Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:149/19.6BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/11/2024
Relator:MARIA HELENA FILIPE
Sumário:I - Não é de amnistiar uma infracção aplicada a agente que seja qualificado como reincidente ex vi do disposto na alínea l) do nº 1 do artº 7º da Lei da Amnistia, dado que estes não beneficiam do perdão e da amnistia nesta previstos.
II - Inexiste violação do nº 2 do artº 32º da CRP, pela convocação do princípio da presunção de veracidade dos factos consignado na alínea f) do artº 13º do RD da LPF e que ocorreram durante um jogo de futebol, que aliado às presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência expressas no artº 349º do CC, não impede que o TAD firme no relatório elaborado pelos delegados da LPFP ao abrigo do disposto no artº 258º do RD da LPFP, a presunção de que os factos aí relatados e que assumem relevante gravidade, são imputáveis a sócios ou simpatizantes da Recorrente.
II - A presunção com base na alínea f) do artº 13º do RD da LPF, não impede que a Recorrente lance mão de contrariar os factos descritos no relatório dos delegados da LPFP.
III - Não existindo nenhum elemento que prove que a Recorrente tenha dado cumprimento às obrigações a que está sujeita no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos adeptos, não há como afastar a sua responsabilização disciplinar.
IV - Inexiste a violação do princípio jurídico-constitucional da culpa previsto no artº 2º da CRP e do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa, nos termos dos nºs 2 e 10 do artº 32º daquele diploma e a interpretação da alínea f) do artº 13º do RD da LPFP, em virtude da não observância pela Recorrente dos deveres supra enunciados.
V - Os comportamentos verificados e sancionados pela Recorrida recortados do modus operandi da Recorrente, subsumidos ao nº 2 do artº 186º e às alíneas a) e b) do nº 1 do artº 187º do RD da LFPF, não consubstanciam erro de julgamento, tendo aquela sido sancionada por via da violação dos deveres gerais ou especiais a que se encontra sujeita, relativamente à participação em competição de futebol profissional.
VI - Inexiste concurso aparente das infracções disciplinares e a violação do princípio ne bis in idem constante no artº 12º do RD da LPFP, por a Recorrente ter sido condenada, simultaneamente, pelas infracções tipificadas no nº 1 do artº 186º e na alínea b) do nº 1 do artº 187º do RD da LPFP, dado que o âmbito de cobertura ou de protecção de bens jurídicos das referidas normas são distintos e não se confundem, resultando, a final, que não foi sancionada várias vezes pela mesma infracção, mas sim, sancionada por cada uma das diferentes infracções.
VII - O valor das custas finais fixados no acórdão arbital do TAD espelha, na sua génese, uma dupla perspectiva: a primeira, a capacidade económica dos litigantes e a segunda, os custos a que a mesma se destina, ou seja, prover os custos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, neste sentido intuído do valor concretamente fixado na segunda linha da tabela do Anexo I da Portaria nº 301/2015, de 22 de Setembro, de acordo com o estipulado nos nºs 1 e 5 do artº 2º deste diploma, o que não é inconstitucional.
Votação:C/ DECLARAÇÃO DE VOTO
Indicações Eventuais: Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. Relatório

O F....– Futebol, SAD, ora Recorrente, demandante no processo nº 19/2019, no qual é demandada a Federação Portuguesa de Futebol, vem recorrer do acórdão proferido, no âmbito do referido processo, em 8 de Outubro de 2019, pelo Tribunal Arbitral do DesP..., que confirmou a decisão proferida pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol-Secção Profissional, que condenou a Recorrente em multas pela prática de infração disciplinar p. e p. pelo artigo 186.º, n.º 2 e 187.º, n.º 1, alínea a) e b) do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF).
Nas suas alegações de recurso, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
“-I-
i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 08.10.2019 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática das infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 186.° - 2, 187. °-1, a) e b) do RD, punindo-a em multas que totalizam o valor de €10.806,00, e fixando as custas no total de € 6.125,40.
-II-
ii. Considerando que o ónus da prova da prova da prática das infracções p. e p. pelos arts. 186.° e 187. °, n.° 1, a) e b) do RD cabe ao titular do poder disciplinar, impunha-se ao Conselho de Disciplina carrear aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da - Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da - Futebol SAD.
iii. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a aqui recorrente - provar a sua inocência.
iv. Nem mesmo a presunção de veracidade de que gozam os relatórios por força do art. 13.°, f) do RD, pode contrariar este quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
v. Não podia o Tribunal a quo deixar de considerar o direito ao silêncio do arguido como corolário do princípio da presunção de inocência, previsto no art. 32.°-2 da CRP que, por sua vez, se encontra na origem do princípio constitucional in dubio pro reo, segundo o qual o juiz se terá de pronunciar a favor do arguido sempre que não tenha a certeza de que os factos foram por ele praticados, não sendo admissível a sua condenação por não demonstrar a ausência da sua responsabilidade.
vi. Pelo que, jamais podia o Tribunal a quo julgar como provados todos os factos com fundamento no silêncio da recorrente.
-III-
vii. O recurso a presunções só se revela legítimo quando intervenham juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar que determinado facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a consequência natural ou resulta com probabilidade máxima de um facto conhecido.
viii. Impunha-se, pois, ao Tribunal a quo formar a sua convicção através da prova, concreta e concludente, carreada aos autos, sob pena de prevalecer o princípio da presunção de inocência (neste sentido, e sobre matéria semelhante à destes autos, recorde-se o acórdão de 16-01-2018 do Tribunal Central Administrativo Sul)
ix. Compulsados os autos não há nenhum elemento probatório nos autos que, pelo facto de terem ocorrido determinadas condutas antidesportivas, permitisse julgar como provado que houve uma inobservância de deveres de prevenção por parte do clube visitante, FC P..., permitisse ao Tribunal a quo julgar como preenchido pressuposto essencial para a condenação: a actuação culposa pela recorrente.
x. Além do mais sempre se mostrava nestes autos a quebra do nexo causal exigido, porquanto, o próprio promotor do evento desportivo (Vitoria SC SAD), foi também punido pela violação de deveres de prevenção de entrada de engenhos pirotécnicos no seu estádio (nos termos do art. 127.° - 1 do RD), a causa directa e mais próxima do alegado comportamento incorrecto do público não se ficou a dever à Demandante, mas antes sim, ao V... SAD.
xi. Ainda assim, e à míngua de meios de prova demonstrativas da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo recorre ao chamado critério da primeira aparência, para justificar tudo quanto deu como provado, o que não pode colher.
xii. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
xiii. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
xiv. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.º, nºs 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2º da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20º-4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, www.dgsi.pt).
xv. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s).
xvi. A figura da “prova de primeira aparência” ou “prova prima facie” é própria do direito civil, inserindo-se no quadro das presunções judiciais (art. 349.° do Código Civil) e pode, embora com cautelas e cum grano salis, funcionar nos pleitos cíveis, mas é um corpo completamente estranho no direito e processo sancionatórios, desde logo porque contraria os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência.
xvii. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante.
-IV-
xviii. O parâmetro da violação do dever de prevenção adoptado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infracção p. e p. pelo art. 187º, nº 1, a), do RD (in casu, os cânticos grosseiros entoados), porém, sempre se impunha ao Tribunal a quo - face às regras da experiência - valorar a impossibilidade prática de impedir manifestações vocais desse tipo.
xix. Ao que acresce que - também aqui - fica por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido, pelo que, não podia o Tribunal a quo condenar a recorrente pela violação do art. 187º-1, a) do RD.
-V-
xx. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese acolhida pelo Tribunal a quo equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência, o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.
xxi. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma “prova por presunção” sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.
xxii. Mas ainda que se venha a admitir o recurso a presunções judiciais no acto decisório de valoração probatória, certo é que o seu funcionamento não pode ser arbitrário e contrariar exigências epistemológicas mínimas: o princípio da livre apreciação da prova não consente que se possa presumir, sem mais, que pelo facto de adeptos adoptarem comportamentos incorrectos houve, necessariamente, a montante, uma violação, pelo seu clube, dos deveres de vigilância e controlo idóneos a prevenir e evitar tais comportamentos.
xxiii. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: “todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular''’ (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2008, p. 82).
xxiv. Tal critério consubstancia uma clamorosa violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrente é titular.
xxv. De todo o modo, é inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32º -2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13.º f) 186.°-2,187°-1 a) e do RDLPFP no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui.
xxvi. Mais, deverá igualmente considerar-se inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.°-2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13º f), 186º -2, e 187º - l a) e b) do RDLPFP e do art. 127º do Código de Processo Penal no sentido que a indiciação de que sócios ou simpatizantes de um clube praticassem condutas social ou desportivamente incorrectas poderá levar a que se presuma que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.
xxvii. Se, por mera hipótese de raciocínio, assim não se entenda, reputa- se como inconstitucional - por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32º, nos 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20º - 4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2º da CRP) - a interpretação dos artigos 186º -2, 187.º-1 a) e b) 222º -2 e 250.º -1 do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
-VI-
xxviii. A decisão do Tribunal a quo mostra-se em desacordo com jurisprudência recente do próprio Tribunal Arbitral do DesP... que vem reconhecendo a relação de subsidariedade entre os arts. 186º e 187º do RD (cf. acórdão arbitral datado de 04.02.2019, proferido no processo nº 74/2017).
xxix. Em ambas as normas (186º e 187º do RD) tipificam-se comportamentos incorrectos do público, qualificando-se e agravando-se uma em função da perigosidade para a integridade pessoal de terceiros, pelo que é óbvio que ao clube que deva responder por tais comportamentos só pode imputar-se a mais grave, pelo que a condenação por ambas viola o princípio do ne bis in idem, plasmado no art. 12º do RD.
xxx. Como tal, vindo a ser assacada responsabilidade disciplinar à aqui recorrente - o que por mera cautela de patrocínio aqui se equaciona - somente o será pela prática da infracção constante do art. 186º -2 do RD, sempre se mostrando prejudicada a condenação pela infracção p. e p. pelo art. 187º -1, b) do RD.
-VII-
xxxi. No presente caso, a demandante recorreu de uma condenação pecuniária no valor de € 10.806,00 e, não tendo esse recurso obtido provimento, confronta-se com uma fixação de custas, decidida pelo Tribunal a quo, no valor de € 4.890,00, sobre o qual ainda acresce IVA (23%): o que perfaz um total de € 6.125,40.
xxxii. Este valor de custas finais compromete o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º -1 e 268º 4 da CRP).
xxxiii. Com efeito, o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (consagrado no art. 20º - l, da CRP) consubstancia, em si mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, entre os quais o direito de acesso aos Tribunais.
xxxiv. Importa não esquecer que a arbitragem necessária que antecedeu esta fase do processo é, como o próprio nome indica, uma inevitabilidade para quem pretenda reagir contra decisões Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que lhe são desfavoráveis.
xxxv. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (artigos 20º e 268º - 4 da Constituição) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
xxxvi. É manifesto que este regime de custas é fortemente dissuasor do recurso à tutela jurisdicional que a lei (aparentemente) quis assegurar.
xxxvii. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2º, nºs 1 e 5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria nº 301/2015, articulado ainda com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4//5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º- l e 268º-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204º da CRP), o que desde já se requer.
Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e assim como a condenação da recorrente pelas infracções disciplinares p. e p. pelos artigos 186º- 2, 187º -1, a), e 187º - 1, b), do RDLPFP, anulando-se o correspondente acto administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol.
Sem prescindir, subsidiariamente, caso se entenda não haver motivo para, de imediato, anular o mencionado acto administrativo do CD da FPF, requer-se a revogação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao TAD para repreciação da matéria de facto com base em critérios de valoração da prova consentâneos com o princípio da presunção de inocência do arguido, exigindo-se, nomeadamente, a formação de uma convicção para além da dúvida razoável e a não imposição de um ónus da prova à demandante.
Sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a revogação da decisão arbitral na parte relativa à condenação pela infracção p. e p. pelo artigo 187º, nº 1, a), do RDLPFP.
Novamente sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a revogação da decisão Arbitral na parte relativa à condenação pela infracção p. e p. pelo artigo 187º -1, b) do RDLPFP sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
Sem prescindir e sempre subsidiariamente, requer-se a V. Exas, se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2º, nos 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha, da Portaria nº 301/2015, com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-l e 268.°-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.° da CRP), com as legais consequências.”
*

A Recorrida Federação Portuguesa de Futebol, por sua vez, apresentou contra-alegações tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do DesP..., datado de 8 de outubro de 2019, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multas por aplicação dos artigos 186.º, n.º 2 e 187.º, n.º 1, al. a) e b) do RD da LPFP.
2. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da F... e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos, em jogo em que a equipa da ora Recorrente participou na qualidade de visitante.
3. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente arremessaram objetos para o terreno de jogo, rebentaram objetos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo e levaram a cabo outros comportamentos incorretos. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, tais relatórios têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).
5. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.
6. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
7. Assim, os Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).
8. Isto não significa que o Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
9. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde fogo no artigo 346.º do Código Civil.
10. Para além da presunção de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos Delegados da LPFP, bem como dos esclarecimentos adicionais prestados pelos mesmos, ter-se-á, ainda, que atender à força probatória dos relatórios das forças policiais. Tal como resulta de toda a prova carreada no processo, a factualidade provada resulta, também, dos factos constantes dos Relatórios de Policiamento Desportivo das Forças de Segurança do jogo dos autos. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por "autoridade pública" ou "oficial público", no exercício público das "respetivas funções" (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371.º, n.º 1 do Código Civil). Tal valor probatório apenas pode ser afastado com base na sua falsidade (art.º 372.º, n.º 1 do Código Civil), sendo que, no contexto processual penal e nos termos do art.º 169.º do Código de Processo Penal, se consideram «provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa».
11. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
12. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
13. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
14. Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres informando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no art.º 35.º, n.º l, als. a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.
15. Com efeito, a imputação culposa das condutas infratoras dos adeptos da Recorrente, pelas quais esta é diretamente responsável (tal como determina a previsão legal das infrações disciplinares em causa), resulta, pois, do incumprimento culposo de deveres de prevenção e de ação no âmbito da violência associada ao DesP... que lhe estão cometidos e que levaram, em nexo de causalidade adequado e direto, ao resultado aqui verificado: os comportamentos perigosos e incorretos dos seus adeptos e simpatizantes, num espetáculo desportivo.
16. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres -foi retirado de outros factos conhecidos.
17. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
18. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do DesP..., por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por mais de 10 vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.
19. Carece de fundamento a alegação de que as normas dos artigos 13.º, al. f), 186.º e 187.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RD da LPFP são inconstitucionais, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.
20. Em causa no presente recurso de apelação está, ainda, um alegado erro na fixação do valor da causa em €30.000,01 (trinta mil e um euros) e, por conseguinte, a violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.
21. Sinteticamente, entendeu o Tribunal a quo que, in casu, preponderará o critério relativo a bens imateriais do artigo 34.º, n.º 1 do CPTA.
22. De facto, o interesse imaterial que subjaz à pretensão da Recorrente é muito mais do que uma mera revogação de uma decisão disciplinar, indo muito além do valor económico que as sanções pecuniárias que estão em análise demonstram.
23. Ao aludir ao princípio da culpa, constata-se que os interesses invocados, são de ordem constitucional e excedem claramente meros limites quantitativos, motivo pelo qual, o Tribunal a quo, ao utilizar o critério supletivo constante do artigo 34.º do CPTA, não violou o disposto no artigo 33.º, al. b) do mesmo Código.
24. Por outra parte, o valor das custas finais fixado pelo Tribunal a quo não é, como alega a Recorrente, desproporcional, nem compromete, de forma séria e evidente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 do CRP).
25. Neste sentido entendeu, e bem, o Tribunal Constitucional, mediante Acórdão datado de 16 de outubro de 2019, não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I.
26. Motivo pelo qual deverá, também, improceder a inconstitucionalidade suscitada resultante da conjugação do disposto no art. 2.2, n.ºs 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo 1,2ª linha, da Portaria n.º 301/2015), com o previsto nos artigos 76.º, n.ºs 1,2 e 3 e 77.º, n.ºs 4, 5 e 6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da proporcionalidade.
27. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
28. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pelas infrações disciplinares p. p. pelo artigo 187.º, 1; al. a) e b) do RD da LPFP.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser negado provimento ao Recurso Jurisdicional e, consequentemente, ser mantido o Acórdão Arbitral recorrido, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.”
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Notificado nos termos e para efeitos do disposto no artº 146º do CPTA, o Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, não emitiu parecer.

Pelo despacho de 22 de Novembro de 2023 as partes foram notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre a aplicação aos autos do artº 6º da Lei da Amnistia aprovada pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, que nada dizendo se reiterou a sua notificação em conformidade, a fls 182 a 184, mantendo-se as mesmas silentes.

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Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, mas com envio prévio do projecto de Acórdão às Juízes Desembargadoras Adjuntas, foi o processo submetido à conferência desta Subsecção Administrativa Social da Secção do Contencioso Administrativo para julgamento.
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II. Objecto do Recurso – Questões a conhecer
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos do nº 4 do artº 146º do CPTA e do artº 5º, do nº 2 do artº 608º, dos nºs 4 e 5 do artº 639º do CPC ex vi do artº 1º e artº 140º do CPTA e nº 2 do artº 8º da Lei do TAD.
No caso, face aos termos em que foram enunciadas pela Recorrente as conclusões de recurso, são as seguintes as questões essenciais a resolver:

1. Em primeiro lugar, consiste em determinar se o Recorrente deve beneficiar da amnistia decretada pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, ou se é de excluir a sua aplicação ex vi de ser considerado reincidente; da resposta a esta quaestio poderá redundar a apreciação:
2. Em segundo lugar, saber se o acórdão arbitral recorrido incorreu em erro de julgamento quanto à decisão da causa, seja por errada aplicação do direito, seja por errada subsunção factual, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto na alínea f) do artº 13º, no nº 2 do artº 186º e nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 187º do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF) e a inconstitucionalidade do valor das custas.

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III. Factos (dados como provados na sentença recorrida):
“Analisada e valorada a prova constante dos autos, consideramos provados os seguintes factos:
a) No dia 3 de fevereiro de 2019, no Estádio D...., em Guimarães, realizou-se o jogo n.º 12...(203.01.178) disputado entre a V... – Futebol SAD e a – Futebol SAD, a contar para a 20ª jornada da Liga NOS;
b) Os espectadores pertencentes ao Grupo Organizado de Adeptos G... (S...) ficaram localizados na Bancada Topo Norte Superior, exclusiva para os adeptos da equipa visitante.
c) Os espectadores adeptos do V..., devidamente identificados por cachecóis, camisolas e bandeiras afectas ao clube, ficaram localizados na Bancada Central Nascente;
d) Os espectadores pertencentes ao Grupo Organizado de Adeptos G... (S...), localizados na Bancada Topo Norte Superior, devidamente identificados por cachecóis, camisolas e bandeiras alusivas ao clube, no decorrer do jogo, deflagraram 3 flashlights, 2 potes de fumo e 6 petardos;
e) Os mesmos adeptos G... (S...) localizados na sobredita Bancada, ao minuto 42, arremessaram uma tocha incandescente para os adeptos do V... que, por sua vez, a arremessaram de volta para a Bancada Topo Norte afecta aos adeptos do F...;
f) Ainda no minuto 42 os mesmos adeptos do F... arremessaram diversas cadeiras contra os adeptos do V...;
g) Os mesmos adeptos do F..., localizados na dita Bancada Topo Norte Superior, ao minuto 43, arremessaram para o recinto do jogo, um petardo, não tendo atingido nenhum agente desportivo nem interrupção do jogo;
h) Aos 45 minutos do segundo tempo entrou uma tocha incandescente no terreno de jogo vinda da bancada onde estavam os adeptos do P..., não interferindo com o jogo;
i) Ainda os mesmos adeptos do F..., ao minuto 90 de jogo, arremessaram para dentro do recinto do jogo uma tocha incandescente, sem atingirem nenhum agente desportivo ou causar interrupção do jogo;
j) Tais adeptos por estarem localizados em bancadas exclusivamente a eles afectos, e por serem portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao clube tais como bandeiras, cachecóis e camisolas são apoiantes e simpatizantes da demandante;
k) A demandante não impediu que os seus adeptos entrassem com objectos não autorizados;
l) A demandante não adoptou as medidas preventivas adequadas e necessárias a impedir os acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos;
m) A demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não prevenir e evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto clube participante no dito jogo de futebol;
n) À data dos factos e na presente época desportiva a demandante foi sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infracções disciplinares.
Matéria de Facto dada como não provada:
Nada mais foi provado ou não provado relativamente a matéria relevante para a boa decisão nos presentes autos.
Fundamentação da decisão de facto:
O Tribunal formou a sua convicção pela análise conjugada do processo disciplinar e pela conjugação de múltiplos elementos de prova, em especial:
- Relatório dos árbitros, documento junto aos autos (fls. 20 a 26);
- Relatório dos delegados da Liga, documento junto ao processo (fls. 27 e 28);
- Relatório de Policiamento Desportivo, documento junto ao processo (fls. 33 a 35);
- Esclarecimentos posteriores prestados pela PSP, pelos árbitros e delegados da Liga, documentos juntos ao processo disciplinar (fls. 36 a 42, fls. 108 a 115, fls. 93 a 96);
- fotos, documento junto aos autos (fls. 116 a 139);
- cadastro disciplinar da demandante, documento junto ao processo disciplinar (fls. 63 a 78);
A factualidade dada como assente resulta da instrução da causa, para além de qualquer dúvida razoável”.

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IV. Do Direito

A Decisão Arbitral em recurso confirmou a decisão proferida pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol-Secção Profissional, que condenou o Recorrente em multas pela prática de infracção disciplinar p. e p. pelo nº 2 do artº 186º e alíneas a) e b) do nº 1 do artº 187º do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RD da FPF).

1. Em primeiro lugar, cabe determinar se a Recorrente deve beneficiar da amnistia decretada pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, ou se é de excluir a sua aplicação ex vi de ser considerado reincidente.

A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia), veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
O artº 2º deste diploma vem estatuir o seguinte:
“1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”.
A amnistia das infracções disciplinares tem carácter puramente objectivo, aplicando-se inclusive às infracções disciplinares de pessoas colectivas.
Sumaria-se no recentíssimo Acórdão do TCA Sul, Processo nº 170/23.0 BCLSB, de 8 de Fevereiro de 2024, in www.dgsi.pt, que “Estando em causa a aplicação de sanções disciplinares não superiores a suspensão, não constituindo a infração disciplinar simultaneamente ilícito penal não amnistiado pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, e sido praticada em data anterior a 19/06/2022, tal infração encontra-se amnistiada, de acordo com o previsto nos artigos 2.º, n.º 1, e 6.º deste diploma legal, salvo se o infrator for reincidente, situação em que a Amnistia não opera, nos termos da alínea do artigo 7º da referida Lei nº 38-A/2023”.
Com efeito, o artº 6º do referido diploma legal determina que “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.
No caso, importa trazer à colação a alínea l) do nº 1 do artº 7º que dita que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os reincidentes.
Resulta dos autos não só a aplicação de multas à Recorrente mas ainda o que se consigna na alínea n) do Probatório: “À data dos factos e na presente época desportiva a demandante foi sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infracções disciplinares”.
Consequentemente, como a Recorrente é reincidente, entendemos que não lhe é aplicável ao caso presente a Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, que estabelece o perdão de penas e amnistia de infracções e que entrou em vigor a 1 de Setembro de 2023.
Face à não aplicação in casu da Lei da Amnistia, passemos à apreciação do mérito do recurso.
2. Assim, importa saber se o acórdão arbitral recorrido incorreu em erro de julgamento quanto à decisão da causa, seja por errada aplicação do direito, seja por errada subsunção factual, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto na alínea f) do artº 13º, no nº 2 do artº 186º e nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 187º do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF) e a inconstitucionalidade do valor das custas.

No âmbito do processo nº 19/2019, o Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – Secção Profissional, datado de 8 de Outubro de 2019, confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que condenou a Recorrente pela prática de três infracções disciplinares, punindo-as nos seguintes termos:
a) Sanção de multa de 7.650,00€, pela prática de infracção prevista e punida pelo artigo 186º, nº 2 do Regulamento Disciplinar da LPFP - no decorrer do jogo, arremesso para o recinto do jogo, de um petardo e de uma tocha incandescente, não tendo atingido nenhum agente desportivo nem causado qualquer interrupção do jogo;
b) Sanção de multa de 765,00€, pela prática de infracção prevista e punida pelo artigo 187º, nº 1, alínea a) do Regulamento Disciplinar da LPFP - no decorrer do jogo, arremesso de cadeiras aos adeptos do V...; e,
c) Sanção de multa de 2.391,006, pela prática de infracção prevista e punida pelo artigo 187º, nº 1, alínea b) do Regulamento Disciplinar da LPFP - deflagração de vários objectos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo (flashlights, petardos e potes de fumo).
Perante a factualidade que antecede, no que concerne ao erro de julgamento invocado, cumpre dar resposta no presente recurso jurisdicional, decompondo-se a sua análise, nestes termos:
da insuficiente e inadmissibilidade prova obtida para punir a Recorrente;
da violação do princípio jurídico-constitucional da culpa; e,
da inconstitucionalidade do valor das custas.
Apreciando.
– da insuficiente e inadmissibilidade prova obtida para punir a Recorrente
A Recorrente invoca que deveria ter sido considerado o seu direito ao silêncio como corolário do princípio da presunção de inocência, previsto no nº 2 do artº 32º da CRP, sendo que quando o juiz não tem a certeza de que os factos foram praticados por aquela não a pode condenar, em ordem ao princípio constitucional in dubio pro reo.
Verifica-se que ao Probatório foram levados, designadamente, os seguintes factos:
“d) Os espectadores pertencentes ao Grupo Organizado de Adeptos G... (S...), localizados na Bancada Topo Norte Superior, devidamente identificados por cachecóis, camisolas e bandeiras alusivas ao clube, no decorrer do jogo, deflagraram 3 flashlights, 2 potes de fumo e 6 petardos;
e) Os mesmos adeptos G... (S...) localizados na sobredita Bancada, ao minuto 42, arremessaram uma tocha incandescente para os adeptos do V... que, por sua vez, a arremessaram de volta para a Bancada Topo Norte afecta aos adeptos do F...;
f) Ainda no minuto 42 os mesmos adeptos do F... arremessaram diversas cadeiras contra os adeptos do V...;
g) Os mesmos adeptos do F..., localizados na dita Bancada Topo Norte Superior, ao minuto 43, arremessaram para o recinto do jogo, um petardo, não tendo atingido nenhum agente desportivo nem interrupção do jogo;
h) Aos 45 minutos do segundo tempo entrou uma tocha incandescente no terreno de jogo vinda da bancada onde estavam os adeptos do P..., não interferindo com o jogo;
i) Ainda os mesmos adeptos do F..., ao minuto 90 de jogo, arremessaram para dentro do recinto do jogo uma tocha incandescente, sem atingirem nenhum agente desportivo ou causar interrupção do jogo;
j) Tais adeptos por estarem localizados em bancadas exclusivamente a eles afectos, e por serem portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao clube tais como bandeiras, cachecóis e camisolas são apoiantes e simpatizantes da demandante;”.
Tomando em consideração que a convicção do Tribunal se deveu à análise conjugada do processo sumário e a outros elementos de prova como o Relatório dos árbitros junto aos autos (a fls 20 a 26); o Relatório dos delegados da Liga, junto ao processo (a fls 27 e 28); o Relatório de Policiamento Desportivo, junto ao processo (a fls 33 a 35); os Esclarecimentos posteriores prestados pela PSP, pelos árbitros e delegados da Liga, juntos ao processo disciplinar (a fls 36 a 42, fls. 108 a 115 e fls 93 a 96); as fotografias juntas aos autos (a fls 116 a 139); e o cadastro disciplinar da Recorrente junto ao processo disciplinar (a fls 63 a 78); não enferma de erro a factualidade dada como provada.
Este procedimento não viola o disposto no nº 2 do artº 32º da CRP: Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, desde logo, porque ao longo do procedimento disciplinar os elementos de prova nele carreados conduziram à existência de factos que consubstanciam prova suficiente.
Estabelece o artº 258º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RD da LPFP) que “1. O processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou do delegado da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito.
2. Considera-se verificada em flagrante a infração que é detetada através de objetos ou sinais percecionados diretamente, ainda que através da visualização de imagens televisivas, que mostrem claramente que a infração foi cometida e o agente nela participou.
3. O auto relativo a infração verificada em flagrante delito é elaborado por qualquer membro da Comissão de Instrutores no prazo de três dias a contar dos factos a que o mesmo disser respeito, sob pena de caducidade.
4. O auto referido no número anterior é elaborado oficiosamente, na sequência de denúncia de qualquer clube ou agente desportivo apresentada até às 14h do último dia do prazo referido no número anterior, ou por impulso de qualquer membro da Secção Disciplinar.
5. Apenas a falta da verificação dos pressupostos previstos no n.º 2 justifica a não elaboração do auto, não sendo relevante a moldura sancionatória abstratamente aplicável.
6. O auto descreve os factos que constituem a infração, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, a identificação dos seus agentes e eventuais ofendidos e os meios de prova conhecidos.
7. Podem ser anexados ao auto previsto no número anterior as gravações não editadas das imagens televisivas que lhe servem de suporte.
8. Sem prejuízo dos números anteriores, a Secção Disciplinar atuará oficiosamente, nomeadamente com recurso à prova de reprodução de imagem televisiva e às declarações escritas da equipa de arbitragem, quando for patente que esta puniu qualquer interveniente no jogo com a amostragem de cartão amarelo ou vermelho, assim como advertência ou ordem de expulsão, pretendendo antes punir um outro, com o fim de atribuir a punição ao sujeito que verdadeiramente cometeu a infração e revogar a punição do sujeito indevidamente punido”.
O Relatório redigido pelos Delegados da LPFP consigna que a Recorrente desrespeitou os seus deveres, pois a tê-los acatado os seus adeptos não levariam a efeito os descritos comportamentos ilícitos sendo que aqueles se identificaram, devido às manifestações externas demonstradas.
O que imediatamente antecede, leva à conclusão que quem teve um comportamento incorrecto foram simpatizantes e adeptos da Recorrente e não os do clube adversário.
No entanto, a mesma vem sustentar a falta de prova suficiente de que os infractores eram seus simpatizantes e adeptos.
Salientamos que a Recorrente não nega a ocorrência dos factos ilícitos.
Ora, da prova produzida, nomeadamente na documentação junta aos autos, relatório do árbitro e esclarecimentos prestados, relatório do delegado e esclarecimentos prestados, relatório de policiamento desportivo e esclarecimentos prestados, ficha técnica do estádio e fotos, é unânime a indicação de que os factos ilícitos foram praticados por adeptos/ simpatizantes afectos ao FC P..., bem identificados e localizados nos sectores adstritos à Recorrente.
O relatório de ocorrência, elaborado pelos árbitros, pelos delegados da Liga, referente ao jogo em causa nos presentes autos, bem como o relatório de policiamento desportivo e os esclarecimentos dos árbitros, delegados da Liga e PSP são claros na localização da prática dos ilícitos, ou seja, bancada ocupada exclusivamente por adeptos do Futebol..., cujos autores se encontravam identificados por cachecóis, camisolas, tarjas e bandeiras alusivas ao clube.
É certo que os autores dos factos ilícitos não foram identificados pessoalmente, o que não obsta à convicção de que os mesmos eram adeptos/ simpatizantes da Recorrente.
Com efeito, estando localizados em bancadas exclusivamente afectas a adeptos do FC P... e serem portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao clube, como os supra mencionados cachecóis, camisolas, tarjas e bandeiras, não poderá deixar de resultar provado terem sido apoiantes e simpatizantes daquele clube os autores de tais factos.
Consequentemente, tomando em consideração todos os descritos sinais – posicionamento em bancadas exclusivamente afectas a adeptos do FC P... e serem portadores de símbolos da sua ligação ao clube – gera uma convicção suficiente e legítima para a condenação da Recorrente nas sanções sub juditio.
A análise crítica da prova da decisão recorrida apresenta-se alicerçada num raciocínio lógico e não encontramos fundamento para uma solução diferente.
Desde logo, não se mostra abalado o teor dos relatórios dos árbitros e o dos delegados da Liga lavrados no âmbito das circunstâncias ocorridas, nomeadamente a prova de que a Recorrida se apropriou para enformar o decidido, dado que atentando no relatório de jogo, a Secção Profissional do Conselho de Disciplina faz subsumir o facto ao direito aplicável em conformidade, subsequentemente indicando a norma ou as normas violadas no mapa de castigos bem como a atribuição da correspondente sanção.
Com efeito, reitera-se que o nº 1 do artº 258º do RD da LPFP prevê que “O processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou do delegado da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito”.
A alínea f) do artº 13º da LPFP estatui que “O procedimento disciplinar regulado no presente Regulamento obedece aos seguintes princípios fundamentais:
(…)
f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa”.
Concretizando os relatórios dos delegados da liga as assistidas condutas ilícitas praticadas pelos adeptos que se encontravam nas bancadas afectas a sócios/ simpatizantes do Futebol..., o Conselho de Disciplina instaurou o processo sumário, que se caracteriza pela celeridade e que culmina na aplicação de uma sanção precisamente afincada ao que consta do relatório do jogo.
A propósito, no Acórdão do STA, Processo nº 040/18.3BCLSB, de 4 de Abril de 2019, in www.dgsi.pt, firma-se que “(…) é indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da "presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa" [artº 13º, al. f), do RD].
Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.
E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. nº 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.
Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da do juízo dos autos de notícia (cf entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.2-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR, II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89 in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa - que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza - não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o principio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP).
Com efeito, o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só "prima facie" ou de "ínterim", podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma "incerteza razoável" quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio "in dubio pro reo", a sua absolvição.
Assim, o acórdão recorrido, ao considerar que não se poderia atender à presunção que resultava do citado art. 213.º, al. f), para os relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP, incorreu no erro de direito que lhe é imputado (cf neste sentido, os Acs. deste STA de 18/10/2018 - Proc. n.º 0144/17.OBCLSB, de 20/12/2018 - Proc. n.2 08/18.0BCLSB, de 21/2/2019 - Proc. n.º 033/18.0BCLSB e de 21/3/2019 - Proc. n.º 75/18.6BCLSB).
Nestes termos, e atento aos factos constantes do probatório, não pode deixar de se concluir que os comportamentos em causa foram levados a cabo por adeptos do Futebol...”.
A Recorrente alega que não havia elementos bastantes de prova para ser punida, aventando que a prática de condutas ilícitas por parte dos seus adeptos e a violação dos respectivos deveres foi retirada de outros factos conhecidos.
Mais defende que cabe à Recorrida como titular da acção disciplinar, e na qual vinga o princípio da presunção de inocência do qual deriva a proibição de inversão do ónus da prova, provar que tinham sido os seus adeptos a adoptar atitudes disruptivas, o que não aconteceu.
Isto porque, no acórdão recorrido atendeu-se ao princípio da presunção de veracidade dos factos, de acordo com a alínea f) do artº 13º do RD da LPFP, aliado às presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência expressas no artº 349º do CC.
A jurisprudência tem vindo a pronunciar-se sobre esta matéria, com realce para o Acórdão do STA, Processo nº
08/18.0BCLSB, de 20 de Dezembro de 2018, in www.dgsi.pt, no qual se sumariou que “I – A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo art. 13º, alínea f) do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional.
III – O acórdão que revogou a decisão do TAD, partindo do pressuposto que em face do princípio da presunção de inocência do arguido, não se poderia atender a quaisquer presunções como a resultante do relatório de ocorrências do jogo, incorre em erro de direito, devendo, por isso, ser revogado”.
Mais reza este acórdão que “Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percepcionado.
E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.
Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (cf., entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.º-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR, II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89 in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa – que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza – não acarreta qualquer presunção de culpabilidade susceptível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP). Com efeito, o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percepcionados pelos delegados e não aos demais elementos da infracção, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só “prima facie” ou de “ínterim”, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio “in dúbio pro reo”, a sua absolvição”.
No entendimento da Recorrente cabia ao Conselho de Disciplina descrever e dar como provado o que fez ou indicar os concretos deveres legais ou regulamentares que incumpriu e, por que forma, essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado dos sócios ou simpatizantes.
O artº 186º do RD da LPFP, sob a epígrafe ‘Arremesso de objecto perigoso’ prevê que “1. O clube cujos sócios ou simpatizantes arremessem para dentro do terreno de jogo objetos, líquidos ou quaisquer outros materiais que pela sua própria natureza sejam idóneos a provocar lesão de especial gravidade aos elementos da equipa de arbitragem, agentes de autoridade em serviço, delegados e observadores da Liga, dirigentes, jogadores e treinadores e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo sem todavia dar causa a qualquer perturbação no início, reinicio ou realização do jogo é punido com a sanção de multa de montante afixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 150 UC.
2. Em caso de reincidência o limite mínimo da sanção de multa prevista no artigo anterior é elevado para o dobro”.
Nos termos do artº 187º do RD da LPFP, sob a epígrafe’ ‘Comportamento incorrecto do público’ dispõe que “1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos:
a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC;
b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa afixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC."
Sucede que ambos os normativos respeitam aos clubes cujos sócios ou simpatizantes pratiquem os actos neles ínsitos.
A Recorrente sofreu a punição pelo artº 186º, condenada por uma infracção p. e p. pelo nº 2 desta norma, dado que o Conselho de Disciplina da Recorrida, verificou que no decorrer do jogo, reincidentemente, foram arremessados objectos perigosos para dentro do terreno de jogo, designadamente, diversas cadeiras, duas tochas, deflagrados 3 flashlights, 2 potes de fumo e 7 petardos por adeptos que foram indicados pelos árbitros, pelos delegados da Liga e pelos agentes das forças policiais como adeptos da equipa da Recorrente, localizados na bancada reservada aos seus adeptos, concretamente aos G... (S...) e por eles exclusivamente ocupada, concluindo, com base nestes elementos, mas também nas regras da experiência comum, que a Recorrente havia sido negligente no cumprimento dos seus deveres de vigilância e de formação.
Relativamente à punição pelo artº 187º, a Recorrente foi condenada por uma infração p. e p. pela alínea a) do nº 1 e por uma infração p. e p. pela alínea b) do nº 1 daquela norma, uma vez que o Conselho de Disciplina da Recorrida, comprovou o comportamento incorrecto do público no decorrer do jogo, como o atirar de cadeiras para os adeptos adversários e a deflagração de vários objectos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo, por adeptos que foram indicados pelos Delegados e pelos agentes das forças policiais como adeptos da equipa da Recorrente, em bancada por si unicamente ocupada e reservada aos seus adeptos, concretamente aos G... (S...), o que teve por desfecho com base naqueles elementos, mas também nas regras da experiência comum, que ficou demonstrada uma conduta negligente no cumprimento dos seus deveres de vigilância e de formação.
Convocamos que o nº 1 do artº 172º 1 do RD da LPFP determina que Os clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial."
Nos termos dos artºs 34º a 36º do Regulamento de Competições da LPFP e o artº 6º do Anexo VI do Regulamento de Competições (Regulamento de Prevenção da Violência) os clubes participantes nas competições profissionais são obrigados a assegurar condições de segurança na utilização dos estádios, nomeadamente a incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados e não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados daqueles elementos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei nº 39/2009, de 30 de Julho, com a redacção dada pela Lei nº 52/2013, de 25 de Julho, zelando por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espectáculo desportivo sem recurso a práticas violentas e às que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, incluindo no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos.
O artº 17º do RD da LFPF dispõe que “a infração disciplinar corresponde ao facto voluntário que, por acção ou omissão e ainda que meramente culposo que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável”.
A Recorrente não tem que fazer prova do contrário daquilo que consta do Relatório dos delegados da LFPF, sendo que, atenta a presunção de veracidade consagrada na alínea f) do artº 13º do RD da Liga e a demais prova produzida no processo disciplinar, os factos poderiam ter sido considerados provados – como foram – tendo o órgão disciplinar cumprido o ónus da prova dos factos que integram o tipo de ilícito disciplinar.
O Tribunal Constitucional no Acórdão nº 730/95, proferido no âmbito do Processo nº 328/91, na senda do estatuído no Decreto-Lei nº 270/89 de 18 de Agosto, que estabelece medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desP..., acerca dessa matéria pronunciou-se em que “Não é, pois, (...) uma ideia de responsabilidade objectiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objectiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas por espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes (...). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (...) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infracção, senão que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”.
Ora, demonstram os relatórios dos Delegados da LPFP quem, como e onde ocorreram os distúrbios, com recurso à prova indirecta, o que vai de encontro à compatibilidade de recolher de modo célere os essenciais elementos probatórios que redundaram nas punições em apreço.
Em suma, a punição da Recorrente decorreu dos factos relatados nos relatórios do jogo – sobre os quais recai uma presunção de veracidade – conjugados com raciocínios baseados em presunções naturais legítimas, que se mantém inalterável pelo acerto verificado.
– da violação do princípio jurídico-constitucional da culpa
A Recorrente vem deduzir a violação do princípio jurídico-constitucional da culpa, de acordo com o previsto no artº 2º da CRP e o princípio da presunção de inocência, presunção esta de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa, nos termos dos nºs 2 e 10 do artº 32º daquele diploma e a interpretação da alínea f) do artº 13º, do nº 2 do artº 186º e da alínea a) do nº 1 do artº 187º do RD da LPFP.
Sufragando o sentido da não constitucionalidade relativamente à presente matéria, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 730/95, Processo nº 328/91, de 14 de Dezembro de 1995, in www.dgsi.pt, no que tange ao “futebol e o lado trágico que a ele se tem ligado nos locais mais dispersos do Mundo - não podia dei­xar de ter influência nos Estados, sobretudo no plano legife­rante, prosseguindo, como devem prosseguir, fins públicos rela­cionados com a segurança dos cidadãos e com os objectivos cul­turais que devem presidir à prática desportiva.
Influência que, por exemplo, entre nós, levou o legislador constitucional, na revisão de 1989, a atribuir ao Estado a incumbência de "prevenir a violência no desP..." (ar­tigo 79º, nº 2, da Constituição), consagrando, assim, constitu­cionalmente, uma linha do legislador ordinário que, como já se viu, desde 1980 se vinha ocupando dessa matéria, embora com um acento tónico na fase repressiva do fenómeno da violência (e isto independentemente de normas regulamentares, ainda que in­ci­pientes, das associações desportivas e federações, como era o caso do Regulamento da F.P.F.).
Influência também que, a nível europeu, levou o Conselho da Europa e o Parlamento Europeu, na década de 1980, a tomarem posições e a adoptarem medidas, com vista a prevenir e a diminuir a violência e os distúrbios dos espectadores por ocasião de manifestações desportivas, sendo de destacar a Con­venção Europeia atrás referida (pode ver-se a Convenção e de­mais instrumentos, como resoluções, directivas, recomendações, tanto do Conselho, como do Parlamento, em "A Violência Associa­da ao DesP...", de José Manuel Meirim, Ministério da Educação, 1994; e é curioso registar os seguintes considerandos daquela Convenção: "Considerando que tanto as autoridades públicas como as organizações desportivas independentes têm responsabilida­des, distintas mas complementares, na luta contra a violência e os excessos dos espectadores; tendo em conta o facto de as or­ganizações desportivas terem também responsabilidades matéria de segurança e em geral deverem assegurar o bom andamento das manifestações que organizam; considerando por outro lado que estas autoridades e estas organizações devem, para esse efeito, conjugar os seus esforços a todos os níveis; Considerando que a violência é um fenómeno social actual de vasta envergadura cujas origens são essencialmente exteriores ao desP... e que o desP... é frequentemente palco de explosões de violência”).
É, pois, primacialmente, um objectivo final de prevenção que perpassa nas medidas repressivas adoptadas pelo legislador português, por via das normas ora questionadas, ci­ente como tem de estar de que o desP... é, neste século XX, um fenómeno social, um fenómeno de massas, atraindo progressiva­mente mais espectadores e preenchendo cada vez mais o espaço dos meios de comunicação social, sendo que, por um lado, escas­seiam ou não têm resultados as campanhas de informação destina­das a promover o "fair play" no desP..., e, por outro lado, as autoridades des­portivas revelam-se incapazes de tomar medidas drásticas, desde logo por não possuírem recursos para o fazer (cfr. o relatório do Parlamento Europeu sobre o vandalismo e a vio­lência no desP..., citado por José Manuel Meirim, loc. cit., págs. 109 e se­guintes)”.
Acerca da “análise do mérito do pedido do requerente pela pers­pectiva da "responsabilidade objectiva" que, no seu discurso, decorre dos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89, ora ques­tionados, há que obter a resposta à questão de saber em que medida um clube desportivo pode ser punido disciplinarmente por factos praticados por agentes que sejam seus só­cios ou simpatizantes. Por outras palavras: em que medida é conforme à Constituição um sistema, como é o daquele Decreto-Lei, que permite, além do mais, a punição dos clubes desportivos com a sanção (discipli­nar) de interdição dos recintos desportivos e uma sanção pe­cuniária de carácter disciplinar, por faltas praticadas por espectadores, as descritas nos nºs 2 e 3 do artigo 3º.
Preceitua agora, e importa destacar, o artigo 5º, da Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro:
“1 - A prática desportiva é desenvolvida na observância dos princípios da ética desportiva e com respeito pela integridade moral e física dos intervenientes.
2 - À observância dos princípios da ética des­portiva estão igualmente vinculados o público e todos os que, pelo exercício de funções di­rectivas ou técnicas, integram o processo des­portivo.
3 - Na prossecução da defesa da ética desporti­va, é função do Estado adoptar as medidas ten­dentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas, designadamente a violência, a corrupção, a dopagem e qualquer forma de dis­criminação social".
Ora, sendo isto assim, convém reter que as san­ções referidas nos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89 são aplicadas aos clubes desportivos, por condutas ilícitas e cul­posas das respectivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz.
Deveres que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando, decorrendo nomeadamente de condutas (v.g. declarações) dos dirigentes do clube, a quem cabe velar, mesmo no plano pedagógico, pelo "fair play" desportivo dos sócios ou simpatizantes do clube (podendo falar-se aqui de uma certa intenção comunitária), sendo aceitável que a estes diri­gentes possam substituir-se como centros éticos-sociais de im­pu­tação jurídica, as suas obras ou realizações colectivas (cfr. o citado Acórdão nº 302/95).
Aos clubes desportivos, com efeito, cabe o dever de cola­borar com a Administração na manutenção da segurança nos recin­tos desportivos, de prevenir a violência no desP..., to­mando as medidas adequadas, como forma de garantir a realização do direito cultural consagrado no artigo 79º da Constituição.
Prevê hoje, a tal propósito, a alínea g) do artigo 21º do Decreto-Lei nº 144/93, de 26 de Abril:
“Para além de outras que se mostrem necessá­rias, as federações desportivas dotadas de uti­lidade desportiva devem elaborar regulamentos que contemplem as seguintes matérias:
(...)

g) Medidas de defesa da ética despor­tiva, designadamente nos domínios da prevenção e da punição da violência associada ao desP..., da dopagem e da corrupção no fenómeno desportivo.
(...)
Estamos, assim, em condições de responder afirma­tivamente à questão da punição dos clubes desportivos, como foi posta a título introdutório, pois, pode encontrar-se um funda­mento de censura por culpa, na imputação dos factos aos clubes.
Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilida­de objec­tiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabili­dade objectiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para a aplica­ção da sanção da interdição dos recintos desporti­vos, que as faltas praticadas pelos espec­tadores nos recintos desporti­vos possam ser imputadas aos clu­bes. E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo preceito (nº 7) e no artigo 6º (nº 1. 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos distúr­bios). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (ar­tigo 4º) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da in­fracção, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, sim­patizante ou adepto do clube).
Com o que não pode dar-se como verificada a tese sustentada pelo requerente da violação do princípio da culpa (cfr. neste sentido José Manuel Meirim, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc. 1, págs. 85 e seguintes, afirmando: "Não vemos, pois, como, e concluindo mesmo levando às últimas consequências a exigência de culpa neste domínio, se pode ter como inconstitucional a aplicação da sanção agora em causa")”.
(…)
(…) no acórdão deste Tribunal Constitucional nº 666/94, in Diário da República, II Série, nº 47, de 24 de Feve­reiro de 1995, depois de citada e transcrita jurisprudência da Comissão Constitucional, "no sentido de que a exigência da ti­picidade (feita na Constituição quanto ao ilícito penal) não valia no domínio contraordenacional", escreve-se: A regra da tipicidade das infracções, corolá­rio do princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição (nullum cri­men, nulla poena, sine lege), só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois que, nos demais ramos do direito público sancionató­rio (maxime, no domínio do direito discipli­nar), as exigências da tipicidade fazem-se sen­tir em menor grau: as infracções não têm, aí, que ser inteiramente tipificadas.
Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos-funcionários incluídos) po­dem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se trate de prever penas discipli­nares expulsivas - penas, cuja aplicação vai afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo público (garantidos pelo artigo 47º, nºs 1 e 2) ou a segurança no emprego (pro­tegida pelo artigo 53º) -, as normas legais têm que conter um mínimo de determinabilidade. Ou seja: hão-de revestir um grau de precisão tal que permita identificar o tipo de comportamen­tos capazes de induzir a inflicção dessa espé­cie de penas - o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deve­rão aplicar-se às condutas cuja gravidade o justifique (cf. artigo 18º, nº 2, da Constitui­ção).
No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam penas expulsi­vas, atenta a gravidade destas, têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, que ser normas delimitadoras.
É que, a segurança dos cidadãos (e a correspon­dente confiança deles na ordem jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da dignidade da pessoa humana - pessoa que é o princípio e o fim do Poder e das insti­tuições (cf. artigos 2º e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição)”.
O que importa, como ressalta dos citados acórdãos, é que se cumpra uma “exigência da determinabilidade em termos de não haver encurtamento do direito fundamental”, que haja "um mínimo de determinabilidade", e isso é aqui respeitado.
Entende-se, na verdade, que as expressões utiliza­das pelo legislador - "distúrbios de espectadores", "dificulda­des ao início ou prossegui­mento do jogo", "tentativa de agres­são ou de actos intimidató­rios organizados", "gravidade dos incidentes" e "sua frequên­cia" - são suficientemente "claras", não pondo, por isso, em causa o princípio da precisão ou deter­minabilidade das leis (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitu­cional, 5ª. edição, totalmente refundida e aumentada, 1991, parte IV, capí­tulo 1, B|, IV, 2.1). Por outras palavras: as normas em causa contêm "uma caracterização minimamente precisa dos comportamentos a que se aplicam", fornecem "à entidade com competência disciplinar um critério de decisão que lhe permita agir com segurança no momento de avaliar este ou aquele compor­tamento desviante" (na linguagem do citado Acórdão nº 666/94).
Com o que não pode falar-se em imprecisão ou inde­terminabilidade do artigo 3º, nas perspectivas adiantadas pelo requerente.
E, para finalizar, quanto aos termos em que o ques­tionado artigo 3º coloca a imputação das faltas ao clube despor­tivo, é bom de ver que o núcleo essencial da violência as­socia­da ao desP... radica, na economia do diploma, e como realçam os sociólogos, nos es­pec­tado­res, mas estes - e não se discutindo a responsabilidade indivi­dual de cada um deles - são normalmente os sócios, adeptos ou simpatizantes dos clubes em presença (as chamadas claques desportivas, que se identifi­cam com o respectivo clube desportivo) e, por consequência, o su­jeito passivo da aplicação das medidas sancionadoras não é só o clube visitado. Em regra, assim acontecerá, na medida em que sobre ele recai um conjunto de deveres que lhe são impostos por lei, no sentido de assegu­rar que não ocorram distúrbios de es­pectadores (e não só dos seus sócios, adeptos ou simpatizan­tes) no recinto desportivo, mas não podem marginalizar-se si­tuações em que é o clube visitante a desres­peitar deveres rela­tivamente ao comportamento dos seus sócios, adeptos ou simpati­zantes (por alguma razão, é do conhecimento comum a prática generalizada - prevista no artigo 12º, nº 1, alínea b) do mes­mo diploma - de separar por diferentes sectores dos recintos desp­ortivos as claques desportivas, que hoje são perfeitamente lo­calizáveis através dos elementos exteriores, como sejam, ban­deiras, panos, roupas, pinturas faciais, de que se servem, sen­do que, para além de normas legais e regulamentares tendentes a concretizar essa separação, há recomendações e medidas emitidas pela Comissão Nacional de Coordenação e Fiscalização, criada pelo mesmo Decreto-Lei nº 270/89, relativamente a "antes do dia do jogo", "durante o dia do jogo" e "depois do dia do jogo" - cfr. a publicação "Organização de Espectáculos Desportivos", da dita Comissão).
Daí que se possa dizer que há sempre uma relação de imputação das faltas cometidas ao clube a punir, ainda que este seja o visitante (outra é a postura de José Manuel Meirim, loc. cit., pág. 92, que sustenta não poder "ser imputada ao clube não responsável pela organização de determinada compe­tição des­portiva o desrespeito dos deveres relativos à seguran­ça das instalações nem as acções ilíci­tas de espectadores)”.
No que concerne ao cumprimento ou incumprimento dos seus deveres, a Recorrente entende que as normas regulamentares em causa estabelecem uma responsabilidade objectiva, que caracteriza como inconstitucional.
O artº 53º do Regime Jurídico das Federações Desportivas e de Atribuição do Estatuto de Utilidade Pública Desportiva (RJFD dispõe que o regime disciplinar deve prever a sujeição dos agentes desportivos a deveres gerais e especiais de conduta que tutelem os valores da ética desportiva e da transparência e verdade das competições desportivas.
É evidente que o seu não cumprimento configura uma responsabilidade disciplinar, com origem em conduta que constitui um obstáculo à protecção dos interesses públicos que o ordenamento desportivo visa salvaguardar e uma flagrante violação do princípio constitucional da legalidade da Administração e da imparcialidade administrativa, consignada no nº 2 do artº 266 º da CRP.
A Recorrente foi sancionada por ter incorrido em infracções disciplinares, à luz do RD da LPFP e demais legislação desportiva aplicável à participação em competição de futebol profissional.
O artº 13º da RD da LPFP preconiza que “O procedimento disciplinar regulado no presente Regulamento obedece aos seguintes princípios fundamentais:
(…)
f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa;”.
O artº 127º expressa que “1. Em todos os outros casos não expressamente previstos em que os clubes deixem de cumprir os deveres que lhes são impostos pelos regulamentos e demais legislação desportiva aplicável são punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 10 UC e o máximo de 50 UC”.
Como se tem vindo a elencar com transcrição do artº 187º, sempre da RD da LPFP, a responsabilidade desportiva disciplinar dos clubes de futebol radicada no comportamento incorrecto dos seus adeptos num jogo de futebol consubstancia matéria muito discutida e abundante, designadamente no STA – vide de entre outros os Acórdãos proferidos nos Processos nºs 144/17, de 18 de Outubro de 2018; 8/18, de 20 de Dezembro de 2018; 33/18, de 21 de Fevereiro de 2019; 75/18, de 21 de Março de 2019; 30/18, de 4 de Abril de 2019; 73/18, de 2 de Maio de 2019; 1/18, de 19 de Junho de 2019; 144/17 e 74/19, ambos de 7 de Maio de 2020; 43/19, de 5 de Novembro de 2020 e 89/19, de 11 de Março de 2021, todos in www.dgsi.pt.
Assim sendo, os comportamentos verificados e sancionados pela Recorrida recortados do modus operandi da Recorrente, subsumidos ao nº 2 do artº 186º e às alíneas a) e b) do nº 1 do artº 187º do RD FPF, não consubstanciam erro de julgamento.
Convocamos que inexiste concurso aparente das infracções disciplinares e a violação do princípio ne bis in idem constante no artº 12º do RD da LPFP, alegando a Recorrente que, ao ser condenada, simultaneamente, pelas infracções tipificadas no nº 1 do artº 186º e na alínea b) do nº 1 do artº 187º do RD da LPFP, a decisão do Conselho de Disciplina viola o designado princípio.
Debrucemo-nos sobre o que dispõem estes normativos.

“Artigo 12.°
Proibição de dupla sanção
Ninguém pode ser sancionado, na ordem jurídica desportiva, mais que uma vez pela prática da mesma infração”.
Decorre pois deste normativo que ninguém pode ser sancionado mais que uma vez pela prática da mesma infracção.
Importa atender ao disposto nas normas 186º e 187º do RD da LPFP, que, por economia discursiva, nos abstemos de tornar a transcrever, relembrando apenas que o primeiro apresenta como epígrafe ‘Arremesso de objecto perigoso’ e o segundo ‘Comportamento incorrecto do público’
Cabe, pois, apreciar quer quanto às infracções concretas, quer quanto aos bens jurídicos protegidos, se a Recorrente foi sancionada mais do que uma vez pela prática da mesma infracção.
Relembramos que as sanções aplicadas pelo Conselho de Disciplina no âmbito das infracções praticadas, foram sanção de multa de 7.650,00€, pela prática de infracção prevista e punida pelo artigo 186º, nº 2, sanção de multa de 765,00€, pela prática de infracção prevista e punida pelo artº 187º, nº 1, alínea a) e sanção de multa de 2.391,006, pela prática de infracção prevista e punida pelo artigo 187º, nº 1, alínea b), todos do Regulamento Disciplinar da LPFP.
Ora, da letra da lei resulta que o artº 186º do RD da LPFP se aplica à situação concreta de arremesso de objectos perigosos para dentro do terreno de jogo, com vista a provocar lesão de especial gravidade.
Sucede que o bem jurídico a defender é a segurança e protecção dos elementos da equipa de arbitragem, agentes de autoridade em serviço, delegados e observadores da Liga, dirigentes, jogadores e treinadores e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo.
Esmiuçando o que densifica o bem a proteger, considera-se a segurança e a integridade física dos que se encontram no terreno do jogo, em virtude de que o arremesso de objectos perigosos para esse recinto poderá atingir qualquer pessoa que nele esteja e provocar-lhe lesões. Logo, as pessoas que estiverem no terreno de jogo face às funções que exercem ficam mais expostas a esses incidentes.
O artº 187º do RD da LPFP aplica-se fora dos casos previstos do artº186º deste diploma, quanto a comportamentos incorrectos do público dos quais resultem danos patrimoniais ou que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina, protegendo os bens jurídicos da segurança do público em geral, da ordem e do património do estádio.
Visa a protecção da ordem pública, dado que se impõe que num espectáculo desportivo esteja assegurada a segurança de quem vai assistir ao jogo e também a proteger o património do estádio onde se realiza o evento desportivo, de forma a evitar estragos e prejuízos.
Em conclusão, o âmbito de cobertura ou de protecção de bens jurídicos das referidas normas são distintos e não se confundem.
Perfilam-se nos autos comportamentos praticados pelos adeptos afectos à Recorrente os quais redundam em várias e distintas infracções cujas normas violadas correspondem a bens jurídicos distintos.
Emergem assim daquelas várias condutas, infracções distintas, tendo sido aplicadas as correspondentes sanções.
A Recorrente não foi sancionada várias vezes pela mesma infracção, mas sim, sancionada por cada uma das diferentes infracções.
Donde, não se vislumbra qualquer concurso aparente entre as referidas normas, nem qualquer violação ao princípio ne bis in idem, reconhecendo que a decisão recorrida não apresenta este vício.
No que toca à arguição da inconstitucionalidade da alínea f) do artº 13º e das alíneas a) e b) do nº 1 do artº 187º do RD da LPFP, o citado Acórdão
salienta que a “questão da in­constitucionalidade da norma do artigo 106º do Regulamento, sujeita, como ficou assente, à sindicabilidade deste Tribunal Constitucional.
Só que, neste ponto, a tarefa está facilitada, na medida em que o Provedor de Justiça funda tal questão nas mes­mas razões que adianta relativamente à questão da inconstitu­cionalidade das normas do Decreto-Lei nº 270/89.
Segundo ele, "e de qualquer forma, o próprio art. 106º do Regulamento Disciplinar é, em si mesmo, inconstitucio­nal, por assentar numa responsabilidade sem culpa e por actos de terceiros que não actuam em nome, ou em representação, ou por delegação do clube".
Mas, como ficou já analisado a propósito das nor­mas daquele Decreto-Lei nº 270/89, não pode deixar de ser afir­mativa a resposta à questão da punição dos clubes desportivos, pois, pode sempre encontrar-se uma ideia de censura a imputar aos clubes, não vingando in casu uma ideia de responsabilidade objectiva dos clubes ( e daí ter-se concluído que não pode dar-se como verificada a tese sustentada pelo re­querente da viola­ção do princípio da culpa).
Reeditando, portanto, os fundamentos (…) nada mais interessa adiantar para afirmar a conformidade da questionada norma do artigo 106º à Lei Fundamental”.
Donde, talqualmente não procede a invocada inconstitucionalidade da alínea f) do artº 13º e das alíneas a) e b) do nº 1 do artº 187º do RD da LPFP.
– da inconstitucionalidade do valor das custas
Nas palavras da Recorrente o valor de custas finais – 4.890,00€ – sobre o qual ainda acresce IVA (23%), perfaz um total de 6.125,40€, atentos os nºs 1 e 5 do artº 2º conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria nº 301/2015, de 22 de Setembro, articulado com o previsto nos nºs 1, 2 e 3 do artº 76º e os nºs 4, 5 e 6 do artº 77º da Lei do TAD são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º- l e 268º-4 da CRP), devendo essas normas ser desaplicadas (art. 204º da CRP).
A jurisprudência administrativa é consonante no entendimento de que “O montante das custas arbitrais determinado através da aplicação das normas que constam do artigo 2.º, n.ºs 1 e 5 e respetiva tabela (Anexo I, 2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, de 22 de Setembro, conjugadas com as normas dos artigos 76.º, n.ºs 1, 2, 3 e 77.º, n.ºs 4, 5 e 6 da Lei do TAD, não ofende os princípios da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP) e da proporcionalidade (artigo 2.º da CRP)” – cfr de entre outros, o Acórdão do TCA Sul, Processo nº 149/17.0BCLSB, de 13 de Fevereiro de 2020, in www.dgsi.pt.
Neste acórdão, sinaliza-se o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional, de 19 de Dezembro de 2019, em que “não foram julgadas inconstitucionais tais normas e, em consequência foi dado provimento ao recurso interposto e determinada a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade” e para o qual se remeteu transcrevendo-se esta parte: “… No Acórdão n.º 543/2019 do TC, além de se fazer o adequado enquadramento normativo do Tribunal Arbitral do DesP... e do seu regime de custas, que nos dispensamos aqui de reproduzir, decidiu-se não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I, invocando-se, nomeadamente, que:
«(…) Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, no contexto de apreciação das custas judiciais, a Constituição não garante uma justiça gratuita mas uma justiça economicamente acessível à generalidade dos cidadãos, sem necessidade de recurso ao sistema de apoio judiciário (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 1182/96 e 70/98).
Ora, se o Estado pode exigir aos cidadãos que recorrem aos tribunais públicos o pagamento de taxas de justiça em contrapartida do serviço público de justiça que lhes é individualmente prestado nos processos judiciais, por maioria de razão poderá exigir aos operadores desportivos o pagamento do serviço especializado de justiça desportiva que lhes é especificamente prestado pelo TAD, que é um centro de arbitragem de natureza privada criado para responder às necessidades de uniformização, celeridade e especialização impostas pela especificidade do litígio desportivo (Acórdão n.º 230/13).
Sublinhe-se ainda que, nem mesmo relativamente ao direito à saúde (artigo 64.º da Constituição), o princípio da gratuitidade é absoluto, admitindo a previsão de taxas moderadoras para acesso ao Serviço Nacional de Saúde. Como resulta do Acórdão n.º 330/88, «(…) o conceito de gratuitidade (…) será compatível [com] a exigência (ou a exigência em certos casos) aos utentes do SNS de “taxas moderadoras” (…). Tais taxas visam tão-só “racionalizar a utilização das prestações” facultadas pelo serviço em causa: o seu objectivo (…) é unicamente o de “moderar a procura de cuidados de saúdes, evitando assim a sua utilização para além do razoável”».
O mesmo raciocínio será transponível para as custas judiciais – e para as custas cobradas no TAD -, dado que também nesta área, onde nem sequer impera idêntico princípio, se procura a racionalização na utilização da justiça, uma vez que os recursos são limitados e se pretende reservá-los para aqueles que mais deles careçam.
Independentemente de outras ponderações, trata-se aqui de aplicar um princípio geral de cobertura e imputação de custos, sendo legítima a adoção de medidas aptas a assegurar a sustentabilidade económica de um serviço público prestado por entidades privadas e a imputação do respetivo custo sobre quem, concluindo pela necessidade da utilização desse serviço público, especialmente dele beneficia.(…)
».
Partindo dessas premissas, o Acórdão n.º 543/2019 avaliou se o montante das custas cobradas no TAD por processos arbitrais necessários de valor até €30.000,00 constitui um condicionamento excessivo e injustificado do acesso aos tribunais por via tributária ou paratributária, por ser demasiado elevado, em si mesmo e por comparação com os montantes cobrados nos tribunais estaduais, tendo concluído que:
«(…) há razões constitucionalmente aceitáveis para essa diferença de valores, que se prendem com a natureza privada do TAD - que tem nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento (artigo 1.º, n.º 3, da Lei do TAD) -, o nível médio de rendimentos das entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária desse tribunal arbitral, sensivelmente superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral, e as próprias características do serviço de justiça prestado pelo TAD.
Note-se, quanto ao primeiro ponto, que a capacidade de auto-financiamento do TAD é essencial para assegurar a sua independência e imparcialidade, quer em relação à administração pública do desP..., quer em relação aos organismos que integram o sistema desportivo – cfr. artigo 1.º, n.º 1, da referida lei. A redução do preço do serviço especializado de justiça prestado pelo TAD para níveis equivalentes aos que vigoram na justiça estadual comportaria o risco de comprometer, ou a subsistência do TAD, considerando os custos tendencialmente mais elevados da atividade de arbitragem, ou a sua independência e imparcialidade, que necessariamente passam pela garantia de um estatuto de efetiva autonomia económico-financeira em relação a todas as partes potencialmente envolvidas nos litígios que compete àquele tribunal decidir.
Por outro lado, se é certo que tanto pode recorrer para o TAD um praticante desportivo como uma sociedade anónima desportiva, como é o caso do Sporting Clube de Portugal, Futebol, SAD (artigo 52.º da Lei n.º 74/2013), com diferenciados níveis de rendimentos, é razoável que o nivelamento do valor das custas processuais se faça de modo a permitir a viabilização, em condições de independência, de uma entidade jurisdicional que tem por função prestar um serviço de justiça compatível com as necessidades próprias do sistema desportivo, assegurado que esteja, como está, que ninguém será impedido de aceder à justiça desportiva por insuficiência de meios económicos (cfr. artigo 4.º da Portaria n.º 301/2015, na redação da Portaria n.º 314/2017).
Finalmente, não é possível ignorar que o serviço de justiça desportiva prestado pelo TAD, também no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, está normativamente estruturado em termos que garantem a competência e qualificação especializada dos árbitros, por um lado, e a prolação de decisões em tempo compatível com a natureza específica do tipo de litígios abrangidos pela sua jurisdição, por outro.
Com efeito, o TAD integra na sua composição o Conselho de Arbitragem Desportiva (CAD), órgão que é composto por 11 membros, sendo 2 deles designados pelo Comité Olímpico de Portugal, 2 designados pela Confederação de DesP... de Portugal e 1 pelo Conselho Nacional do DesP..., de entre juristas de reconhecido mérito e idoneidade, com experiência na área do desP... (artigos 9.º e 10.º, n.º 1, alíneas a) a c), da Lei do TAD). Compete ao CAD, designadamente, estabelecer a lista de árbitros do TAD, com base em propostas apresentadas por entidades com responsabilidades institucionais no sistema desportivo (artigo 21.º), e promover o estudo e a difusão da arbitragem desportiva, bem como a formação específica de árbitros, nomeadamente estabelecendo relações com outras instituições de arbitragem nacionais ou com instituições similares estrangeiras ou internacionais (artigos 11.º, alíneas a) e g), da mesma lei). Essa lista de árbitros é integrada, no máximo, por 40 árbitros, designados de entre juristas de reconhecida idoneidade e competência e personalidades de comprovada qualificação científica, profissional ou técnica na área do desP... (artigo 20.º, n.º 2). Acresce que a competência arbitral necessária é sempre exercida por um colégio de três árbitros, podendo cada parte designar um árbitro, devendo os árbitros assim designados escolher o terceiro, que atuará como presidente do colégio (artigo 28.º, n.ºs 1 e 2).
Por outro lado, em atenção às exigências próprias do sistema desportivo, a tramitação do processo arbitral obedece a um padrão comum de simplicidade, celeridade e eficácia, que se manifesta, por exemplo, na regra da continuidade dos prazos processuais, que não se suspendem aos sábados, domingos e feriados, nem em férias judiciais (artigo 39.º, n.º 1), na possibilidade da redução dos prazos legalmente previstos (artigo 40.º), já por si muito curtos, sendo de 5 dias o prazo geral para a prática de atos processuais (artigo 39.º, n.º 3) e de 15 dias o prazo de prolação da decisão final, que se conta da data do encerramento do debate da causa (artigo 58.º, n.º 1), incorrendo os árbitros que obstem a que a decisão seja proferida dentro do prazo legal em responsabilidade pelos danos causados (artigo 45.º).
O serviço de justiça prestado pelo TAD revela, assim, um nível de especialização e rapidez que, sendo imposto por razões de interesse público com relevância constitucional (artigo 79.º da Constituição), beneficia diretamente os operadores do sistema desportivo. (…)
…Ora, estando em causa a prestação do serviço público de justiça, como é o caso, a utilidade do serviço não deve ser aferida tendo em consideração apenas o valor da causa, mas todos os benefícios com expressão económica que decorrem das características específicas do serviço prestado, designadamente quanto ao (menor) tempo de resposta e o (maior) grau de especialização.
Por todas essas razões, não se afigura que a apontada diversidade objetiva de valores vigentes para as custas dos processos arbitrais necessários e para as custas judiciais seja, só por si, passível de um qualquer juízo de censura constitucional. (…)»”.
A Recorrida na decisão arbitral recorrida atribuiu ao valor da causa, 30.000,01€, fundada em que “O Demandante indica como valor da causa 10.806,00€ (dez mil oitocentos e seis euros), enquanto a Demandada entende que o valor da causa é de 30.001,00€ (trinta mil e um euros).
Entende o colégio arbitral, que o valor do presente processe deve considerar-se de valor indeterminável, sendo por isso fixado em 30.001,00€ (trinta mil e um euros), nos termos do artigo 34°, nºs. 1 e 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), conjugado com o artigo 6º, n° 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e artigo 44°, n° 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aplicáveis ex vi do artigo 77°, n° 1 da Lei do Tribunal do DesP... e do artigo 2º, n° 2 da Portaria n° 301/2015, de 22 de setembro, alterada pela Portaria n° 314/2017, de 24 de outubro.
O interesse que subjaz à pretensão do demandante, não se esgota na mera revogação da sanção disciplinar de multa.
A aplicação de uma sanção disciplinar de multa, para além da questão do seu montante, implica um juízo de censura sobre o comportamento do arguido, o registo da sua aplicação, "condicionando" comportamentos futuros face ao instituto da reincidência, bem como a sua desresponsabilização pelos actos praticados por adeptos e simpatizantes durante o espectáculo desportivo.
Assim, a revogação de uma sanção disciplinar de multa, vai muito para além do envolvido.
Assim sendo, preponderará o critério relativo a bens imateriais do artigo 34.º, n.º 1 do CPTA, sendo o seu valor indeterminável, com a aplicação do artigo 34º, nº 2 do CPTA”.
Uma vez que o TAD determinou o valor de custas finais em 4.890,00€, que acrescido do IVA (23%), perfaz o total de 6.125,40€, o primeiro valor foi atribuído com base no Anexo I da Portaria nº 301/2015, de 22 de Setembro.
Dispõe o artº 2º da Portaria que “1 - A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do DesP... em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante.
2 - Compete ao tribunal arbitral definir o valor da causa, nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
3 - Se a arbitragem terminar antes da sentença final, o Presidente do Tribunal Arbitral do DesP... pode reduzir a taxa de arbitragem tomando em consideração a fase em que o processo arbitral foi encerrado ou qualquer outra circunstância que considere relevante, nos termos correspondentes da redução dos honorários dos árbitros.
4 - São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção da prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros.
5 - A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I”.
Ora, detendo-nos nos nºs 1 e 5 desta norma que são os relevantes para avaliar da inconstitucionalidade arguida, concatenados com o determinado na segunda linha do Anexo I da Portaria, ou seja, que quando o valor da causa se fixe de entre 30 000,01€ a 40 000,00€, a taxa de arbitragem é de 900,00€, correspondendo os honorários do colectivo de árbitros a 3 000,00€ e os encargos administrativos a 90,00€, não podemos acolher a tese da inconstitucionalidade dos identificados nºs 1 e 5.
Isto porque, haverá que levar em conta a premissa da especificidade da justiça arbitral (necessária) sendo que o tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios que demandam resolução jurisdicional, convocam díspares pontos cardeais de referência dos quais parte a ponderação a que o legislador deve atender na fixação do valor das custas finais dos processos.
No caso concreto dos tribunais arbitrais chamados a decidir dos litígios em que os intervenientes são federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, detentores de uma maior capacidade económica, possuindo aqueles tribunais natureza jurisdicional não pública, nem financiada pelo Estado, têm a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento.
Assim sendo, o valor das custas espelha na sua génese uma dupla perspectiva: a primeira, a capacidade económica dos litigantes e a segunda, os custos a que a mesma se destina, ou seja, prover os custos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, neste sentido intuído do valor concretamente fixado na segunda linha da tabela do Anexo I da Portaria nº 301/2015, de 22 de Setembro.
Neste enquadramento, o valor das custas finais fixado pelo Tribunal a quo não é inconstitucional, como alega a Recorrente, atentos os nºs 1 e 5 do artº 2º da referida Portaria combinados com a tabela constante do respectivo Anexo I, articulado com o estatuído nos nºs 1, 2 e 3 do artº 76º e os nºs 4, 5 e 6 do artº 77º da Lei do TAD.
Nestes termos, também neste segmento não concedemos provimento ao presente recurso jurisdicional.
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Face aos factos provados não se vislumbra a prova de qualquer facto que conduzisse a uma posição diversa da ora recorrida.
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V. Decisão
Assim, face ao exposto, acordam, em conferência, as Juízes da Subsecção Administrativa Social da Secção de Contencioso Administrativo do TCA Sul, em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, manter o acórdão arbitral.

Custas pela Recorrente, – Futebol, SAD.

Notifique.
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Lisboa, 11 de Abril de 2024

(Maria Helena Filipe)
(Ilda Côco)
(Teresa Caiado – com declaração de voto)
Declaração de Voto

Voto favoravelmente o Acórdão por concordar com a decisão e com a generalidade dos fundamentos, exceção feita à tese de que: “… a amnistia das infrações disciplinares tem carácter puramente objetivo, aplicando-se inclusive às infrações disciplinares de pessoas coletivas…”. Isto por considerar que, atento v.g. o teor da Exposição de Motivos da Lei n° 38-A/2023, de 2 de agosto, tais medidas, expressamente, ocorrerem no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude – JMJ que decorreram em Portugal, ou seja, as medidas de clemência mostram-se circunscritas e moldadas pela concreta realidade humana e jovem a que se destina.

Teresa Caiado
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