Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1662/19.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/30/2020
Relator:ALDA NUNES
Descritores:PEDIDO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL
RETOMA A CARGO – ITÁLIA
ART 3º, Nº 2, §2º DO REGULAMENTO (UE) Nº 640/2013
Sumário:I. A Lei nº 27/2008, de 30.06, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e o estatuto de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, prevê no artigo 19º-A, nº 1, al a), que o pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV.
II. Sendo outro Estado Membro o responsável pela análise do pedido de asilo e não resultando apuradas deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Estado responsável, Portugal está dispensado de analisar da pretensão internacional e cumpre-lhe, vinculadamente, transferir a decisão para o esse Estado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo, do Tribunal Central Administrativo Sul:


Relatório
A......... recorre da sentença proferida pelo TAC de Lisboa, a 26.10.2019, que julgou improcedente a ação administrativa urgente contra o Ministério da Administração Interna, em que pedia a anulação da decisão proferida pelo SEF, em 22.4.2019, a considerar o pedido de proteção internacional do recorrente inadmissível e determinou a sua transferência para Itália, nos termos dos arts 19-A, nº 1, al a); 37º, nº 2; 38º da Lei nº 27/08, de 30.6, com a redação dada pela Lei nº 26/14, de 5.5 (Lei do Asilo).
A sentença recorrida entendeu que não se encontram reunidos os pressupostos legais de constituição da entidade requerida no dever de analisar o mérito do pedido de concessão de proteção internacional formulado pelo requerente, cuja apreciação caberá necessariamente a Itália.
Inconformado, o requerente interpôs recurso para este TCA Sul, concluindo as respetivas alegações nos termos que seguem:
«A) O Recorrente chegou a Portugal e em 15.07.2019 apresentou pedido de proteção internacional, tendo sido registado como processo nº 107…/19.
B) Constatou o SEF que o Recorrente chegou à Europa pela Itália, País no qual pendia já semelhante pedido, pelo que em 05.08.2019 apresentou o SEF um pedido de retoma a cargo das autoridades Italianas.
C) As autoridades Italianas não se pronunciaram dentro do prazo estabelecido, pelo que decidiu o SEF proferir decisão de inadmissibilidade do pedido de proteção internacional em Portugal.
D) Contudo, existindo como existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional no Estado Italiano, deve o Estado Português apreciar e decidir o referido pedido.
E) Alegou o Recorrente a existência das referidas falhas sistémicas, e não curou o SEF, como deveria, de verificar a ocorrência das mesmas, e consequentemente concluindo pela existência das referidas falhas sistémicas de apreciar o pedido de proteção internacional.
F) Com efeito, basta atentar nas noticias existentes sobre o acolhimento de migrantes no Estado Italiano, e pesquisar livremente na Internet, para se concluir que naquele Estado-Membro os migrantes se encontram em grave situação de precariedade, sem direito aos mais básicos cuidados de saúde, higiene e acolhimento,
G) Pelo que sendo o Recorrente transferido para Itália será sujeito a um tratamento cruel, degradante ou desumano, caindo a sua situação na previsão dos artigos 3º nº 2 e 17º nº 1 do Regulamento 604/2013, de 26.06.
H) Verificando-se a existência de motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente de proteção internacional em determinado Estado-Membro, (Itália) ainda que seja este o responsável pela análise do pedido de asilo e de proteção internacional, deve este pedido ser analisado e apreciado pelo Estado-Membro onde posteriormente foi apresentado, no caso o Estado Português.
I) Se é certo que deve ser o primeiro Estado-Membro a analisar o pedido de proteção internacional, no caso a Itália, igualmente certo é que que existindo falhas sistémicas na apreciação destes pedidos, pode qualquer Estado-Membro, nomeadamente o Português analisar tal pedido e conceder asilo e proteção internacional.
J) A existência das referidas falhas sistémicas foi alegada e teria de ter sido considerada provada, quer porque se trata de um facto de conhecimento geral e público, quer porque foram apresentadas nos autos estatísticas oficiais do número de refugiados que chegam a Itália, não conseguindo aquele Estado responder a todas as solicitações que lhe são colocadas, podendo colocar o Recorrente numa situação de tratamento cruel, degradante e desumano.
K) Devendo ser o Estado Português considerado o competente para conferir a proteção internacional ao Recorrente, atenta a manifesta impossibilidade de esta ser conferida pela Itália».
Termos em que requer seja a sentença recorrida anulada e em sua substituição seja proferida outra que:
a) Anule a decisão do Diretor Nacional do S.E.F que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional requerido pelo Recorrente.
b) Condene o S.E.F. a instruir o procedimento de asilo e de proteção internacional requerido pelo recorrente.

O recorrido não contra-alegou o recurso.

A Exma. Procuradora Geral Adjunta, notificada nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 146º e 147º, ambos do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Sem vistos, vem o processo submetido à conferência para julgamento.

O objeto do recurso:
Atentas as conclusões das alegações do recurso, que delimitam o seu objeto, nos termos dos arts 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1 do CPC, ex vi art 140º, nº 3 do CPTA, dado inexistir questão de apreciação oficiosa, a questão decidenda passa, por determinar se a decisão recorrida, que julgou a ação improcedente e absolveu a entidade recorrida do pedido, incorreu em erro de julgamento na interpretação que fez do disposto nos arts 3º, nº 2 e 17º, nº 1 do Regulamento (EU) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.6 (Regulamento de Dublin).

Fundamentação de facto
O Tribunal a quo deu como provados os factos que seguem:

A) «O Requerente é nacional de Zinguechor, Senegal, onde nasceu em 01/05/1998 (cfr. PA apenso a fls. 1 que ora se da por integralmente reproduzido);
B) Em 15/07/2019, o Requerente apresentou um pedido de proteção internacional, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (cfr. PA apenso a fls. 12 que ora se da por integralmente reproduzido);
C) Por consulta na base de dados do Eurodac, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras verificou a existência de um pedido de visto, formulado pelo Requerente em 09/10/2018, em Palermo, Itália (cfr. PA apenso, a fls. 4, que ora se da por integralmente reproduzido);
D) Em 05/08/2019, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras efetuou um pedido de retoma a cargo do requerente às autoridades italianas (cfr. processo administrativo, apenso aos autos a fls. 25, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
E) As autoridades italianas nada disseram (cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 30, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
F) Em 23/08/2019, a Diretora Nacional do SEF, proferiu decisão com o seguinte teor: Processo nº 1513/19PT
De acordo com o disposto na al a) do nº 1 do art 19ºA e nº 2 do art 37º, ambos da Lei nº 27/08, de 30.6, alterada pela Lei nº 26/2014, de 5.5, com base na informação nº 154.../GAR/2019 do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, considero o pedido de proteção Internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como A........., nacional do Senegal, inadmissível.
Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do art 37º, nº 3 da Lei nº 27/08, de 30.6, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/14, de 5.5, e à sua transferência, nos termos do art 38º do mesmo diploma, para a Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional nos termos do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6 (cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 37, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
G) Na informação referida na alínea anterior, consta nomeadamente, o seguinte:
Identificação do requerente:
A.........
1.5.1998
Senegal
(…)
I. Fundamentos de facto
1. O requerente apresentou pedido de proteção internacional a 15.7.2019 no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, que foi registado sob o nº de processo ...............
2. Nos termos previstos no Regulamento (EU) nº 603/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 26.6 (Regulamento Eurodac), relativo à criação do sistema Eurodac foram recolhidas as impressões digitais de todos os dedos.
3. Após registo e consulta à base de dados Eurodac foi rececionado um acerto com os «Case ID IT…........., inserido pela Itália.
4. A realização de entrevista pessoal prevista no art 5º, nº 1 do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6, não foi efetuada uma vez que o requerente não compareceu às notificações, podendo assim ser dispensada nos termos do nº 2, al a) do referido artigo do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6.
5. Aos 5.8.2019, o GAR apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas ao abrigo do art 18º, nº 1, al b) do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6 (regulamento Dublin).
6. Aos 23.8.2019, Portugal informou as autoridades italianas que ao abrigo do art 25º, nº 1 do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6, tinha duas semanas para se pronunciar sobre o nosso pedido.
7. As autoridades italianas não se pronunciaram dentro do prazo estabelecido no art 25º, nº 1 do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6, por isso de acordo com o art 25º, nº 2 do mesmo Regulamento, a falta de uma decisão equivale à aceitação do pedido.
8. Atendendo à situação de admissão tácita, deve o SEF proferir uma decisão de inadmissibilidade do pedido.
II. Fundamentos de Direito
9. A Lei nº 27/08, de 30.6, alterada pela Lei nº 26/2014, de 5.5, que estabelece as condições e procedimentos para a análise dos pedidos de proteção internacional e concessão do estatuto de refugiado ou proteção subsidiária, prevê na al a) do nº 1 do art 19º A que o pedido é considerado inadmissível quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção, previsto no Capítulo IV.
Ainda nos termos do nº 2 do art 19º A, nos casos previstos no número anterior deste artigo, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.
10. O procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional encontra-se regulado no capítulo IV, artigo 36º e segs da Lei nº 27/08, de 30.6, alterada pela Lei nº 26/2014, de 5.5, aplicando-se apenas os procedimentos aqui previstos.
11. Tendo ocorrido uma situação de admissão tácita conforme ponto 7, impõe-se ao Estado Português a tomada de decisão de transferência do requerente.
Pelo exposto, e tendo em consideração que os pedidos são analisados por um único Estado, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6, designarem como responsável, propõe-se que a Itália seja considerada o Estado responsável pela retoma a cargo, ao abrigo do art 25º, nº 2 do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6 (cfr. processo administrativo apenso aos autos, a fls. 33 a 36, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
H) Sobre a Informação referida na alínea anterior recaiu Proposta datada de 23/08/2019 com o seguinte teor:
Com base na presente informação, submete-se à consideração superior que, de acordo com o disposto na al a) do nº 1 do art 19ºA e do nº 1 do art 20º da Lei nº 27/08, de 30.6, alterada pela Lei nº 26/2014, de 5.5, o pedido de proteção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Itália do cidadão acima identificado, nos termos do art 25º, nº 2 do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26.6 (cfr. idem);
I) Em 30/08/2019, o Gabinete de Asilo e Refugiados - SEF notificou o Requerente da decisão que determinou que a Itália é o Estado responsável pela sua tomada a cargo (cfr. fls. 41, do processo administrativo, apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
*
Com interesse para a decisão da presente causa não se mostram provados quaisquer outros factos.
*
Motivação da matéria de facto
O tribunal assentou a sua convicção nos documentos juntos aos autos e ao processo administrativo apenso aos autos, conforme referido em cada alínea do probatório».

O Direito.
O recurso jurisdicional tem como objeto a decisão judicial recorrida e destina-se a anulá-la ou alterá-la com fundamento em vício de forma (nulidade) ou de fundo (erro de julgamento) que o recorrente entenda afetá-la.
A decisão recorrida julgou válida a decisão administrativa impugnada, tomada no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, que considerou o pedido de proteção internacional do requerente e recorrente inadmissível e determinou a sua transferência para Itália, por ser o Estado-Membro responsável pela análise do pedido, nos termos do disposto nos arts 3º, nº 1 e 13º, nº 1 do Regulamento nº 604/2013, de 26.6.2013.
Para tanto invocou a seguinte fundamentação:
«Da factualidade provada resulta que, na sequência do pedido de asilo formulado pelo Requerente, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras verificou na base de dados Eurodac que existia um pedido de asilo formulado por aquele na Itália, em 09/10/2018 [alínea C) dos factos provados].
Resulta ainda do probatório que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras efetuou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, que nada disseram [alínea D) e E) dos factos provados].

perante o silêncio das autoridades italianas - que equivale à aceitação do pedido - cabia à Diretora-Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras proferir, no prazo de 5 dias, decisão de transferência da responsabilidade, atento o disposto no artigo 37º, nº2 da Lei nº27/2008, de 30 de junho, decisão impugnada nos presentes autos.
Assim, atento o disposto no art.º 37º n.º 2 da Lei nº27/2008, de 30 de junho, conclui-se que a decisão de transferência da responsabilidade é um ato estritamente vinculado, cujos pressupostos de facto são os seguintes: existência de um pedido de asilo noutro Estado-Membro e aceitação por este Estado da responsabilidade pela retoma a cargo do requerente de asilo (ainda que tacitamente), sendo certo que verificados estes pressupostos deve ser proferida a decisão de transferência, sem que tenham ou devam ser apreciados os fundamentos do pedido de asilo apresentados pelo requerente.
Neste desiderato vem, de resto, sendo entendido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), “no caso de um Estado-Membro ter aceitado a tomada a cargo de um requerente de asilo, (…) este só pode pôr em causa a escolha desse critério se invocar a existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado-Membro que constituam razões sérias e verosímeis de que o referido requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia” (sublinhado nosso) – neste sentido, vide, inter alia, o Acórdão Abdullahi, prolatado em 10.12.2013, no âmbito do processo C-394/12.
E, compulsados os autos, constata-se que, pese embora o Requerente faça alusão às deficiências sistémicas em Itália no acolhimento dos requerentes de asilo, aqui nada consubstanciou ou expendeu, em termos concretos, quanto ao risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes.
A este respeito já se prenunciou o TJUE, no Comunicado de Imprensa n.º 33/2019, de 19/03/2019, no âmbito dos Acórdãos proferidos nos processos C-163/17 JAWO e nos processos apensos C-297/17, C-318/17 Ibrahim, C-319/17 Sharqawi e C-438/17 Magamadov, cujo excerto ora se transcreve por adesão à sua proficiente fundamentação:
“Com os seus acórdãos de hoje, o Tribunal de Justiça recorda que, no quadro do sistema europeu comum de asilo que repousa no princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros, deve presumir-se que o tratamento dado por um Estado-Membro aos requerentes de proteção internacional e às pessoas a quem foi concedida proteção subsidiária está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra, bem como da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Contudo, não se pode excluir que este sistema se depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado-Membro, de modo que existe um sério risco de os requerentes de proteção internacional serem tratados, nesse Estado, de modo incompatível com os seus direitos fundamentais e, nomeadamente, com a proibição absoluta de tratos desumanos ou degradantes.
3 . Assim, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de proteção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afetem certos grupos de pessoas. Todavia, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratos desumanos ou degradantes se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa. Esse nível seria alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tivesse como consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontrasse, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema que não lhe permitisse fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e alojar-se, e que pusesse em risco a sua saúde física ou mental ou a colocasse num estado de degradação incompatível com a dignidade humana. Uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida não alcançam esse nível quando não impliquem uma privação material extrema que coloque essa pessoa numa situação de tal gravidade que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.
Acresce que a circunstância de os beneficiários de proteção subsidiária não receberem, no Estado-Membro que concedeu tal proteção ao requerente, nenhuma prestação de subsistência, ou de as prestações que recebem serem significativamente inferiores às prestações concedidas por outros Estados-Membros, sem, contudo, serem tratados de maneira diferente dos nacionais do referido Estado-Membro, só pode levar a concluir que o requerente ficaria exposto nesse Estado-Membro a um risco real de sofrer um trato desumano ou degradante se tiver como consequência que este se encontraria, devido à sua particular vulnerabilidade, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema. Em qualquer caso, o simples facto de a proteção social e/ou as condições de vida serem mais favoráveis no Estado-Membro em que foi apresentado o novo pedido de proteção internacional do que no Estado-Membro normalmente responsável ou que já concedeu proteção subsidiária não é suscetível de confortar a conclusão segundo a qual a pessoa em causa ficaria exposta, em caso de transferência para este último Estado-Membro, a um risco real de sofrer um trato desumano ou degradante. O Tribunal de Justiça conclui que o direito da União não se opõe a que um requerente de proteção internacional seja transferido para o Estado-Membro responsável ou a que um pedido de concessão do estatuto de refugiado seja declarado não admissível pelo facto de já ter sido concedida ao requerente proteção subsidiária noutro Estado-Membro, a menos que se demonstre que o requerente que se encontraria, nesse outro Estado-Membro, numa situação de privação material extrema, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais. Nos processos Ibrahim e o., o Tribunal de Justiça acrescenta que o facto de o Estado-Membro que concedeu proteção subsidiária a um requerente de proteção internacional recusar sistematicamente, sem exame real, conceder o estatuto de refugiado, não impede os outros Estados-Membros de declararem não admissível um novo pedido que lhes é apresentado pelo interessado. Nesse caso, cabe ao Estado-Membro que concedeu proteção subsidiária retomar o processo que visa a obtenção do estatuto de refugiado. Com efeito, só se, na sequência de uma avaliação individual, se concluir que um requerente de proteção internacional não preenche as condições para que lhe seja concedido o estatuto de refugiado é que lhe pode, sendo caso disso, ser concedida proteção subsidiária”
Pelo que bem andou a Entidade Requerida ao decidir como decidiu, determinando a transferência da parte para Itália, sem chegar a analisar o mérito do pedido de concessão de asilo formulado, cuja apreciação caberá, necessariamente, por força do que acima se explanou, a este último Estado-Membro da União Europeia, porquanto a decisão transferência para Itália constitui um ato estritamente vinculado, carece de fundamento o alegado défice instrutório.
Tanto mais, como supra expendido, que o Requerente nada alegou ou logrou provar, quer no âmbito do procedimento administrativo, quer nos presentes autos, que a sua transferência para Itália consubstancie um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes ou que tenha sido alvo dos mesmos.
Nestes termos, tendo o Requerente formulado pedido de asilo tendo Itália aceite o pedido de retomada a cargo efetuado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (ainda que tacitamente), conclui-se que o ato impugnado não padece de qualquer vício que o inquine, mostrando-se, assim, legal.
Assim sendo, resta concluir pela total improcedência da presente ação».

A decisão recorrida mostra-se correta em face da matéria de facto provada, que não vem impugnada no presente recurso.
Passemos a explicar.
A Lei nº 27/2008, de 30.6 estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária com vista à concessão dos estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, transpondo para a ordem jurídica interna as Diretivas nº 2004/83/CE, do Conselho, de 29.4, e nº 2005/85/CE, do Conselho, de 1.12.
Quanto ao «procedimento comum», constatamos que ele inclui (1) uma fase inicial ou fase de admissibilidade – art 13º, com declarações – art 16º - relatório e notificação ao requerente para se pronunciar – art 17º - que culmina com a decisão («decisão preparatória da decisão final») da sua admissão ou inadmissão – art 19º A, da competência do diretor nacional do SEF [artigos 20º e 27º, da Lei 27/08], e, no caso de decisão positiva de admissibilidade, (2) uma fase de instrução – arts 21º, 27º e 28º - que culmina com a elaboração, pelo SEF, de proposta fundamentada de concessão ou recusa de proteção internacional, sobre a qual o requerente é ouvido e pode pronunciar-se – art 29º. (3) A decisão final, de concessão ou recusa, compete ao membro do Governo responsável pela administração interna – art 20º, nº 5 (todos da Lei do Asilo).
O «procedimento especial» de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional ou procedimento Dublin, previsto nos arts 36º a 40º da Lei do Asilo, quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, enxerta-se na «fase inicial» do «procedimento comum», suspende o respetivo prazo de decisão [artigo 39º da Lei 27/08], e, uma vez aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o Diretor Nacional do SEF profere decisão de inadmissibilidade do pedido e transferência do interessado – arts 37º, nº 2 e 19º-A, nº 1, al a).
O procedimento especial surge assim, como refere o acórdão do STA de 3.10.2019, proferido no processo nº 2095/18, com natureza incidental e a aceitação da retoma – expressa ou tácita – por parte do Estado responsável pelo conhecimento do mérito do pedido de proteção internacional, constitui fundamento para a decisão de inadmissibilidade do pedido.
Portanto, quando se verifique fundamento para a instauração de procedimento especial e ocorra aceitação da retoma, o Estado português não procede à análise das condições de concessão de asilo ou proteção subsidiária, ou seja, o procedimento fica-se pela fase inicial, sem que se inicie a fase de instrução (do «procedimento comum»).
O recorrente imputa à sentença recorrida erro de julgamento ao ter concluído pela inexistência de motivos válidos para afastar/ ilidir o regime legal da retoma da apreciação do pedido de proteção internacional por outro Estado Membro, designadamente por ser público e notório que a Itália sofre de um afluxo imenso de refugiados e debate-se com sérios problemas de acolhimento dos mesmos.
A decisão recorrida concluiu pela falta de alegação e prova da existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo em Itália, tanto assim que o recorrente, além da alusão às deficiências sistémicas em Itália no acolhimento dos requerentes de asilo, nada alegou ou provou, em termos concretos, quanto ao risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes ou que tenha sido alvo dos mesmos na sua estadia em Itália.
Note-se, não é qualquer desrespeito por direitos fundamentais dos requerentes de proteção internacional que impede as transferências Dublin.
Apenas, como decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia, em 21 de dezembro de 2011 no caso N.S. (processo n.º C-411/10), quando, nesses Estados, se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem o risco de ser desrespeitado o direito absoluto dos requerentes a não ser sujeitos a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.
A cláusula de soberania, prevista no art 3º do Regulamento, impõe assim aos Estados um juízo de prognose relativamente à situação a que o requerente, aquele requerente, ficará exposto após a transferência Dublin, o que depende obviamente do conjunto dos dados de facto da causa, devendo o Estado onde se encontra o requerente paralisar o processo de transferência sempre que entenda que esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro.
Ora, in casu, o requerente no processo administrativo não prestou declarações por não ter comparecido e nesta ação alegou:
- «Existirem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional no Estado Italiano»;
- «com fundamento nas noticias existentes sobre o acolhimento de migrantes no Estado Italiano e na pesquisa livre na Internet, conclui-se que naquele Estado-Membro os migrantes se encontram em grave situação de precariedade, sem direito aos mais básicos cuidados de saúde, higiene e acolhimento»;
- «com fundamento nas estatísticas oficiais do número de refugiados que chegam a Itália, não conseguindo aquele Estado responder a todas as solicitações que lhe são colocadas, podendo colocar o Recorrente numa situação de tratamento cruel, degradante e desumano»;
- «Pelo que sendo o recorrente transferido para Itália será sujeito a um tratamento cruel, degradante ou desumano».
As alegações do recorrente nada referem sobre a sua vivência e experiência quando esteve em Itália (pois, pediu visto em Palermo, Itália, no dia 9.10.2018 e apenas apresentou pedido de proteção internacional em Portugal no dia 15.7.2019). O modo como ali foi acolhido, como logrou fazer face às suas necessidades mais básicas, como, alimentar-se, lavar-se, alojar-se, como passou de saúde física ou psíquica, o tratamento que lhe foi dado pelas autoridades italianas. O recorrente não alegou nada de factos sobre a sua passagem por Itália que permita aferir ou denunciar falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento em Itália. Faltou à entrevista para que foi convocado pelo SEF e agora, em sede judicial, reage à decisão administrativa (que considerou o pedido inadmissível e determinou a sua transferência para Itália) com os termos da lei – falhas sistémicas – que não densifica, mas diz estarem noticiadas, sobre o acolhimento de migrantes no Estado Italiano.
Em recentíssimo acórdão, de 16.1.2020, proferido no processo nº 2240/18.7BELSB, o STA considerou que as notícias sobre a situação de acolhimento de estrangeiros em Itália, «não são, atento todo o circunstancialismo em que surgem, de forma a impor a condenação [do SEF a instruir o pedido com informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos refugiados e requerentes de proteção internacional em Itália]. Não poderemos escamotear o facto delas se referirem a um Estado-membro da «União Europeia», tal como o Estado Português, responsável desde logo pelo cumprimento da respetiva Carta dos Direitos Fundamentais, bem como noticiarem ocorrências relativas a uma situação inusitada: a do fluxo anormal de imigração ilegal de cidadãos de países africanos para a Europa, via Itália. / Esta «imigração ilegal», que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de atividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social [ver artigo 2º, alínea ac), da Lei nº27/2018, de 30.06, redação dada pela Lei nº 26/2014, de 05.05]. /Foi esta avalancha de imigração ilegal, constituída por um universo de imigrantes onde se integrarão potenciais refugiados mas não só, que provocou um deficit nas condições do seu acolhimento por parte de Itália, e terá provocado uma reação política hostil na mira de suscitar a participação solidária dos demais Estados-membros na resolução do problema. / Assim, os epifenómenos traduzidos nas notícias oficiosamente respigadas pelo tribunal, refletem toda essa inusitada situação vivida, nomeadamente, em Itália, mas não são aptos a implicar o risco de tratamento desumano ou degradante, mormente tortura, dos requerentes de proteção internacional por parte do Estado Italiano».
Ora, no caso em apreço, em que o requerente e recorrente cinge as razões do recurso apenas e somente em notícias, dados estatísticos, falhas sistémicas de conhecimento geral e público, acolhendo os ensinamentos do STA, obviamente, a respetiva alegação não evidencia um risco real de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do requerente de proteção internacional no Estado italiano.
De tal modo que, nas circunstâncias do caso concreto, não resulta deficit instrutório no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo do requerente e recorrente.
O que significa que não incumbia ao SEF, primeiro, diligenciar por informação atualizada sobre as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália para, de seguida, aferir da existência ou não de deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes em Itália e, por fim, decidir se procede ou não à transferência do recorrente para a Itália.
Pois, nos termos do art 3º, nº 2, §2 do Regulamento, quando se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e estas sejam de tal modo evidentes que os Estados-membros não possam ignorá-las, os Estados não podem proceder a transferências Dublin para esses Estados com sistemas em colapso ou com dificuldades.
Como cita a sentença recorrida, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que as falhas sistémicas «devem ter um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa».
Porém, a verdade é que mesmo as alegadas notícias sobre o acolhimento de migrantes no Estado Italiano não demonstram o risco de tratamento desumano ou degradante dos requerentes de proteção internacional por parte desse Estado, suscetíveis de integrar, no caso concreto, a previsão legal do art 3º, nº 2, §2 do Regulamento.
Por conseguinte, nas circunstâncias da situação concreta deste requerente e de acordo com as normas aplicáveis ao procedimento, o SEF não carecia de analisar e decidir sobre a ocorrência de deficiências no acolhimento dos refugiados em Itália. Apenas lhe competia, como fez, proferir decisão de transferência do recorrente para Itália.
Termos em que se conclui ser de manter a sentença recorrida.

Decisão
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e, assim, manter a sentença recorrida.
Sem Custas – cfr art 84º da Lei do Asilo.
Registe e notifique.
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Lisboa, 2020-01-30,


(Alda Nunes)


(Lina Costa)


(Carlos Araújo).