Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:115/23.7BEALM
Secção:CA
Data do Acordão:08/31/2023
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO
Descritores:DESPEJO
HABITAÇÃO SOCIAL
MUNICÍPIO
CAUTELAR
Sumário:I – Uma vez numa análise sumária e perfunctória, atinente à tutela cautelar, não se vislumbra a violação do direito constitucional de habitação, nem se verifica violação do mecanismo previsto no artigo 28.º, n.º 6 da Lei n.º 81/2014, uma vez que a fração habitacional em causa foi ocupada ilicitamente, não poderá ser mantida a ocupação da fração que a Requerente vem ocupando.

II - Efetivamente, não se mostra aplicável o Artº 26º nº 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, de acordo com o qual os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, pela singela razão que a Recorrente integra agregado familiar de diversa habitação municipal, em face do que não preenche o referido requisito de “efetiva carência habitacional”.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I Relatório
T......, com os demais sinais nos Autos, apresentou o presente Processo Cautelar, contra o Município do Montijo na qual, em síntese, requereu que este se abstenha de impedir o normal uso do locado sito na Rua I...... Lisboa, nº......, R/c Esqº, Bº da C......, 2...... Montijo, que vem utilizando como sua habitação, até lhe ser fixada uma renda ou atribuída uma nova habitação.
A Requerente, inconformada com a Sentença proferida no TAF de Almada em 17.04.2023, que indeferiu a providencia cautelar requerida, veio recorrer para esta instância em 20 de abril de 2023, aí concluindo:
“1ª A Recorrente encontra-se a habitar na atual habitação desde dezembro de 2022 por não ter outro sitio para onde ir e há vários anos que a Recorrente aguarda pela, para atribuição de uma casa social mas da Recorrida nunca recebeu qualquer resposta.
2ª A Recorrente, mãe solteira, e a sua filha de 9 meses tal como Doc. 1 já juntos não dispõem de qualquer outra habitação
3ª Têm assistido a entregas de chaves a pessoas que não concorreram tal como sucedeu recentemente que um seu conhecido que tendo aceite a casa atribuída por concurso viu a mesma ser-lhe retirada e ocupada (foi entregue sem concurso pelo Presidente da CM) ao que consta por uma distinta senhora que não concorreu e que lhe ficou com a casa por alegadamente ser mulher de um policia municipal.
4º Por terem sido despejados verbalmente por desacatos familiares da antiga habitação e para salvaguardar a saúde e vida da Recorrente e da sua filha bebé esta viu-se obrigada a encontrar uma solução rápida, e não tendo outra alternativa foi obrigada a encontrar um abrigo na sua atual habitação sem terem capacidade financeira para o arrendamento do mercado livre e a habitação social tem vindo a ser-lhe negada e prejudicarem mais ninguém pois a casa estava devoluta há um ano, ali permanecem até que os serviços da Recorrida encontrem alguma alternativa. Neste contexto, com a Recorrente e a sua filha bebé desesperados e em puro estado de necessidade, não teve outro remédio senão entrar numa casa que se encontrava abandonada e com a porta aberta.
5º A Recorrente já tentou que a Recorrida a recebesse para assinar um contrato de arrendamento com uma renda apoiada e de acordo com os rendimentos do agregado familiar mas sempre sem sucesso
6º Desde há vários anos atras que a Recorrente tem feito tudo para que junto da Recorrida lhe fosse regularizada a situação visto que pretendia pagar a renda e naturalmente ter recibos na sua posse.
7º Temendo pela dignidade e integridade da vida da Recorrente e temem pelo eminente despejo tal como outros exemplos da sua família e amigos que foram despejados pelo que logo temeu a iminente entrada daqueles na sua habitação.
8º Recorde-se que a casa corresponde à residência da Recorrente, mãe solteira e o seu filho com 9 meses de idade não dispõem de qualquer outra habitação.
9º A Recorrente apenas aufere o RSI não tendo qualquer atividade remunerada, não tendo possibilidades económicas que lhes permitam arrendar uma casa.
10º A Recorrente, ao concorrer durante estes anos consecutivos e por estar em situação de desespero por ter não ter outro sítio onde viver, adquiriu a legitima expectativa de ter acesso a uma habitação social pois que está demonstrado que carece da mesma.
11º A Recorrente não tem qualquer rendimento e apenas tem condições para pagar uma renda de 4 ou 5 euros, o que só é possível numa habitação social.
12º Com base em estado necessidade o garantir a segurança, a saúde, e até o direito à vida da Recorrente e da bebé com 9 meses de idade, faz com que se verifiquem os requisitos objetivos e subjetivos do estado de necessidade não apenas desculpante, mas verdadeiramente dirimente da responsabilidade criminal.
13º Acresce ainda que tal como resulta do Acórdão do TCAS nº 383/19.9BELSB, estando demonstrada a efetiva carência habitacional tal como a Recorrente alega, a entidade Requerida GEBALIS enquanto entidade de gestora de um parque de habitação social esta obrigada, quando confrontada com o requerimento da providência a averiguar a existência de efetiva carência habitacional e sendo a mesma evidente, deverá ser emitido juízo de prognose favorável por parte do Tribunal se a GEBALIS cumprir a obrigação legal imposta pela lei 32/2016 de 24 do 8, facilmente concluirá que o Recorrente afinal tem direito à atribuição de uma habitação social atenta a fragilidade da sua situação económica sob a forma de atribuição em emergência social.
14º Em suma, a pretensão da Recorrente com base no estado de necessidade e na situação de emergência social tem direito a que seja previamente ouvida a Recorrida á qual tem a obrigação não apenas de informar mas sobretudo de acompanhar e comunicar ao tribunal se afinal a Recorrente tem ou não carência habitacional em situação de urgência e só depois, eventualmente apos a inquirição das testemunhas se pode concluir pela legalidade ou não do recurso à providencia cautelar de abstenção, a qual nos termos legais deveria merecer um despacho judicial no prazo de 48 horas de deferimento relegando-se para a fase posterior à oposição a apreciação do mérito da providência.
15º Assim, por se afigurar que a Recorrente tem direito ao deferimento provisório da providência e que o momento oportuno para se conhecer da legalidade ou não da pretensão só tem lugar após a apresentação da oposição por parte da entidade requerida, se Requer a Vexa. se digne deferir provisoriamente a mesma.
16ª Se a Recorrida não se dignar fixar o valor da renda à Recorrente, dentro dos parâmetros legais a sobrevivência do agregado familiar estará grave e irremediavelmente afetada, nomeadamente a vida e o bem-estar da filha da Recorrente com apenas 9 meses de idade, tal como Doc. 1 já junto
17ª Para mais o argumento plasmado pelo Tribunal de 1ª instância no que consta à obrigatoriedade de ter de ser a Requerente ora Recorrente ter de esperar por uma notificação/ordem de despejo da Requerida ora Recorrida para depois sim reagir a esta notificação, tendo em conta a prática comum deste tipo de procedimento, constata-se que estas despejam verbalmente como já fizeram a semana passada vários fogos sem para isso notificar ninguém apenas aparecendo de surpresa com carga policial e colocando os agregados a dormir na rua! Se a Recorrente, com a bebé com meses, aguardasse estaria sujeita que a qualquer altura ser despejada sem qualquer notificação, pois essa não é a prática normal por já ter a Recorrente constatado isso nos casos da sua vizinhança!
Temendo a Requerente ora Recorrente da mesma situação e por ter intenção, como já tem vindo a ter desde 2019 de regularização da situação, passando assim a pagar uma renda à Recorrida, contudo os esforços da Recorrente foram infrutíferos.
18ª Nos termos do disposto no artº 65ºnº 1 da CRP todos têm direito para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
19ª Tal disposição tem como sujeito passivo o Estado e naturalmente que incumbindo-lhe competências quer para gerir um parque habitacional perfeitamente delimitado. Logo, a notificação da Recorrida no que respeita à omissão culposa da regularização da situação não só era oportuna como perfeitamente ilegal ao abrigo da CRP.
20ª Foi indevidamente julgado no Tribunal de 1ª instância que que não se encontra verificado o requisito do fumus boni iuris, conforme estabelecido no artigo 120.º, n.º 1 do CPTA.
21ª Pois tal como em jurisprudência semelhante é mister passar invocar o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul Processo: 1012/22.9BELSB de 20-10-2022, por ser uma situação idêntica à da Requerente e do seu agregado familiar com efetiva carência económica. Transcrevendo apenas uma excerto
22º “Falta certeza à conclusão tirada na decisão recorrida de que a requerente, de forma manifesta, pode ser despejada sem lhe ser atribuído um imóvel por se tratar de uma ocupação sem título de fogo municipal, tendo em conta, por um lado, que a requerente alega no requerimento inicial factualidade tendente a demonstrar que se encontra numa situação de efetiva carência habitacional e, por outro lado, o disposto no art. 13º, da Lei 83/2019, de 3/9 (Lei de bases da habitação), e nos arts. 1º, 3º e 4º, do DL 89/2021, de 3/11 (o qual regulamenta a Lei 83/2019), diplomas legais que concretizam o direito à habitação consagrado no art. 65º, da CRP”
23ª Efetivamente, ao abrigo da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2016 resulta do artº 28ºnº 6 que os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais. Trata-se uma disposição naturalmente imperativa.
Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos deve o presente recurso ser admitido, com efeito suspensivo automático, julgado procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida e decretando-se a ser notificado/intimado o MUNICIPIO DO MONTIJO para se abster, sob pena de incorrer no crime de desobediência e de por qualquer forma criarem obstáculos, impedir o normal uso do locado pela Recorrente, mãe solteira, e o seu filho com apenas 9 meses de idade tal como Doc. 1 já juntos, para o fim a que se destina (habitação própria e exclusiva) da casa sita na Rua I...... Lisboa, nº......, R/c Esqº, Bº da C….., 2...... Montijo, até que lhe seja atribuída uma nova habitação ou fixada uma renda para a atual morada de família; Condenando-se a Recorrida em custas e condigna Procuradoria se fará Justiça! Como É de JUSTIÇA!”

Por Despacho de 21 de abril de 2023 foi admitido o Recurso interposto.
O Município do Montijo, veio apresentar as suas Contra-alegações de Recurso em 11 de maio de 2023, sem conclusões, afirmando-se, a final que “Deverá o recurso interposto pela Requerente/Recorrente ser totalmente indeferido e, em consequência, ser integralmente confirmada e mantida a douta Sentença Recorrida.

Já nesta instância, a Magistrado do Ministério Público junto deste tribunal, notificado em 18 de maio de 2023, veio a emitir Parecer em 19 de maio de 2023, no qual, a final, “se emite parecer no sentido da improcedência do presente recurso.”

II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, o que se consubstancia na necessidade de verificar se estão reunidos os pressuposto tendentes à procedência da Providencia Cautelar.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte matéria de facto provada e não provada:
“A. Em 08.05.2017, foi realizado contrato de arrendamento apoiado para habitação entre o Município do Montijo e M......., quanto à fração identificada pela letra “F”, correspondente ao 2.º andar direito, da Rua I...... Lisboa, n.º 1......., Bairro da C......, Montijo, tendo como fim a residência permanente da arrendatária e do seu agregado familiar [cf. fls. 83-92 dos autos];
B. Do contrato referido no ponto antecedente, consta o seguinte teor, por extrato [cf. fls. 83-92 dos autos]:
“(…) Artigo 2.º (Agregado familiar) 1. Para efeitos do disposto no artigo anterior, integra o agregado familiar autorizado a residir, em economia comum com o arrendatário, na fração identificada no n.º 1 do artigo 1.º, as pessoas seguintes:
a) T......., com o NIF n.º ……02, qualidade de filha
b) A......., com o NIF n.º …..07, na qualidade de filho. (…)
Artigo 5.º (Prazo) O presente contrato de arrendamento apoiado é celebrado pelo prazo de 10 (dez) anos, com início na data da sua outorga, renovando-se automaticamente por igual período, caso não seja denunciado por qualquer uma das partes nos termos legais aplicáveis. (…)”.
C. Em 22.06.2021, a Requerente apresentou requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal do Montijo requerendo a atribuição de habitação social no concurso de 2021, do qual consta o seguinte teor, por extrato [cf. fls. 114-143 (página 19) e 32-33 dos autos]:
“(…) moro na casa com a minha mãe e meu irmão, onde só tem 2 quartos, sendo que não tenho meu próprio quarto, ficando inibida da minha privacidade, já que não há um quarto para eu poder ter o meu espaço e minhas coisas, no momento durmo na sala. (…)”
D. Em 29.09.2022, a Requerente candidatou-se ao concurso para a atribuição de habitação social promovido pela Câmara Municipal de Montijo, constando do questionário apresentado pela Requerente o seguinte teor, por extrato [cf. fls. 264-288 dos autos]:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Art.º 663º nº 6 CPC)
E. A Requerente tem um filho menor a cargo, nascido a 09.07.2022 [cf. fls. 264288 (páginas 15 e 16) dos autos];
F. Em 25.01.2023, a Câmara Municipal de Montijo deliberou aprovar o projeto de decisão de resolução do contrato de arrendamento realizado entre o Município e A.A......, bem como tomar a posse da fração correspondente ao rés do chão esquerdo, sito na Rua I...... Lisboa, n.º ......, Montijo [cf. fls. 101-113 (página 1 e 3) dos autos].

Vejamos.
Em 6 de junho de 2023 foi proferida decisão singular nos termos do Artº 656º CPC, através da qual se negou provimento ao recurso interposto, confirmando-se a Sentença Recorrida.

Dessa decisão singular veio inadvertidamente a Requerente a interpor Recurso para o STA quando a referida decisão está sujeita a prévia reclamação para a Conferência, em face do que, em linha com o constante do Despacho de 19 de julho de 2023, se convola o referido Recurso em Reclamação para a Conferência, uma vez que está em tempo.

No que aqui releva, discorreu-se no discurso fundamentador da decisão recorrida:
“(…) Comecemos então por apreciar do "fumus boni iuris” nos presentes autos.
A Lei n.º 81/2014, de 19.12.2014, estabeleceu o novo regime do arrendamento apoiado para habitação, cujas últimas alterações foram levadas a cabo pela Lei n.º 32/2016 e pelo Decreto-Lei n.º 89/2021.
Conforme o previsto no n.º 1 do artigo 35.° da referida Lei n.º 81/2014, “são consideradas sem título as situações de ocupação, total ou parcial, de habitações de que sejam proprietárias as entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.°por quem não detém contrato ou documento de atribuição ou de autorização que a fundamente”.
Assim, em caso de inexistir título para a ocupação da habitação, "o ocupante está obrigado a desocupar a habitação e a entregá-la, livre de pessoas e bens, até ao termo do prazo que lhe for fixado, não inferior a três dias úteis, na comunicação feita para o efeito, pelo senhorio ou proprietário, da qual deve constar ainda o fundamento da obrigação de entrega da habitação” (cf. artigo 35.°, n.º 2 da Lei n.º 81/2014).
Caso a desocupação não seja cumprida voluntariamente, o despejo terá lugar nos termos estabelecidos pelo artigo 28.° da Lei n.º 81/2014, conforme estabelece o n.º 3 do referido artigo 35.°, remetendo o n.º 4 especificamente para a aplicação do n.º 6 do artigo 28.°.
Por seu turno, prevê o n.º 6 do artigo 28.° da citada Lei n.º 81/2014, que “os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais".
Revertendo agora ao caso dos autos, a Requerente alega que residia na habitação sita na Rua I...... Lisboa, n.º 1......., 2.° direito, Bairro da C......, Montijo, da qual teria sido alegadamente despejada por ordem verbal, passando a residir, desde Dezembro de 2022, na Rua I...... Lisboa, n.º ......, rés do chão esquerdo, Bairro da C......, Montijo, tendo adquirido, desta forma, a legitima expectativa de aí residir.
Invoca a Requerente em seu abono, a violação do direito à habitação constitucionalmente protegido, alegando que não tem outro local para habitar, e que o Município, ao não indicar renda para a habitação social, encontra-se em violação do direito de habitação consagrado no artigo 65.° da CRP, nunca tendo recebido qualquer apoio da assistência social para indicação de outras formas de obter arrendamento apoiado, violando assim o disposto do artigo 28.°, n.º 6 da Lei n.º 81/2014..
Desta forma, está em causa nos presentes autos, tanto a apreciação do direito constitucional à habitação, como a preterição do artigo 28.°, n.º 6 da Lei n.º 81/2014.
Cumpre apreciar e decidir.
No caso dos autos, verifica-se que o Município do Montijo realizou contrato de arrendamento com M...... a 08.05.2017 (factos provados A), para que aquela ali residisse juntamente com o seu agregado familiar, na Rua I...... Lisboa, n.º 1......., 2.° andar direito, Bairro da C......, Montijo.
Resulta dos autos ainda que, a Requerente é indicada pela arrendatária do n.º 1......., como parte do agregado familiar, sendo que decorre dos autos que era aquela a residência da Requerente em 2021 e 2022 (factos provados B, C e D).
Com efeito, decorre dos requerimentos apresentados pela Requerente, em sede de candidatura aos concursos para atribuição de habitação social dos anos 2021 e 2022, que aquela indica como endereço de residência a morada da sua mãe, ou seja, a Rua I...... Lisboa, n.º 1......., 2.° direito, Montijo (cf. factos C e D).
Muito embora o direito à habitação seja um direito previsto no artigo 65.° da Constituição da República Portuguesa, “enquanto direito fundamental de natureza social, pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo (...) ”, não se retirando daqui “um direito imediato a uma prestação efetiva, porquanto não é diretamente aplicável ou exequível, exigindo uma atuação do legislador que permita concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei (vide Jorge Miranda e Rui de Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, 2005, página 668).
Isto significa que, ainda que o agregado familiar da Requerente se encontre em estado de carência habitacional, tal não determina automaticamente o direito a usar uma habitação social.
Neste mesmo sentido vide o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no Processo 923/19.3BEALM de 24.09.20201 pois, “a atribuição de uma habitação social não decorre imediata e diretamente do art. ° 65. ° da CRP, mas depende de uma concretização e mediação legislativa. Assim, a Lei n° 81/2014, de 19/12, (alterada pela Lei n. ° 32/2016, de 24/08) consagrou um regime de habitação social assente na ocupação dos fogos por agregados familiares que apresentem baixos rendimentos, selecionados após um procedimento concursal, que está dependente de várias condições e requisitos".
Ora, não decorre dos autos que a Requerente se encontrasse efetivamente em estado de carência habitacional. Isto porque, fica demonstrado indiciariamente que as suas necessidades habitacionais se encontravam colmatadas pela residência na casa da sua mãe no n.º 1....... da Rua I...... Lisboa, onde residiu pelo menos até 2022. Aliás, do requerimento que a Requerente apresenta em sede de procedimento de candidatura ao concurso de atribuição de habitação social em 2021 (factos provados C), as razões que a Requerente alega prendem-se com níveis de conforto e de privacidade, e não de carência habitacional.
Por outro lado, a habitação social, apesar de constituir um direito que assiste o cidadão, encontra-se sujeita a regras de habitação, pois o direito de habitação não é apenas atinente à Requerente, mas a todos os cidadãos em igualdade de condições, sendo aferida a atribuição de habitação através de concurso promovido pelo Município, conforme previsto no artigo 7.° e seguintes da Lei n.º 81/2014. É apenas através da atribuição da habitação social por concurso, e não através da mera ocupação voluntária de habitações pelos interessados, que poderá ser cumprido e efetivado o direito à habitação que a Requerente convoca.
Face ao exposto, é forçoso concluir que, no particular aspeto em análise, está afastada a demonstração da provável procedência da ação principal.
Quanto à alegada violação do artigo 28.°, n.º 6 da Lei n.º 81/2014, há a considerar que o disposto deste artigo é aplicável em duas situações, ou seja, em sede de despejo, ou, no caso de desocupações levadas a cabo na sequência de ocupação sem título, conforme previsto no artigo 35.°, n.º 1 e 6 da Lei n.º 81/2014.
No que se refere à aplicação na sequência de despejo, verifica-se que o contrato de arrendamento, quanto ao referido n.º 1....... da Rua I...... Lisboa, foi realizado entre o Município e a mãe da Requerente. Desta forma, não seria possível ter tido lugar o despejo que a Requerente alega ter sido objeto pois, não é possível haver lugar à cessação de um contrato de arrendamento quando o mesmo não foi realizado entre a Requerente e o Município.
A tal acresce que, resulta provado indiciariamente nos presentes autos que, o contrato de arrendamento realizado quanto ao n.º 1....... da Rua I...... Lisboa ainda se encontra em vigor (factos A e B). Com efeito, inserindo-se o âmbito de aplicação do n.º 6 do artigo 28.° da Lei n.º 81/2014 em sede de despejo, e não se demonstrando a verificação de qualquer despejo, pois inexistia contrato de arrendamento entre a Requerente e o Município, não se impunha a este último reencaminhar a Requerente para outras soluções habitacionais, não se verificando a possível violação do referido artigo.
Vejamos agora da aplicação do artigo 28.°, n.º 6 da Lei n.º 81/2014 em sede de desocupação da habitação, quando a mesma tenha sido objeto de ocupação sem título nos termos do artigo 35.° do referido diploma legal.
A Requerente alega que ocupou a habitação correspondente ao rés do chão esquerdo do n.º ...... da Rua I...... Lisboa, sem convocar, contudo, a existência de um título, documento ou autorização que lhe providenciasse um fundamento para a sua ocupação.
Como fundamento, a Requerente invoca tão só um direito constitucional para ali residir e uma carência habitacional que não logra demonstrar, sequer indiciariamente. Conclui-se, portanto, que a ocupação alegada é uma ocupação sem título, e, consequentemente, insere-se no âmbito de aplicação do artigo 35.° da Lei n.º 81/2014.
Contudo, há a considerar que não resulta dos autos, como alegado tanto pela Requerente, como pela Entidade Requerida, que o Município tenha iniciado qualquer processo de desocupação da habitação sita no n.º ...... da Rua I...... Lisboa. É que apenas resulta dos autos que a Requerente ocupou a habitação social em causa, sem qualquer título que a legitimasse, e sem que tenha havido, ainda, reação do Município quanto a tal ocupação.
Sendo certo que a Requerente integra o agregado familiar da habitação sita no n.º 1....... da Rua I...... Lisboa, o que desde logo afasta a alegada existência de situação de efetiva carência habitacional da Requerente.
Ademais, o encaminhamento para soluções legais de habitação ou ajudas, previsto no artigo 28.°, n.º 6, aplicável por remissão do n.º 4 do artigo 35.°, ambos da Lei n.º 81/2014, deve ser prévio ao ato de despejo, mas não prévio à decisão executiva de despejo, a qual não resulta provada ter tido lugar no caso dos autos. Não decorrendo dos factos, ou do alegado, a existência de um procedimento direcionado à desocupação da casa por meio de despejo, não se impunha ao Município levar a cabo tal reencaminhamento, impondo-se concluir que fracassa inteiramente na demonstração da provável procedência da ação principal neste ponto igualmente.
Assim sendo, ainda que em análise sumária e perfunctória, atinente à tutela cautelar, afigura-se-nos que, não se constatando a violação do direito constitucional de habitação, nem se verificando violação do mecanismo previsto no artigo 28.°, n.º 6 da Lei n.º 81/2014, constata-se a improbabilidade de procedência da ação principal por não assistir à Requerente, dentro do que aquela invoca e argumenta, um direito à habitação e ocupação daquele imóvel.
Em consequência, considero que não se encontra verificado o requisito do fumus boni iuris, conforme estabelecido no artigo 120.°, n.º 1 do CPTA.
Destarte, e sendo os requisitos para a concessão da tutela cautelar de verificação cumulativa, não há que apreciar da verificação do requisito do periculum in mora, nem proceder à ponderação dos interesses públicos e privados em causa, pelo que, será indeferida a pretensão cautelar, sentido no qual a seguir se decidirá.”

Vejamos:
Há desde logo uma questão essencial e que se prende com a circunstância da Requerente integrar o Agregado Familiar do apartamento identificado sob a letra “F”, correspondente ao 2.º andar direito, da Rua I...... Lisboa, n.º 1......., Bairro da C......, Montijo (Facto Provado A) e B).

A referida circunstância compromete e inviabiliza aplicabilidade da jurisprudência citada pela Recorrente, pois que estando a mesma a residir sem titulo na Rua I...... Lisboa nº......, R/c Esqº, Bº da C......, Montijo, a sua desocupação da referida fração não determina que fique desalojada, uma vez que integra o agregado familiar da sua mãe que detém habitação municipal no n.º 1....... da mesma rua do Montijo, o que significa que se não encontra numa situação de efetiva carência habitacional.

A não ser assim, estrar-se-ia a viabilizar uma situação de impunidade permissiva que inviabilizaria a atribuição de habitação social e municipal aos mais carecidos da mesma.

Aqui chegados, entende-se que a argumentação recursiva não será suscetível de proceder.

Efetivamente e em razão do já expendido, não se reconhece que a recorrente esteja em “estado de necessidade e na situação de emergência social”, bastando que volte a integrar o agregado familiar a que pertence.

Ademais, a Recorrente limita-se, no essencial, a repetir a argumentação já anteriormente esgrimida, a qual já foi rebatida em 1ª Instância.

Acompanha-se, pois, a fundamentação jurídica da sentença recorrida, por se nos afigurar que esta efetuou um correto enquadramento jurídico dos factos indiciariamente provados, interpretando e aplicando corretamente os pertinentes preceitos legais.

Mostra-se, pois, acertado o julgamento do Tribunal a quo quando, em face da fundamentação que o precedeu, concluiu o seguinte:
“Assim sendo, ainda que em análise sumária e perfunctória, atinente à tutela cautelar, afigura-se-nos que, não se constatando a violação do direito constitucional de habitação, nem se verificando violação do mecanismo previsto no artigo 28.º, n.º 6 da Lei n.º 81/2014, constata-se a improbabilidade de procedência da ação principal por não assistir à Requerente, dentro do que aquela invoca e argumenta, um direito à habitação e ocupação daquele imóvel.
Em consequência, considero que não se encontra verificado o requisito do fumus boni iuris, conforme estabelecido no artigo 120.º, n.º 1 do CPTA.
Destarte, e sendo os requisitos para a concessão da tutela cautelar de verificação cumulativa, não há que apreciar da verificação do requisito do periculum in mora, nem proceder à ponderação dos interesses públicos e privados em causa, pelo que, será indeferida a pretensão cautelar, sentido no qual a seguir se decidirá.“

Em suma, não assiste razão à Recorrente, em face do que a sentença recorrida não merece a censura que imputada pelo recurso, devendo manter-se.

Efetivamente, não se mostra aplicável o Artº 26º nº 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, de acordo com o qual os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, pela singela razão que a Recorrente integra agregado familiar de diversa habitação municipal, em face do que não preenche o referido requisito de “efetiva carência habitacional”.

Em face de tudo quanto supra ficou expendido, entende-se que, efetivamente, se não mostra preenchido o requisito do fumus boni iuris, conforme estabelecido no artigo 120.°, n.º 1 do CPTA, pois que ficou por demonstrar que “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”.

IV - DECISÃO
Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em indeferir a reclamação para a conferência, mantendo a decisão sumária do relator de negar provimento ao Recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, sem prejuízo da eventual concessão de apoio judiciário.
Lisboa, 31 de agosto de 2023
Frederico Macedo Branco

Carlos Araújo

Jorge Cortês