Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06090/10
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:11/25/2010
Relator:PAULO CARVALHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA-CONTRATUAL, CRIME, PRAZO DE PRESCRIÇÃO.
Sumário:Tendo sido alegados na p. i. factos que provados podem consubstanciar crime, fazendo o prazo de prescrição ser de cinco anos por força do artº 498.3. CC, tendo sido invocada a excepção de prescrição por a acção ter sido proposta depois de decorrido o prazo de três anos mas não o de cinco anos, só após a produção de prova, só após sabermos se os factos que consubstanciam crime ocorreram ou não, é que é possível saber se a prescrição procede ou improcede.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Recorrente: A....
Recorrido: Hospital Egas Moniz, S. A. e Hospital de S. João do Porto.
Vem o presente recurso interposto da Sentença de fls. 350 que decidiu absolver os RR do pedido, por julgar procedente a excepção de prescrição.
Foram as seguintes as conclusões do recorrente:
I- Alegou o A os factos necessários à qualificação da actuação dos representantes das RR como ilícitos de natureza criminal, mais precisamente crimes de ofensa à integridade física por negligente, previsto e punível no artigo 148° do Código Penal.
II- Assim, o prazo de prescrição do direito de indemnização deles resultantes, esgrimido nesta acção, não é o de três anos, mas sim o de 5 anos, previsto no artigo 498° n.° 3 do CC e 118° n.° 1 alinea c) do Código Penal).
III - Não obsta à aplicação desse prazo o facto de o A não ter procedido à apresentação de queixa crime pelos factos alegados na acção, já que o legislador não faz depender a aplicação do prazo quinquenal do exercício do direito de queixa.
IV- Tendo a acção dado entrada em juízo cerca de 4 anos após o conhecimento do direito de indemnização, foi a mesma atempadamente proposta, presumindo-se a citação das RR 5 dias após a entrada no Tribunal.
V- De todo o modo, nunca se poderia ter conhecido, de imediato, a excepção em mérito, já que depende de matéria de facto ainda controvertida, devendo antes relegar-se o seu conhecimento para a sentença final.
VI- A douta sentença sob censura violou as normas dos artigos 498° n. 1 e 3 do Código Civil.
Foram as seguintes as alegações do recorrido Hospital de S. João:
1- O Apelante discorda da sentença proferida pelo Tribunal a quo, considerando que não se encontra prescrito o direito de indemnização, por entender que o prazo aplicável ao caso não é o de 3 anos, mas sim o de 5 anos por se tratar de facto ilícito criminal, nos termos do art. 498° n.°3 do C.C..
2- Sem razão, na perspectiva do Recorrido.
3- Conforme é referido na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, "em momento algum da petição inicial o A. invoca que os factos alegados consubstanciam crimes e muito menos que instaurou o correspondente processo criminal".
4- Não obstante alguma jurisprudência defender a tese de que o único requisito de que a lei faz depender a aplicação do prazo mais longo é o facto ilícito constituir crime e este ter um prazo de prescrição mais dilatado do que três anos, continua a impor-se que o A. manifeste a intenção de, ab initio, aproveitar-se do prazo de cinco anos por o facto ilícito constituir um crime.
5- Sendo a ratio legis do alongamento do prazo previsto no art. 498° n.° 3 a potencial complexidade e morosidade gerada pela gravidade do eventual crime, nada foi alegado pelo Autor, ora Recorrente, na respectiva petição inicial, que fundamente a necessidade de alongar por mais de 3 anos a instauração da acção cível.
6- Se esse não fosse o entendimento, criar-se-ia um facilitismo desproporcionado em relação ao aproveitamento do prazo de 5 anos que, em certos casos, resultaria num direito excessivo para o lesado em relação à simplicidade do ilícito criminal.
7- Se o crime de ofensa à integridade física por negligência for resultado de um indivíduo que, ao fechar uma porta, atingiu, sem querer, outra pessoa, o lesado vai dispor (automaticamente) de 5 anos para intentar uma acção cível?
8- Tal não parece razoável, á luz das regras da proporcionalidade e da justiça.
9- No caso sub judice, o Recorrente aproveita-se tão-só da alegação, na respectiva petição inicial, dos factos que sustentam a alegada responsabilidade civil para "colar-se" a uma eventual responsabilidade criminal com o único objectivo de evitar a prescrição.
10- Assim, ainda que não fosse necessário apresentar qualquer queixa- crime pelo Recorrente, ou ainda que o processo criminal fosse arquivado por amnistia, o Recorrente deveria ter alegado na petição inicial que os factos ilícitos constituíam um crime e que, dada a complexidade e gravidade do mesmo, tinha necessidade de se aproveitar do prazo de 5 anos conferido pelo art. 498° n.° 3 do Código Civil.
11- Por último, sempre se dirá que o crime invocado - ofensa à integridade física por negligência, p.p. art. 148° C.Penal - não é aplicável aos autos, uma vez que é alegada pelo Autor/Recorrente a violação das leges artis.

2. Foi a seguinte a factualidade assente pelo Acórdão recorrido:
1. Em 14.1.2000 A..., ora A., deslocou-se, em ambulância, ao Hospital Egas Moniz, ora 1º R (cfr. artigo 1º da p.i. e doc. 1 de fls. 26, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
2. Onde, tendo dado entrada no serviço de urgência, foi observado, foram-lhe ministrados os primeiros tratamentos médicos e foi submetido a uma cirurgia ao globo ocular esquerdo, que apresentava um traumatismo violento (cfr. artigos 3º, 8º a 10º da p.i., e artigos 45º e 56º da contestação do 1º R., e doc. 1 de fls. 26 e doc. 1 de fls. 137 a 138, idem);
3. E onde se manteve três dias em regime de internamento, até ao dia 17.1.2000 (cfr. artigo 12º da p.i. e artigo 104º da contestação e doc. 1 de fls. 26 e doc. 4 e 6, de fls. 141 a 143 e 146, ibidem);
4. No dia 20.1.2000 foi-lhe dada alta (cfr. artigo 15º da p.i. e doc. 1 de fls. 26);
5. Em Fevereiro de 2000, na cidade do Porto, o ora A. foi observado na clínica B...– Diagnóstico e Tratamento em Oftalmologia, Lda., pelo Sr. Dr. C...(cfr. artigo 18º da p.i.);
6. No mesmo mês, o ora A. foi submetido a uma intervenção cirúrgica, efectuada pelo Sr. Dr. D...na E..., tendo sido retirado um corpo estranho do seu globo ocular (cfr. artigos 23º e 24º da p.i. e doc. 2 de fls. 27, ibidem);
7. Em 7.3.2000, o A. foi observado pelo Hospital de S. João do Porto, ora 2º R., tendo-lhe sido ministrados tratamentos à vista e aplicadas injecções para as dores (cfr. artigo 45º da p.i. e doc.s 3 a 5, de fls. 28 a 33, ibidem);
8. Nos dias 8 e 14.3.2000, foi submetido a intervenções cirúrgicas na Clínica de Microcirurgia Ocular de Coimbra (cfr. artigos 54º e 55º e doc. 6, de fls. 24, ibidem);
9. Em 28.1.2004, o ora A. formulou pedido de apoio judiciário, nas modalidade de nomeação de patrono escolhido pelo requerente e dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, que veio a ser deferido em 23.3.2004 (cfr. docs. 14 e 15 de fls. 42 a 47 ibidem);
10. Em 29.4.2004 foi instaurada a presente acção (cfr. carimbo aposto na página de rosto de fls. 3).
O M. P. foi notificado para se pronunciar sobre o mérito do recurso.
O processo colheu os vistos legais e foi submetido à conferência.

3. São as seguintes as questões a resolver:
3.1. Verifica-se a prescrição ?

4.1. A sentença recorrida considerou que se verificava a prescrição pelo decurso do prazo de três anos do artº 498.1 CC, não havendo lugar ao prazo de cinco anos do artº 498.3 CC.
Disse-se na sentença recorrida para fundamentar a prescrição:
“Também não pode proceder a alegação de que as lesões sofridas são graves e os direitos devidos só prescreverem no prazo de 5 anos, por os factos que o A. alega na p.i. consubstanciarem vários crimes de ofensa à integridade física por negligência, previstos e puníveis nos termos do artigo 148º do Código Penal, cuja pena aplicável, em abstracto, é de prisão até dois anos ou multa até 240 dias, a que corresponde prazo de prescrição de cinco anos (alínea c) do nº 1 do artigo 118º do mesmo Código), pelo que, nos termos do nº 3 do artigo 498º do CC, é de cinco anos o prazo aplicável. Em momento algum da p.i. o A. invoca que os factos alegados consubstanciam crimes e muito menos que instaurou o correspondente processo criminal.”
Ora, não alegou na p. i., mas alegou na resposta às excepções junta a fls. 158, que é o lugar certo para responder às excepções. O autor não é obrigado a defender-se antecipadamente na p. i. das eventuais excepções que lhe podem vir a ser opostas, nem é obrigado a adivinhar se os RR vão invocar todas as excepções possíveis ou não.
Tendo alegado na p. i. factos que a provarem-se podem consubstanciar crime, tendo na resposta invocado que tais factos anteriormente alegados constituem crime, ou seja, tendo qualificado juridicamente como crime os factos já invocados na p. i., a prescrição não pode proceder sem se saber se os factos ocorreram ou não. Só após a produção de prova, é que é possível saber-se se houve ou não comportamento negligente, penalmente relevante. Ou seja, o conhecimento da excepção tem de ser relegada para final.
Diga-se ainda, que ao contrário do que se disse na sentença recorrida, o autor não estava obrigado a instaurar procedimento criminal. Essa exigência não vem prevista em nenhum lugar.
Esta solução é aliás a seguida pela jurisprudência já há muito tempo. Vide neste sentido, Ac. do STJ de 08/06/1995, proc. 086518, Ac. do STJ de 21/04/2004, proc. nº 04B3724, ambos consultáveis in www.dgsi.pt , podendo-se ler no primeiro dos citados Acórdãos:
“O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete (artigo 498 n. 1 do Código Civil) mas, no caso de o ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prazo mais longo de prescrição é esse o prazo aplicável (n. 3 do artigo 498, Código Civil).
- Face aos factos alegados, teria sido praticado crimes previstos e punidos pelo artigo 148 n. 3 Código Penal, pelo que teríamos um prazo de cinco anos - artigo 117 n. 1 alínea c), Código Penal.
- Acontece, porém, que o procedimento criminal respectivo depende de queixa, conforme se prevê no n. 4 do artigo 148, do Código Penal, sendo certo que esse direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses, a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores, nos termos do disposto no artigo 112 n. 1, do Código Penal.
- Daí que este Supremo Tribunal tenha defendido que "se o procedimento criminal depender de queixa que não tenha sido tempestivamente deduzida, ao direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual é aplicável, não o prazo mais longo de prescrição do respectivo procedimento criminal, conforme o n. 3 do artigo 498 do Código Civil, mas o prazo de três anos estabelecido no n. 1 do mesmo preceito" (Acórdão de 14 de Dezembro de 1988 - Boletim do Ministério da Justiça n. 382, página 488).
- Tal orientação foi afastada no acórdão de 22 de Fevereiro de 1994 ao firmar a doutrina de que: "o facto de estar extinto o direito de queixa não obsta a que a prescrição do direito de indemnização seja a de 5 anos, correspondente o eventual crime cometido" - Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, tomo I, página 126.
Entende-se ser a recente doutrina deste Supremo Tribunal a mais correcta pelas razões que se passa a expôr.
4. O verdadeiro alcance do n. 3 do artigo 498 do Código Civil só se surpreende quando se tenha presente os próprios fundamentos da prescrição: negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei; consideração de certeza e segurança jurídica; protecção dos obrigados contra as dificuldades da prova, etc. (Vaz Serra, Prescrição e caducidade, Boletim Ministério da Justiça n. 105, página 32; Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, página 445).
O legislador entendeu, perante os indicados fundamentos, que o prazo normal da prescrição do direito de indemnização seria o de três anos a partir do momento em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, a não ser que o facto ilícito constitua crime pois, nesse caso, atender-se-ia ao prazo de sua prescrição se fosse mais longo.
Compreende-se o propósito do legislador: poderá dizer-se que o fundamento especifico da prescrição de certo prazo estabelecido no n. 1 do artigo 498 do Código Civil (precisamente a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei) cessa quando o facto ilícito pode ser provado durante o prazo de prescrição do procedimento criminal. É este o sentido da doutrina (Antunes Varela, Das obrigações em geral, volume I, 6. edição, página 598; Vaz Serra, Prescrição do Direito de Indemnização, Boletim Ministério da Justiça n. 87, página 58).
A partir do momento em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete passou a contar com o prazo mais longo da prescrição penal (se o ilícito constituir crime e prescrever em prazo mais longo que o normal de três anos), de tal sorte que poderá exercitá-lo enquanto não decorrer tal prazo, o que equivale a dizer que o prazo mais longo para o exercício do seu direito de indemnização surge como um prazo integrado no instituto da prescrição civil, autónomo e dissociado do prazo da prescrição penal que esteve na sua origem.
A extinção do procedimento criminal por não exercício do direito de queixa não se repercute no prazo de prescrição mais longo - precisamente, o de cinco anos - do direito de indemnização, na medida em que, conforme se salientou, estar-se perante um prazo integrado no instituto da prescrição civil.
Só assim se pode entender a orientação segundo a qual se mantém a regra do n. 3 do artigo 498, mesmo que o crime haja entretanto sido amnistiado, apenas tendo o lesado de provar, na acção cível, que o facto ilícito constituía crime (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado volume I, 4. edição, página 504, Antunes Varela, Das obrigações em geral, volume I, 7. edição, página 623, e Rev. Leg. e Jurisprudência ano 124, página 31; Acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Novembro de 1990 - Boletim do Ministério da Justiça n. 401, página 563).
5. Considerando-se como mais correcta a interpretação exposta, facilitada se encontra a solução da questão em análise: se se verifica a prescrição do direito dos Autores à indemnização pedida.
A solução da questão depende da resposta que sofrer a segunda questão a analisar no presente recurso: se o Réu C agiu com culpa.
Se a resposta for afirmativa, dir-se-á que não se verificou a prescrição por o ilícito civil constituir crime a que correspondia prazo de prescrição penal de cinco anos. Se a resposta for negativa, dir-se-á que a prescrição se verificou por os Autores não terem exercido o seu direito no prazo estabelecido no n. 1 do artigo 498 do Código Civil.”
Como acabamos de ver, só após a produção da prova é que poderemos saber se a prescrição se verifica ou não.

5. Conclusão: Por tudo quanto vem de ser exposto, Acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul em Julgar procedente o recurso, revogar o Acórdão recorrido e, declarar que a prescrição depende de prova a produzir, pelo que fica relegada para final, ordenando a baixa do processo para prosseguir os seus ulteriores termos.
Custas pela recorrida que contra-alegou.
Registe e notifique.

PAULO CARVALHO
CRISTINA SANTOS
ANTÓNIO VASCONCELOS