Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3919/23.7BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/11/2024
Relator:JOANA MATOS LOPES COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

N…, nacional da Índia, residente em Portugal, intentou intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P.. Pede a condenação da entidade demandada a decidir a pretensão por si formulada em 12.08.2022 e, em consequência, a emitir o correspondente título de residência, e, caso não se entenda que o seu pedido foi objecto de deferimento, a declaração, por força do decurso do prazo legal para a decisão, do deferimento tácito do mesmo, requerendo ainda a aplicação à entidade demandada da sanção pecuniária compulsória, a fixar por cada dia de incumprimento da sentença. Alega, para tanto e em síntese, que: (i) Deu entrada de pedido para concessão de autorização de residência, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, através de manifestação de interesse apresentada junto da entidade demandada, em 12.08.2022, tendo entrado legalmente em território nacional e apresentado toda a documentação legalmente exigida para o efeito junto do SEF; (ii) Até à data, o seu pedido não foi objecto de decisão, em violação do disposto no n.º 5 do artigo 82.º da referida lei e no artigo 13.º do Código do Procedimento Administrativo, omissão lesiva do direito à segurança no emprego, atendendo a que o autor trabalha há mais de doze meses indocumentado e sob ameaça constante de despedimento, e do direito à vida familiar, dado que não revê a sua família na Índia há mais de três anos, valores protegidos pelos artigos 53.º e 36.º da Constituição, lesão essa que decorre das regras da experiência, dedutível por mera presunção judicial; (iii) A falta de decisão do seu pedido também priva o autor da possibilidade de beneficiar da aplicação do princípio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º l, da Constituição; (iv) Por não dispor de autorização de residência, o autor permanece em situação irregular em território nacional, o que não lhe traz qualquer tranquilidade, nem sequer para andar em público, pois, a todo o tempo, e em qualquer local, pode ser objecto de acções de fiscalização, o que põe em causa o seu direito à liberdade e à segurança; (v) A Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, determina a obrigatoriedade de porte de documento de identificação, sendo a própria entidade demandada quem obvia ao cumprimento dessa obrigação pelo autor, não providenciando, em tempo útil e razoável, pela decisão, emissão e envio do seu título de residência, pondo em causa o seu direito à identidade pessoal; (vi) Apesar de ter trabalho estável em Portugal, descontar mensalmente, desde Agosto de 2022, a favor da Segurança Social, e pagar impostos em território português, o autor apenas tem acesso ao sistema de saúde se pagar a integralidade das taxas, pelo que está em causa o seu direito à protecção da saúde; (vii) Ao não decidir o seu pedido, a entidade demandada violou os princípios da confiança, da decisão, da eficiência, da celeridade e da boa administração, todos previstos no CPA, bem como o princípio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição.
Admitida liminarmente a petição pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a entidade demandada não apresentou resposta.
Foi proferida sentença a absolver a entidade demandada da instância por ter julgado “procedente a excepção dilatória inominada de impropriedade do meio processual”, em virtude de o autor não ter alegado “factos concretos que permitam concluir que a emissão urgente de uma decisão de mérito é absolutamente indispensável para assegurar, em tempo útil, o exercício de um direito, liberdade e garantia.”
O autor interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:

A) Impunha-se uma revisão da posição processual do Distinto Magistrado de primeira instância face a decisões exatamente idênticas e votadas ao insucesso no TCA SUL.
B) O tribunal a quo recusa-se a acatar jurisprudência do STA e TCA SUL, TCA NORTE, fazendo uma interpretação errada da lei sobre a idoneidade do presente instrumento legal.
C) A Intimação para Defesa de Direitos, Liberdades e Garantias é o único instrumento legal adequado para a defesa dos interesses do Requerente os quais estão
D) E o instrumento legal mais adequado na defesa dos valores constitucionais em jogo.
E) O uso da providência cautelar pela sua precariedade é incerto no seu desfecho.
F) A tutela cautelar aniquilaria os efeitos que resultariam de uma procedência do pedido feito no processo principal.
G) Depende de uma Ação principal que poderá demorar anos e anos.
H) Somado a isso o Réu AIMA IP recorre atualmente das providências cautelares.
I) O que aumenta ainda mais a incerteza do Recorrente.
J) O Existe jurisprudência no STA e no TCA-SUL assente sobre a idoneidade do presente instrumento legal.
K) Existe desde 2019 uma reversão jurisprudencial, processo n° 1899/18.0 BELSB de 11.09.2019 e Acórdão do STA de 16.OS.2019, proferido no processo número 02 762/17.7 BELSB.
L) O Recorrente vê ameaçada a sua identidade em território nacional o seu emprego, saúde, liberdade circulação, acesso à justiça, entre outros direitos e está a pagar impostos e não vendo reconhecidos os supra direitos.
M) Sobre a inutilidade das providências cautelares, especial enfâse para o processo n° 2906/22.7 BELSB de 23.02.23 e processo n° 3682/22.9 BELSB de 31.03.23 do TCA SUL.
N) Não existe tempo a perder devendo o R. AIMA IP ser devidamente intimado a decidir e a emitir o respetivo título de residência ao Autor.
O) O tribunal a quo cita jurisprudência desatualizada e recusa-se a acatar a posição do STA.
P) Violaram-se os artigos 1º, 2º, 12º, 13º, 15°, 26°, 27°,36° 44°,53°,58°,59°, 64°,67°,68, 268°,4 da Constituição da República Portuguesa, bem como as nomas ínsitas nos artigos 7º, 15°, n° 3, 41° ,45º, n°2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e artes 6º, 14° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e ainda o artigo 109° CPTA e ainda o art.° 88° n° 2 das Leis 23/2007 de 4/7, lei 59/17 e da lei 102/17 e da lei 18/22 de 25/8 e ainda artes 5º, 8º, 10°, 13° todos do CPA e ainda art.° 637° e 639° do CPC.
A entidade recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, sustentando que “(…) não se vislumbra a alegação de qualquer direito, liberdade ou garantia, e que este se limitou a invocar que a não concessão de autorização de residência desrespeitaria diversos direitos sem, no entanto, proceder à concretização de quais as liberdades e garantias constitucionais afetadas, e que impusesse à administração a tomada duma decisão de mérito indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia.”
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

A questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida não fixou factos.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Alega o recorrente que a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, “é o único instrumento legal adequado” à defesa dos interesses que pretende fazer valer e dos valores constitucionais associados, e que um processo cautelar depende de uma acção principal, que poderá demorar anos, aos longo dos quais o mesmo se manterá num estado de incerteza. Mais alega que a jurisprudência tem vindo a decidir nesse sentido e que o Tribunal “a quo” não acatou essa jurisprudência.

A sentença recorrida absolveu a entidade demandada da instância por ter julgado “procedente a excepção dilatória inominada de impropriedade do meio processual”, em virtude de o autor não ter alegado “factos concretos que permitam concluir que a emissão urgente de uma decisão de mérito é absolutamente indispensável para assegurar, em tempo útil, o exercício de um direito, liberdade e garantia.” Mais precisamente, a sentença recorrida assentou na seguinte fundamentação:
“(…)
Ora, no caso vertente, sustenta o Requerente, de entre o mais, que se encontra a aguardar a decisão, pela Entidade Requerida, do seu pedido de concessão de autorização de residência, com fundamento em trabalho por conta de outrem ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007, feito em 12.08.2022. Refere que, “(…) enquanto não for proferida uma decisão pelo AIMA, I.P., Lisboa I, a qual se encontra em falta há demasiado tempo, o Requerente permanece indocumentado e a residir em Portugal de forma ilegal precisamente porque não tem uma autorização de residência em território nacional nem dispõe de titulo de residência.” Argui que “(…) permanecendo ilegal pode ser despedido a qualquer momento pela sua entidade empregadora, não tem liberdade de escolha laboral, se quisesse trocar de trabalho será mais um precário ilegal a trabalhar com risco de despedimento, pois, permanece ilegal (…)” e que “[s]e quiser reagrupar a sua família está-lhe vedado, pois permanece ilegal. Ou seja, na prática não tem direito à família (…)” e que “[s]e quiser circular dentro de TN, também não o pode fazer, pois, sendo fiscalizado por uma GNR, PSP ou até PJ, o mais certo será ser notificado para sair do País, pois, uma MI é um mero pedido tirado da internet, não é um titulo de residência registado e aprovado (…).” Alega ainda que “[s]em o seu TR não tem a sua identidade reconhecida em TN (…). É do domínio público que os cuidados à saúde, em TR, não muito limitados, pelo que se estiver doente e quiser recorrer a um hospital público não é aceite, não tem o mesmo acesso a uma saúde condigna como os cidadãos nacionais e cidadãos estrangeiros portadores de TR (…).”
Antes do mais, convém realçar que o presente requerimento inicial é um decalque de vários outros já apresentados neste Tribunal Administrativo de Círculo.
E se, em abstrato, perante o requerimento inicial apresentado, o meio idóneo para a pretensão formulada é a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – e não o procedimento cautelar, porquanto esta tutela esgotaria o objeto da ação principal, na medida em que entendemos que não é possível determinar a atribuição de um título de residência, em sede cautelar, sem consumir o objeto da ação principal, pelo que não se recorre ao artigo 110.º-A do CPTA – o que é certo é que o Requerente não logrou cumprir com o ónus alegatório e probatório que sobre si impende, na medida em que não basta sustentar o recurso a este meio processual com a demora no procedimento administrativo e com os normais incómodos associados à incerteza de um qualquer requerente de autorização de residência. Ou seja, o Requerente não alegou a indispensabilidade do presente meio processual para salvaguardar direitos, liberdades e garantias que, no seu caso concreto – N… – estejam na eminência de ser atropelados, não se tendo também predisposto a produzir qualquer prova, nomeadamente testemunhal. O Requerente limitou-se a alegar, de forma genérica, que o facto de o procedimento administrativo atinente à emissão de autorização de residência não se encontrar ainda concluído, impede a emissão do título de residência e do exercício de alguns direitos constitucionalmente consagrados, como o direito à saúde ou à educação, encontrando-se limitado nas suas deslocações, inclusive pela Europa, privado da companhia dos seus familiares e amigos e correndo o risco de ser detido pela Polícia. O invocado pelo Requerente carece de densificação e descreve um circunstancialismo fático que é transversal a qualquer cidadão estrangeiro que se encontre em Portugal a aguardar a decisão da administração quanto à sua autorização de residência e, portanto, sente receio, ansiedade, agonia, saudades de casa e dos seus familiares. Por sua vez, limita-se a aludir à jurisprudência e doutrina selecionadas, que permitem a possibilidade de recurso ao presente meio processual em situações que, em abstrato e de forma hipotética, podem até ser semelhantes à sua, mas não aduz factos concretos que permitam a este tribunal fazer o enquadramento fáctico-jurídico concreto habilitador de tal juízo no seu caso concreto, no caso de N…. Diga-se, ademais, que todas as alegações aduzidas pelo Requerente, e em particular as constantes dos segmentos “Em concreto” são feitas em muitos outros requerimentos iniciais, já apresentados neste Tribunal Administrativo de Círculo, nomeadamente nos processos n.º 3920/23.0BELSB e 3894/23.8BELSB, de que a ora signatária também é titular. Atento o exposto, é, pois, evidente que o meio processual urgente que o Requerente elegeu é inadequado para assegurar a sua pretensão, na medida em que não se encontram reunidos os requisitos previstos no já mencionado artigo 109.º do CPTA, porquanto não foram alegados factos concretos que permitam concluir que a emissão urgente de uma decisão de mérito é absolutamente indispensável para assegurar, em tempo útil, o exercício de um direito, liberdade e garantia, razão pela qual urge julgar verificada a exceção dilatória inominada de impropriedade do meio processual, que determina a nulidade de todo o processado, sem possibilidade de aproveitamento ou convolação, nos termos e para os efeitos do artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4, do CPTA, impondo-se a absolvição da instância da Entidade Requerida – cfr. artigos 278.º, n.º 1, alínea e) e artigos 278.º e 279.º do CPC ex vi do artigo 1.º do CPTA.
(…).”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pelo autor.

Antes de mais, àquele que lança mão de uma intimação para protecção de direito, liberdades e garantias, cabe alegar factos que traduzam uma situação de indispensabilidade de uma tutela definitiva urgente, o que, naturalmente, se associa à demonstração da insuficiência de tutela através de uma acção administrativa, de natureza não urgente, ainda que associada ao decretamento de uma providência cautelar. Dependendo a utilização de tal meio processual da verificação de pressupostos legalmente definidos, a demonstração dessa verificação cabe a quem do mesmo se pretenda valer, devendo tal revelação assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
Ora, o recorrente limita-se a alegar que deu entrada do seu pedido para concessão de autorização de residência, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007 de 04 de Julho, através de manifestação de interesse apresentada junto da entidade demandada, em 12.08.2022, tendo entrado legalmente em território nacional e apresentado toda a documentação legal exigida para o efeito junto do SEF, não tendo o seu pedido sido, até à data, objecto de decisão. Mais alega que trabalha há mais de doze meses indocumentado e sob ameaça constante de despedimento (embora refira que tem um trabalho estável); que não revê a sua família na Índia há mais de três anos; que não se sente tranquilo, sequer para andar em público, por estar em situação irregular em território português, em virtude de não dispor de autorização de residência; e que, apesar de descontar mensalmente, desde Agosto de 2022, a favor da Segurança Social, e pagar impostos em território português, apenas tem acesso ao sistema de saúde se pagar a integralidade das taxas. Neste cenário, e em face da omissão de decisão do seu pedido de autorização de residência, invoca (i) a violação do dever de decisão que impende sobre a entidade demandada, nos termos do n.º 5 do artigo 82.º da referida lei e do artigo 13.º do Código do Procedimento Administrativo, (ii) a violação dos seus direitos à segurança no emprego, à vida familiar, à liberdade e à segurança, à identidade pessoal, e à protecção da saúde, consagrados, respectivamente, nos artigos 53.º, 36.º, 27.º, 26.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa, (iii) a violação dos princípios da confiança, da decisão, da eficiência, da celeridade e da boa administração, previstos no Código do Procedimento Administrativo, bem como do princípio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição.
Todavia, não concretiza minimamente a ameaça de tais direitos, de modo a aferir-se da necessidade de uma tutela definitiva urgente. Efectivamente, o autor recorrente não descreve uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para o recorrente na concessão de autorização de residência. Tal carência de alegação factual basta, só por si, para concluir pela falta de verificação dos pressupostos de recurso a este meio processual, atendendo a que tais pressupostos carecem de concretização, não sendo aferíveis em geral e abstracto, antes casuisticamente, em face de uma determinada e específica situação individual e concreta.
Nas conclusões das suas alegações, veio o recorrente afirmar que a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, “é o único instrumento legal adequado” à defesa dos interesses que pretende fazer valer e dos valores constitucionais associados. Todavia, trata-se de uma mera – e extemporânea – conclusão sem qualquer substracto factual. Mais refere que um processo cautelar depende de uma acção principal, que poderá demorar anos, aos longo dos quais o mesmo se manterá num estado de incerteza. Mas tal constatação desconsidera, em absoluto, a tutela que o processo cautelar assegura.
Sem embargo, o certo é que a sentença recorrida considerou que “(…) o meio idóneo para a pretensão formulada é a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – e não o procedimento cautelar (…)”, o que retira sentido à alegação do recorrente.
De todo o modo, sempre se dirá que, ao contrário do considerado pelo tribunal a quo, atentos os contornos factuais alegados, a situação de facto descrita pelo autor recorrente é susceptível de ser acautelada com a adopção de uma providência cautelar que intime a entidade demandada a emitir um título de residência provisório, de modo a permitir que o autor permaneça, de modo regular, em Portugal até ser proferida decisão em acção principal de condenação a decidir o pedido de autorização de residência, não se mostrando, assim, imprescindível, nem sequer necessário, que se decida definitivamente com carácter urgente se o autor tem direito à emissão de autorização de residência.
Tal decretamento, para além de suficiente para tutela dos direitos cuja violação o recorrente invoca, não põe em causa o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território português, constante da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, considerando que a entidade a quem cabe decidir o pedido de autorização de residência não se pronunciou ainda sobre o preenchimento das condições legalmente previstas para a concessão de tal autorização.
Ante o exposto, nem se revela indispensável a emissão de uma decisão de mérito urgente para assegurar o exercício, em tempo útil, dos direitos que o autor invoca, nem é impossível ou insuficiente para o efeito o decretamento de uma providência cautelar, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
Por fim, insurgindo-se o recorrente contra a falta de “acatamento”, por parte do Tribunal a quo, da jurisprudência que invoca para sustentar a idoneidade da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias no caso em apreço, cabe referir que o sentido de tal jurisprudência não é independente da factualidade alegada em cada uma das situações concretas a que se reporta (antes sendo por ela condicionada). Acresce que a “jurisprudência” – correspondente ao conjunto de decisões dos tribunais de recurso – não tem, no nosso sistema jurídico, força vinculativa fora do processo a que respeita. Nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, aplicável aos tribunais administrativos por força do artigo 7.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.”, donde se retira que tal dever de acatamento apenas opera no próprio processo a que respeita.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.


Lisboa, 11 de Abril de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Ricardo Ferreira Leite
Carlos Araújo