Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1145/23.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/19/2024
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

S…, nacional do Nepal, residente em Portugal, intentou intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Ministério da Administração Interna. Pede a condenação da entidade demandada a decidir a pretensão por si formulada em 19.08.2022 e, em consequência, a emitir o correspondente título de residência, e, caso não se entenda que o seu pedido foi objecto de deferimento, a declaração, por força do decurso do prazo legal para a decisão, do deferimento tácito do mesmo, requerendo ainda a aplicação à entidade demandada da sanção pecuniária compulsória, a fixar por cada dia de incumprimento da sentença. Alega, para tanto e em síntese, que: (i) Deu entrada de pedido para concessão de autorização de residência, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, através de manifestação de interesse apresentada junto da entidade demandada, em 19.08.2022, tendo entrado legalmente em território nacional e apresentado toda a documentação legalmente exigida para o efeito junto do SEF; (ii) Até à data, o seu pedido não foi objecto de decisão, em violação do disposto no n.º 5 do artigo 82.º da referida lei e no artigo 13.º do Código do Procedimento Administrativo, omissão lesiva do direito à segurança no emprego, atendendo a que a autora trabalha há mais de sete meses indocumentada e sob ameaça constante de despedimento, e do direito à vida familiar, dado que não revê a sua família no Nepal há mais de três anos, valores protegidos pelos artigos 53.º e 36.º da Constituição, lesão essa que decorre das regras da experiência, dedutível por mera presunção judicial; (iii) A falta de decisão do seu pedido também priva a autora da possibilidade de beneficiar da aplicação do princípio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º l, da Constituição; (iv) Por não dispor de autorização de residência, a autora permanece em situação irregular em território nacional, o que não lhe traz qualquer tranquilidade, nem sequer para andar em público, pois, a todo o tempo, e em qualquer local, pode ser objecto de acções de fiscalização, o que põe em causa o seu direito à liberdade e à segurança; (v) A Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, determina a obrigatoriedade de porte de documento de identificação, sendo a própria entidade demandada quem obvia ao cumprimento dessa obrigação pela autora, não providenciando, em tempo útil e razoável, pela decisão, emissão e envio do seu título de residência, pondo em causa o seu direito à identidade pessoal; (vi) Apesar de ter trabalho estável em Portugal, descontar mensalmente, desde Setembro de 2022, a favor da Segurança Social, e pagar impostos em território português, a autora apenas tem acesso ao sistema de saúde se pagar a integralidade das taxas, pelo que está em causa o seu direito à protecção da saúde; (vii) Ao não decidir o seu pedido, a entidade demandada violou os princípios da confiança, da decisão, da eficiência, da celeridade e da boa administração, todos previstos no CPA, bem como o princípio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferido despacho a determinar a notificação da autora para “(…) substituir a petição inicial, para o efeito de requerer a adoção da providência cautelar adequada à tutela do direito que pretende fazer valer, sob cominação de indeferimento liminar da petição inicial.”, por no mesmo se ter considerado não estarem verificados os pressupostos de que depende o recurso ao processo urgente de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
Notificada de tal despacho, a autora veio “declinar” o convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal e reiterar o pedido de intimação da entidade demandada nos termos da p.i..
Pelo mesmo Tribunal foi proferida sentença a rejeitar liminarmente a petição por a autora não ter substituído a p.i. nos termos do despacho que antecede, aplicando a cominação no mesmo estabelecida.
A autora interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo faz um interpretação errada da Lei e ignora a Jurisprudência assente no STA e TCA SUL sobre a idoneidade do presente instrumento legal.
B) A Intimação para Defesa de Direitos, Liberdades e Garantias é o Único instrumento legal adequado para a defesa dos interesses do Requerente os quais estão
C) E o instrumento legal mais adequado na defesa dos valores constitucionais em jogo.
D) O uso da providência cautelar pela sua precariedade é incerto no seu desfecho.
E) Depende de uma Ação principal que poderá demorar anos e anos.
F) Somado a isso o Réu SEF recorre atualmente das providências cautelares.
G) O que aumenta ainda mais a incerteza do Requerente.
H) O Existe jurisprudência no TCA-SUL assente sobre a idoneidade do presente instrumento legal e ainda no STA muito recentes.
I) Existe desde 2019 uma reversão Jurisprudencial.
J) O Requerente vê ameaçada a sua identidade em território nacional o seu emprego, está a pagar impostos e não vê reconhecidos os seus direitos.
K) Especial enfâse para os processos n° 2906/22.7 BELSB de 23/02/23 TCA SUL, processo n° 3682/22.9 BELSB de 31.03.23 do TCA SUL, processo n° 3238/22.6 BELSB do TCA SUL datado de 11.05.2023, processo n° 396/23.6 BELSB, do TCA Sul datado de 11.05.23.
L) O tribunal a quo não está a acatar a posição do TCA SUL e STA.
M) Estão ultrapassados os prazos legais previstos no artigo 111o, 1 do CPTA
N )Não existe tempo a perder devendo o R. SEF ser devidamente Intimado a decidir e a emitir o respectivo título de residência ao Autor.
O) Violaram-se os artigos 1o,2o,12°,13°, 15°,26°, 27°,36°,67°,68 da Constituição da República Portuguesa e ainda o artigo 109° CPTA e ainda o art.° 88° n° 2 das Leis 59/17 e Lei 102/17 e ainda artes 5o,8o, 10°, 13° todos do CPA e ainda art.° 637° e 639° do CPC.
A entidade recorrida respondeu à alegação da recorrente, contendo as suas alegações as seguintes conclusões:
1ª- Os processos urgentes devem ser reservados para as situações de verdadeira urgência na obtenção de uma decisão sobre o mérito da causa (que coincidem com aquelas para as quais não é possível ou suficiente a utilização de um processo não urgente) e para aquelas onde exista necessidade de uma proteção acrescida dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;
2ª- A ora recorrente não logra, efetivamente, demonstrar os requisitos da urgência, da indispensabilidade e da subsidiariedade que necessariamente subjazem à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, atento o carater absolutamente excecional que este meio processual encerra, enquanto mecanismo tendente à prolação de uma decisão urgente e definitiva;
3ª - Não resultando, assim, do requerimento inicial demonstrada uma situação concreta de urgência que imponha ao caso da ora recorrente uma decisão de mérito através do presente meio processual;
4ª - Em suma, o recurso deve ser considerado improcedente, uma vez que a sentença impugnada foi proferida nos termos e respeito dos princípios e normas aplicáveis.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, sustentando que a autora não alegou factos concretos que permitissem concluir que, nas específicas circunstâncias do caso, seria necessária a emissão urgente de uma decisão de mérito, indispensável para assegurar, em tempo útil, a protecção dos direitos que invoca, por não ser possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar, ainda que a título provisório, tendo-se limitado a alegar, de forma genérica e conclusiva, que os seus direitos à identidade pessoal, à dignidade da pessoa humana, à família e à estabilidade no trabalho estão a ser postergados em virtude da inércia da entidade demandada. Considera ainda que o caso consente, verificados os pressupostos legais, a emissão de autorização de residência provisória para habilitar a autora a permanecer no país na pendência da acção principal, assim se mostrando idónea a tutela cautelar, o que a autora até admite, afastando o uso do processo cautelar apenas “pela sua precariedade”, pelo seu “muito incerto” “desfecho”, pela atitude que o SEF vem assumindo de interpor recurso em tais processos e pela morosidade da acção administrativa, razões estas inidóneas a afastar a possibilidade e suficiência da tutela cautelar.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

A questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida não fixou factos.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Alega a recorrente que a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, “é o único instrumento legal adequado” à defesa dos interesses que pretende fazer valer e dos valores constitucionais associados, e que um processo cautelar depende de uma acção principal, que poderá demorar anos, aos longo dos quais a mesma se manterá num estado de incerteza. Mais alega que a jurisprudência tem vindo a decidir nesse sentido e que o Tribunal “a quo” não acatou essa jurisprudência.

A sentença recorrida rejeitou liminarmente a petição por a autora não ter acedido ao convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal para substituir a p.i. para o efeito de requerer a providência cautelar adequada à tutela do direito que pretende fazer valer, sob cominação de indeferimento liminar da p.i.. Tal convite assentou na falta de verificação dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. Mais precisamente, a sentença recorrida assentou na seguinte fundamentação:
“(…) Alega a requerente que se encontra à espera de ver decidido o seu pedido de concessão de autorização de residência desde 19.08.2022, e que, com tal circunstância, se encontra impossibilitada de ver satisfeito o seu direito a obter uma autorização de residência a seu favor.
Alega que tal circunstância o priva da possibilidade de beneficiar da aplicação do princípio da equiparação, ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; que afeta o seu direito à liberdade e à segurança, o seu direito à identidade pessoal, o seu direito ao trabalho, à segurança e estabilidade no emprego, o seu direito à saúde, e o seu direito à família.
Sucede que em relação a nenhuma das referidas circunstâncias/direitos vem a requerente alegar factos que concitem qualquer situação de urgência, para lá dos normais incómodos associados à incerteza de estar a aguardar uma decisão da Administração há um tempo já (demasiado) longo, relativamente à decisão do seu pedido de autorização de residência.
Na verdade:
A requerente socorre-se de imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas, nomeadamente do tempo e lugar em que ocorreram, que é o mesmo que dizer que a requerente não concretiza, pois, qualquer situação devidamente substanciada/concretizada, no caso concreto de S… (requerente), da qual resulte a indispensabilidade de que a decisão de mérito seja proferida num processo urgente (e não numa ação administrativa), não dando, por conseguinte, satisfação ao ónus de alegação e de prova que lhe estava cometido, de acordo com as regras gerais de repartição do ónus da prova, no sentido de demonstrar a imprescindibilidade do recurso ao presente meio processual, por não ser possível, em tempo útil, o recurso a uma ação administrativa comum, e que a concessão de autorização de residência a seu favor, a título provisório, era, no caso concreto de S… (requerente), insuficiente.
Com efeito, refira-se, (e a título de exemplo), que a requerente nada alegou – e, portanto, nada provou – no sentido de que, se a decisão de mérito não for proferida num processo urgente, haverá (i) uma perda irreversível de faculdades de exercício do direito em causa (direito a residir (legalmente) em Portugal e a ser portador do respetivo título de residência); e/ou (ii) uma qualquer situação de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a imediata e direta sobrevivência pessoal de alguém (cumpre salientar que, a este propósito, a requerente limitou-se a afirmar que tem de pagar na integralidade as taxas para ter acesso ao sistema de saúde).(…)
Assim sendo, por não virem alegadas concretas – é dizer, em relação a S… (requerente) – circunstâncias que exijam que a tutela pretendida seja urgentíssima, falece o primeiro pressuposto mencionado: a urgência da tutela requerida.
Tal será bastante para considerar que não estão reunidos os pressupostos processuais específicos da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
(…)
Mesmo que se verificasse alguma urgência na tutela requerida, não existe qualquer indício de que essa urgência não pudesse ser acautelada provisoriamente (por meio de tutela cautelar com eventual decretamento provisório da providência a requerer), enquanto o requerente aguardasse a decisão de um processo principal condenatório (não urgente).
Com efeito, o legislador relaciona o requisito da impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar, próprio da intimação do artigo 109.º do CPTA, com a indispensabilidade da célere emissão de uma decisão de mérito para assegurar a tutela de direitos, liberdades e garantias em tempo útil; o que permite caracterizar a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias como meio processual subsidiário relativamente aos outros meios processuais previstos no CPTA, nomeadamente, quando em confronto com a tutela cautelar (urgentíssima).
Nos casos em que essa tutela requerida possa ser efetivamente assegurada pelo recurso aos demais meios processuais, nomeadamente, por ser possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar, o processo de intimação regulado nos artigos 109.º e ss. do CPTA não deve ser admitido.
(…)
Em suma, uma decisão provisória, a proferir em sede cautelar, de emissão de um título de residência provisório não esgota os efeitos da ação principal, revelando-se possível e suficiente o decretamento de uma providência cautelar, a requerer no âmbito de uma ação administrativa (não urgente), para acautelar os direitos aqui invocados pela requerente.(…)
Termos em que, para lá da falta de comprovada urgência na presente ação, não se encontra verificado também o pressuposto específico da subsidiariedade da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
Não estando verificados estes pressupostos, carece de utilidade prosseguir na verificação do terceiro pressuposto específico enunciado.
Estas circunstâncias, importam a verificação de uma situação de inadequação da forma de processo utilizada, que constitui uma exceção dilatória inominada, que conduz à nulidade de todo o processado, determinante do indeferimento liminar da petição inicial, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 109.º n.º 1 e 110.º n.º 1, ambos do CPTA, e 590.º n.º 1 do CPC.
Todavia, importa ainda indagar da aplicabilidade aos presentes autos do disposto no artigo 110.º-A n.º 1 do CPTA, o que faremos de seguida.(…)
Ora, tendo em conta o pedido formulado pela requerente e a alegação apresentada, concluímos que a propositura de uma ação administrativa, mais especificamente, mediante um pedido de condenação à prática do ato devido – como meio de reacção à inércia da Administração, seja na apreciação do pedido de concessão de autorização de residência, seja na emissão do correspondente título de residência, nos termos dos artigos 37.º n.º 1 alínea b), 66.º, e 67.º n.º 1 alínea a), todos do CPTA – consubstanciado na concessão da autorização de residência requerida ou na emissão do correspondente título, combinada com a dedução de uma providência cautelar, é o meio processual adequado e suficiente para garantir que não se verifique uma lesão irreversível do direito daquele. Tendo sido requerida a autorização de residência a 19.08.2022, e não tendo sido ainda proferida decisão pela Administração, verifica-se a omissão de decisão prevista nos artigos 66.° n.º 1 e 67.° n.º 1 alínea a) do CPTA, uma vez que o prazo para decidir aquela pretensão seria, nos termos gerais e por falta de previsão específica da Lei n.º 23/2007, de 04/07, de (90) noventa dias úteis (artigos 128.° e 87.°, ambos do Código do Procedimento Administrativo (CPA). É que, apesar de estar em causa um procedimento de iniciativa oficiosa, está previsto que o interessado manifeste interesse (mediante requerimento) em ver apreciada a possibilidade de ser desencadeado o procedimento tendente à concessão daquela autorização. Ora, esse requerimento merece, pois, nos termos gerais, uma decisão administrativa. Por outro lado, não estando em causa nestes autos um pedido de renovação da autorização de residência, não se prevê na lei — como sucederia na hipótese de renovação — o deferimento tácito do pedido. Conforme resulta do requerimento/articulado inicial, a requerente/A. alega que requereu a autorização de residência a 19.08.2022. Porém, partindo daquela data, o prazo regra de (90) noventa dias úteis para decidir, terminou no final do mês dezembro/2022 (a 21.12.2022), sendo que o prazo para emissão do título de residência requerido é de (10) dez dias úteis (terminando a 04.01.2023)
(Cf. artigos 86.º n.º 1 e 87.º n.º 1 alínea b) e c), ambos do CPA). A presente intimação deu entrada em juízo a 11.04.2023 (Cf. comprovativo de entrega a fls. 1-2 dos autos em paginação eletrónica), com o que o presente articulado/petição seria tempestivo em sede de ação administrativa de condenação à prática de ato administrativo (já que não se mostra ultrapassado o prazo de (1) um ano, previsto no artigo 69.º n.º 1 do CPTA, o que apenas ocorreria depois de 04.01.2024).
(…).”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pela autora.

Antes de mais, àquele que lança mão de uma intimação para protecção de direito, liberdades e garantias, cabe alegar factos que traduzam uma situação de indispensabilidade de uma tutela definitiva urgente, o que, naturalmente, se associa à demonstração da insuficiência de tutela através de uma acção administrativa, de natureza não urgente, ainda que associada ao decretamento de uma providência cautelar. Dependendo a utilização de tal meio processual da verificação de pressupostos legalmente definidos, a demonstração dessa verificação cabe a quem do mesmo se pretenda valer, devendo tal revelação assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
Ora, a recorrente limita-se a alegar que deu entrada do seu pedido para concessão de autorização de residência, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007 de 04 de Julho, através de manifestação de interesse apresentada junto da entidade demandada, em 19.08.2022, tendo entrado legalmente em território nacional e apresentado toda a documentação legal exigida para o efeito junto do SEF, não tendo o seu pedido sido, até à data, objecto de decisão. Mais alega que trabalha há mais de sete meses indocumentada e sob ameaça constante de despedimento (embora refira que tem um trabalho estável); que que não revê a sua família no Nepal há mais de três anos; que não se sente tranquila, sequer para andar em público, por estar em situação irregular em território português, em virtude de não dispor de autorização de residência; e que, apesar de descontar mensalmente, desde Setembro de 2022, a favor da Segurança Social, e pagar impostos em território português, apenas tem acesso ao sistema de saúde se pagar a integralidade das taxas. Neste cenário, e em face da omissão de decisão do seu pedido de autorização de residência, invoca (i) a violação do dever de decisão que impende sobre a entidade demandada, nos termos do n.º 5 do artigo 82.º da referida lei e do artigo 13.º do Código do Procedimento Administrativo, (ii) a violação dos seus direitos à segurança no emprego, à vida familiar, à liberdade e à segurança, à identidade pessoal, e à protecção da saúde, consagrados, respectivamente, nos artigos 53.º, 36.º, 27.º, 26.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa, (iii) a violação dos princípios da confiança, da decisão, da eficiência, da celeridade e da boa administração, previstos no Código do Procedimento Administrativo, bem como do princípio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição.
Todavia, não concretiza minimamente a ameaça de tais direitos, de modo a aferir-se da necessidade de uma tutela definitiva urgente. Efectivamente, a autora recorrente não descreve uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para a recorrente na concessão de autorização de residência. Tal carência de alegação factual basta, só por si, para concluir pela falta de verificação dos pressupostos de recurso a este meio processual, atendendo a que tais pressupostos carecem de concretização, não sendo aferíveis em geral e abstracto, antes casuisticamente, em face de uma determinada e específica situação individual e concreta.
Nas conclusões das suas alegações, veio a recorrente afirmar que a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, “é o único instrumento legal adequado” à defesa dos interesses que pretende fazer valer e dos valores constitucionais associados. Todavia, trata-se de uma mera – e extemporânea – conclusão sem qualquer substracto factual. Mais refere que um processo cautelar depende de uma acção principal, que poderá demorar anos, aos longo dos quais a mesma se manterá num estado de incerteza. Mas tal constatação desconsidera, em absoluto, a tutela que o processo cautelar assegura.
De todo o modo, sempre se dirá que, atentos os contornos factuais alegados, a situação de facto descrita pela autora recorrente é susceptível de ser acautelada com a adopção de uma providência cautelar que intime a entidade demandada a emitir um título de residência provisório, de modo a permitir que a autora permaneça, de modo regular, em Portugal até ser proferida decisão em acção principal de condenação a decidir o pedido de autorização de residência, não se mostrando, assim, imprescindível, nem sequer necessário, que se decida definitivamente com carácter urgente se a autora tem direito à emissão de autorização de residência.
Tal decretamento, para além de suficiente para tutela dos direitos cuja violação a recorrente invoca, não põe em causa o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território português, constante da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, considerando que a entidade a quem cabe decidir o pedido de autorização de residência não se pronunciou ainda sobre o preenchimento das condições legalmente previstas para a concessão de tal autorização.
Ante o exposto, nem se revela indispensável a emissão de uma decisão de mérito urgente para assegurar o exercício, em tempo útil, dos direitos que a autora invoca, nem é impossível ou insuficiente para o efeito o decretamento de uma providência cautelar, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
Por fim, insurgindo-se a recorrente contra a falta de “acatamento”, por parte do Tribunal a quo, da jurisprudência que invoca para sustentar a idoneidade da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias no caso em apreço, cabe referir que o sentido de tal jurisprudência não é independente da factualidade alegada em cada uma das situações concretas a que se reporta (antes sendo por ela condicionada). Acresce que a “jurisprudência” – correspondente ao conjunto de decisões dos tribunais de recurso – não tem, no nosso sistema jurídico, força vinculativa fora do processo a que respeita. Nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, aplicável aos tribunais administrativos por força do artigo 7.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.”, donde se retira que tal dever de acatamento apenas opera no próprio processo a que respeita.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.


Lisboa, 19 de Março de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Marta Cavaleira
Pedro Nuno Figueiredo