Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:796/07.9BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:10/08/2020
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:DESERÇÃO DO RECURSO
MÉTODOS INDIRECTOS
AVALIAÇÃO DIRECTA
VERDADE MATERIAL
Sumário:I – Perante a constatação, evidenciada nos autos, de que, por lapso imputável à Secretaria, a Fazenda Pública não foi notificada do despacho que admitiu o recurso por si interposto, por meio de requerimento, óbvio se torna concluir que o seu prazo para apresentar alegações recursivas não se podia ter iniciado.
II - Perante esta omissão de notificação que se impunha, correspondente a uma nulidade processual, outra coisa não restava ao Tribunal que não, como aconteceu, cumprido o contraditório, promover a sua sanação e assegurar o direito ao recurso à Fazenda Pública.
III - A lei assume como ultima ratio o recurso à avaliação indirecta, relegando-a para situações em que não seja de todo possível a quantificação directa e exacta da matéria tributável, através dos dados declarados pelo sujeito passivo ou fornecidos por terceiros ou, também, quando ab initio o método de determinação é já um meio não directo, como o regime simplificado.
IV - Tendo a AT recorrido à avaliação indirecta compete-lhe demonstrar a verificação dos pressupostos legais que permitem a tributação com recurso a tal método e, feita essa prova, recai sobre o contribuinte o ónus de demonstrar que houve erro ou manifesto excesso na quantificação – cfr. artigo 74º da LGT.
V – O princípio da verdade material, consagrado no artigo 6º do RCPIT, impõe que a Administração Tributária, no âmbito do procedimento de inspecção, procure recolher os elementos probatórios que possibilitem mais tarde fundamentar o acto tributário que venha a ser praticado. Trata-se de investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigações fiscais pelos sujeitos passivos e, com base nessa investigação, recolher elementos que permitam apurar a eventual existência de irregularidades.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

A Fazenda Pública, inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por S... C... Lda., contra a liquidação adicional de IRC, referente ao exercício de 2002, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional.

Formula, para tanto, as seguintes conclusões:


«Imagem no original»


*

Em sede de contra-alegações, expendeu-se o seguinte:

«Imagem no original»


*

Vem ainda interposto pela S... C... Lda um recurso do despacho proferido a fls. 380 e 381 dos autos, recurso este apresentado ao abrigo do disposto no artigo 285º do CPPT, na redacção à data aplicável (recurso de despacho interlocutório).

É o seguinte o quadro conclusivo de tal recurso:


«Imagem no original»

7. Também por essa razão é ilegal o douto despacho recorrido por violação do princípio do caso julgado consagrado nos artigos 628º, 620º, 613º, nº1 e 3 do CPC ex vi artigo 2º, alínea e) do CPPT.


«Imagem no original»


*

A Exma. Magistrada do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso interposto pela Impugnante, S... C... Lda.

*

Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decisão.

*

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Assim sendo, e por partes, as questões que constituem objecto do recurso interposto pela Sociedade C..., consistem em:

- saber se o despacho de fls. 380 e 381 - que, reconhecendo a omissão da notificação do despacho de fls. 346, declarou a nulidade da notificação de fls. 349, ordenando a repetição da notificação de fls. 346 - é ilegal por violação dos princípios da apreciação da prova; por violação dos artigos 195º, 197º, 200º e 627º do CPC e por violação do princípio do caso julgado.

Por seu turno, e quanto ao recurso interposto pela Fazenda Pública, as questões que constituem o seu objecto consistem em:

- saber se a sentença errou ao julgar não verificados os pressupostos dos quais a lei faz depender o recurso à avaliação indirecta;

- saber se a sentença errou ao considerar não provado o valor das transacções imputado pela AT às fracções AB e K;

- na hipótese de ser concedido provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, a Recorrida, em ampliação do objecto do recurso, pede que este Tribunal aprecie e decida os restantes fundamentos invocados em sede de petição inicial cujo conhecimento ficou prejudicado em 1ª instância.


*

II - FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

É a seguinte a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida:


«Imagem no original»


*

- De direito

Impõe-se que comecemos pela apreciação do recurso interposto pela Impugnante, S... C..., Lda, o qual tem por objecto o despacho proferido pela Mma. Juíza, a fls. 380 e 381 dos autos, cujo teor é o seguinte:

“I – De fls. 361 a 364, dos autos em suporte de papel (a que correspondem futuras referências sem menção de origem) veio a Fazenda Pública, na sequência da notificação de despacho de deserção de recurso, alegar a omissão da notificação do respetivo despacho de admissão, tendo juntado cópia da notificação recebida.

Notificada a impugnante do requerido, veio a mesma pugnar pela sua improcedência.

Apreciando.

Antes de mais, não obstante a designação de reclamação, feita pela FP a fls. 361, e em relação à qual a impugnante se insurge, entendemos que, na verdade, a FP está a arguir nulidade, por omissão de um ato a que a lei obriga – cfr. ponto 5, do referido requerimento –, sendo, pois, meio próprio e apreciado enquanto tal.

Desde já se refira que assiste razão à FP. Com efeito, não obstante de fls. 349 constar a indicação de que é notificada a FP do despacho de fls. 346 (ou seja, do despacho de admissão de recurso), a verdade é que a FP demonstrou que, por lapso, não lhe foi remetida cópia de tal despacho, mas sim de fls. 312 (cfr. fls. 363 e 364)

Como tal, a situação em causa configura uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º, n.º 1, do CPC/2013, ex vi art.º 2.º, al. e), do CPPT, porquanto se trata da omissão de uma formalidade que a lei prescreve e que influencia no exame ou na decisão da causa. Por outro lado, nos termos do art.º 157.º, n.º 6, do mesmo código, ex vi art.º 2.º, al. e), do CPPT, uma omissão da secretaria não pode, em caso algum, prejudicar as partes.

Nessa sequência, em face da omissão da notificação do despacho de fls. 346, declara-se a nulidade da notificação de fls. 349, com a anulação dos termos subsequentes que dela dependam absolutamente, ou seja, do despacho de fls. 353 (cfr. art.ºs 195.º, n.º 2, 197.º, n.º 1, 199.º, lido em consonância com o art.º 149.º, 200.º, n.º 3, todos do CPC/2013, ex vi art.º 2.º, al. e), do CPPT).

Notifique.

II – Na sequência do referido em I., determina-se a repetição da notificação do despacho de fls. 346.

D.N”

Com vista a decidir, tenhamos presente que:

1- A sentença proferida em 30/10/13 foi notificada às partes através de ofício datado de 04/11/13 (cfr. fls. 338 e 339);

2- Através de fax enviado aos autos, em 12/11/13, a Fazenda Pública apresentou requerimento de interposição de recurso (cfr. fls. 340, 341);

3- Em 28/11/13 foi proferido o seguinte despacho (cfr. fls. 346):

“Admito o recurso interposto a fls. 343, dos presentes autos em suporte de papel, por legal e tempestivo, o qual será processado como o de apelação em matéria cível, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (…).

Notifique, nos termos do disposto no artigo 282º, nº2, do CPPT, bem como para a apresentação de alegações no prazo consignado no nº3 do mesmo artº 282º.

DN”.

4- Com data de 03/12/13 foi expedido ofício dirigido à RFP cujo teor é, no que aqui releva, o seguinte (cfr. fls. 349):

“Assunto: Despacho (fls.346)

- Fica notificado, na qualidade de RFP, relativamente ao Processo supra identificado, de todo o conteúdo do despacho de que se junta cópia.”

5- Em 31/01/14, a Mma. Juíza proferiu o seguinte despacho (cfr. fls. 353):

“Por requerimentos de fls. 343, dos autos em suporte de papel (…), veio a Fazenda Púbica interpor recurso jurisdicional da sentença proferida a 30 outubro.2013.

Por despacho de 28.11.2013, o recurso foi admitido (fls. 346).

A oponente recorrente foi notificada do despacho de admissão, por ofício registado expedido pela Secretaria deste Tribunal e 03.12.2013 (fls. 349 e 351 verso).

Contudo, até à presente data, a recorrente não apresentou as devidas alegações.

Nos termos do nº3 do artº 282º, do CPPT, o prazo para alegações é de 15 dias contados, para o Recorrente, a partir da notificação do despacho que admite o recurso. Considerando a data de expedição do ofício que notificou a recorrente do despacho de admissão do recurso, o referido prazo encontra-se na presente data largamente ultrapassado.

Face ao exposto, nos termos do nº4 do artº 282º, do CPPT, julgo deserto o recurso interposto a fls. 343, julgando, em consequência, extinta, por deserção, a instância de recurso.

(…)”

6- Notificada de tal despacho, veio a Fazenda Pública apresentar a seguinte reclamação (cfr. fls. 358 e 359):


«Imagem no original»

7 - Com o ofício a que se reporta o ponto 4 supra seguiu o teor de fls. 312 dos autos, tal como resulta dos elementos juntos a fls. 363 e 364;

8 – A impugnante foi notificada do teor dos elementos a que se reportam os pontos 6 e 7 supra, pronunciando-se no sentido do indeferimento “por falta de fundamento e por inadmissibilidade legal, o requerido pela Fazenda Pública” (cfr. 371 a 374);

9 – Em 11/04/14 foi proferido o despacho objecto do recurso em apreciação, cujo conteúdo deixámos acima transcrito.


*

Expostas as ocorrências verificadas nos autos e que se reputam essenciais a decidir este primeiro recurso que nos vem dirigido, nada obsta à sua apreciação.

Vejamos, então, lembrando que a Recorrente, C..., defende que o despacho recorrido não se pode manter, já que o mesmo é ilegal por violação dos princípios da apreciação da prova; por violação dos artigos 195º, 197º, 200º e 627º do CPC e por violação do princípio do caso julgado.

Vejamos, então, tendo presente o teor do despacho recorrido que acima deixámos transcrito e, bem assim, as ocorrências processuais relevantes que deixámos enumeradas.

Não sofre para nós qualquer dúvida que o recurso ora em análise está condenado ao insucesso e que o despacho recorrido é para manter.

Com efeito, perante a constatação, evidenciada nos autos (cfr. 363 e 364), de que, por lapso imputável à Secretaria, a Fazenda Pública não foi notificada do despacho que admitiu o recurso por si interposto, por meio de requerimento, óbvio se torna concluir que o seu prazo para apresentar alegações recursivas não se podia ter iniciado – de acordo com o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 282º do CPPT, na redacção que aqui releva, “o despacho que admitir o recurso será notificado ao recorrente, ao recorrido, não sendo revel, e ao Ministério Público”, sendo que “o prazo para alegações a efectuar no tribunal recorrido é de 15 dias contados, para o recorrente, a partir da notificação referida no número anterior e, para o recorrido, a partir do termo do prazo para as alegações do recorrente”.

O despacho que julgou deserto o recurso e extinta a instância de recurso foi proferido na consideração, errada, de que o despacho a que alude o ponto 3 dos factos provados (cfr. fls. 346) havia sido notificado à Fazenda Pública, o que, no entanto, não se verificou.

Perante esta omissão de notificação que se impunha, correspondente a uma nulidade processual, outra coisa não restava ao Tribunal que não, como aconteceu, cumprido o contraditório (fls. 365, 366, 371 a 374), promover a sua sanação, oportunamente suscitada, e assegurar o direito ao recurso à Fazenda Pública.

Fê-lo o Tribunal com total acerto, perante a correcta apreciação dos elementos demonstrativos da omissão cometida e com total observância das regras atinentes à nulidade processual (195º, n.º 1, do CPC), à sua invocação e sanação.

Sem necessidade de maiores considerandos, há que julgar improcedentes as conclusões do recurso jurisdicional em apreciação, negando provimento ao mesmo e mantendo o despacho recorrido.


*

Passemos à análise do segundo recurso jurisdicional, aquele que foi interposto pela Fazenda Pública, visando a sentença proferida nos autos de impugnação deduzida contra a liquidação adicional de IRC de 2002.

A sentença recorrida, como já dissemos, julgou procedente a impugnação e, em conformidade, anulou o acto tributário impugnado, ordenou o reembolso do valor pago e reconheceu o direito da Impugnante, aqui Recorrida, a juros indemnizatórios.

Vejamos, então, tendo presente, na análise que se segue, que a liquidação impugnada se dividia em duas partes, em relação às quais se identificam distintos vícios:

(i) - uma, relativa a métodos indirectos/ presunção de proveitos omitidos, de 228.774,50 Euros;

(ii) - outra, respeitante a correcções técnicas/ proveitos omitidos, de 146.646,58 Euros, apurados com base nas declarações dos adquirentes das frações AB e K.

Para concluir pela procedência da impugnação, a Mma. Juíza a quo considerou que, conforme invocado, não estavam, no caso, reunidos os pressupostos para a avaliação com recurso a métodos indirectos; por outro lado, considerou que “a AT não carreou aos autos elementos suficientes que suportassem a quantificação efectuada, ferindo de ilegalidade a liquidação impugnada, quanto a esta parte”. Para mais, “sempre se estaria perante uma situação subsumível no disposto no artigo 100º, nº1, do CPPT”.

A Recorrente insurge-se contra o assim decidido, dirigindo a este Tribunal de recurso as questões que acima deixámos autonomizadas.

Comecemos a nossa apreciação pela questão primeiramente identificada, a saber: se a sentença errou ao julgar não verificados os pressupostos dos quais a lei faz depender o recurso à avaliação indirecta.

Após fazer o devido enquadramento legal e jurisprudencial da questão em apreciação, a sentença alinhou, no essencial e naquilo que para aqui releva, o seguinte discurso fundamentador:


«Imagem no original»

É, pois, esta análise e conclusão – quanto à não verificação dos pressupostos do recurso à avaliação indirecta - que, nos termos do recurso interposto pela Fazenda Pública, aqui importa apreciar – vide, conclusões E) a J).

Vejamos, então.
Como se sabe, o sistema fiscal português acolhe a ideia de presunção de verdade dos actos dos contribuintes, sejam as suas declarações (apresentadas nos termos legais), sejam os seus dados contabilísticos (desde que a contabilidade se mostre organizada de acordo com o legalmente exigido) – cfr. artigo 75º, nº1 da Lei Geral Tributária (LGT).
Trata-se de uma presunção umbilicalmente ligada à presunção de boa-fé.

Como se sabe, também, esta presunção de verdade não é absoluta, cessando, desde logo, nas situações previstas no nº 2 do artigo 75º da LGT, ou seja, quando as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo; quando o contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da lei, for legítima a recusa da prestação de informações; quando a matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica previstos na LGT e quando os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A da LGT.

No que toca aos procedimentos de avaliação, a lei é clara sobre a opção preferencial do legislador, isto é, não restam dúvidas que a lei assume como ultima ratio o recurso à avaliação indirecta, relegando-a para situações em que não seja de todo possível a quantificação directa e exacta da matéria tributável, através dos dados declarados pelo sujeito passivo ou fornecidos por terceiros ou, também, quando ab initio o método de determinação é já um meio não directo, como o regime simplificado.

Com efeito, “o recurso à avaliação indirecta – por indícios, presunções ou estimativas – é excepcional e está sujeito a uma regra de tipicidade, só podendo fazer-se nos casos e condições expressamente previstos na lei, associados geralmente a uma intensa violação pelo contribuinte dos seus deveres de cooperação para com a Administração Tributária, ou em caso de razões acidentais que inviabilizem o apuramento da matéria tributável real do contribuinte”vide, Lima Guerreiro, in LGT, anotada, Rei dos Livros, pag. 355.
No caso concreto, tal como consta do relatório de inspecção, a fundamentação legal para o recurso à avaliação indirecta radica no disposto nos artigos 52º do CIRC e 87º, alínea b) e 88º, nº1, alínea a) da LGT.
Tenhamos presente que a alínea b), do nº1 do artigo 87º da LGT dispõe que “1 - A avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de: (…) b) Impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto”.
Importa, então atentar no RIT e perceber se o discurso fundamentador adoptado é, ou não, de molde a concluir, como pretende a FP, que se mostram devidamente identificadas situações das quais se possa retirar a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, a que a lei se reporta. Já vimos que o TT entendeu que não.
Neste desiderato, deixemos claro que tendo a AT recorrido à avaliação indirecta compete-lhe demonstrar a verificação dos pressupostos legais que permitem a tributação com recurso a tal método e, feita essa prova, recai sobre o contribuinte o ónus de demonstrar que houve erro ou manifesto excesso na quantificação – cfr. artigo 74º da LGT.

Ora, lido o relatório de inspecção, em concreto no ponto IV, temos, então, que a AT, na motivação da decisão de recurso à avaliação indirecta, evidenciou o seguinte: no caso dos compradores que não confirmaram o valor efectivamente pago pelas fracções (ao contrário de outros dois que disseram ter pago mais que o declarado), a contabilidade não reflecte o valor real/efectivo, nem dela é possível extraí-lo. Deste juízo parece depreender-se que, tendo dois compradores afirmado terem comprado acima do valor declarado, todos os restantes que o não declararam estariam a faltar à verdade.

Sem hesitar, deve dizer-se que este é um juízo claramente conclusivo, que traduz (e tem pressuposta) uma impressão, uma convicção da AT de que os compradores que afirmam ter comprado fracções pelo valor declarado estariam, afinal, a mentir, sem que se percebam as razões para assim considerar, tanto mais que estes compradores exibiram os contratos-promessa (aos quais a AT, aliás, não mais se referiu).

A este propósito, e como a sentença não deixou de evidenciar:


«Imagem no originl»

Os sujeitos passivos de IRC, como é o caso da Recorrida, têm, nos termos do artigo 17º, nº3 do CIRC (à época vigente) a obrigação de manter a contabilidade organizada.

Ora, o recurso a métodos indirectos pressupõe, por parte do contribuinte, a violação de tais deveres, violação esta que cabe à ATA identificar, cabendo-lhe ainda, de forma significante, demonstrar em que medida as anomalias na organização da contabilidade, inviabilizam o apuramento directo da matéria tributável.

Esta obrigação que impende sobre a Administração fica muito aquém do exigido se (e na medida) em que esta se queda por juízos conclusivos, como aqui aconteceu.

Neste sentido, e como resulta do acórdão do TCA Sul, de 06/10/10, proferido no processo nº 3897/10, a propósito dos pressupostos para o apuramento do imposto por métodos indirectos, sabido que aquele método é subsidiário em relação à avaliação directa:

“O que pressupõe que o contribuinte tenha violado alguns dos seus deveres legais de organização contabilística, como seja os contidos nas normas dos art.ºs 17.º n.º3 e 98.º n.º3 do CIRC, que dispõe que a contabilidade deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições em vigor para o respectivo sector de actividade e reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo, constituindo aquele o afloramento de um princípio geral e que dispõe que na execução da contabilidade deverá observar-se em especial o seguinte:

Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário;

As operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objecto de regularização contabilística logo que descobertos,

tendo em vista o registo das correspondentes reais operações, e cuja falta legitima a utilização dos métodos indirectos.

A utilização de tal método presuntivo ou indiciário, traduz-se no recurso por banda da AT, a elementos de facto conhecidos que, utilizados segundo as regras da experiência, pautados por critérios de razoabilidade e normalidade, conduzem à extrapolação de outros desconhecidos que sirvam de suporte ao juízo valorativo extraído pela mesma.

Consequentemente e necessariamente tal conclusão não tem, na generalidade dos casos, de corresponder ao resultado de um raciocínio dedutivo, sustentado em elementos de facto concretos, mas tão só prováveis, justificando a utilização de parâmetros gerais comuns adequados àquele juízo valorativo que se impõe apurar.

Para que assim não suceda, imperioso se torna que aquele a quem possa ser oposto o método em causa, faculte os elementos necessários e indispensáveis à decisão a tomar, de forma a que os resultados a que permitam chegar se mostrem reais, efectivos, concretos e credíveis, assim excluindo, necessariamente, a possibilidade da utilização de tais métodos”.

Nesta conformidade, traduz um raciocínio acertado aquele que foi adoptado na sentença, nos termos seguintes:


«Imagem no original»

É verdade, e o Tribunal não desconsidera, que a Recorrente chama a atenção para o facto de traduzir uma “inconsistência contabilística verificada para a fracção O demonstra cabalmente que a veracidade e correcção da contabilidade deve ser posta em causa, dado que os valores nela contidos como custo de produção dessa fracção, em confronto com os valores declarados como de venda, levam à conclusão de que a mesma havia sido vendida abaixo do preço de custo”.

Com efeito, de atentarmos no RIT aí se refere que a fracção O, cujo valor declarado de venda foi de 89.783,62 Euros, apresenta como custo na contabilidade o valor de 92.780,08 Euros, o que, nas palavras da ATA, representa um prejuízo de 2.996,46 Euros.

Ainda que o Tribunal perceba o alcance da posição da AT, a verdade é que são concebíveis razões pelas quais, nesta área de negócio e em caos pontuais, uma fracção é vendida abaixo do preço de custo, com prejuízo para o construtor. Dito de outro modo, é verdade, e não se ignora, que, numa lógica empresarial, a circunstância de se gerar prejuízo na venda de uma fracção afigura-se anormal e indesejável, já que qualquer sociedade comercial (ou empresário) se constitui para obter lucro. No entanto, razões várias podem justificar que pontualmente situações como esta possam ocorrer, pelo que a singela constatação de um prejuízo isolado não permite a extrapolação que a ATA fez.

Se, como dissemos, a venda abaixo do preço de custo é uma circunstância anormal na economia de uma empresa e que deve, do ponto de vista da AT, funcionar como um sinal de alerta, não é menos verdade que, por ser uma realidade que pode efectivamente suceder (e tantas vezes sucede), impunha-se perceber o porquê de assim ter acontecido para, porventura, retirar a verdade ao assim declarado. No caso, mais se justificava por se tratar de uma situação pontual no total das restantes vendas.

Repete-se: a alínea b) do artigo 87º da LGT prevê a possibilidade de avaliação indirecta da matéria tributável quando se verifica a falta dos elementos necessários para comprovar e quantificar directa e exactamente a matéria tributável, pelo que a avaliação directa se mostra impossível. Ora, apenas com as diligências efectuadas e com os parcos elementos a que se fez referência, entendemos não ser possível à AT, sem mais, dizer que a liquidação do imposto não pode assentar nos elementos declarados pelo sujeito passivo e que o recurso aos métodos indirectos de apuramento do rendimento se tornou na única forma de calcular a matéria colectável e o imposto a liquidar.

E nem do relatório da inspecção tributária em causa resulta minimamente expresso de que forma as faltas encontradas, relativas aos proveitos declarados, inviabilizam o apuramento directo da matéria tributável.

No caso, se bem virmos, a ATA apoiou-se essencialmente, para a sua decisão de tributação por recurso aos métodos indirectos, na existência de 2 situações de declarações de compradores, desconsiderando as declarações dos restantes adquirentes das fracções (que disseram o contrário, ou seja, que confirmaram os valores de aquisição dos imóveis declarados).

Como já antes dissemos, a alínea b) do artigo 87º da LGT prevê a possibilidade de avaliação indirecta da matéria tributável quando se verifica a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável, devendo os motivos de tal impossibilidade ser especificados na decisão da tributação pelos métodos indirectos, nos termos do disposto no artigo 77°, nº 4 da LGT.

Assim, competia à Administração Tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da tributação por métodos indirectos, nos termos do artigo 74°, nº 3 da LGT, cabendo-lhe demonstrar que a liquidação não podia assentar nos elementos fornecidos pelo sujeito passivo e que o recurso àquele método se tornou a única forma de calcular o imposto.

É isto, pois, que do nosso ponto de vista não resulta minimamente demonstrado, como, aliás, a sentença não deixou de concluir e aqui se confirma.

E, não tendo a AT cumprido o ónus que sobre si impendia de demonstrar a verificação dos pressupostos legais para o recurso à avaliação indirecta, porque não demonstrou que essa era a única forma de calcular o imposto, não se encontrava a mesma legitimada a recorrer aos métodos indirectos como meio de determinação da matéria colectável, pelo que a liquidação de IRC emitida na sequência das correcções efectuadas ao abrigo daquele método é, como a sentença julgou, ilegal.

Por consequência, impõe-se concluir que, no caso vertente, não se encontravam verificados os necessários pressupostos legais para que a Administração lançasse mão da metodologia indirecta com base na factualidade constante do probatório, assim naufragando, nessa precisa medida, as conclusões de recurso sob análise e devendo confirmar-se a decisão recorrida.

Improcedem, pois, as conclusões que vínhamos analisando, mantendo-se a sentença no segmento que decidiu que:


«Imagem no original»


*

Avançado para a segunda questão a analisar e que deixámos devidamente autonomizada: saber se a sentença errou ao considerar não provado o valor das transacções imputado pela AT às fracções AB e K.

Neste caso, a conclusão extraída na sentença foi no seguinte sentido:

“Ora, atendendo à insuficiente instrução do RIT, à não utilização dos meios ao seu alcance para aferir dos dados em concreto, à contradição entre os próprios dados obtidos, verifica-se que a AT não carreou aos autos elementos suficientes que suportassem a quantificação efectuada, ferindo de ilegalidade a liquidação impugnada, quando a esta parte. Aliás, acrescente-se em face das próprias inconsistências já sublinhadas supra, sempre se estaria perante uma situação subsumível no disposto no artº 100º, nº 1 do CPPT.”

Nas conclusões L) e M) a Fazenda contesta o assim decidido, considerando, em síntese, que “por recurso aos elementos probatórios contidos nos documentos supra elencados em i) e ii) (leia-se, da conclusão I) impunha-se, igualmente, decisão diversa da tomada”. Para mais, segundo a Recorrente, “o facto de os cálculos efectuados pela AT estarem eventualmente em desacordo com os valores resultantes das provas juntas deveria levar o Tribunal a quo à correcção do valor imputado pela AT e não a simples conclusão da incorrecção total das conclusões contidas no RIT…”.

Entendendo nós que a análise levada a cabo na sentença a este propósito é acertada e se mostra suficientemente fundamentada, remetemos e recuperamos, desde já, o seu teor. Aí se escreveu o seguinte:


«Imagem no original»

Com efeito, a base fundamentadora do raciocínio que percorre o RIT é muito frágil e inconsistentemente demonstrada.

Por um lado, relativamente a uma das fracções, a ATA basta-se com declarações do comprador, quando outras declarações, mas de outros compradores, não lhe mereceram qualquer credibilidade. Por outro lado, tendo a Administração à sua disposição o mecanismo da derrogação do sigilo bancário (do qual, aliás, lançou mão), mal se entende a razão pela qual daí não extraiu dados consequentes para efeitos de aferir dos valores envolvidos nas compras e vendas das fracções AB e K. Admite-se, como muito provável, que o cruzamento de informação poderia revelar a verdade dos valores envolvidos nas transacções em causa, verdade essa que, com a parca instrução feita, não se consegue alcançar.

Como se escreveu no acórdão do TCA Norte, de 27/10/16, no processo nº 00957/09.6BEVIS, “No procedimento tributário, a iniciativa da procura da verdade material pertence à própria administração tributária, mesmo nos casos em que os pedidos dos contribuintes fiquem aquém das diligências necessárias ao apuramento real dos factos e da aplicação do direito.

Este princípio fundamenta-se na obrigação de a administração prosseguir o interesse público (artigo 266º/1 da CRP e artigo 55º da LGT), assim como no dever de imparcialidade da actuação administrativa (266º/2 da CRP e artigo 55º da LGT) que a par dos restantes princípios constitucionais a que os órgão administrativos estão subordinados integram as designadas medidas materiais da juridicidade administrativa (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira in CRP anotada, vol. II, 4ª ed. pp 797).

Por força da aplicação deste princípio, a administração tributária não tem de aguardar pela iniciativa do interessado, devendo, pelos seus próprios meios e determinação, realizar as diligências necessárias para averiguação da verdade factual em que deve assentar a sua decisão. Isto mesmo que estejam em causa factos contrários aos interesses patrimoniais do credor tributário”.

Tal princípio - da verdade material –consagrado no artigo 6º do RCPIT, “impõe que a Administração Tributária, no âmbito do procedimento de inspecção, procure recolher os elementos probatórios que possibilitem mais tarde fundamentar o acto tributário que venha a ser praticado. Trata-se de investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigações fiscais pelos sujeitos passivos e, com base nessa investigação, recolher elementos que permitam apurar a eventual existência de irregularidades. Concluindo, o princípio da verdade material fixa aquele que deve ser o objectivo do procedimento inspectivo - a descoberta da verdade material. Este princípio é uma concretização do examinado princípio do inquisitório (enunciado no artº.58, da L.G.T., como princípio geral do procedimento tributário), sendo postulado pela natureza pública e indisponível da relação jurídico-tributária, assim abrangendo, por isso, os seus elementos de facto” – acórdão do TCAS n.º 08843/15, de 22/10/15.

É oportuna a menção feita na sentença ao acórdão do TCA Sul, de 10/06/10, proferido no recurso nº 3629/09, no qual se escreveu, além do mais, o seguinte:

“(….) é à Administração Fiscal que compete o ónus de provar o montante a que deve estar sujeita qualquer correcção - art. 74° da LGT, o que não se confunde com qualquer palpite ou intuição dos inspectores.

(…)

a nosso ver, a verificação da factualidade vertida no probatório nos termos da ampliação a que este tribunal procedeu, possibilita a operância, no caso concreto, da fundada dúvida a que se refere o art.º 100º do CPPT.

(…)

deparando-se a administração fiscal com um indício, forte, de simulação do preço de venda das ajuizadas fracções, deveria indagar sobre a verificação do facto tributável e demais elementos pertinentes à liquidação do imposto, só podendo culminar o procedimento com a liquidação em sentido estrito quando, face aos elementos apurados, estivesse adquirida a convicção da existência e quantificação do facto tributário.

(…)

a AT afirma ter feito a prova indiciária de que os montantes constantes das escrituras (e que é o que está contabilizado na escrita da recorrida) não podem corresponder à realidade das coisas, facto que a impugnante até admite, mas a fundamentação por aquela aduzida e a quantificação dos valores reais operada, apresentam-se frágeis e insuficientes para ilidir a presunção da veracidade do declarado nas escrituras.

(…)

Enfatiza-se, pois, que as correcções se ancoraram unicamente nas declarações dos compradores de que o preço foi real superior ao indicado nas escrituras.

Para justificar as questionadas correcções, a AT aproveitou apenas parte das declarações,

(…)

o aceitar apenas o valor das vendas constante das declarações dos compradores sem ponderar as demais circunstâncias que acompanharam tais declarações e desprezar completamente os elementos juntos pela impugnante, acaba o Relatório da Inspecção por espelhar bem a falta de rigor e isenção de análise dos elementos ao dispor da Administração Fiscal.

(…)

Acresce que da análise das declarações dos compradores, constata-se que, quase todos autorizaram a derrogação do sigilo bancário para se determinar as quantias que poderiam ter sido empregues nos segundos mútuos para aquisição dos imóveis e, não obstante, não foi solicitado à impugnante que esta autorizasse o levantamento do seu sigilo fiscal.

E dúvidas não sobram de que era esse o meio mais eficaz para obter a prova dos montantes dos preços simulados por parte da Administração Fiscal que preferiu presumir, ancorada da declarações dos compradores, o cálculo de probabilidade de que assim teria acontecido, sem qualquer suporte probatório além da afirmação daqueles de que o preço foi outro que não o mencionado nas escrituras de compra e venda.

(…)

É que dúvidas não podem subsistir de que não ficou suficientemente confirmado o juízo formulado pela AF segundo a qual houve simulação dos preços nas identificadas sitauções, podendo e devendo concluir-se que a AF não logrou provar em tribunal o bem fundado da formação da sua presunção de inexistência dos factos tributários. E face a essa prova, essa questão - relativa à legalidade do agir da administração fiscal - terá que ser resolvida contra a AT.”

Atento todo o relatado, sem necessidade de mais considerações, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se, assim, na íntegra, a decisão recorrida, realçando-se que o segmento relativo ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios não foi sequer questionado, sendo, por isso, de manter.

Nesta linha decisória, fica prejudicada a análise das demais questões que, apenas cautelarmente, foram colocadas pela sociedade recorrida, em sede de contra-alegações.


*

III - DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento a ambos os recursos.

Custas pela Fazenda Pública, quanto ao recurso interposto da sentença final.

Custas pela Impugnante, Recorrente no recurso interposto do despacho de fls. 380 e 381.

Lisboa, 08/10/20

[A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, as Desembargadoras Hélia Gameiro e Ana Cristina Carvalho]

Catarina Almeida e Sousa