerado que a obrigação de pagamento do preço, enquanto contrapartida de contrato oneroso e sinalagmático, não corresponde ao cumprimento do contrato oneroso de empreitada dos autos violou o disposto no artigo 762º, nº 1 do CC.
E. O dono de obra estava adstrito a uma obrigação pecuniária, porque o contrato estabeleceu que o preço do contrato seria pago em dinheiro.
F. O artigo 774º do Código Civil estabelece que, se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro a obrigação deve ser cumprida no domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.
G. O lugar do cumprimento é Coruche porque o credor tem a sua sede em Coruche!
H. O tribunal "a quo", ao decidir como decidiu violou, por tanto, o artigo 774º do Código Civil.
I. A presente acção é perspectivada para efectivação da responsabilidade contratual do réu porque a causa de pedir reside num "contrato" e os pedidos formulados consistem na condenação do réu no seu cumprimento.
J. O artigo 19º do CPTA dispõe que as pretensões relativas a contratos são deduzidas, na falta de convenção, no tribunal do cumprimento do contrato.
K. No caso concreto, o contrato não estabeleceu o foro competente nem refere o lugar do pagamento da prestação devida pelo réu [ora recorrido], pelo que o lugar do cumprimento do contrato é Coruche.
L. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria é territorialmente competente para o conhecimento do objecto do presente processo porque a sua área de jurisdição abrange o Município de Coruche.” [cfr. fls. 58/66 dos autos].
Não foram apresentadas contra-alegações.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste TCA Sul não emitiu parecer.
Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Pese embora a decisão recorrida não ter fixado, como se lhe impunha, a matéria de facto relevante para o conhecimento da excepção dilatória da incompetência do tribunal em razão do território, face ao teor da contestação do município de Beja, constante de fls. 26/30 dos autos, considera-se para tal efeito assente a seguinte factualidade:
i. A autora é uma empresa que se dedica à realização de empreitadas de construção civil e obras públicas;
ii. No exercício da sua actividade, a autora celebrou com o município de Beja um contrato de empreitada de obra pública pelo qual se obrigou a executar a favor daquele a empreitada de “Construção de gavetões no Cemitério de Santa Clara – Beja” – cfr. doc. de fls. 10/13 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
iii. Em contrapartida, o município de Beja obrigou-se a pagar o preço do contrato, no montante de € 147.980,17, ao qual acresce o IVA à taxa legal em vigor – idem, doc. de fls. 10/13, cláusula 2ª;
iv. Nos termos da cláusula 6ª do contrato, o preço deverá ser liquidado de acordo com as quantidades de trabalhos medidos – ibidem;
v. A autora efectuou todos os trabalhos a que estava contratualmente obrigada, pelo valor contratual, dentro dos prazos estipulados no contrato.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A questão em apreciação no presente recurso jurisdicional consiste em determinar qual o tribunal territorialmente competente para conhecer duma acção em que o empreiteiro demanda o dono da obra para ser pago [total ou parcialmente] pelos trabalhos que efectuou e que aquele não pagou, inexistindo convenção das partes nesse sentido, o mesmo é dizer-se na determinação do que deva entender-se por “lugar do cumprimento do contrato”, a que alude o artigo 19º do CPTA, no caso de se estar perante um contrato sinalagmático.
A decisão recorrida entendeu que a obrigação pecuniária do pagamento dos trabalhos efectuados, a cargo do dono da obra, não corresponde ao objecto imediato do contrato de empreitada, mas sim à sua contrapartida, pelo que atendeu somente ao lugar onde a obra foi levada a cabo – Beja – para concluir ser esse o lugar do respectivo cumprimento e, com base nessa conclusão, declarar o TAF de Leiria incompetente em razão do território para conhecer da acção [cfr. fls. 52].
Vejamos se com acerto.
Como é sabido, o contrato de empreitada é um contrato sinalagmático na medida em que dele emergem obrigações recíprocas e independentes: a obrigação de realizar uma obra por parte do empreiteiro tem como contrapartida a obrigação do respectivo dono de pagar o preço. E este, de acordo com o disposto no artigo 1211º, nº 2 do Cód. Civil, deve ser pago no acto da aceitação da obra, portanto a final, caso não haja convenção em contrário.
No que toca à determinação do tribunal competente, o artigo 19º do CPTA dispõe que “as pretensões relativas a contratos são deduzidas no tribunal convencionado ou, na falta de convenção, no tribunal do lugar de cumprimento do contrato”.
No caso em apreciação, as partes não convencionaram qual o tribunal competente para apreciar os litígios emergentes do contrato de empreitada celebrado.
Acontece, porém que, como notam Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, os contratos da Administração são, muitas vezes, de âmbito ou cumprimento plurilocal, pelo que pode haver mais do que uma prestação contratual e mais do que um lugar para o seu cumprimento, pelo que em seu entender, a melhor interpretação para a norma em questão seja a de considerar o tribunal competente como o do lugar do cumprimento “do contrato ou da prestação que estiver em causa, a título principal, no processo”, [cfr. autores cit., in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos” Anotado, Almedina, 2004, a págs. 199].
No caso dos autos, a autora obrigou-se a realizar uma obra no cemitério de Santa Clara, sito em Beja e, executada esta, a receber o preço convencionado, sendo que apenas se discute na presente acção o montante que a autora entende ser-lhe devido e que não recebeu do município de Beja, por dificuldades deste, “perante o constrangimento orçamental e medidas rigorosas, de natureza pública”, que “o impediram de poder libertar quaisquer verbas, com vista ao pagamento integral” [cfr. artigos 8º e 10º da contestação do município de Beja].
O recebimento do preço, consistente na entrega de certa quantia em dinheiro, consubstancia uma obrigação pecuniária, relativamente à qual o artigo 774º do Cód. Civil determina que deve ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.
Ora, neste caso, a regra do lugar do cumprimento de cada prestação [na exacta medida em que as mesmas são autónomas e separáveis] mais não é do que a aplicação aos contratos sinalagmáticos de âmbito ou cumprimento plurilocal da regra contida no artigo 19º do CPTA, que determina que “as pretensões relativas a contratos são deduzidas no tribunal convencionado ou, na falta de convenção, no tribunal do lugar de cumprimento do contrato”, tanto mais que não se discute na acção o incumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação a que a autora se obrigou.
Apenas em tal caso seria de admitir a conclusão vertida na decisão recorrida, cometendo a competência para apreciar a presente acção ao TAF de Beja, pois que nesse caso a discussão iria necessariamente abranger a questão do incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação do empreiteiro, que lógica e juridicamente antecede a apreciação da questão do incumprimento da obrigação do dono da obra.
Por conseguinte, a decisão recorrida procedeu a uma errada interpretação do artigo 19º do CPTA, nomeadamente sobre o que deve entender-se por “tribunal do lugar de cumprimento do contrato”, razão pela qual a mesma não pode manter-se.

IV. DECISÃO
Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em conceder provimento ao recurso interposto, revogar a decisão recorrida e declarar competente para apreciar a presente acção administrativa comum o TAF de Leiria.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2014


[Rui Belfo Pereira – Relator]


[Esperança Mealha]


[Helena Canelas]