Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1755/10.0BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:03/14/2024
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
AUDIÇÃO PRÉVIA
FALTA DE NOTIFICAÇÃO A MONTANTE
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário:I – Na falta de apresentação de declaração de rendimentos no prazo legal, a AT procede à liquidação oficiosa nos termos do disposto no artigo 83.º do CIRC, com base na matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada.
II - O artigo 60.º da LGT impõe que, neste caso, se faculte ao contribuinte a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia.
III - Não é pelo facto de o contribuinte não cumprir com um dever declarativo a que está legalmente vinculado, que legitima a AT a desrespeitar o direito de participação na definição da sua situação tributária, quando em nenhum momento prévio à emissão da liquidação foi chamado a pronunciar-se.
IV - A dispensa de audição prévia inerente às liquidações oficiosas constante no artigo 60.º, nº2, alínea b), da LGT, encontra-se subordinada à prévia notificação para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.
V - Em respeito pelo princípio do inquisitório, o Juiz deve realizar todas as diligências ao seu alcance, por forma a atingir a verdade material e, assim, o interesse público, no entanto o mesmo tem de ser interpretado, sopesando as concretas exigências em termos de distribuição do ónus da prova, sob pena de violação inclusive do princípio da igualdade de armas.
Indicações Eventuais:Subsecção tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


l – RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de leiria, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por “Sociedade Agropecuária J…, Lda” tendo por objeto decisão de indeferimento do recurso hierárquico interposto do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), do exercício 2007, no valor de €10.031,87.


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A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“A. Concluiu o douto tribunal que ocorreu a violação do direito de participação que assistia à impugnante e, nessa medida, procedeu à anulação do ato impugnado.

B. Não podemos deixar de dissentir da decisão proferida, pelas razões que sustentam o presente recurso, sob o prisma do que julgamos terem sido erros de julgamento;

C. Na decisão do Tribunal a quo a Impugnação Judicial foi julgada procedente, por ter considerado que a Autoridade Tributária e Aduaneira tinha o dever de realizar audição prévia da Recorrida, antes de emitir a liquidação oficiosa, tendo sido afastada a aplicação do disposto na alínea b), do n.º 2 do art.º 60.º da LGT, que prevê a dispensa de audição prévia.

D. Em síntese, a fundamentação vertida na decisão do Tribunal a quo viola o disposto nas normas previstas na alínea b) do n.º 2 do art.º 60.º da LGT, no n.º 2 do art.º 77.º da LGT, e na alínea b) do n.º 1 do art.º 83.º do CIRC.

E. A decisão do Tribunal a quo de afastar a aplicação do disposto na alínea b), do n.º 2 do art.º 60.º da LGT, quanto à liquidação oficiosa em apreço nos presentes autos, constitui um erro de julgamento decorrente da incorreta interpretação do quadro normativo aplicável, no que concerne ao exercício do direito de audição prévia, antes da liquidação.

F. Salientamos que a dispensa de audição prévia antes da liquidação, nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 60.º da LGT, está condicionada à verificação de três pressupostos: falta de apresentação de declaração do contribuinte, a notificação do contribuinte pela AT para que aquele proceda à entrega da declaração, no prazo concedido na notificação para o efeito e a não entrega de declaração pelo contribuinte dentro do prazo concedido na notificação para o efeito.

G. No âmbito da liquidação oficiosa de IRC, do período de 2007, os três pressupostos necessários para a dispensa de audição prévia encontram-se reunidos.

H. Havendo falta de apresentação de declaração de rendimentos por parte da impugnante, a liquidação oficiosa foi efetuada tendo por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada, nos termos previstos na parte final da alínea b) do n.º 1 do art.º 83.º do CIRC.

I. O método legalmente previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC subsume-se no conceito de liquidação oficiosa efetuada «com base em valores objectivos previstos na lei», expresso na alínea b) do n.º 2 do art.º 60.º da LGT.

J. Deste modo, quando a AT procede à emissão de uma liquidação oficiosa, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 83.º do CIRC, encontra-se dispensada de realizar audição prévia do sujeito passivo, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 60.º da LGT.

K. A impugnante foi notificada da obrigação de entregar declaração de rendimentos independentemente de ter ou não exercido atividade no período de tributação (2007) relativamente ao qual foi notificada para apresentar declaração de rendimentos, sob pena de emissão de liquidação oficiosa.

L. Destarte, e ao contrário do decidido, entende a Fazenda Pública, com a ressalva pelo devido respeito, que a AT logrou carrear para os autos acervo documental bastante para evidenciar o envio da notificação para apresentação da declaração, mediante a identificação em sede de contestação do correspondente número de registo CTT: RYR 2008 471055555 e Data de Registo. CTT: 2008-11-04.

M. Sendo certo que, caso assim não entendesse, teria o Tribunal ao seu dispor o poder -dever de requisitar novos documentos, realizando e promovendo as diligências ou atos úteis ao apuramento da verdade (em face da prova levada aos autos pela AT – prints informáticos), que complementariam os já existentes.

N. Neste conspecto, a dispensa de audição prévia prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 60.º da LGT constitui uma limitação à participação da Recorrida que é resultante da lei, à qual a AT está absolutamente vinculada.

O. A solução legislativa da dispensa de audição prévia prevista nos termos da alínea b) do n. º 2 do art.º 60.º da LGT afigura-se equilibrada porque apenas limita a participação do sujeito passivo, quando este notificado de modo expresso de que a falta de apresentação dessa declaração conduzirá à emissão de uma liquidação oficiosa, adota uma conduta intencionalmente omissiva no cumprimento da obrigação de declaração de rendimentos, manifestando de modo tácito que se desinteressou por participar no procedimento antes da emissão da liquidação oficiosa.

P. A interpretação do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 60.º da LGT, no sentido de que a AT não se encontrava dispensada de realizar a audição prévia à Recorrida, é violadora do conteúdo do preceito, por se verificarem todos os três pressupostos de que a norma faz depender a dispensa da audição prévia.

Q. Pelo que deixámos dito, entendemos que a sentença recorrida fez um incorreto julgamento da questão, motivo por que presente recurso deverá merecer provimento.

R. Por tudo o exposto, deverá então ser revogada a sentença recorrida, e julgada improcedente a presente impugnação judicial.

Nestes termos e nos restantes de Direito que o distinto Tribunal entender por bem suprir, advoga a Representação da Fazenda Pública a procedência do presente recurso jurisdicional, determinando-se a revogação da sentença do Tribunal a quo e, desse modo, julgar improcedente a impugnação judicial interposta pela Recorrida, com o que V. Exas. farão a almejada Justiça!”


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O Recorrido devidamente notificado para o efeito, optou por não apresentar contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.

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II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

“Com base nos documentos junto aos autos e no processo administrativo (PA) apenso considera-se provada a seguinte matéria de facto, com relevância para a decisão:

1. Em 16/4/2007 a agora impugnante apresentou a declaração modelo 22, com registo nº 2089-C0034-6, relativa aos rendimentos do exercício de 2005, em cujo Quadro 07 apurou a lucro tributável de € 45.742,54, de que resultou, após dedução de prejuízos no montante de € 30.516,14, o apuramento da matéria coletável de 15.236,40 – fls. 48 a 51 do PA e doc. 3 anexo à reclamação graciosa, a fls. 16 a 19 do processo gracioso nº 2089200904000846 em apenso;

2. A AT não tratou a declaração acima referida, deixando-a no estado de “não liquidável”, por considerar que o sujeito passivo já não dispunha do direito de deduzir prejuízos de anos anteriores, por ter verificado em ação inspetiva externa reportada ao exercício de 2002 que para esse exercício deveria ter sido declarado lucro, e vez de prejuízo, e deveria ter sido liquidado imposto a pagar, pelo que também fez a correspondente correção nos exercícios de 2003, 2004 e 2005 – fls. 68 do PA;

3. Para isso, em relação ao exercício de 2005, na mesma data (16/4/2007) a AT elaborou o documento oficioso declarativo a que foi atribuído o registo nº 2007.C0034.26 – fls. 32 do PA;

4. Em 25/2/2008 a AT procedeu à liquidação nº 2008.00003806 referente ao IRC de 2005, tendo por base a matéria coletável de € 45.742,54 – anexo 4 da reclamação graciosa, a fls. 20 do processo gracioso nº 2089200904000846 em apenso;

5. A sociedade impugnante não apresentou, no prazo legal, a declaração periódica de rendimentos (modelo 22) relativa ao exercício de 2006 – facto não litigioso, subjacente à liquidação impugnada e expressamente alegado no terceiro parágrafo de pág. 6 da informação que consta a fls. 69 do PA apenso;

6. Por isso, baseado na declaração referente ao ano 2005, em 30/11/2007 a AT elaborou oficiosamente o documento declarativo referente ao IRC do exercício de 2006, a que foi atribuído o registo nº 2008.60562.06, de que resultou a liquidação oficiosa nº 2008.08310007151, de 31/3/2008 – fls. 32 do PA e anexo 2 da reclamação graciosa, a fls. 15 do processo gracioso nº 2089200904000846 em apenso;

7. Em 27/11/2008 a impugnante apresentou a declaração modelo 22 do IRC referente aos rendimentos do exercício de 2006, mas a mesma não foi objeto de tratamento, quedando-se no estado de “não liquidável” (fora de prazo) – fls. 32, 56 a 59 e 69 do PA;

8. Relativamente a essas liquidações de IRC a agora impugnante deduziu as seguintes impugnações judiciais:


-fls. 72 do processo físico e consulta ao SITAF;

9. A sociedade impugnante não apresentou, no prazo legal, a declaração periódica de rendimentos (modelo 22) relativa ao exercício de 2007 – facto não litigioso, subjacente à liquidação impugnada e expressamente alegado no último parágrafo de pág. 6 da informação que consta a fls. 69 do PA apenso;

10. Por isso, baseado no resultado referente ao ano 2005 e 2006, em 30/11/2008 a AT elaborou oficiosamente o documento declarativo referente ao IRC do exercício de 2007, a que foi atribuído o registo nº 2008.60002.03 – fls. 32 do PA;

11. Em 29/1/2009 a AT procedeu à liquidação oficiosa nº 2009.8310002305, referente ao IRC de 2007, no montante de € 10.031,87, que notificou à agora impugnante para pagamento voluntário até 16/3/2009 – artigo 1 da presente impugnação e fls. 205 do processo físico e artigo da reclamação graciosa, que integra o processo gracioso nº 2089200904000846 em apenso e cópia da notificação da nota demonstrativa da liquidação, que consta a fls. 14, como anexo 1 dessa reclamação;

12. Da notificação da demonstração da liquidação acima aludida consta, além do mais: “Fica V. Exª notificado(a) para, no prazo de 30 dias (…) efectuar o pagamento da importância apurada proveniente da liquidação oficiosa de IRC relativa ao exercício da que respeitam os rendimentos, efetuada nos termos da alínea b) do nº 1 do art.º 83º do CIRC, por falta de entrega da declaração de rendimentos, conforme nota demonstrativa junta. (…)” - fls. 205 do processo físico e fls. 14 do processo gracioso nº 2089200904000846 em apenso;

13. A “matéria coletável” considerada tinha o valor de €45.742,54 – campo 3 da referida nota demonstrativa integrada na aludida notificação;

14. Em 20/5/2009 deu entrada no Serviço de Finanças de Santarém o requerimento de reclamação graciosa contra a liquidação de IRC de 2007 acima aludida, no qual a agora impugnante arrolou três testemunhas – fls. 2 e seguintes do processo de reclamação graciosa nº 2089200904000846 em apenso;

15. Por despacho de 5/2/2010 a AT indeferiu a reclamação graciosa referida no ponto anterior – fls. 48 a 67 do processo de reclamação graciosa nº 2089200904000846 em apenso;

16. Notificado, em 1/4/2010 a agora impugnante deduziu recurso hierárquico contra a decisão aludida no ponto anterior, alegando, além do mais, que não foram inquiridas as testemunhas arroladas por si – fls. 1 e seguintes do processo de recurso hierárquico em apenso;

17. Por despacho de 4/8/2010 a AT indeferiu o recurso hierárquico aludido no ponto anterior – fls. 24 a 28 do processo de recurso hierárquico em apenso e

18. Por oficio nº 1878, de 2/9/2010, enviado sob registo postal cujo aviso de receção foi assinado em 3/9/2010, a AT notificou a agora impugnante, na pessoa do seu mandatário judicial, do teor da decisão aludida no ponto anterior -– fls. 30, frente e verso, do processo de recurso hierárquico em apenso;

19. Em 30/11/2010, por via eletrónica (e-mail), a agora impugnante apresentou a petição inicial da presente impugnação judicial – carimbo a fls. 1, e seguintes, do processo físico;


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Com relevância para a boa decisão das questões a apreciar consideram-se não provados os seguintes factos;

1. Em 4/11/2008, sob registo postal nº RYR2008 471055555 dessa data, a AT remeteu à agora impugnante um aviso da falta de entrega da declaração de rendimentos modelo 22 do exercício de 2007 – artigo 9º da contestação; para comprovar essa afirmação a AT apenas junta um print retirado do seu próprio sistema informático, conforme fls. 63 do PA e 28 do Recurso Hierárquico em apenso; desacompanhado de cópia do oficio de notificação e do talão de registo postal com o número indicado ou com outro, aquele print não é, só por si, documento idóneo para provar a remessa de uma notificação, que essa notificação se referia à falta de entrega da declaração modelo 22 de IRC do ano 2007 e que esse oficio foi efetivamente remetido para o domicilio fiscal da impugnante sob registo postal; além disso, consta do referido print que o mesmo se refere ao um “Reg. Simpl”, assumindo-se que isso significa que houve “registo simples” de alguma correspondência; porém, uma vez que o registo simples não assegura a entrega da carta nem o aviso para levantar o correio, não poderia servir de meio de prova com os efeitos pretendidos pela AT;


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A decisão da matéria de facto fundou-se no seguinte:

“O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e ao PA, que não foram impugnados, e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados – artigo 74º da LGT - também são corroborados pelos documentos juntos aos autos - artigos 76º, nº 1, da LGT e 362º e seguintes do Código Civil (CC) – identificados em cada um dos factos descritos no probatório.

Os factos não provados foram assim julgados por não ter sido feita qualquer prova quanto aos mesmos.”


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III.FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação oficiosa de IRC, do exercício de 2007, determinando a sua anulabilidade.

Importa, desde já, ter presente que, em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se:

i. Existiu preterição do direito de audição prévia que assistia à Recorrida, violando-se, assim, o disposto no artigo 60.º da LGT.

ii. Se encontrava dispensada a realização de audição prévia, subsumindo-se a questão no artigo 60.º, nº2, alínea b), da LGT.

Apreciando.

Alega a Recorrente que a decisão recorrida padece de erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de direito, porquanto preteriu o disposto nas normas previstas na alínea b), do n.º 2, do artigo 60.º da LGT, no n.º 2 do artigo 77.º da LGT, e na alínea b), do n.º 1, do artigo 83.º do CIRC.

Densifica, para o efeito, que a dispensa de audição prévia antes da liquidação, nos termos da alínea b), do n.º 2, do artigo 60.º da LGT, está condicionada à verificação de três pressupostos, concretamente, falta de apresentação de declaração do contribuinte, notificação do contribuinte pela AT para que aquele proceda à entrega da declaração, no prazo concedido na notificação para o efeito e a não entrega de declaração pelo contribuinte dentro desse prazo, os quais, in casu, se encontram integralmente preenchidos.

Densifica, para o efeito, que inversamente ao propugnado na decisão recorrida existiu prévia notificação para entrega da declaração de rendimentos em falta, relativamente ao IRC de 2007, não tendo existido uma adequada interpretação dos elementos carreados aos autos. Ademais, sempre estaria o Tribunal a quo vinculado a requisitar novos elementos, diligência que não materializou.

Por seu turno, o Tribunal a quo considerou que a AT preteriu formalidade essencial concatenada com a falta de notificação para o exercício de audição prévia a qual não se encontrava dispensada visto que a realidade fática não é passível de subsunção normativa no artigo 60.º, nº2, alínea b), da LGT, atenta a ausência de notificação para apresentação de declaração de rendimentos.

Vejamos, então, se a decisão recorrida padece do arguido erro de julgamento de direito, começando por convocar o quadro jurídico que releva para o caso dos autos.

De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 112.º do CIRC, na redação em vigor à data, a declaração periódica de rendimentos a que se refere a alínea b), do n.º 1 do artigo 109.º, comummente designada Declaração Modelo 22 do IRC “[d]eve ser apresentada anualmente, em qualquer serviço de finanças, em suporte de papel ou magnético, ou enviada via Internet até ao último dia útil do mês de maio”.


Em termos de procedimento e forma de liquidação, importa convocar o disposto no artigo 83.º do CIRC, segundo o qual:


“1 - A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo contribuinte nas declarações a que se referem os artigos 112º e 114º, tem por base a matéria coletável que delas conste;

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 112º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no nº 2 do referido artigo, até ao fim do 6º mês seguinte ao do termo do prazo para a apresentação da declaração aí mencionada e tem por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.”

Conforme resulta expresso do teor do artigo 83.º, nº1, alínea a), do CIRC, a liquidação do IRC é, por regra, uma autoliquidação do sujeito passivo, a qual tem por base a matéria coletável declarada na declaração periódica de rendimentos.


Porém, na falta de apresentação da Declaração de Rendimentos Modelo 22 referida no citado artigo 112.º, do CIRC, a liquidação é efetuada oficiosamente pela AT e tem por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada, ou na sua falta, de acordo com os elementos na sua disponibilidade.


A liquidação oficiosa faz-se, assim, por definição com base num rendimento presumido por inexistirem, no prazo legal, elementos declarados pelo sujeito passivo.


Não obstante o exposto, preceitua o citado artigo 83.º, nº 10, do CIRC que a liquidação pode ser corrigida dentro dos prazos de caducidade do direito à liquidação e em conformidade com o preceituado nos artigos 45.º e 46.º da LGT.

Mais preceituando o artigo 95.º do CIRC que “[a] Direcção-Geral dos Impostos procede oficiosamente à anulação, total ou parcial, do imposto que tenha sido liquidado, sempre que este se mostre superior ao devido, nos seguintes casos: a) Em consequência de correção da liquidação nos termos dos n.ºs 9 e 10 do artigo 83º ou do artigo 92º”.

Importando, ainda neste âmbito, ter presente que a mera apresentação da Declaração de Rendimentos Modelo 22, fora do prazo legal não implica, per se, a anulação da liquidação oficiosa, porquanto não goza da presunção de verdade declarativa, a qual, no entanto, não é estendida à contabilidade. (1-Vide Acórdão do STA, proferido no processo nº 0220/11.2BEVIS, de 05.12.2018. No mesmo sentido, vide Acórdãos deste TCA, proferidos nos processos nºs 506/14 e 751/11, de 25.06.2019 e 20.02.2020, respetivamente.)

No domínio da audição prévia cumpre chamar à colação e tecer ainda os seguintes considerandos de direito. O princípio da audiência prescrito nos artigos 100.º e seguintes do CPA assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação consagrado no artigo 8.º do mesmo Código, surgindo na sequência e em cumprimento do comando constitucional contemplado no artigo 267.º da CRP, obrigando o órgão administrativo competente a, de alguma forma, associar o administrador à preparação da decisão final, transformando tal princípio em direito constitucional concretizado.

Tal princípio veio, igualmente, a ser acolhido no âmbito do procedimento tributário no artigo 60.º da LGT, sob a forma de “direito de audição do contribuinte”, e no artigo 45.º do CPPT.

De harmonia com o disposto no artigo 60.º da LGT, sob a epígrafe de direito de participação, com a redação, à data, aplicável dispunha-se que:

“1- A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou ato administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indiretos, quando não haja lugar a relatório de inspeção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspeção tributária.

2-É dispensada a audição:

a) No caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;

b) No caso de a liquidação se efetuar oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.

3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais se não tenha pronunciado.

4 - O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.

5 - Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projeto da decisão e sua fundamentação (…).”

Resulta, assim, do regime jurídico traçado anteriormente, que é imposto o direito de audição antes da liquidação, antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, antes da decisão de aplicação de que é imposto o direito de audição antes métodos indiretos, e antes da conclusão do relatório da inspeção tributária, só sendo dispensada tal formalidade quando o sujeito passivo já teve oportunidade de o fazer na fase do procedimento, que culminou nos atos de liquidação, e nas demais situações enunciadas no transcrito nº 2, do artigo 60.º da LGT, entre elas a inerente às liquidações oficiosas subordinada, para o efeito, à prévia notificação para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.


Com efeito, o direito de audiência prévia de que goza o administrado incide sobre o objeto do procedimento, tal como ele surge após a instrução e antes da decisão. Daí que, estando em preparação uma decisão, a comunicação feita ao interessado para o exercício do direito de audiência deve dar-lhe conhecimento do projeto da mesma, a sua fundamentação, com todos os elementos que nortearam o apuramento adicional de imposto, o prazo em que o mesmo pode ser exercido e a informação relativa à possibilidade de exercício do citado direito por forma oral ou escrita (2-Cfr.Ac. STA, proferidos nos processos nº.21244; rec.684/03, datados de 25.1.00 e 2.7.03; Ac TCAS, processo nº 1510/06, de 17.09.2013 Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4ª. Edição, 2012, pág.502 e seg.).


Razão pela qual, a falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada (cfr.artigo 135, do CPA, então em vigor; Ac.TCAS processo nº 9810/16 e 5428/12, de 27.10.2016 e 9.03.2017.; Diogo Leite de Campos e Outros, ob.cit., pág.515; Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.437).


Ora visto o quadro normativo e tecidos os considerandos de direito que se reputam de relevo para o caso dos autos, ajuizamos que a decisão recorrida não padece dos erros de julgamento que lhe são assacados, porquanto foi realizada uma adequada interpretação do regime jurídico com uma idónea transposição para o caso vertente.


Senão vejamos.


De relevar, ab initio, que a Recorrente não procedeu à impugnação da matéria de facto em ordem aos requisitos consignados no artigo 640.º do CPC, não requerendo qualquer aditamento por complementação ou supressão do probatório, limitando-se a tecer juízos de valor quanto a erróneas interpretações da factualidade em contenda, acarretando, assim, que a mesma se encontre devidamente estabilizada.


E por assim ser, encontrando-se firmada a matéria de facto, há, desde logo, que sublinhar que o presente recurso se encontra votado ao insucesso, porquanto o recorte probatório dos autos inviabiliza, per se e como veremos, a propugnada dispensa de audição prévia.


Explicitemos, então, por reporte ao acervo fático dos autos.


Resulta do probatório que a Recorrida não apresentou, no prazo legal, a declaração periódica de rendimentos, Modelo 22, relativa ao exercício de 2007, motivando, assim, que a AT, tendo por base o resultado referente aos exercícios de 2005 e 2006, emitisse, em 29 de janeiro de 2009, ato de liquidação oficiosa nº 2009 8310002305, no montante de € 10.031,87, o qual foi notificado à Recorrida e facultava prazo de pagamento voluntário até ao dia 16 de março de 2009.


Dimanando, igualmente, do probatório que não resultou provada a remessa, a 4 de novembro de 2008, sob registo postal nº RYR2008 471055555, de aviso endereçado à Recorrida advertindo-a da falta de entrega da declaração de rendimentos Modelo 22, respeitante ao exercício de 2007.

E a verdade é que, face à realidade de facto supra evidenciada, a situação não pode ser enquadrada e compreendida na dispensa de audição prévia, na medida em que não resultou provado o ato prévio que, no caso das liquidações oficiosas, legitima essa mesma dispensa.

Com efeito, como vimos, a letra da lei é clara e estatui que apenas se encontra dispensada a audição prévia nas situações de liquidação oficiosa desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, e sem que o tenha feito.

Como doutrinado no Aresto deste TCAS, proferido no processo nº 835/08, datado de 08.07.2021, relatado pela, ora, Relatora, cujo sumário se extrata na parte que para os autos releva, designadamente, o seguinte:

“I – Na falta de apresentação de declaração de rendimentos no prazo legal, a AT procede à liquidação oficiosa nos termos do disposto no artigo 83.º do CIRC, com base na matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada.

II - O artigo 60.º da LGT impõe que, neste caso, se faculte ao contribuinte a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia.(…)

IV-Não é pelo facto de o contribuinte não cumprir com um dever declarativo a que está legalmente vinculado, que legitima a AT a desrespeitar o direito de participação na definição da sua situação tributária, quando em nenhum momento prévio à emissão da liquidação foi chamado a pronunciar-se.” [no mesmo sentido, vide, igualmente, Acórdãos do STA, proferidos nos processos nºs 01102/13, e 22/08, de 18.06.2014, e 23.04.2008, e TCAS, proferidos nos processos nºs 9503/16, e 567/17, de 08.07.2021, e 28.02.2019].

No caso essa notificação não resulta provada, tendo o Tribunal a quo motivado essa asserção –a qual se secunda- relevando, designadamente, que a AT se limitou a juntar um print retirado do seu próprio sistema informático, desacompanhado de cópia do ofício de notificação e do talão de registo postal com o número indicado ou com outro, não sendo, por si só, documento idóneo para provar a remessa de uma notificação. Adensando, outrossim, que, de todo o modo, nos encontraríamos perante um registo simples.

E, de facto, tal juízo de entendimento não merece qualquer censura, não logrando, neste particular, mérito a alegação atinente ao inquisitório. E isto porque, não obstante o mesmo seja um princípio norteador e basilar no procedimento tributário a verdade é que o mesmo não pode subverter o ónus probatório que impende sobre as partes, sendo que, in casu, é perentório que competia à AT demonstrar, de forma inequívoca, que realizou a notificação que advoga. Logo, se a prova carreada aos autos se afigura insuficiente e inidónea não compete ao Tribunal substituir-se à parte e requerer quaisquer outras diligências tendentes a provar, de forma evidente, a notificação em contenda.

O que significa, portanto, que em respeito pelo princípio do inquisitório, o Juiz deve realizar todas as diligências ao seu alcance, por forma a atingir a verdade material e, assim, o interesse público, no entanto o mesmo tem de ser interpretado, sopesando as concretas exigências em termos de distribuição do ónus da prova, sob pena de violação inclusive do princípio da igualdade de armas.

Por outro lado, secunda-se, outrossim, o ajuizado quanto ao concreto âmbito do visado ofício, e bem assim à própria formalidade atinente ao “registo simples” -sendo certo que nesse concreto particular a Recorrente nada apartou quanto às dilucidações constantes na decisão recorrida- transcrevendo-se, na parte que para os autos releva, o seguinte:

“[o] referido “print” não é idóneo, só por si, para provar que a AT efetuou algum registo postal que tivesse sido efetivamente entregue aos CTT, para distribuição.

Além disso, mesmo que tivesse sido entregue aos CTT algum registo postal com o número indicado, esse “print” não prova, só por si, que o “objeto postal” foi remetido ao identificado sujeito passivo (a agora impugnante).

Acresce que, por não existir qualquer cópia do objeto alegadamente remetido sob registo é impossível saber o seu conteúdo, designadamente se se tratava de um oficio ou “aviso” contendo notificação da falta de entrega da declaração modelo 22 do exercício de 2007 e o convite para o suprimento da falta em determinado prazo.

A falta da cópia dessa suposta comunicação e a falta do talão de registo impossibilitam a aferição do local indicado como domicilio da pessoa a notificar.

Uma vez que a impugnante alega não ter recebido a carta, querendo dizer que a AT não comprova a sua remessa nos termos lei (para o domicilio fiscal e com o conteúdo adequado aos fins pretendidos), compete à AT o ónus da prova dessa remessa e de que a carta foi corretamente endereçada.

Por tudo isso, a jurisprudência tem entendido que os prints internos, retirados do sistema informático da AT, não são documentos idóneos para fazer tal prova. (cf., por exemplo, Ac. TCAS, de 13/10/2017, proc.º 1245/09.3BEALM).

Além disso, do referido print consta a referência “reg. simpl”, dando a entender que se tratou de um “registo simples”, com o nº RYR2008 471055555, de 4/8/2011.

A jurisprudência tem entendido, como no Ac. STA de 8/1/2020, proc.º 01639/17.0BELRA, que “III - O registo simples, em que a única certeza que existe é que a expedição terá ocorrido em determinada data, não oferece suficientes garantias de assegurar que o acto de notificação foi colocado na esfera de cognoscibilidade do destinatário e acarreta um ónus desproporcionado por impossibilidade de ilisão da presunção de depósito da carta no receptáculo, quando existe risco de extravio, não podendo servir para fundar a presunção estabelecida no n.º 1 do art. 39.º do CPPT.”

Ora, face a todo o expendido anteriormente, conclui-se que não resultando provado que a Recorrida foi notificada para apresentar declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, respeitante ao IRC de 2007, nos termos da citada alínea b), do nº 2, do artigo 60.º da LGT, a audição prévia do contribuinte não se encontra dispensada pelo que a sua omissão constitui preterição de formalidade essencial, cominando, nessa medida, o ato impugnado de anulabilidade. Quanto à aplicabilidade do princípio do aproveitamento do ato administrativo nada há a discernir e apreciar, porquanto o Tribunal a quo afastou, expressamente, tal possibilidade e a Recorrente, nesse e para esse efeito, nada contestou e sindicou, estando, por isso, firmada a questão.

Destarte, face a todo o expendido e sem necessidade de quaisquer considerandos adicionais, improcede, na íntegra, o presente recurso jurisdicional, mantendo-se, por conseguinte, o julgado anulatório sentenciado pelo Tribunal a quo.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, SUBSECÇÃO COMUM, deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 14 de março de 2024

(Patrícia Manuel Pires)

(Jorge Cortês)

(Cristina Coelho da Silva)