Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:449/21.5BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:09/15/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:ANULAÇÃO DE VENDA
INCAPACIDADE TEMPORÁRIA ACIDENTAL
FACTOS ESSENCIAIS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
ANÚNCIO
IDENTIFICAÇÃO DOS BENS
RECLAMAÇÃO 276CPPT
Sumário:I - É possível um pedido de anulação de venda formulado pelo comprador ser sustentado na verificação de fundamentos gerais para anulação da compra previstos no Código Civil, onde se inclui a incapacidade temporária acidental.
II - Nos termos do art.º 257.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, o ato será anulável com fundamento em incapacidade acidental se esta, existindo, for notória, no sentido de ser manifesta a uma pessoa de normal inteligência, ou conhecida da outra parte.
III - O respeito pelo princípio do inquisitório implica que, a montante, haja uma caraterização suficientemente precisa da factualidade controvertida – incluindo a alegação dos factos essenciais, que cabe às partes.
IV - Não sendo alegada factualidade essencial atinente a um dos requisitos essenciais legalmente exigidos, a realização de prova para a demonstração do outro dos requisitos é um ato inútil, proibido por lei.
V - A alínea c) do n.º 5 do art.º 249.º do CPPT obriga que a haja uma identificação dos bens, identificação essa que tem de ser, ainda que sumária, suficiente, para que o destinatário do anúncio respetivo forme a sua ideia sobre o bem, em termos quantitativos e qualitativos, de forma correta e exata.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

D... (doravante Recorrente ou Reclamante) veio recorrer da sentença proferida a 20.05.2022, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, na qual foi julgada improcedente a reclamação de ato do órgão de execução fiscal (OEF) por si apresentada, que teve por objeto o indeferimento do pedido de anulação de venda (despacho de 24.05.2021), no âmbito dos processos de execução fiscal (PEF) n.ºs 1007201301022423 e apensos.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A) O recorrente arrolou duas testemunhas, que pretendia que fossem inquiridas sobre se a venda deve ser anulada por o reclamante, no momento em que licitou a venda, padecer de incapacidade temporária acidental, em resultado da medicação que se encontrava a tomar, por indicação e prescrição médica, o que constitui matéria controvertida.

B) Não obstante o tribunal “a quo” não dispensou qualquer consideração sobre a divergência de posições entre as partes e no despacho saneador, no entendimento que não existia matéria controvertida que revelasse para a decisão final, não considerou necessária a inquirição de testemunhas, violando o direito de produzir prova do recorrente ao não lhe permitir fazer prova da matéria que era essencial para fazer valer o deu direito, ao mesmo tempo que deu por não provada esta factualidade na sua fundamentação de facto.

C) Através da inquirição das testemunhas pretendia provar, que o reclamante, no momento em que licitou a venda, padecia de incapacidade temporária acidental, em resultado da medicação que se encontrava a tomar, por indicação e prescrição médica, o que constitui matéria controvertida.

D) Tais factos constituem matéria controvertida, que a sentença decidiu sem produzir prova e cuja aferição desta factualidade se mostra indispensável para a decisão fundamentada sobre se o reclamante, no momento em que licitou a venda, padecia de incapacidade temporária acidental, em resultado da medicação que se encontrava a tomar.

E) Compulsados os autos resulta que a factualidade alegada pelo recorrente é controvertida e afigura-se relevante, à luz de qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, e admite produção de prova testemunhal, sendo que esta não se encontra afastada por outros meios de prova.

F) O tribunal “a quo” não permitiu ao recorrente fazer prova de matéria que era essencial para a sua defesa. Tal omissão de diligências de prova afecta o julgamento da matéria de facto por défice instrutório.

G) Assim, não pode o Tribunal “ad quem” acompanhar o juízo efectuado em 1ª instância quanto à dispensa da diligência de inquirição de testemunhas, sendo patente que a factualidade alegada pelo recorrente não é indiferente à boa decisão da causa, deve dar-se a possibilidade do recorrente usar de todos os meios de prova legalmente admissíveis, para cumprir o seu ónus probatório, e assim, salvaguardar de forma plena os seus legítimos interesses.

H) Assim a decisão sob recurso está inquinada de erro de julgamento, por um deficiente juízo valorativo da dispensa de prova testemunhal ou da sua irrelevância para a decisão da causa.

I) Face ao exposto, impõe-se concluir que, não estando feitas todas as diligências requeridas de molde ao esclarecimento da situação fáctica alegada pelo recorrente, a qual é relevante para a boa decisão da causa, o processo terá que baixar à 1ª instância a fim de em cumprimento dos artigos 99º da LGT e 13º do CPPT seja realizada a requerida diligência de prova testemunhal, possibilitando ao recorrente o cumprimento do ónus que lhe incumbe, e ser proferida nova decisão de acordo com o julgamento da matéria de facto que vier a ser feito.

J) Da leitura que fez do anúncio da venda, o recorrente ficou convicto que estava a licitar a aquisição de todo o apartamento e não para 1/14”, uma vez que do anúncio da venda não resulta claro para um cidadão de mediana instrução e percepção, que se encontrava em venda apenas parte do apartamento, numa reduzida proporção de 1/14.

L) O Serviço de Finanças, na publicitação da venda que efectuou omitiu um elemento essencial à formação da vontade do comprador, pelo que foi induzido em erro pelo teor do anúncio público da venda, uma vez que nunca teria apresentado proposta de compra pelo valor de € 15.000,00, caso tivesse conhecimento de que apenas estava em venda 1/14 da fracção, o que segundo constitui erro sobre o objecto por se ter verificado desconformidade entre o anunciado e o vendido, determinativo da anulação da venda.

M) Do anúncio da venda não resulta claro para um cidadão de mediana instrução e percepção, que se encontrava em venda apenas parte do apartamento, numa reduzida proporção de 1/14.

N) O recorrente por não ter qualquer formação em direito, encontrava-se profundamente convicto de que não era possível a venda apenas em parte de um apartamento, mas apenas a venda no seu todo.

O) Apenas quando foi notificação da aceitação da proposta, tomou conhecimento que a venda anunciada correspondia a 1/14 do apartamento, e não à sua totalidade, como estava convicto no momento da apresentação da proposta.

P) Se tivesse aquele conhecimento, ou não entregava qualquer proposta ou, se o fizesse, seria por um valor indiscutivelmente inferior, dentro dos mesmos valores apresentados pelos restantes proponentes, na ordem dos 2.500,00, pelo que o recorrente foi induzido em erro quanto ao objecto da venda, pensando que a venda abrangia a totalidade do apartamento.

Q) Assim, perante a falta de conformidade entre o anunciado e as reais características do apartamento em venda, existe um erro que torna a venda anulável, com base no disposto nos arts. 249º e 257º do CPPT.

R) Resultando que o bem não foi correctamente publicitado, em cumprimento do disposto na alínea c) do nº 5, do artigo 249º, do CPPT, verifica-se o pressuposto da anulação da venda, ou seja, o erro a que se refere a alínea a), do nº 1, do artigo 257º do CPPT, pelo que existe qualquer motivo para anulação da venda efectuada.

Deverá conceder-se provimento ao recurso, anulando a sentença recorrida e ordenada a baixa dos autos à 1ª instância para que se proceda à produção da requerida prova testemunhal e prosseguimento dos ulteriores termos processuais, ou, a assim, se não entender, resultando que o bem objecto de venda não foi correctamente publicitado, em cumprimento do disposto na alínea c) do nº 5, do artigo 249º, do CPPT, verifica-se o pressuposto da anulação da venda, ou seja, o erro a que se refere a alínea a), do nº 1, do artigo 257º do CPPT, pelo que existe motivo para anulação da venda efectuada.

Assim, decidindo, far-se-á,

JUSTIÇA”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do CPPT, que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atenta a sua natureza urgente (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Verifica-se défice instrutório, por não ter sido produzida prova testemunhal quanto à incapacidade temporária acidental?

b) Verifica-se erro de julgamento, quanto ao erro sobre o objeto transmitido ou sobre as suas qualidades, por falta de conformidade com o anunciado?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A) O Edital/Anúncio da venda do prédio a que respeitam os presentes autos, tem o seguinte teor


«Imagem no original»

(cfr. fls. 1 do documento n.º 004646065 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

B) O Auto de Abertura e Aceitação de propostas, da venda identificada em A) supra, tem o seguinte teor:


«Imagem no original»

(cfr. fls. 5 do Documento n.º 004685013 dos autos, idem);

C) O imóvel referido em A) está descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém, sob o n.º …, nos seguintes termos:

“COMPOSIÇÃO

2.º andar direito frente, com 5 quartos, sala comum, cozinha, 2 casas de banho e despensa” (cfr. fls. 1 a 7 do Documento n.º 004672114 dos autos, ibidem);

D) Consta da caderneta predial urbana do imóvel referido em A), a seguinte informação:


«Imagem no original»

(cfr. fls. 1 a 3 do Documento n.º 004672115 dos autos, ibidem);

E) Em 01-02-2016, foi penhorado pelo Serviço de Finanças de Albufeira, a A…., 1/14 avos indivisos, do imóvel referido em A), no processo de execução fiscal n.º 1007201301022423 e apensos, cuja quantia exequenda perfazia o montante de €40.922,34 (cfr. fls. 1 a 7 do Documento n.º 004672114 dos autos, ibidem);

F) Em 08-02-2021, o Reclamante apresentou através de e-mail, requerimento de anulação da venda n.º 1007.2020.94, com o seguinte teor:


«Imagem no original»

(cfr. fls. 1 a 2 do Documento n.º 004646050 dos autos, ibidem);

G) Em 24-05-2021, foi proferido despacho pelo Sr. Director de Finanças de Faro, a indeferir o pedido de anulação de venda referido em F) supra, com o seguinte teor:

“Fundamento alegado não previsto na lei (Artºs 257/1 CPPT, 838º e 839º CPC. Edital identifica correctamente que imóvel em venda é 1/14 (um catorze avos indivisos) do apartamento, respeitando o n.º 5 do art.º 249.º do CPPT”. (cfr. fls. 10 do Documento n.º 004685013 dos autos, ibidem);

H) O Reclamante está medicado desde 2019 pelo Hospital CUF de Cascais com paroxetina e relata por vezes alguns dos efeitos acessórios/secundários descritos na bula do referido medicamente (cfr. fls. 12 a 15 do Documento n.º 00465044 dos autos, ibidem);

I) Da bula do medicamente identificado em H) supra, constam, entre outros, os seguintes efeitos acessórios/secundários:

- Perturbações do foro psiquiátrico;

- Frequentes: tonturas, tremor, cefaleia, dificuldade de concentração; confusão, sudação, instabilidade emocional, distúrbios visuais;

- Frequentes: sonolência, insónia, agitação, sonhos estranhos (incluindo pesadelos);

- pouco frequentes: confusão, alucinações;

- Raros: reações maníacas, ansiedade, despersonalização, ataques de pânico, acatisia (cfr. fls. 16 a 17 do Documento n.º 00465044 dos autos, ibidem);

J) Em 01-06-2021, o Reclamante apresentou a presente Reclamação (cfr. fls. 1 a 5 do Documento n.º 004646061 dos autos, ibidem)”.

II.B. O Tribunal recorrido considerou ainda que:

“1) Não se provou que tenha ocorrido um erro informático na publicitação online dos termos da venda;

2) Não se provou que no momento da licitação da venda, o Reclamante tenha sofrido alteração das suas capacidades visuais, em resultado de estar medicado com paroxatina”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Conforme especificado supra, os factos provados foram dados como assentes com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, referidos a propósito de cada alínea do probatório.

No que respeita ao facto não provado, identificado em 1), o mesmo resulta de não ter sido efectuada qualquer prova que demonstre esse facto.

No que se refere ao facto não provado, identificado em 2), apesar de o Reclamante provar que estava a tomar paroxetina, ou pelo menos que lhe era prescrito paroxetina, contudo, o mesmo não provou, que no momento em que licitou o imóvel cuja anulação da venda requer, não se encontrava nas suas capacidades plenas, já que tais efeitos secundários poderiam não se verificar no momento da licitação”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do défice instrutório

Considera o Recorrente que se verifica uma situação de défice instrutório, porquanto o Tribunal a quo não ouviu as testemunhas arroladas, sendo que era matéria controvertida a circunstância de padecer de incapacidade temporária acidental, em resultado da medicação que se encontrava a tomar, por indicação e prescrição médica. Ao mesmo tempo, refere, o Tribunal a quo deu como não provada tal factualidade.

Vejamos.

A anulação de venda, em sede de execução fiscal, pode ser requerida, junto do OEF, sendo, desde logo, de chamar à colação o art.º 257.º do CPPT, nos termos do qual:

“1 - A anulação da venda só poderá ser requerida dentro dos prazos seguintes:

a) De 90 dias, no caso de a anulação se fundar na existência de algum ónus real que não tenha sido tomado em consideração e não haja caducado ou em erro sobre o objeto transmitido ou sobre as qualidades por falta de conformidade com o que foi anunciado;

b) De 30 dias, quando for invocado fundamento de oposição à execução que o executado não tenha podido apresentar no prazo da alínea a) do n.º 1 do artigo 203.º;

c) De 15 dias, nos restantes casos previstos no Código de Processo Civil”.

Nos termos do art.º 838.º do CPC:

“1 - Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil”.

Por seu turno, prescreve o art.º 839.º do mesmo código:

“1 - Além do caso previsto no artigo anterior, a venda só fica sem efeito:

a) Se for anulada ou revogada a sentença que se executou ou se a oposição à execução ou à penhora for julgada procedente, salvo quando, sendo parcial a revogação ou a procedência, a subsistência da venda for compatível com a decisão tomada;

b) Se, tendo corrido à revelia, toda a execução for anulada nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 851.º, salvo o disposto no n.º 4 do mesmo artigo;

c) Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º;

d) Se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono”.

Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, p. 258):

“O comprador pode ainda invocar fundamentos gerais do direito civil para anulação da compra, designadamente: a impossibilidade física ou legal, a inadmissibilidade legal, a contrariedade à ordem pública ou aos bons costumes, a incapacidade, o dolo, a coação, o conluio entre o executado e terceiro, integrando uma simulação ou o erro na declaração”.

Nas palavras de Lebre de Freitas (1), “[o] preceito do art. 838 tem a justificá-lo o especial regime consagrado para o erro, mas, considerado o interesse do comprador, tão merecedor de tutela como o comprador na compra e venda privada, não visa impedir a anulação no caso de ocorrer outro fundamento de acordo com a lei geral (…). No entanto, esses outros fundamentos são de muito difícil verificação na venda executiva”.

Foi justamente neste contexto que o ora Recorrente invocou que teria, eventualmente, havido uma incapacidade temporária acidental, em resultado da medicação que se encontrava a tomar, por indicação e prescrição médica.

Nos termos do art.º 257.º do Código Civil, sob a epígrafe Incapacidade acidental:

“1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.

2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar”.

Como resulta desta disposição legal, são dois os requisitos a provar: a existência de incapacidade acidental na altura em que a declaração é feita; e tal incapacidade ser um facto notório ou conhecido do declaratário. Ou seja, exige-se não só a existência da incapacidade, mas também a sua notoriedade ou conhecimento pelo declaratário.

Compulsada a petição inicial, verifica-se que o ora Recorrente, a este propósito, invoca, mais a título de possibilidade do que de factualidade, a potencial existência de uma situação de incapacidade temporária acidental, provocada pela medicação que tomava. Nada é alegado quanto à circunstância de tal facto ser conhecido do declaratário ou de ser notório para qualquer pessoal de normal diligência.

Ora, este défice de alegação de factos essenciais (uma vez que, como vimos, estamos perante requisitos cumulativos, que têm de ser alegados e provados) implica, per se, que seja inútil a diligência de produção de prova.

Com efeito, ainda que o Recorrente lograsse provar que a medicação que tomou lhe criou uma situação de incapacidade temporária, a ausência absoluta de alegação de um facto essencial, consubstanciado no conhecimento ou na notoriedade de tal incapacidade, conduziriam à improcedência da sua pretensão.

É certo que o Tribunal a quo não procedeu à produção da prova testemunhal, sustentando a sua posição, no despacho de 23.03.2022, na circunstância de entender que o que constava da petição inicial se tratava de alegação conclusiva. É igualmente certo que, não obstante, o Tribunal a quo deu como não provado que, no momento da licitação da venda, o Reclamante tenha sofrido alteração das suas capacidades visuais, em resultado de estar medicado com paroxatina, referindo nada ter sido provado a este respeito. No entanto, atentando no discurso fundamentador da sentença, o acento tónico foi justamente colocado na ausência de alegação e prova da notoriedade ou conhecimento da incapacidade pelo declaratário – o que nem sequer foi posto em causa no presente recurso.

Como referimos, a prova cuja realização foi requerida era apenas para efeitos de demonstração da alegada incapacidade (mesmo considerando o alegado aditamento ao rol que o Recorrente pretendia fazer, referido nas alegações de recurso, também para “provar, que o reclamante, no momento em que licitou a venda, padecia de incapacidade temporária acidental, em resultado da medicação que se encontrava a tomar, por indicação e prescrição médica”).

Ora, existindo défice de alegação de um dos dois pressupostos exigidos, pressupostos esses cumulativos, tal circunstância tornaria inútil a realização da diligência requerida.

É certo que o princípio do inquisitório é um dos princípios que enforma o processo tributário. Atento o mesmo, impõe-se que o juiz realize ou ordene todas as diligências que considere úteis ao apuramento da verdade material.

O mesmo encontra previsão expressa no n.º 1 do art.º 99.º da Lei Geral Tributária (LGT), nos termos do qual “[o] tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer”, encontrando-se previsto, em termos idênticos, no art.º 13.º do CPPT.

O respeito pelo princípio do inquisitório implica, pois, que, sendo relevantes para a descoberta da verdade material, se levem a cabo diligências de prova, quer requeridas pelas partes, quer mesmo oficiosamente.

Não obstante, tal princípio implica que, a montante, haja uma caraterização suficientemente precisa da factualidade controvertida – incluindo a alegação dos factos essenciais, que cabe às partes (cfr. art.º 5.º, n.º 1, do CPC).

Assim, se não forem sequer alegados todos os factos essenciais, como sucedeu in casu, a realização da diligência de prova requerida tornar-se-ia um ato inútil, proibido por lei (cfr. art.º 130.º do CPC).

Finalmente, não se alcança de que forma o facto não provado 1) poderia ser objeto de prova testemunhal, sendo de sublinhar que o próprio Recorrente refere que a prova que pretendia produzir era relativa à alegada incapacidade acidental [v. conclusão C)].

Face ao exposto, improcede a pretensão do Recorrente.

III.B. Do erro de julgamento, quanto ao erro sobre o objeto transmitido ou sobre as suas qualidades, por falta de conformidade com o anunciado

Considera, por outro lado, o Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro, uma vez que, na publicitação da venda, foi omitido um elemento essencial à formação da vontade do comprador, sendo que nunca teria apresentado proposta pelo valor de 15.000,00 Eur. se tivesse conhecimento de que apenas estava em venda 1/14 da fração.

Vejamos então.

Para efeitos de apreciação dos termos em que foi publicitada uma determinada venda, em contexto de execução fiscal, há que atentar no n.º 5 do art.º 249.º do CPPT, nos termos do qual:

“5 - Em todos os meios de publicitação da venda incluem-se, por forma que permita a sua fácil compreensão, as seguintes indicações:

a) Designação do órgão por onde corre o processo;

b) Nome ou firma dos executados;

c) Identificação sumária dos bens;

d) Local, prazo e horas em que os bens podem ser examinados;

e) Valor base da venda;

f) Designação e endereço do órgão a quem devem ser entregues ou enviadas as propostas;

g) Data e hora limites para receção das propostas;

h) Data, hora e local de abertura das propostas.

i) Qualquer condição prevista em lei especial para a aquisição, detenção ou comercialização dos bens”.

O já citado art.º 257.º, n.º 1, al. a), do CPPT consagra a possibilidade de se fundar um pedido de anulação de venda quando haja “erro sobre o objeto transmitido ou sobre as qualidades por falta de conformidade com o que foi anunciado”.

O Recorrente considera que, in casu, a alínea c) do n.º 5 do art.º 249.º do CPPT, supratranscrita, não foi respeitada.

A mencionada alínea obriga que a haja uma identificação dos bens, identificação essa que tem de ser, ainda que sumária, suficiente, para que o destinatário do anúncio respetivo forme a sua ideia sobre o bem, em termos quantitativos e qualitativos, de forma correta e exata.

A jurisprudência tem, a este respeito, esclarecido que o erro que exista pode até não ser um erro essencial, mas incidental, cuja não ocorrência implicaria que a compra não tivesse sido efetuada. A este propósito, v., v.g., o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.03.2014 (Processo: 01716/13) e os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 05.04.2017 (Processo: 0305/17) e de 13.01.2021 (Processo: 0220/20.1BELLE).

Ora, compulsado o edital [cfr. A) do probatório], verifica-se que do mesmo consta a identificação do prédio, com indicação do artigo e fração autónoma, bem como a menção a que respeita a 1/14 (um catorze avos indivisos), seguindo-se a descrição da fração em termos de divisões que a constituem, destino, permilagem, área, ano de inscrição na matriz, valor patrimonial tributário e ano da sua determinação e dados relativos ao registo predial. Consta ainda que o valor de base da venda era de 2.890,21 Eur.

Consideramos que, face a este teor, estava, de forma adequada, publicitado que se tratava de venda de 1/14 indivisos de fração autónoma, de forma apreensível por um destinatário médio que proceda à sua leitura atenta.

Se o Recorrente interpretou o anúncio, considerando que a venda abrangia a totalidade do apartamento, tal deveu-se a uma leitura menos cuidada desse mesmo anúncio, que continha, como referimos, todos os dados relevantes para o efeito.

Logo, inexiste qualquer falta de conformidade entre o anunciado e as reais características do bem em venda, tal como decidido pelo Tribunal a quo.

Assim, não assiste razão ao Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pelo Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 15 de setembro de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)


(1) José Lebre de Freitas, A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª Edição, Gestlegal, Coimbra, 2017, pp. 400 e 401. V. igualmente Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL, Lisboa, 2018, pp. 913 a 915.