Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:40/21.6BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/07/2021
Relator:ANA PAULA MARTINS
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO;
JURISDIÇÃO;
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR SUMÁRIO;
AUDIÇÃO DO ARGUIDO;
DIREITO DE DEFESA;
Sumário:I - É excluída da jurisdição do Tribunal Arbitral do Desporto, por ser exclusiva das federações desportivas, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.

II – Não ocorre violação dos direitos de audiência e defesa se o arguido apresentou, de facto, defesa, em momento prévio à decisão disciplinar tomada em processo sumário.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: ***

Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

A Federação Portuguesa de Futebol, demandada no processo nº 4/2021, no qual é demandante J..., vem recorrer do acórdão proferido, no âmbito do referido processo, pelo Tribunal Arbitral do Desporto, que, julgando parcialmente procedente o recurso apresentado pelo Demandante, anulou a decisão disciplinar sancionatória, com absolvição do Demandante da infracção por que foi disciplinarmente sancionado com suspensão de 1 jogo e multa de 153,00 euros.
*
Nas alegações de recurso, a recorrente Federação Portuguesa de Futebol formulou as seguintes conclusões:

1. O recurso ora interposto tem por objeto a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral do Desporto em 16 de março de 2021 - e respetiva aclaração, que dela faz parte integrante, com data de 22 de março -, em particular, os seguintes segmentos:

b) Declarar improcedente a exceção dilatória de ausência de jurisdição do TAD, deduzida pela Demandada à luz da norma do nº 6 do artigo 4.º da Lei do TAD, para apreciar e decidir a questão de mérito do cometimento, in casu, da infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP e, assim mesmo, da validade da decisão disciplinar sancionatória recorrida;

c) Declarar procedente o presente recurso quanto ao invocado não cometimento pelo Demandante da infração disciplinar prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, por ausência na concreta situação sub judice do pressuposto factual objetivo típico de que depende tal cometimento, anulando, consequentemente, a decisão disciplinar sancionatória recorrida, com absolvição do Demandante da infração por que foi disciplinarmente sancionado com suspensão de 1 (um) jogo e multa de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros); “Nestes termos e pelo exposto, julga-se procedente a presente providência cautelar e, em consequência, suspende-se a eficácia da decisão tomada em 27-1-2021, pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – e posteriormente confirmada pelo Pleno do mesmo Conselho de Disciplina em 29-1- 2021 -, que impôs ao requerente a sanção disciplinar de 1 (um) jogo de suspensão e, acessoriamente, a sanção de multa no montante de € 153,00”.
2. Não integra o objeto do presente recurso o segmento decisório do Acórdão recorrido, de acordo com o qual o Colégio Arbitral:
“a) Declarar improcedente o presente recurso quanto à alegada invalidade da decisão disciplinar sancionatória recorrida por preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido, ora Demandante; ficando assim consumida a apreciação, qua tale, da exceção perentória implicitamente invocada nesta matéria pela Demandada;”
3. Existem fundadas razões para crer que a decisão arbitral, na parte que se recorre, enferma de vícios que levarão este Tribunal Central a determinar a sua revogação, conforme se passará a expor.
4. Através desta decisão arbitral de que agora se recorre, o TAD, erradamente, julgou-se competente para apreciar a impugnação de uma sanção de suspensão automática de um jogador em consequência da exibição pelo árbitro, durante o jogo, do quinto cartão amarelo, na sequência de uma falta tida como violadora das leis do jogo.
5. O Recorrido foi sancionado pela infração p. p. pelo artigo 164.º, n.º 7 do RD da LPFP: “7. O jogador que, na mesma época desportiva e em jogos diferentes, acumular uma série de cartões amarelos é punido com a sanção de suspensão por um jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de valor correspondente a 1,5 UC assim que atingir o quinto, o nono, o 12.º e o 14.º cartões amarelos dessa época desportiva.”
6. O Recorrido não coloca em crise o facto de ter 4 cartões amarelos contabilizados, antes do 5.º que contesta. O Recorrido também não vem alegar que lhe foi aplicada sanção de 2 jogos quando a norma tem como limite abstrato a aplicação da sanção de suspensão por 1 jogo, nem vem afirmar que a série de amarelos não foi praticada na mesma época desportiva.
7. O que materialmente o Recorrido vem colocar em crise perante o Tribunal Arbitral do Desporto e é a amostragem do cartão amarelo durante um jogo, tanto que reconhece – nem poderia ser de outro modo – que a aplicação da sanção de suspensão é uma sanção automática decorrente da cumulação de 5 cartões amarelos na competição na mesma época desportiva.
8. Ou seja, o facto que o Recorrido concretamente pretende ver alterado (rectius, revogado) pelos tribunais comuns é a amostragem de um cartão amarelo no decorrer de um jogo, pelo árbitro regularmente designado para o mesmo. Não há forma de escamotear esta realidade: o Recorrido pretende-o e di-lo de forma clara e transparente na sua peça processual.
9. Ao pretender colocar em crise a factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Recorrido pretende que o TAD se substitua no juízo técnico do árbitro do jogo em causa.
10. Nos termos do n.º 6 do artigo 4.º da Lei do TAD: “É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”.
11. Da conjugação no enquadramento normativo, doutrina e jurisprudência assinaladas no presente recurso retira-se, com clareza, que a discussão sobre o tipo de questões trazidas ao conhecimento do TAD - recorde-se, aplicação de sanção disciplinar automática decorrente da cumulação de cartões amarelos em determinada competição, ou, melhor, a anulação de um cartão amarelo regularmente amostrado em jogo pelo árbitro - cabe apenas dentro das instâncias desportivas, estando o seu conhecimento vedado ao Tribunal Arbitral do Desporto, porquanto é matéria relacionada com a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva. Ou, numa leitura mais atualista, é, sem dúvida alguma, uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
12. Alega o TAD, na decisão recorrida, que a questão que decidiu não foi a da correção ou não da exibição do cartão amarelo, muito menos a de retirar esse cartão (o que depois vem a ser evidenciado no Despacho de Aclaração proferido), mas sim a questão da relevância da apreciação que o árbitro posteriormente fez da sua decisão. Ou seja, o TAD construiu o seu próprio “thema decidendum”, para poder decidi-lo.
13. Todavia, resulta daqui uma perplexidade inultrapassável: como pode o TAD concluir pela existência de um erro naquela decisão técnica tomada pelo árbitro durante o jogo exclusivamente com base em declarações do árbitro posteriores ao jogo e sem analisar o lance à luz dos critérios previstos na Lei do Jogo?
14. Esta jurisprudência criativa e inovadora segundo a qual o TAD não pode apreciar a decisão do árbitro durante o jogo – a decisão de sancionar uma falta com cartão amarelo – mas pode “julgar a relevância da apreciação e julgamento que comprovadamente o próprio árbitro fez (...) sobre a correcção dessa exibição” não tem nenhuma correspondência com o próprio artigo 4.º, n.º 6 da Lei do TAD: “É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim susceptível do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”.
15. Tal contradição do Tribunal a quo fica evidenciada no Despacho de Aclaração proferido: aí é dito que o cartão amarelo amostrado se mantém em vigor na ordem jurídica desportiva; mas são anulados os seus efeitos disciplinares automáticos.
16. É evidente que aquilo que se exclui da competência do TAD não é a decisão técnica do árbitro durante o jogo, porque essa é naturalmente alheia, facticamente alheia, a qualquer poder de intervenção do TAD. Aquilo que o legislador excluiu da competência do TAD foi sobretudo o que vem a seguir: as questões emergentes, no plano jusdisciplinar, da decisão técnica e disciplinar tomada pelo árbitro no jogo. Como sucede com a questão emergente da exibição pelo árbitro do 5º cartão amarelo a um jogador, questão emergente essa relacionada com a sua suspensão automática pelo Conselho de Disciplina em sede de processo sumário.
17. No caso concreto, o autor chamou o tribunal arbitral a pronunciar-se sobre a validade da sanção disciplinar aplicada ao jogador, segundo o estatuto disciplinar correspondente (que integra tando o RD com as Leis do Jogo), por infração disciplinar atinente à acumulação de cartões amarelos exibidos em distintos jogos oficiais, de uma mesma competição. Esta é a relação jurídica (administrativa) controvertida, que assume natureza desportiva (porque, na base do sancionamento, se encontra a aplicação das Leis do Jogo), de que se não pode destacar, sob pena de perversão, um dos argumentos do autor, elevando-o à categoria de (autónoma?) relação jurídica.
18. O que está inequivocamente em causa (e em cuja apreciação se convoca o depoimento do árbitro da partida), é saber se, no jogo em causa, a conduta do jogador era, à luz das leis do jogo, merecedora de cartão amarelo e, além disso, se, tendo o árbitro exibido esse cartão amarelo, se o órgão disciplinar se pode sobrepor, em sede decisória, à decisão tomada no terreno de jogo.
19. E todas as normas cuja apreciação é convocada pelo TAD (mesmo as que integram o RD) são, sempre sem sombra de dúvidas, inequivocamente respeitantes, de forma direta, à prática da competição desportiva. Convergindo, todos estes argumentos, numa conclusão inequívoca: a da incompetência do TAD para a decisão do caso.
20. Com efeito, ao contrário do que o Recorrido refere no artigo 33 do seu requerimento inicial, a aplicabilidade de regras técnicas ligadas às próprias leis do jogo não é indiretamente aplicável à questão em apreço - na verdade, é só por questões técnicas ligadas às leis do jogo (v. g. amostragem de cartão amarelo) que a sanção automática de suspensão e multa referente à cumulação de 5 cartões amarelos na competição, na mesma época desportiva, tem lugar.
21. Por ser colocada questão relativa à factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática de suspensão, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Tribunal Arbitral do Desporto é incompetente para conhecer da ação arbitral que aí foi intentada, de acordo com o disposto no n.º 6 do artigo 4.º da Lei do TAD, devendo ser revogada a decisão arbitral proferida, com fundamento na incompetência material do TAD.
22. Admitindo, o que não se concede e só se equaciona por dever de patrocínio, que o Tribunal a quo era competente para conhecer deste litígio, sempre se dirá que a decisão proferida, que revoga o Acórdão disciplinar proferido pelo Conselho de Disciplina, é manifestamente ilegal.
23. Na decisão arbitral recorrida, vai explícita a ideia de que as declarações do árbitro a seguir ao jogo são adequadas a afastar as decisões por si tomadas durante o jogo. Este posicionamento significa que todas as decisões tomadas pelo árbitro durante o jogo deveriam ser revogadas caso em momento posterior o mesmo árbitro viesse a mudar de entendimento quanto ao seu ajuizamento inicial, passando a considerá-lo errado, independentemente de qualquer avaliação do próprio lance e da forma como foi decidido. A autoridade do árbitro existiria, assim, de forma plena mesmo depois de o jogo ter acabado (inclusive sobrepondo-se às decisões tomadas durante o jogo), permitindo-se ao árbitro que mude de opinião e que com isso altere o desfecho do jogo.
24. Para o TAD, de acordo com a posição maioritária que fez vencimento no Acórdão recorrido, o reconhecimento pelo árbitro, depois do jogo, de que errou parece o bastante para daí se retirarem consequências disciplinares e desportivas, não cabendo sequer ao colégio arbitral a possibilidade de avaliar o lance à luz das leis do jogo, para concluir se aquele erro efetivamente ocorreu.
25. Esta linha argumentativa adotada pelo TAD é, porém, manifestamente contraditória com aspetos a que resolveu dar ênfase logo no sumário da decisão arbitral e que se prendem com a atinência da autoridade do árbitro às decisões que tomou durante o jogo: “É irrecusável a relevância da field of play doctrine, como princípio da preservação das decisões tomadas pelo árbitro durante o jogo, não apenas por uma questão de respeito e lealdade por quem tem de tomar decisões técnicas e disciplinares, aplicando as leis do jogo, sob a pressão dos acontecimentos ocorridos no campo e no tempo do jogo e podendo errar, numa álea inerente às circunstâncias desse espaço e desse tempo e aceite consensualmente como tal, mas também para garantir a estabilidade, seja do desenrolar do próprio jogo, seja do desenlace deste no campo e no tempo em que ocorreu”.
26. O entendimento do TAD segundo o qual o critério supremo para aferir da existência ou não da falta determinante do cartão amarelo e da suspensão automática são as últimas declarações do árbitro – a conclusão que parece resultar da parte inicial da decisão do TAD destinada a justificar o injustificável mostrando que não se está a pronunciar sobre uma questão estritamente desportiva, por não estar em causa o lance, mas sim as declarações do árbitro sobre o lance – é, porém, abandonada pelo TAD na segunda parte da sua decisão e sobretudo na sua conclusão de que a verdade desportiva material pressupõe que se retirem consequências da verificação de que “tal erro ocorreu realmente, como acontece in casu”.
27. Ora, é evidente que a conclusão de que o erro ocorreu in casu não pode bastar-se com a mera afirmação posterior pelo árbitro do seu erro, quando o mesmo árbitro até descreveu no seu relatório de jogo, depois de o jogo já ter acabado, a sua decisão de modo totalmente coerente com o cartão amarelo exibido durante o jogo.
28. A conclusão a que o TAD chega sobre a existência de um cartão amarelo “comprovadamente exibido com erro” pressupõe sobretudo a valoração do lance à luz das leis do jogo, não podendo bastar-se com as declarações do árbitro posteriores ao jogo e contraditórias com a decisão por si antes tomada (no jogo e no relatório do jogo que assinou e remeteu de seguida).
29. A conclusão de que o cartão amarelo foi comprovadamente exibido com erro pressupõe uma avaliação do lance sob o enquadramento das Leis do Jogo e não apenas das declarações posteriores do árbitro, contraditórias com as decisões inicialmente assumidas. E trata-se, por isso, incontornavelmente, de uma questão estritamente desportiva.
30. A conclusão do TAD nesta decisão arbitral, aparentemente alicerçada na defesa da verdade desportiva material e na promoção da solução justa à luz das leis do jogo tendo em conta o caso concreto, é contraditória e incompatível com a afirmação de que não avaliou o lance, porque só uma avaliação do lance permitiria concluir que avaliação acertada do árbitro é a que ele fez por último e não a que fez durante o jogo ou aquando do preenchimento do seu relatório. Só a avaliação do lance e só a sua apreciação à luz das leis do jogo permitiria ao TAD concluir que a última avaliação do lance feita pelo árbitro é aquela que corresponde à verdade desportiva material.
31. Mesmo que se entendesse que a revogação da decisão do árbitro pelo órgão disciplinar é possível em hipóteses de erro óbvio, o que se admite apenas por dever de patrocínio, o certo é que neste caso a pronúncia do árbitro nem sequer permite concluir pela existência de um erro óbvio.
32. E é nesta ordem de ideias que se circunscreve o poder regulamentar expressamente previsto no n.º 8 do artigo 258.º, do Regulamento Disciplinar da Liga: “(…) a Secção Disciplinar atuará oficiosamente, nomeadamente com recurso à prova de reprodução de imagem televisiva e às declarações escritas da equipa de arbitragem, quando for patente que esta puniu qualquer interveniente no jogo com a amostragem de cartão amarelo ou vermelho, assim como advertência ou ordem de expulsão, pretendendo antes punir um outro, com o fim de atribuir a punição ao sujeito que verdadeiramente cometeu a infração e revogar a punição do sujeito indevidamente punido”, aliás como a jurisprudência do CD tem acentuado. Na base deste entendimento está, justamente, a ideia de que a avaliação da exibição de um cartão amarelo é estritamente técnica e exclusiva do árbitro, sendo insuscetível de impugnação posterior.
33. A field of play assenta no pressuposto de que os intervenientes no jogo reconhecem a priori que a equipa de arbitragem pode errar, aceitando-se que as decisões de aplicação das leis do jogo no terreno de jogo, mesmo que eivadas de erro, são decisões tendencialmente finais, em homenagem aos princípios da segurança jurídica, da paz social, da praticabilidade e da lealdade para com árbitros e jogadores.
34. A field of play deriva de razões substanciais, porquanto o que se pretende evitar é que o jogo em campo continue por uma via decisória como se o órgão disciplinar pudesse continuar a arbitrar. É esta convicção que explica o preceituado no artigo 9.º, n.º 4 do Código Disciplinar da FIFA (edição de 2019), com respaldo no ordenamento desportivo português, mormente na al. g) do artigo 13.º do RDLPFP20, onde se qualifica como princípio fundamental do ordenamento disciplinar a «proibição de afastamento das decisões de facto proferidas pelos árbitros e relativas a situações ou condutas observadas e sancionadas pela equipa de arbitragem com a exibição de cartão amarelo ou ordem de expulsão, nos termos previstos nas leis do jogo».
35. A decisão disciplinar proferida não merece qualquer reparo, tendo cumprido escrupulosamente a Lei e os Regulamentos aplicáveis, pelo que andou mal o Tribunal a quo ao revogá-la.
36. Admitindo – o que fazemos mais uma vez sem conceder na arguição de incompetência do TAD para julgar este litígio – que o Colégio Arbitral podia conhecer da ação arbitral, a verdade é que a sua pronúncia, no segmento decisório de que se recorre, entrou em matéria reservada, exclusivamente, à Administração, pelo que, também por esta razão, se impõe a sua revogação
37. Por, em sede de arbitragem necessária no TAD, estarem em causa litígios de natureza administrativa, como vimos, os limites previstos no artigo 3.º do CPTA terão de se aplicar também aos Colégios Arbitrais constituídos junto do TAD.
38. No caso em concreto, estamos perante a impugnação de um ato proferido por órgão de federação desportiva que assume natureza pública – é, portanto, um ato materialmente administrativo (como, aliás, refere o Tribunal a quo).
39. Ora, se assim é, tal significa que, no TAD como nos Tribunais Administrativos, um ato administrativo apenas pode ser anulado ou declarado nulo com fundamento na violação da lei e não com fundamento na apreciação do mérito ou da oportunidade de tal ato. Tal não contraria, como é evidente, os poderes plenos de jurisdição conferidos, por lei, ao TAD.
40. O artigo 3.º da Lei do TAD tem por objeto a definição do âmbito dos poderes de cognição do TAD, esclarecendo que pode conhecer, de facto e de direito, de todos os litígios que recaem sob sua alçada. Este artigo reconhece aos árbitros que integram o TAD todos os poderes, incluindo obviamente os de condenação e de injunção, sempre que esteja em causa a legalidade ou a juridicidade da atuação das federações, ligas ou outras entidades desportivas.
41. Existem, naturalmente, limites funcionais impostos pelo princípio da separação de poderes.
42. Precisamente, o TAD apenas poderia alterar a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira – limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF. Não existindo tal violação da lei, o TAD não pode entrar em matéria reservada à Administração, julgando da conveniência ou oportunidade da sua decisão.
43. A decisão arbitral está, por isso, sujeita a limites quanto ao controlo do ato sancionador e no caso deve analisar-se a violação desses limites, relacionada com o controlo do mérito e não da legalidade da decisão do Conselho de Disciplina, por parte do TAD.
44. Por seu turno, é mister, ainda, atender ao disposto no n.º 2 do artigo 185.º do CPTA, onde se encontra plasmado que "[n]os litígios sobre questões de legalidade, os árbitros decidem estritamente segundo o direito constituído, não podendo pronunciar-se sobre a conveniência ou oportunidade da atuação administrativa, nem julgar segundo a equidade".
45. Deflui deste último normativo, quanto aos limites da apreciação pelo TAD do conteúdo do ato administrativo sancionatório resultante do exercício do poder de autoridade do CD em procedimento disciplinar no âmbito de poderes públicos delegados, que não pode estar em causa uma sindicância do mérito, pertinência, ou conveniência da opção sancionatória do titular de poderes públicos delegados, mas sim ajuizar da legalidade do uso desse poder pelo CD para aferir da sua (in)validade.
46. Neste contexto, cumpre recordar que o artigo 165.º do Regulamento Disciplinar da Liga, n.ºs 1 e 3, estatui um regime especial das sanções por acumulação de cartões amarelos, o que torna a operação de aplicação da sanção, em situações como as previstas no n.º 7 do artigo 164.º, como um ato plenamente vinculado.
47. Ora, a decisão do TAD, que se furta – tentando escamotear a sua falta de competência para decidir o litígio – a decidir da correção ou não da exibição do cartão amarelo ao jogador Recorrido (o que ficou evidente no Despacho de aclaração da decisão arbitral), pretende, ao mesmo tempo que mantém o facto originário na ordem jurídica, destruir os efeitos jurídicos automáticos desse mesmo facto: o ato sancionatório plenamente vinculado de sanção disciplinar por acumulação de uma série de amarelos.
48. Todavia, a destruição dos efeitos jurídicos da sanção disciplinar por parte do TAD assenta não num controlo da legalidade da atuação do CD, ou de controlo das margens de discricionariedade do CD quanto à "escolha" dessa sanção e à determinação da sua exata medida, mas no mérito, pertinência, ou conveniência dessa decisão do CD, por, na tese sufragada no Acórdão recorrido, não ter tido em conta na sua decisão uma suposta relevância da apreciação do árbitro no que tange ao seu acerto ou não quanto à tal factualidade que se deixou intocada, e não apreciada, a exibição de cartão amarelo.
49. O TAD não ajuíza verdadeiramente da legalidade do uso do poder disciplinar do CD para aferir da sua (in)validade, mas, antes sim, ajuíza do mérito, pertinência e conveniência dessa decisão.
50. Na verdade, na visão do TAD, a decisão do CD não é ilegal, carece sim de mérito, por, no seu entendimento, o Conselho de Disciplina não ter derrogado as vinculações legais a que estava adstrito no exercício dos seus poderes públicos delegados, impostas pelo n.º 7 do artigo 164.º e dos n.ºs 3 e 5 do artigo 165.º, em nome daquela que o TAD entende ser a superior "opinião" do árbitro, emitida depois do jogo, quanto ao suposto desacerto técnico-disciplinar na exibição de cartão amarelo.
51. Ora, esse juízo sobre a conveniência ou oportunidade da atuação administrativa está vedado ao TAD, que assim ultrapassou os limites da sua função e adentrou na reserva da jurisdição da Administração que se mostra vedada aos tribunais estaduais e também à arbitragem.
52. Em concreto, pois, não existia nenhuma violação manifesta e grosseira da lei que levasse à anulação da decisão por parte do TAD.
53. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, designadamente por feito uma incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. g), n.º 7 do artigo 164.º e dos n.ºs 3 e 5 do artigo 165.º do Regulamento Disciplinar da LPFP e por ter, concretamente, violado o princípio constitucional de separação de poderes, ínsito no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
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Contra-alegou J..., concluindo do seguinte modo:
A. O acórdão recorrido não revoga qualquer decisão tomada pelo árbitro e não altera o desfecho do jogo; o acórdão recorrido anula sanções de multa e suspensão aplicadas em processo sumário pelo Conselho de Disciplina da Recorrente.
B. Uma coisa é a falta cometida pelo jogador no campo e a exibição do cartão amarelo por parte do árbitro dentro das 4 linhas, que produziu os seus efeitos (estritamente desportivos, e disciplinares desportivos), condicionando o comportamento do jogador no que faltava da partida em disputa; e outra é o acto, que não pode deixar de ser qualificado como um acto administrativo, praticado pelo Conselho de Disciplina da Recorrente, que, na sequência da exibição do referido cartão, aplica ao Recorrido as sanções de multa e de suspensão por um jogo.
C. O Tribunal não pode substituir-se às instâncias federativas no juízo de natureza técnica que lhes cabe na aplicação das regras do jogo, mas pode, e deve, controlar o respeito pelos princípios essenciais, designadamente as garantias procedimentais de defesa ou o princípio do inquisitório, que obriga o órgão disciplinar ter em consideração todos os elementos instrutórios e ainda a verificação de erro grosseiro ou manifesto.
D. As questões suscitadas pela ausência de audiência e participação do arguido que resulta da aplicação das referidas normas regulamentares não deixam de ser jurídicas para passarem a ser “estritamente desportivas” apenas porque a sua aplicação ocorreu na sequência de uma conduta (alegadamente) perpetrada durante um jogo.
E. Também a outra dimensão da invalidade da sanção oportunamente suscitada nos autos se mantém no plano da normatividade jurídica, e não técnica, não apenas por via da afectação de direitos fundamentais, da qual resulta necessariamente um imperativo de acesso à tutela jurisdicional, mas porque, em rigor, o que está em causa é, verdadeiramente, um erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que, ao contrário do que refere a entidade Recorrente, o árbitro da partida reconheceu explicitamente não ter analisado o lance em toda a sua extensão no campo e ter cometido um erro resultante dessa análise deficitária ao admoestar o Recorrido com o cartão amarelo, e ainda um erro grosseiro ou manifesto de apreciação dos elementos instrutórios carreados para o procedimento, entre os quais se encontra essa explícita admissão do referido árbitro.
F. O entendimento de que a aplicação de sanções ao Recorrido seria inatacável e incognoscível pelos tribunais seria ofensivo do disposto no artigo 6.º da CEDH (“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial”), uma vez que não ficaria garantido o conhecimento dos factos e a aplicação do Direito por uma instância judicial em matéria que, sublinha-se, contende com direitos fundamentais do Recorrido, e seria, portanto, também inconstitucional por violação dos direitos de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º e 268.º n.º 4 da CRP), deixando o aqui Recorrido impossibilitado de reagir judicialmente contra uma decisão arbitrária, porque consabidamente assente em erro grosseiro ou manifesto e em défice de apreciação de elementos instrutórios, que afecta direitos fundamentais seus, e ademais imposta em violação de princípios procedimentais constitucionalmente consagrados.
G. A interpretação da norma do n.º 6 do artigo 4.º da LTAD no sentido de excluir da jurisdição do TAD a possibilidade de impugnar actos aplicativos de sanções que não só extravasam o próprio jogo como violam direitos fundamentais (quer os procedimentais, quer os que são afectados pela própria natureza da sanção) mostra-se inconstitucional, devendo a referida norma ser interpretada de modo a admitir a impugnabilidade perante o TAD de actos sancionatórios daquele teor, como muito bem fez a decisão recorrida.
H. Como assinala o acórdão recorrido, se se aceita, como a Recorrente aceita, que o sancionamento previsto no artigo 164.º do RDLPFP pressupõe a exibição do cartão pelo árbitro durante o jogo sem erro na aplicação das leis do jogo, numa meritória prevalência da verdade desportiva material, da justiça concreta e do fair play da própria competição, por um lado, e numa avisada e constitucionalmente prudente evitação do automatismo sancionatório, por outro lado, então não há como justificar a imposição de sanções cuja única putativa base factual seria a exibição do cartão com erro, tal como apurado e admitido.
I. O acórdão recorrido não invadiu qualquer esfera reservada à Administração; e a sustentação, empreendida pela Recorrente, da legalidade do acto sancionatório impugnado à luz de uma suposta actuação vinculada (i) desmente que o mesmo tenha por base critérios de oportunidade ou conveniência e (ii) qualifica-o como acto aplicativo de uma sanção automática, e portanto inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência e dos direitos de audiência e defesa do arguido.
J. Nos termos e para os efeitos do artigo 636.º do CPC, o Recorrido requer, a título subsidiário, a ampliação do objecto do recurso para apreciação do fundamento da acção em que decaiu, conforme alínea a) da parte dispositiva do douto acórdão recorrido: Declarar improcedente o presente recurso quanto à alegada invalidade da decisão disciplinar sancionatória recorrida por preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido, ora Demandante.
K. O processo sumário, tal como consagrado nos artigos 214.º e 257.º e seguintes do Regulamento Disciplinar da LPFP, revela-se inconstitucional, como aliás já declarado quer pelo Tribunal Central Administrativo Sul, quer, por três vezes, pelo Tribunal Constitucional, uma vez que viola os direitos de audiência e defesa dos arguidos em processo sancionatório.
L. O Recorrido não teve oportunidade de ser ouvido antes de lhe serem aplicadas as sanções impugnadas – primeiro, porque essa oportunidade não lhe foi conferida; e segundo, porque tendo o Recorrido tentado criar, ele próprio, oportunidade para tanto, nem assim teve sucesso, visto que a decisão sancionatória veio a ser proferida sem que o seu direito a ser ouvido fosse respeitado, violando o seu direito fundamental de audiência e defesa, razão suficiente para ter por adquirida a sua invalidade.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser mantida a douta sentença recorrida e negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, com o que se fará justiça.
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A Federação Portuguesa de Futebol pronunciou-se sobre a matéria relativa à requerida ampliação do objecto de recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente vem, ao abrigo do disposto no artigo 638º, n.º 8 do Código de Processo Civil (ex vi art. 1.º, 140.º, n.º 3 e 144.º, n.º 3, todos do Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos e art. 8.º, n.º 2 da Lei do TAD), pronunciar-se sobre a matéria relativa à requerida ampliação do objeto do recurso apresentada pelo Recorrido.
2. Em sede de contra-alegações, veio o Recorrido requerer a ampliação do objeto de Recurso no que se refere à alegada invalidade da decisão disciplinar sancionatória recorrida por preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido, ora Recorrido.
3. Sucede que, no caso concreto, ficou cabalmente demonstrado que o Recorrido teve a oportunidade de ser ouvido antes do sancionamento em processo sumário, tendo-o sido efetivamente, motivo pelo qual nenhuma invalidade pode ser assacada ao procedimento disciplinar neste caso concreto.
4. É que, independentemente da posição que se possa assumir quanto ao estatuído na norma constante do artigo 214.º do RD da LPFP, a verdade é que, pura e simplesmente, no caso vertente, aquela norma não foi aplicada, porquanto existiu efetiva audiência prévia do Recorrido.
5. Não obstante, e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que a norma em causa – que, repita-se, não teve aplicação no caso concreto - está conforme à Constituição, quando lida no seu todo e não de forma isolada.
6. A preterição do direito de audiência prévia do arguido no âmbito do processo sumário encontra fundamento nas especificidades do direito do desporto e, mais concretamente, na imposição de um normal desenrolar das competições desportivas, de forma a garantir a preservação da verdade desportiva e o equilíbrio da competição, através da aplicação de sanções em tempo célere e com efeito útil, para que as mesmas sejam cumpridas imediatamente ou nos jogos que se seguem.
7. Ademais, em bom rigor, o RD da LPFP consagra uma garantia mais ampla dos direitos do arguido do que aquela que é exigida pelo RJFD pois aquele Regulamento consagra uma real possibilidade defesa, num segundo momento, através da previsão de recurso interno da decisão sumária, quer estejamos perante a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, ou não. Assim, o arguido tem oportunidade de apresentar a sua versão dos factos, ou seja, de efetivar o seu direito a uma defesa e a uma audiência em momento imediatamente posterior (leia-se, em sede de recurso para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos).
8. Ora, não obstante o acima exposto, é manifesto que neste complexo jogo normativo há que ter em conta o disposto no artigo 32.º, nº 10 da CRP, pelo que, a garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios terá que se harmonizar com o direito ao desporto que, tal como aquele, é um direito constitucionalmente consagrado.
9. A delimitação do «conteúdo essencial» dos direitos fundamentais só se coloca, porque estes podem ser objeto de restrições. Na verdade, não existem direitos fundamentais absolutos. Sucede que, as restrições dos direitos fundamentais têm sempre um limite, já que não poderá ser ofendido aquele mínimo para além do qual o direito fundamental deixa de o ser, fica esvaziado enquanto tal.
10. Sendo verdade que o Direito ao Desporto, constitucionalmente consagrado, tem uma aceção bastante ampla, não temos qualquer dúvida que no núcleo essencial deste direito estão incluídos o desporto profissional e, ainda, o direito a organizar e participar em competições desportivas.
11. Ora, caso se garantisse o contraditório pleno no âmbito dos processos sumários - como parece pretender o Recorrido, e tal como consagrado, por exemplo, num processo crime - que, sublinhe-se novamente, pretende sancionar infrações menos graves ou puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos, a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrente não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva do Futebol nas suas diferentes variantes.
12. Ainda, não temos qualquer dúvida que apenas a não consagração desta audiência prévia permite o normal desenrolar das competições, o que compreende a sua vertente sancionatória, enquanto elemento de equilíbrio competitivo, pelo que é absolutamente necessária; é adequada porquanto é a única que permite cumprir com os exigentes prazos impostos para decisão face à continuidade das competições; e é estritamente proporcional ou seja, equilibrada, na medida em que se permite que também de forma célere, o arguido possa ainda decorrer dentro do mesmo órgão disciplinar, procurando rapidamente inverter, se for o caso, a sanção que lhe foi aplicada.
13. Por último, estamos perante, assim o vemos, de mais uma precipitação prática da compaginação entre o estado e as organizações desportivas quanto à resolução de litígios desportivos, neste caso de vertente disciplinar.
14. Uma das características do direito do desporto é a integração das federações desportivas nacionais em organizações desportivas internacionais (no caso, a UEFA e a FIFA) as quais são dotadas de fortes poderes normativos e sancionatórios sobre as federações nacionais, num designado fenómeno de “administração transnacional não estadual” do desporto.
15. Os dois sistemas normativos, o estatal e o das organizações desportivas, através inclusive de Lei da Assembleia da República, construíram um modelo equilibrado, não colocando em crise o essencial dos direitos fundamentais e, do mesmo passo, dando resposta adequada às especificidades do desporto de competição.
16. Em suma, a concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP.
17. Não obstante, esta audiência e defesa será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos.
18. O modelo, assim desenhado, é o único que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita do Tribunal, pura e simplesmente colapsariam.
19. Assim, no que se refere à ampliação do objeto do Recurso, deve manter-se o entendimento da Decisão Recorrida.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,
Deverá o Tribunal Central Administrativo Sul dar provimento ao recurso apresentado pela FPF e revogar o Acórdão Arbitral proferido, com as devidas consequências legais, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA
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O Ministério Público junto deste Tribunal, regularmente notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, não emitiu parecer.
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Sem vistos, atento o carácter urgente dos autos, mas com prévia divulgação do projecto de acórdão pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência.
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II – OBJECTO DO RECURSO

As questões objecto do presente recurso, nos termos em que foram colocadas pela Recorrente, consistem, primeiramente, em aferir se o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto padece de erro de julgamento por se julgar competente para apreciar a impugnação da sanção aplicada ao Demandante.
Concluindo-se pela competência do TAD, cabe aferir do erro de julgamento do TAD concluir que o arguido não cometeu a infracção p. e p. pelo art. 164º do RD LPFP.

Subsidiariamente, em sede de ampliação do âmbito do recurso, importa apreciar e decidir se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao decidir pela não preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido,
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III - FUNDAMENTAÇÃO

De Facto:
O TAD considerou provados os seguintes factos:
1.º - Em 26 de janeiro de 2021, disputou-se o jogo de futebol de 11 da 15.ª jornada da época desportiva 2020-2021 da Liga NOS, com o n.º 11504 (203.01.130), entre a equipa (visitada) da B…, Futebol SAD e a equipa (visitante) da S… – Futebol, SAD.
2.º - O Demandante jogou esse jogo, integrado, com o n.º 6, na equipa da S… – Futebol, SAD, tendo-lhe sido exibido pelo árbitro, F…, aos 79 (setenta e nove) minutos de jogo, um cartão amarelo, motivado por “comportamento antidesportivo”, em concreto porque “agarrou um adversário anulando um ataque prometedor”.
3.º - Com a exibição deste cartão amarelo, o Demandante acumulou a exibição de 5 (cinco) cartões amarelos em jogos diferentes da época desportiva 2020/2021 da Liga NOS.
4.º - Em 27 de janeiro de 2021 (através de comunicação de correio eletrónico das 18H14), a S… – Futebol, SAD e o Demandante enviaram um requerimento à Presidente do Conselho de Disciplina da Demandada em que, face à apreciação sumária em curso neste Conselho das consequências da referida acumulação de cartões amarelos e à falta “de momento regulamentarmente previsto adequado a oferecerem qualquer espécie de pronúncia ou defesa previamente a essa apreciação e à aplicação de eventuais sanções”, alertam para a inconstitucionalidade desta falta e acrescentam que, com esse mesmo requerimento, pretendem usar do direito de audiência e defesa constitucionalmente consagrado e “sanar a potencial inconstitucionalidade adveniente da supressão dessa efetiva audiência”.
5.º - Nesse mesmo requerimento, alega-se que “a correta análise do lance em causa não permite imputar ao Jogador a prática de qualquer infração, ou pelo menos de infração a que corresponda a admoestação com cartão amarelo” – fundamentado esta conclusão nas imagens do jogo e na “análise feita pelos especialistas em arbitragem nos meios de comunicação social portugueses” (dando como exemplo um escrito de D… no Jornal A Bola e uma notícia, confirmada pelo comentador R…, do Jornal Record no sentido de que o próprio árbitro F… “assume erro no cartão amarelo a P... ”) –, para assim se pedir que o Conselho de Disciplina da Demandada procure “apurar junto do árbitro do encontro, Exmo. Sr. F... , qual é efetivamente a sua posição acerca do lance em causa, previamente à aplicação de qualquer tipo de sanção ao Jogador”, acrescentando-se que “só assim se mostrando acautelado e observado o direito de audiência e defesa consagrado no n.º 10 do artigo 32.º da CRP” e propugnando-se “pela não aplicação de qualquer sanção ao Jogador”.
6.º - Este requerimento de 27 de janeiro de 2021, da S... - Futebol, SAD e do Demandante, suscitou a seguinte resposta, subscrita por R..., assistente administrativo do Conselho de Disciplina da Demandada, constante de comunicação de correio eletrónico, das 22H06, do dia 27 de janeiro de 2021: A Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF tomou conhecimento e valorou o requerimento apresentado pelo jogador J… e pela S… SAD. No relatório do jogo consta, a propósito da factualidade em apreço, o seguinte: “culpado de comportamento antidesportivo, agarrou um adversário anulando um ataque prometedor”. Caso necessite dos relatórios do jogo, o pedido deverá ser efetuado nos termos habituais.
7.º - Esta resposta foi objeto da seguinte reação da S... - Futebol, SAD e do Demandante, subscrita pelo atual Mandatário do Demandante, constante de comunicação de correio eletrónico, das 22H09, do dia 27 de janeiro de 2021: Agradeço o e-mail infra e solicito, em conformidade, a disponibilização dos elementos que compõem o processo sumário que resultou na aplicação ao jogador da Sporting SAD João P... da sanção de um jogo de suspensão divulgada há instantes.
8.º - Ainda nesse dia 27 de janeiro de 2021, depois das 21H45, foi divulgado, através do Comunicado Oficial n.º 231 da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, o “mapa de processos sumários 27.01.2021” – decididos, no mesmo dia, por formação restrita da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol –, no qual o Demandante surge sancionado com 1 (um) jogo de suspensão e multa de € 153,00, conforme o artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP e por causa dos 2.º e 3.º factos considerados provados.
9.º - Conforme regulamentarmente previsto (cfr., maxime, artigos 274.º, n.º 2, 38.º, 216.º e 223.º do RDLPFP), a efetiva execução da referida sanção disciplinar de suspensão decidida em processo sumário ocorreria em 1 de fevereiro de 2021, no jogo de futebol de 11 da 16.ª jornada da época desportiva 2020-2021 da Liga NOS, entre a equipa (visitada) da S... - Futebol, SAD e a equipa (visitante) da S… – Futebol, SAD.
10.º - Do sancionamento identificado no 8.º facto considerado provado, recorreu o Demandante, em 28 de janeiro de 2021, para o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, preconizando a revogação do mesmo.
11.º - Em tal recurso começa o Demandante por requerer o reconhecimento do efeito suspensivo do mesmo – essencialmente, à luz do artigo 3.º, n.º 3 (As impugnações administrativas necessárias previstas na legislação existente à data da entrada em vigor do presente decreto-lei têm sempre efeitos suspensivos da eficácia do ato impugnado.), do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, que aprovou o atual Código do Procedimento Administrativo, e em consonância com o artigo 189.º, n.º 1 (As impugnações administrativas necessárias de atos administrativos suspendem os respetivos efeitos.) deste mesmo Código –, para, logo depois, retomar, no essencial, a argumentação identificada no 5.º facto considerado provado, reincidindo no requerimento da audição do testemunho, pelo meio mais expedito, do árbitro F... , no sentido de indagar se, “vistas as imagens”, “avaliou o lance ocorrido ao minuto 79 em toda a sua extensão” e “considera ter exibido corretamente cartão amarelo ao jogador João P... no lance em causa”, pois, não tendo tal diligência “sido desencadeada em momento adequado a impedir a prolação da decisão impugnada, (...) cabe agora, nesta sede recursiva, demonstrar que as sanções aplicadas ao jogador recorrente não podem subsistir, por carecerem de base factual”.
12.º - No mesmo recurso o Demandante não invoca qualquer argumentação inerente à falta de audiência e defesa no processo sumário, como havia feito no requerimento identificado no 4.º facto considerado provado.
13.º - Este recurso do Demandante foi admitido como recurso hierárquico impróprio e autuado como Processo n.º 19-20/21, foi-lhe atribuído efeito meramente devolutivo (à luz dos artigos 293.º e 295.º do RDLPFP), não lhe tendo sido reconhecida natureza urgente mas “outorgado um juízo de almejada celeridade e eficiência procedimental”; dos autos desse Recurso Hierárquico Impróprio n.º 19-20/21 não consta o requerimento identificado no 4.º facto considerado provado.
14.º- No âmbito da tramitação desse Processo n.º 19-20/21, a respetiva Relatora suscitou pronúncias escritas dos elementos da equipa de arbitragem do jogo sub judice, pedindo-se-lhes uma resposta de “sim” ou “não” à pergunta “Avaliou o lance em toda a sua extensão?”, resultando dessas pronúncias, entre o mais, que:
ü O árbitro F... afirmou: Devido ao meu posicionamento no momento da jogada, levou-me a agir disciplinarmente por ter considerado que o jogador do B… se encontrava liberto de opositores e preparado para rematar à baliza quando foi empurrado pelo jogador n.º 6 do S…. Após visionar as imagens da jogada (ângulo oposto ao meu posicionamento) considero que a mesma não cumpre os critérios para ataque prometedor. Deste modo, a ação disciplinar não foi adequada.;
ü O árbitro assistente n.º 1, B…, afirmou: Após visualizar as imagens verifico que a jogada não configura um ataque prometedor e como tal a sanção disciplinar não foi adequada.
15.º - Notificado para se pronunciar sobre estas afirmações, o ora Demandante, em 29 de janeiro de 2021, disse, essencialmente, que o afirmado por F... é o que releva, pois a decisão de mostrar o cartão amarelo “foi imediata e exclusivamente sua”, que o por si afirmado corrobora que “a correta e completa avaliação do lance conduz à conclusão de que o jogador não cometeu infração que justificasse a advertência com exibição de cartão amarelo”, mostrando-se assim “inteiramente ilidida a presunção de veracidade de que goza o relatório do árbitro, provado que está o facto contrário – o jogador não praticou infração que anulasse ataque prometedor, e assim se conclui, portanto, inexistir substrato factual que possa justificar a imposição ao jogador de uma sanção automática decorrente de uma incompleta e errónea avaliação do lance”; e acrescentou o que viria a retomar no requerimento inicial da presente ação arbitral quanto ao facto de o testemunho de F... e da procedência do recurso em nada abalar a field of play doctrine, pois, no essencial, “não se trata aqui de procurar que o jogo em campo continue por uma via decisória, como se o órgão disciplinar pudesse continuar a arbitrar, mas sim de impedir que uma decisão errada tomada em campo, decorrente de uma avaliação comprovadamente incompleta do árbitro principal, projete os seus efeitos para lá desse jogo, resultando no sancionamento (adicional) do jogador de forma puramente automática e sem substrato factual bastante”.
16.º - Antes de emitir aquela sua pronúncia (cfr. 14.º facto considerado provado), o árbitro F... solicitou, por escrito, um esclarecimento sobre o que se pretendia que se especificasse com aquela questão “Avaliou o lance em toda a sua extensão?”; tendo-lhe sido respondido pela Relatora, no que releva, “que aquilo a que se deve responder é se há, ou não, algum momento ou ocorrência do lance em causa que não tenha visto”; ao que F... respondeu “Sim.”, acrescentado logo depois as afirmações identificadas no 14.º facto considerado provado.
17.º - Depois da pronúncia do Demandante identificada no 15.º facto considerado provado, suscitou a Relatora uma pronúncia complementar do árbitro F... , pedindo resposta de “sim” ou “não”, no sentido de “vir aos autos dizer se confirma que sim é a resposta à primeira pergunta formulada, ou seja «Avaliou o lance em toda a sua extensão?»”; ao que F... respondeu “Sim. Já respondi a essa questão através do email enviado ontem às 22h53m.”, referindo-se à resposta identificada na última parte do 16.º facto considerado provado.
18.º - Notificado desta pronúncia complementar de F... , o ora Demandante, ainda em 29 de janeiro de 2021, disse, essencialmente, no que releva:
Salvo o devido respeito, esta troca de perguntas e respostas roça o caricato e vem acentuar que as palavras eleitas pelo Conselho de Disciplina como questão sacramental (Avaliou o lance em toda a sua extensão?) para delimitar a sua esfera de atuação, no respeito pelo que considera ser a interpretação adequada da “field of play doctrine” (tal como espelhada nas suas decisões mais recentes nessa matéria), não servem esse objetivo. E não o servem desde logo porque, como a situação em apreço coloca em evidência, é absolutamente inconciliável a afirmação de um árbitro que diz, por um lado, ter avaliado o lance em toda a sua extensão, com a de que considera ter errado na apreciação que fez. Se tivesse avaliado em toda a sua extensão, porque haveria de ter tomado uma decisão errada? E porque altera o resultado dessa avaliação a posteriori? Não se trata, como está bom de ver, de um mudar de ideias resultante de uma análise amadurecida pelo tempo. Trata-se sim, muito claramente, do resultado da avaliação do lance, agora sim, em toda a sua extensão (porque, como árbitro atento e diligente, visionou posteriormente imagens televisivas), o que lhe permite constatar que, embora pudesse pensar, no momento, estar a avaliar o lance de forma inteira, completa e correta e a tomar a decisão acertada, na verdade, afinal, só agora constata que não foi o caso. E isto pela razão, epistemologicamente óbvia, de que só nos confrontamos com o que desconhecemos no momento em que o passamos a conhecer! (...) O que se passa (...) é que após o lance o Sr. Árbitro, como qualquer espectador, concluiu não o ter apreciado na sua plenitude, e por isso mesmo ter tomado uma decisão errada, que seguramente não teria tomado caso tivesse avaliado o lance em toda a sua extensão – o que não sucedeu. É isto que resulta claramente das respostas oferecidas, de forma pronta e cuidada, pelo Sr. Árbitro, que teve a humildade de reconhecer que no momento considerou que o jogador do B… se encontrava liberto de opositores e preparado para rematar à baliza, o que depois veio a constatar não ser o caso, considerando antes que o lance não cumpre os critérios para ataque prometedor e que, portanto, a ação disciplinar não foi adequada. Daqui resulta, com toda a lógica e clarividência e por mais jogos de palavras que se queira fazer em sentido distinto, que o Sr. Árbitro não avaliou o lance em toda a sua extensão – porque se o tivesse feito, como o próprio explica, teria decidido diferentemente.
19.º - Também em 29 de janeiro de 2021, foi proferido (e notificado ao Demandante) o Acórdão do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, no Recurso Hierárquico Impróprio n.º 19-20/21, julgando improcedente o recurso e, consequentemente, confirmando a decisão disciplinar sumária recorrida de que resultou o sancionamento identificado no 8.º facto considerado provado.
20.º - Das indicações sobre as possibilidades de recurso desse mesmo Acórdão, notificadas juntamente com o mesmo, resulta, em abstrato, que tal recurso pode ocorrer para o Conselho de Justiça ou para o TAD, consoante, respetivamente, a decisão disciplinar seja relativa, ou não, “a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”.
21.º - Por decisão de 1 de fevereiro de 2021 do Excelentíssimo Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, proferida em sede de procedimento cautelar dependente da presente ação principal, foi suspensa “a eficácia da decisão tomada em 27-1-2021, pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – e posteriormente confirmada pelo Pleno do mesmo Conselho de Disciplina em 29-1-2021 –, que impôs ao requerente a sanção disciplinar de 1 (um) jogo de suspensão e, acessoriamente, a sanção de multa no montante de € 153,00”.
22.º - Conforme afirmação do próprio F... , o árbitro do jogo sub judice (cfr. 14.º facto considerado provado), a sua exibição ao Demandante do cartão amarelo identificado no 2.º facto considerado provado não foi, segundo as normas técnicas e disciplinares da própria competição desportiva, uma atuação adequada.
23.º - Conforme o Comunicado Oficial n.º 344, de 11 de fevereiro de 2021, da Direção da Demandada, e o Comunicado Oficial n.º 345, também de 11 de fevereiro de 2021, da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Demandada, a partir de 15 de fevereiro de 2021, inicialmente apenas no âmbito dos processos decididos por aquela Secção Profissional, passou a existir, considerando o RDLPFP, “um momento prévio de audiência dos clubes e agentes desportivos no âmbito do sancionamento através de processo sumário”.
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De Direito
No âmbito do processo nº 19-20/21, o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol proferiu acórdão, datado de 29.01.2021, negando provimento ao recurso hierárquico (impróprio) que o ora Recorrido J… interpusera da decisão disciplinar sumária, proferida pela formação restrita daquela secção, a 27.01.2021, que o sancionou com suspensão de 1 (um) jogo e multa de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros), à luz do disposto no artigo 164.º, n.º 7, do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal (RDLPFP).
A decisão disciplinar fundamenta-se na circunstância de o ora Recorrido ter sido sancionado com um cartão amarelo no jogo de futebol de 11 da 15.ª jornada da época 2020-2021 da Liga NOS, com o n.º 11504 (203.01.130), disputado em 26 de janeiro de 2021, entre a equipa da B…, Futebol SAD e a equipa da S… – Futebol, SAD, sendo que, com a exibição deste cartão amarelo, acumulou a exibição de cinco cartões amarelos em jogos diferentes da época desportiva 2020/2021 da Liga NOS.
Inconformado com a decisão proferida pelo Conselho Disciplinar, o ora Recorrido apresentou pedido de arbitragem junto do TAD, apelidando-a de ilegal, essencialmente por duas ordens de razões:
- primeiramente, por razões procedimentais, por alegadamente não ter sido ouvido em momento prévio ao seu sancionamento em processo sumário;
- de seguida, por razões de substância, por alegadamente não ter praticado a infracção pela qual foi sancionado.
A Demandada, ora Recorrente, contestou a pretensão do Recorrente, pugnando pela sua improcedência, sendo que, quanto à segunda - prática da infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP -, começou por suscitar a falta de jurisdição do TAD para conhecer da mesma.
Por acórdão de 16.03.2021, o TAD:
a) Declarou improcedente “o recurso quanto à alegada invalidade da decisão disciplinar sancionatória recorrida por preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido, ora Demandante; ficando assim consumida a apreciação, qua tale, da exceção perentória implicitamente invocada nesta matéria pela Demandada”;
b) Declarou improcedente “a exceção dilatória de ausência de jurisdição do TAD, deduzida pela Demandada à luz da norma do n.º 6 do artigo 4.º da Lei do TAD, para apreciar e decidir a questão de mérito do cometimento, in casu, da infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP e, assim mesmo, da validade da decisão disciplinar sancionatória recorrida”;
c) Declarou “procedente o presente recurso quanto ao invocado não cometimento pelo Demandante da infração disciplinar prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, por ausência na concreta situação sub judice do pressuposto factual objetivo típico de que depende tal cometimento, anulando, consequentemente, a decisão disciplinar sancionatória recorrida, com absolvição do Demandante da infração por que foi disciplinarmente sancionado com suspensão de 1 (um) jogo e multa de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros)”.
A ora Recorrente não se conforma com a decisão constante das alíneas b) e c).
Naturalmente, importa começar por conhecer da alegada “ausência de jurisdição do TAD” para apreciar e decidir a questão de mérito do cometimento, in casu, da infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP.
Neste tocante, o TAD firmou entendimento assim sumariado:
“VIII – Estatui o artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD: É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
IX – Com esta formulação do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD procurou-se ultrapassar as dificuldades inerentes às questões estritamente desportivas, tendo-se abandonado o critério das questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas competições; passando a relevar a conexão normativa com a prática da própria competição desportiva, as legis artis próprias de uma determinada modalidade desportiva, a questão do jogo.
X – No artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD relevam, necessariamente, os seguintes quatro momentos: (i) temos de estar perante questões emergentes de normas técnicas e disciplinares, independentemente do acolhimento formal de tais normas; vale, portanto, a natureza, a essência, a substância das mesmas, na indicação do seu conteúdo técnico e disciplinar; (ii) tais normas têm de respeitar à prática da própria competição desportiva; no que pode não caber apenas o jogo em sentido estrito, mas também a própria competição em que o primeiro se integra; decisivo é que se trate de normas técnicas e disciplinares respeitantes à prática efetiva, seja do jogo, seja da competição; (iii) temos de estar perante normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes a essa prática; sendo este advérbio de modo absolutamente determinante para assinalar a exigência de uma postura interpretativa muito criteriosa, senão mesmo restritiva, na determinação/concretização, em cada caso, das questões que podem integrar a previsão do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD; não basta, pois, uma relação indireta e/ou mediata das normas técnicas e disciplinares em causa com a prática efetiva do jogo ou da competição; (iv) desta previsão do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD devem excluir-se, pela sua própria natureza, as questões que contendam com direitos fundamentais, direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas jurídicas (para além dos estritamente relacionados com a prática desportiva), como as infrações à ética desportiva (maxime, dopagem, corrupção, violência, racismo, xenofobia e intolerância).
XI – Se as chamadas sanções automáticas – como a sub judice, constante do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP – têm origem em factos ocorridos durante os jogos e logo apreciados e decididos pelos próprios árbitros, elas estão para além de tais factos e só com estes se relacionam/conexionam de modo mediato (por emergirem de regulamentação específica) e indireto (por implicarem um procedimento administrativo-sancionatório particular); independentemente até da afetação ou não de direitos fundamentais (maxime ao efetivo exercício da profissão livremente escolhida) – pois uma tal afetação advém de uma compressão tendencialmente compatível, em termos constitucionais, com a imposição de uma sanção de suspensão –, releva sobretudo a natureza do sancionamento em causa e, neste ponto, não podem restar dúvidas que tais sanções automáticas assentam numa base normativa que está para além das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
XII – Quando o árbitro exibe um cartão a um jogador durante um jogo, fá-lo em função da atuação desse jogador nesse mesmo jogo, face às normas técnicas e disciplinares que regem diretamente este, sem necessariamente curar de atentar em quais as consequências dessa exibição segundo as demais regras disciplinares aplicáveis à competição em causa mas que estão para além das regras do jogo em que a prática efetiva da competição se traduz.
XIII – Mas dizer isto não basta, pois uma coisa é reconhecer-se que as normas regulamentares que preveem tais sanções automáticas estão para além das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, outra coisa – bastante diferente – é saber se a concreta “resolução de questões” (pois é isto que releva para o artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD) inerentes a uma concreta sanção automática de (como no caso) suspensão e multa implica ou não a apreciação da concreta aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
XIV – Não pode o TAD tecer juízos decisórios sobre a correção ou não da exibição do cartão amarelo ora em causa, pois – disso não existem quaisquer dúvidas – a resolução da questão inerente à correção ou não de tal exibição emerge exclusiva, direta e imediatamente da aplicação das normas técnicas e disciplinares respeitantes à prática da própria competição desportiva.
XV – Só que, in casu, o thema decidendum trazido à ponderação prudencial do Colégio Arbitral inclui uma outra questão que em nada se confunde com esse tipo de juízos; essa outra questão constitui a verdadeira e fulcral questão de fundo a apreciar e decidir na presente ação arbitral, qual seja a de saber da relevância, enquanto dado de facto assente, das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão de mérito, que é uma questão de Direito, sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP; ou, dito de outro modo, sobre se aquele concreto cartão amarelo exibido durante o jogo, porque comprovadamente exibido com erro, como pelo próprio árbitro formalmente assumido, permite integrar a hipótese, a previsão, o tatbestand, a facti species, daquela norma regulamentar.
XVI – Ora, a resolução desta concreta questão fulcral do mérito da presente ação arbitral nada tem a ver com qualquer apreciação e decisão sobre a correção da exibição do cartão amarelo durante o jogo; tendo, isso sim, a ver com a apreciação e decisão da relevância jurídica do juízo do próprio árbitro sobre a correção dessa mesma exibição, feito em momento posterior a esse jogo e tomado em procedimento formalizado, para a verificação do preenchimento dos elementos do tipo sancionatório constante do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP.
XVII – Não se trata, pois, de apreciar e julgar a correção da exibição do cartão amarelo segundo as normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, nem, muito menos, de retirar esse cartão; trata-se, isso sim, de apreciar e julgar a relevância da apreciação e julgamento que comprovadamente o próprio árbitro fez, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, sobre a correção dessa exibição, para considerar, ou não, preenchidos os elementos do tipo sancionatório constante do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, uma norma que é independente e está para além das regras do jogo em que a prática efetiva da competição em causa se traduz.
XVIII – A resolução desta questão – que é a questão sub judice – não implica a utilização de norma técnica, numa decisão pericial; implica, isso sim, a interpretação e aplicação de norma jurídica, numa decisão materialmente administrativa; a resolução desta questão – que é a questão sub judice – não corresponde à resolução de uma questão estritamente desportiva, não representa a resolução de uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, não estando, portanto, excluída da jurisdição do TAD.
Sobre o referido acórdão recaiu um pedido de esclarecimento, formulado pela ora Recorrente, no qual requer “que o Colégio Arbitral se digne esclarecer se o Acórdão proferido determinou, ou não, a anulação do cartão amarelo exibido ao Demandante no jogo da 15ª jornada da época 2020-2021 da Liga NOS, com o nº 11504 (203.01.130), disputado em 26 de janeiro de 2021, entre a equipa da B…, Futebol SAD e a equipa da S… – Futebol, SAD”.
Para o que aqui releva, é esclarecido pelo TAD que:
- é matéria arredada das competências jurisdicionais do TAD na presente ação arbitral – decidir sobre a aplicação que ela própria deve fazer do artigo 164º do RDLPFP em função da Decisão Arbitral proferida na presente ação;
- o Colégio Arbitral anulou – e só esta podia anular – a decisão sancionatória recorrida, considerando não cometida pelo Demandante a infração disciplinar prevista e punida no artigo 164º, n.º 7, do RDLPFP;
- o Colégio Arbitral determinou a anulação da decisão sancionatória recorrida, exclusivamente, porque entendeu que tal decisão sancionatória errou na apreciação do teor da pronúncia do árbitro, pronúncia essa que o próprio Conselho de Disciplina da Demandada promoveu em sede de Recurso Hierárquico Impróprio;
- não houve – nem podia haver – qualquer anulação do cartão amarelo exibido pelo árbitro ao Demandante;
- não podendo, exclusivamente para efeitos da norma sancionatória do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, considerar-se eficaz o quinto cartão amarelo exibido ao Demandante na presente época desportiva, resta muito claro que não pode, enquanto subsistirem apenas os demais quatro cartões amarelos já anteriormente exibidos (e totalmente arredados do objeto da presente ação), ter-se por verificado o elemento factual objetivo típico determinante da infração prevista e punida nessa mesma norma regulamentar sancionatória.
A Recorrente imputa ao referido acórdão erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 4º, nº 6 da Lei do TAD.
Vejamos.
A Lei nº 74/2013 de 06.09 criou o Tribunal Arbitral de Desporto (TAD) - com competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto – e aprovou a respectiva lei, entretanto alterada pela Lei nº 33/2014 de 16.06.
O artigo 4º da Lei do TAD regula a arbitragem necessária e os artigos 6º e 7º a arbitragem voluntária.
Para o caso, tem interesse o artigo 4º, na redacção dada pela Lei nº 33/2014 de 16.06, que estabelece que:
“1 - Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.
2 - Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3 - O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso de:
a) Deliberações do órgão de disciplina ou decisões do órgão de justiça das federações desportivas, neste último caso quando proferidas em recurso de deliberações de outro órgão federativo que não o órgão de disciplina;
b) Decisões finais de órgãos de ligas profissionais e de outras entidades desportivas.
4 - Com exceção dos processos disciplinares a que se refere o artigo 59.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, compete ainda ao TAD conhecer dos litígios referidos no n.º 1 sempre que a decisão do órgão de disciplina ou de justiça das federações desportivas ou a decisão final de liga profissional ou de outra entidade desportiva não seja proferida no prazo de 45 dias ou, com fundamento na complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respetivo processo.
5 - Nos casos previstos no número anterior, o prazo para a apresentação pela parte interessada do requerimento de avocação de competência junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final do prazo referido no número anterior, devendo este requerimento obedecer à forma prevista para o requerimento inicial.
6 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
Como se lê no acórdão em crise “Temos assim, no âmbito desta arbitragem necessária, e no que respeita aos recursos das deliberações dos órgãos de disciplina das federações desportivas, erigido um sistema de delimitação recíproca de competências necessárias e exclusivas entre o TAD e os conselhos de justiça (ou equivalentes) das federações desportivas, que assim pode enunciar-se:
a) As deliberações dos órgãos de disciplina das federações desportivas só são recorríveis para o TAD, se não estiverem em causa “questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”; e, naturalmente, como se viu já, sem prejuízo da impugnação administrativa necessária que efetivamente se imponha a montante do recurso para o TAD;
b) As deliberações dos órgãos de disciplina das federações desportivas só são recorríveis para os conselhos de justiça (ou equivalentes), se estiverem em causa “questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”; (…)”
Em conformidade, dispõe o artigo 287.º do RDLPFP, sob a epígrafe “Formas de recurso”, que:“ 1 – As decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, são impugnáveis apenas por via de recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto.
2 – Sem embargo do disposto no número anterior do presente artigo, as decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, respeitantes a matérias estritamente desportivas são apenas impugnáveis por via de recurso para o Conselho de Justiça. (…)”
Da mesma forma, dispõe o n.º 1 do artigo 44.º do regime jurídico das federações desportivas, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23.06, que “Para além de outras competências que lhe sejam atribuídas pelos estatutos, cabe ao conselho de justiça conhecer dos recursos das decisões disciplinares relativas a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.”
Assim, o TAD é incompetente para conhecer do recurso de decisões que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, sendo as mesmas recorríveis para o órgão de justiça das respectivas federações desportivas.
Donde, o presente litígio centra-se na interpretação a dar ao disposto no nº 6 do artigo 4º da Lei do TAD e em saber se o caso em apreço se subsume ou não na sua previsão.
O que são, pois, “questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”?
Para dar resposta a esta pergunta, mostra-se útil chamar à colação os diplomas que anteriormente regularam esta temática.
A antiga Lei de Bases do Sistema Desportivo – a Lei n.º 1/90, de 13.01 -, dispõe no nº 2 do artigo 25º que “As decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar não são impugnáveis nem suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva.”
Aquela lei foi revogada pela Lei de Bases do Desporto – a Lei nº 30/2004 de 20.07- que, no seu artigo 47º, epigrafado “Questões estritamente desportivas”, preceitua que “Não são susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas.” (nº 1). E esclarece que são questões estritamente desportivas “aquelas que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, nomeadamente as infracções disciplinares cometidas no decurso da competição, enquanto questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas.” (nº 2); sendo que nestas não “estão compreendidas as decisões e deliberações disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção.”
Por sua vez, a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto – a Lei n.º 5/2007, de 16.01 -, estabelece, no seu artigo 18º (revogado pela alínea b) do artigo 4.º da Lei n.º 74/2013, de 06.09), o seguinte:
“(…)
2 – Não são suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas.
3 – São questões estritamente desportivas as que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar, enquanto questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas competições.
4 – Para efeitos do disposto no número anterior, as decisões e deliberações disciplinares relativas a infrações à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da xenofobia não são matérias estritamente desportivas.
5 – Os litígios relativos a questões estritamente desportivas podem ser resolvidos por recurso à arbitragem ou mediação, dependendo de prévia existência de compromisso arbitral escrito ou sujeição a disposição estatutária ou regulamentar das associações desportivas.
A expressão “questões estritamente desportivas” que mais não é do que um conceito indeterminado, está amplamente tratada na jurisprudência e na doutrina.
António Bernardino Peixoto Madureira e Luís César Rodrigues Teixeira consideram como questões estritamente desportivas “as questões de facto e de direito emergentes das leis do jogo, ou seja, aquelas questões que tenham surgido durante a prática de uma competição e que, portanto, estejam relacionadas com o seu desenvolvimento, quer no seu aspecto técnico quer no aspecto disciplinar. Questões de facto, serão, por exemplo, aquelas que têm a ver com o apuramento de que se determinado jogador rasteirou ou não outro, se determinada bola ultrapassou ou não a linha da baliza, se determinado jogador agrediu ou não outro, etc. Questões em relação às quais o árbitro é soberano (…). Questões de direito são as que contendem com a aplicação das leis do jogo aos factos apurados. São questões relacionadas com os chamados erros de arbitragem …”. - in Futebol - Guia Jurídico, Almedina, 2001, fls. 1602.
Os nossos Tribunais foram já, em diversas situações e à luz da legislação acima referida, chamados a pronunciar-se sobre o que se deve entender por “questões estritamente desportivas”.
Decidiu o Supremo Tribunal Administrativo que:
- “Não constituem decisões sobre questões estritamente desportivas os actos de órgãos de uma federação desportiva, a que foi atribuído o estatuto de utilidade pública, pelos quais foi decidido o cancelamento de licença desportiva atribuída a determinado desportista, por alegada falta de requisitos para tal atribuição e determinada a respectiva suspensão preventiva, por incumprimento da ordem de entrega daquela licença e participação em competição sem autorização da autoridade desportiva nacional.” - em acórdão de 07.06.2006, proferido no âmbito do processo nº 262/06, disponível para consulta em www.dgsi.pt, assim como os demais arestos infra citados;
- “Não é uma questão estritamente desportiva a deliberação que, nos termos do art. 38º, 1, d) do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol, reordenou a classificação final de um campeonato de futebol, na sequência da desclassificação de um outro clube, designadamente no que respeita à questão de saber se tal preceito viola ou não o 30º, n.º 4 da Constituição e 65º do Código Penal, isto é, se tal preceito viola o princípio, segundo o qual só pode haver pena se houver ilicitude e culpa.” - acórdão de 10.09.2008 (proc. nº 120/08);
- “não eram estritamente desportivas as questões relacionadas com a sanção disciplinar de um praticante por atitudes incorrectas ou injuriosas assumidas nos serviços de atendimento da respectiva federação ou com o acerto de se condicionar, ao depósito de certa caução, a admissibilidade do recurso que ele deduziu da decisão sancionatória para uma outra instância da justiça desportiva.” - acórdão de 15.10.2009 (proc. 527/09);
- “É questão estritamente desportiva a questão de saber se um jogador de "golf" violou as disposições sobre a comunicação do seu "handicap" nas competições em que participou, e donde resultou a aplicação de uma pena disciplinar de suspensão de seis meses.” - acórdão de 21.09.2010 (proc. nº 0295/10).
O Tribunal Central Administrativo Sul decidiu que:
- “II - O acto de cancelamento de uma licença desportiva e o acto de suspensão preventiva de um desportista, são materialmente administrativos, praticados ao abrigo de normas de direito público administrativo, pelo que a apreciação da respectiva validade cabe no âmbito da jurisdição administrativa. III - Só as infracções disciplinares cometidas no decurso da competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, ou seja, as questões estritamente desportivas - desde que não integradas na previsão do n.º 3 do art.º 47º da Lei de Bases do Desporto -, estão sujeitas ao controlo privativo das instâncias competentes na ordem desportiva.” - acórdão de 26.01.2006 (proc. nº 1270/05);
- “Compete aos tribunais administrativos, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1, 2, 3 e 4, do artigo 18º da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16.01) a apreciação do pedido de suspensão da eficácia do acto, praticado pelo Conselho de Jurisdição da Federação Portuguesa de Rugby, que puniu disciplinarmente um treinador daquela modalidade desportiva por uma agressão a um árbitro, no decorrer de um jogo.” - acórdão de 16.10.2008 (proc. nº 4293/08);
- “II - São apenas as decisões federativas que correspondem à actuação no âmbito desportivo ou seja, as decisões sobre questões desportivas relativas às “leis do jogo”, incluindo a punição das infracções ao que nestas se estabelece que são inimpugnáveis, dado que, em rigor, elas não aplicam regras jurídicas mas regras técnicas. III - Estando em causa uma sanção disciplinar que puniu um comportamento ofensivo do recorrente na delegação Norte da FPAK não se está perante uma infracção às “leis do jogo” nem, consequentemente, perante uma questão estritamente desportiva.” - acórdão de 22.01.2009 (proc. nº 4036/08);
- “A desclassificação de um par por infracção da etiqueta do jogo, é uma questão estritamente desportiva. Tem a ver com as regras próprias desse jogo, não tem a ver com decisões materialmente administrativas.” - acórdão de 03.11.2011 (proc. nº 534/07);
- “VII. Estando em causa apurar se o recurso aos tribunais administrativos como forma de impugnar o ato de recusa de inscrição de jogador profissional de futebol por parte de órgão desportivo constitui uma infração, sancionada com a descida de divisão do clube, exige que se conheça das condições de acesso à justiça e aos tribunais para a composição dos diferendos de natureza desportiva, assim como os limites da reserva de jurisdição das instâncias jurisdicionais desportivas, importando o seu enquadramento à luz da noção de questão estritamente desportiva.
VIII. A Lei de Bases do Desporto prevê, por um lado, a regra geral de impugnabilidade, nos termos gerais de direito, dos atos administrativos praticados pelos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício de poderes públicos (artigo 46.º), mas, por outro, uma exceção à regra da impugnabilidade, por não serem suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes da ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas (n.º 1 do artigo 47.º).
IX. Na delimitação do enquadramento normativo aplicável ao litígio importa atender ao direito de fonte legal, mas também ao direito privativo das instâncias desportivas, enquanto conjunto de normas emanadas e aplicáveis no universo das organizações desportivas.
X. Atenta a multiplicidade de fontes de direito aplicável, de fonte legal, mas também regulamentar desportiva, e considerando a concessão de poderes públicos às federações desportivas através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, é de recusar a submissão da atuação dos órgãos federativos a um quadro normativo exclusivo de direito privado, baseado na sua natureza jurídica de associação privada.
XI. Quando no exercício dos poderes públicos, a atuação dos órgãos federativos traduz-se na prática de atos administrativos ou na aprovação de regulamentos administrativos, cuja impugnação está atribuída constitucionalmente à jurisdição administrativa, cabendo a competência material aos tribunais administrativos, segundo o n.º 3 do artigo 212.º e o n.º 4 do artigo 268.º, ambos da Constituição, e os artigos 1.º e 4.º do ETAF.
XII. O facto que está na origem da aplicação da sanção disciplinar desportiva, traduzido na apresentação pelo clube de um processo cautelar junto dos tribunais administrativos, contra o ato de recusa de inscrição e registo de um jogador como profissional de futebol ao serviço de um clube, é um ato que se situa antes ou a montante da competição, tendo como consequência ou por efeito a impossibilidade do jogador participar na competição desportiva.
XIII. Não se pode falar em atuação que decorra ou imane da qualidade de jogador ou sequer da sua participação em competição desportiva, pois foi vedado o acesso do jogador à própria participação na competição, não sendo possível subsumir a atuação do clube desportivo em recorrer aos tribunais, à violação das regras do jogo ou próprias da competição desportiva.
XIV. Não existindo infração à ética desportiva, decorrente de atos de dopagem, violência ou corrupção, nem estando em causa uma questão técnica ou que possa ser considerada uma decorrência da participação na competição, não está integrada no conceito de questão estritamente desportiva.
XV. Para efeitos de determinação do conceito de questão estritamente desportiva não releva a aplicação de qualquer regulamento desportivo, mas apenas os regulamentos relativos à organização das provas e da competição.
XVI. Deve considerar-se questões estritamente desportivas as questões de facto e de direito emergentes das leis do jogo, que são aquelas que surjam no decurso da prova ou durante a competição, estando, por isso, relacionadas com o seu desenvolvimento, quer do ponto de vista técnico, quer disciplinar, delas se excluindo as ofensas constitucionais e legais destinadas a proteger valores e interesses estranhos ao fenómeno desportivo, como no caso da afetação de direitos indisponíveis ou de direitos, liberdades e garantias.
XVII. Excluído o enquadramento da situação factual no conceito de questão estritamente desportiva, está afastada a reserva da jurisdição desportiva, vigorando a regra geral de recurso às instâncias jurisdicionais estaduais, fora das instâncias desportivas, para dirimir o litígio gerado pelo ato de recusa de inscrição de um jogador de futebol profissional, pois salvo no tocante às questões configuradas como estritamente desportivas, não decorre da lei ou dos regulamentos desportivos um monopólio da auto-justiça ou da justiça privada desportiva.
XVIII. O ordenamento jurídico consagra um sistema de justiça desportiva híbrido ou mitigado, que tanto prevê a jurisdição das instâncias próprias desportivas, como admite o recurso aos tribunais estaduais, consoante a natureza do litígio.em acórdão de 06.12.2017, no âmbito do proc. nº 2141/06;
- “Os tribunais administrativos são competentes para conhecer de pedido de impugnação da decisão da Associação de Futebol de Angra do Heroísmo homologatória da classificação final da Liga Meo Açores/Campeonato de Futebol dos Açores, época 2013/2014, no qual é atribuído ao ora Recorrente o 4.º lugar, motivada na interpretação feita das disposições do Regulamento Técnico do Campeonato de Futebol dos Açores para a época 2013/2014, concretamente das normas contidas nos seus pontos 50.02, 50.04 e 50.05 respeitantes à modulação do campeonato em duas fases, consequente graduação e regras de desempate.” - acórdão de 24.05.2018 (proc. nº 192/14).
Também o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre questões semelhantes, nos seguintes termos:
- no acórdão n.º 730/95, II Série do DR de 6-2-1996, entendeu-se ser de natureza pública e admitindo recurso para os tribunais administrativos a questão da inconstitucionalidade de um preceito do regulamento disciplinar de uma federação desportiva sobre violência ou distúrbios praticados em recinto desportivo;
- no acórdão 473/98, II Série do DR de 23-11-98, negou provimento ao recurso de um acórdão do Conselho de Arbitragem (que mandara depositar preparo para despesas) com o fundamento de não se terem esgotado os meios de recurso nos termos gerais de direito, pois de tal decisão cabia recurso para os tribunais.
Atentos estes ensinamentos, retornemos ao caso em apreço, tendo presente que, apesar de a Lei do TAD usar expressão formalmente distinta, ela tem o mesmo alcance, com a pretensão de o seu significado ser mais cristalino.
O Demandante, ora Recorrido, impugnou uma sanção de suspensão automática por um jogo, aplicada em virtude da exibição de um cartão amarelo, que constituía o quinto na mesma época desportiva.
Em causa está o artigo 164º do RDLPFP, epigrafado “cartões amarelos e vermelhos” e que, no nº 7 estabelece que “O jogador que, na mesma época desportiva e em jogos diferentes, acumular uma série de cartões amarelos é punido com a sanção de suspensão por um jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de valor correspondente a 1,5 UC assim que atingir o quinto, o nono, o 12.º e o 14.º cartões amarelos dessa época desportiva.”
O artigo 165º do RDLPFP, que estabelece o regime especial das sanções por acumulação de cartões amarelos, preceitua que:
1. As sanções de multa e de suspensão decorrentes da aplicação do disposto no artigo anterior serão aplicadas automaticamente, e sem dependência de qualquer formalidade, mediante o preenchimento dos pressupostos aí previstos, sem prejuízo de subsequente deliberação confirmativa da Secção Disciplinar.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, o árbitro deverá, no final do jogo, dar sempre conhecimento dos jogadores advertidos e expulsos aos delegados dos respetivos clubes, que rubricarão a ficha técnica.
3. As sanções referidas no n.º 1 não podem ser modificadas por efeito de aplicação de circunstâncias agravantes ou atenuantes, nem a aplicação dessas sanções pode servir para o preenchimento de circunstância agravante ou do conceito de reincidência para efeitos de determinação das sanções aplicáveis em virtude da prática de outras infrações disciplinares.
4. A suspensão decorrente da acumulação de cartões amarelos, nos termos previstos no artigo anterior, é cumprida exclusivamente nos jogos das competições I Liga e II Liga, na época desportiva em curso.
5. Os cartões amarelos exibidos em jogos da Taça de Portugal, Supertaça e Taça da Liga não são contabilizados para o efeito a que se alude no número anterior.
Reagiu o Demandante contra a aplicação da sanção, arguindo, entre o mais, a inexistência de qualquer infracção disciplinar. Afirma que não cometeu qualquer facto passível de ser sancionado com a amostragem de cartão amarelo e, por conseguinte, “não se verifica um dos elementos objetivos do tipo disciplinar imputado, o que determina necessariamente, a impossibilidade de qualquer agente desportivo ser sancionado nos termos da concreta noma que se tiver por não preenchida”.
O TAD julgou-se competente para conhecer do litígio fazendo corresponder o thema decidendum não à correcção ou não da exibição do cartão amarelo - que afirmou não haver dúvidas de que emerge exclusiva, directa e imediatamente da aplicação das normas técnicas e disciplinares respeitantes à prática da própria competição desportiva – mas à questão de saber da relevância, enquanto dado de facto assente, das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão de mérito, que é uma questão de direito, sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP.
Não podemos acompanhar o entendimento do TAD, antes aderindo àquela que foi a posição exarada no voto de vencido.
O que vem invocado pelo Demandante, ora Recorrido, é que o comportamento alegadamente subjacente à exibição do cartão amarelo não ocorreu e que, nessa medida, não pode manter-se a sanção aplicada de forma automática, em decorrência de cinco cartões amarelos.
E para sustentar a sua alegação (de que tal comportamento não ocorreu), o Demandante apela à analise das imagens do lance em questão, o que reforça com a afirmação de que a equipa de arbitragem acaba por reconhecer que (em campo) não fez uma correcta análise do lance.
Assim, na situação sub judice, o litigio submetido ao TAD reside em saber se, no jogo de futebol em causa, a conduta do jogador – o ora Recorrido – era, à luz das leis do jogo aplicáveis, merecedora de cartão amarelo.
O que o TAD apelida de thema decidendum é, quanto a nós, apenas um argumento, uma razão para que, em sede de processo disciplinar, se conclua pela inadequação do cartão amarelo com vista ao não preenchimento da previsão do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP.
Ao consagrar o disposto no art. 4º, nº 6 da Lei do TAD, o legislador quis excluir da jurisdição deste Tribunal não (só) a decisão técnica/disciplinar do árbitro durante o tempo do jogo, porquanto esta é-lhe naturalmente alheia, mas (também) as questões que daí possam emergir, como seja no plano disciplinar.
No caso, é inegável que o núcleo fáctico essencial da situação jurídica que o Demandante pretende fazer valer em tribunal assenta num juízo técnico produzido pelo árbitro do jogo colocando-se, assim, à apreciação do TAD matéria directamente ligada às “regras do jogo”.
A sanção automática em causa – suspensão e multa referente à acumulação de cinco cartões amarelos na competição, na mesma época desportiva – encontra-se directamente ligada às questões técnicas (“leis”) do jogo e da competição.
Por “leis de jogo” tem vindo a entender a nossa jurisprudência que se trata do “ conjunto de regras que, relativamente a cada disciplina desportiva, têm por função definir os termos da confrontação desportiva e que se traduzem em regras técnico - desportivas que ordenam a conduta, as ações e omissões, dos desportistas nas atividades das suas modalidades e que, por isso, são de aplicação imediata no desenrolar das provas e competições desportivas.” – cfr., entre outros, acórdãos do STA de 07.06.2006 (proc. nº 262/06), de 10.09.2008 (proc. nº 120/08) e de 21.09.2010 ( proc. nº 0295/10); acórdão do TCA Sul de 13.10.2011 (proc. nº 6925/10); e acórdão do TCAN de 09.11.2018 (proc. nº 248/18), disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Tal como o voto de vencido junto ao acórdão recorrido, socorremo-nos aqui das palavras de Pedro Gonçalves:
“As “leis do jogo”, visando identificar e regulamentar a prática do jogo e desconhecendo qualquer eficácia no ordenamento jurídico, não incorporam regras jurídicas, mas regras técnicas. A situação não se apresenta diferente no caso das regras (disciplinares) que sancionam o desrespeito das “leis do jogo”, resultante da prática de infracções (faltas) no “decurso do jogo”: também aqui está envolvida a apreciação de factos ou condutas segundo critérios técnicos e não jurídicos. Num sentido rigoroso, a regulação do jogo não é de direito público, nem de direito privado, posto que não se trata de uma regulação jurídica.” - in, “A soberania limitada das federações desportivas”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 59, pág. 59.
Para o mesmo Autor, “(…) seria inconsequente pedir a um Tribunal do Estado tribunal administrativo ou outro, que decide questões de direito e procede à aplicação de normas jurídicas, uma pronúncia sobre os termos de aplicação de normas técnicas ou sobre se um certo jogador cometeu, no decurso do jogo, a falta x ou y ou nenhuma das duas. Há, nesta matéria, um imperativo natural de contenção da ingerência da justiça estadual.”
Como se diz no voto vencido “por maior recorte que se faça do thema decidendum trazido à ponderação deste Colégio Tribunal, as declarações do árbitro do jogo quanto à amostragem de determinado cartão amarelo, e ao erro incorrido sobre esse facto, passarão, inevitavelmente, pelo crivo (apreciação e juízo decisório) deste Tribunal, não obstante tal matéria respeitar, inequivocamente, às “regras do jogo” e se encontrar, por essa via, excluída do âmbito de jurisdição do TAD, conforme assinalado anteriormente.”
Está em causa uma ocorrência, durante o período de jogo regulamentar, “dentro das 4 linhas”, e presenciada pela equipa de arbitragem que entendeu exibir um cartão amarelo; no caso, o quinto, na mesma competição desportiva.
Ainda que o TAD tenha procurado direccionar ou circunscrever o litígio, centrando-o na relevância das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, consideramos que o verdadeiro cerne do litígio reside em aferir do acerto ou não da decisão de exibir o cartão amarelo – concretamente por ter o arguido agarrado um adversário, anulando um ataque prometedor.
O arguido/Demandante/Recorrido não pede formalmente a anulação do cartão amarelo exibido durante o jogo. Todavia, pretende-o efectivamente, não quanto aos efeitos a produzir no jogo (já decorrido) mas na competição e em sede disciplinar. A invalidação que formalmente peticiona – da sanção automática – assenta na alegada incorrecção dessa exibição, concretamente no juízo sobre a ocorrência de um “ataque prometedor”.
Ora, se o fundamento, a razão de ser da invalidade da sanção é a inadequação da exibição do cartão amarelo – por não estar em causa um “ataque prometedor” -, sempre será de analisar se o árbitro errou ou não na sua análise. Ou, o mesmo será dizer, sempre se imporá um juízo sobre as regras do jogo e/ou as regras da competição.
Estamos, pois, perante questão emergente da aplicação de normas técnicas e disciplinares directamente respeitante à prática da própria competição desportiva, na qual o TAD não tem jurisdição, por ser exclusiva das federações desportivas.
Nestes termos, dando razão à Recorrente, concluímos pela ausência de jurisdição do TAD para apreciar e decidir a questão do cometimento da infracção prevista e punida pelo artigo 164º, nº 7 do RD LPFP.
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A decisão supra prejudica o conhecimento por este Tribunal dos demais fundamentos do recurso.
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Da Ampliação do objecto do recurso
O Demandante/Recorrido requereu, nos termos e para os efeitos do artigo 636.º do CPC, a título subsidiário, a ampliação do objecto do recurso para apreciação do fundamento da acção em que decaiu, ou seja, quanto à alegada invalidade da decisão disciplinar sancionatória recorrida por preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido/Demandante.
A ampliação do objecto do recurso, prevista no artigo 636º do CPC, pressupõe apenas que o fundamento ou fundamentos invocados para sustentar a decisão favorável não foram acolhidos.
Tendo o desfecho da acção sido favorável ao Demandante por o TAD ter concedido provimento ao recurso por si interposto do acórdão condenatório, o qual foi revogado, não cabia ao Demandante reagir mediante a interposição de recurso (nem subordinado, nem independente), antes mediante a ampliação do objecto do recurso nas contra-alegações, de forma a obter uma resposta favorável às questões que suscitou, prevenindo o eventual acolhimento pelo tribunal ad quem dos argumentos de facto ou de direito suscitados pelo recorrente – neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 324-325.
Considerando que a Demandada/Recorrente obteve, nesta sede, ganho de causa quanto à invocada incompetência do TAD para conhecer da questão do cometimento da infracção, importa, pois, apreciar e decidir o pedido de ampliação de recurso.
Vejamos.
A alegada invalidade da decisão disciplinar sancionatória por preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido/Demandante, não mereceu o acolhimento do TAD, com o entendimento assim sumariado:
“V – Não pode o Colégio Arbitral declarar a ilegalidade de norma regulamentar com força obrigatória geral com qualquer dos fundamentos previsto no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição (cfr. artigo 72.º, n.º 2, do CPTA) e, por outro lado, não estamos na presente ação arbitral perante pedido de declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral ou com efeitos circunscritos ao caso concreto (desaplicação), de norma regulamentar imediatamente operativa (cfr. artigo 73.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA); o que está em causa na presente ação arbitral é uma ponderação sobre a (incidental) desaplicação do artigo 214.º do RDLPFP “no âmbito do processo dirigido contra o ato” procedimental disciplinar que a aplicou (cfr. artigo 73.º, n.º 3, do CPTA).
VI – Apesar de o artigo 214.º do RDLPFP aceitar que o sancionamento disciplinar em processo sumário possa ocorrer sem prévia audição do arguido, o que é inequivocamente incompatível com a exigência consagrada no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, a verdade é que no concreto procedimento disciplinar sub judice – e só em concreto pode o Colégio Arbitral apreciar e julgar os termos em que foram realmente assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa – o ora Demandante:
ü Apresentou efetivamente a sua defesa previamente à decisão disciplinar tomada no processo sumário tramitado em formação restrita do Conselho de Disciplina da Demandada;
ü Impugnou depois esta decisão disciplinar sumária, sem lhe ter imputado qualquer vício inerente à violação dos seus direitos de audiência e defesa, para a formação plena do mesmo órgão, num recurso hierárquico impróprio que tem natureza necessária e no qual o ora Demandante teve oportunidade de voltar a defender-se e no qual foi produzida toda a prova por si requerida;
ü Conheceu a decisão desta impugnação administrativa necessária antes do momento em que tinha de ocorrer a efetiva execução da sanção aplicada sumariamente, pese embora não tenha sido reconhecido a tal impugnação o efeito suspensivo que lhe é legalmente inerente.
VII – Ou seja, a aplicação feita do artigo 214.º do RDLPFP no procedimento disciplinar que, in casu, especificamente decorreu no seio do Conselho de Disciplina da Demandada, incluindo a impugnação administrativa necessária para o Pleno deste órgão, na qual ocorreu o sancionamento definitivo do ora Demandante, não permite vislumbrar postergação dos direitos deste, constitucionalmente consagrados, em matéria de audiência e defesa.”
Assinale-se que, nesta parte, a decisão do TAD foi tomada por unanimidade (cfr. declaração de voto junta).
Nas suas conclusões, afirma o Demandante que o processo sumário, tal como consagrado nos artigos 214.º e 257.º e seguintes do Regulamento Disciplinar da LPFP, revela-se inconstitucional, como aliás já declarado quer pelo Tribunal Central Administrativo Sul, quer, por três vezes, pelo Tribunal Constitucional, uma vez que viola os direitos de audiência e defesa dos arguidos em processo sancionatório. Mais afirma que não teve oportunidade de ser ouvido antes de lhe serem aplicadas as sanções impugnadas – primeiro, porque essa oportunidade não lhe foi conferida; e segundo, porque tendo tentado criar, ele próprio, oportunidade para tanto, nem assim teve sucesso, visto que a decisão sancionatória veio a ser proferida sem que o seu direito a ser ouvido fosse respeitado, violando o seu direito fundamental de audiência e defesa, razão suficiente para ter por adquirida a sua invalidade.
Com efeito, o Tribunal Constitucional julgou já inconstitucional, por violação do direito de audiência e de defesa consagrado no artigo 32º, nº 10 da CRP, a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional. – cfr. acórdão n.º 594/2020, de 10.11.2020 (processo n.º 49/2)0, e acórdão nº 742/2020, de 10.12.2020 (proc. nº 506/20). E ainda que este Tribunal Central Administrativo Sul já se pronunciou, dando eco dessa inconstitucionalidade – cfr. acórdão de 10.12.2019 (proc. nº 49/19); de 18.12.2019 (proc. nº 35/19); de 16.04.2020 (14/20); de 30.04.2020 (13/20); de 26.11.2020 (15/20); de 10.12.2020 (94/20); de 21.01.2021 (114/20); de 18.02.2021 (proc. 112/20) e 18.03.2021 (121/19).
Sucede que, atenta a factualidade apurada, o caso em análise distingue-se daqueles que foram objecto dos arestos supra mencionados.
Com efeito, no caso em apreço, como bem decidiu o TAD, o arguido apresentou, de facto, defesa, em momento prévio à decisão disciplinar tomada no processo sumário, tramitado em formação restrita do Conselho de Disciplina da Demandada.
Acresce que impugnou depois esta decisão disciplinar sumária - sem lhe ter imputado qualquer vício inerente à violação dos seus direitos de audiência e defesa - para a formação plena do mesmo órgão, num recurso hierárquico impróprio – de natureza necessária - no qual teve oportunidade de voltar a defender-se e no qual foi produzida toda a prova por si requerida e sobre a qual se pronunciou.
Donde, na situação sub judice, não foi aplicado o disposto no artigo 214.º do RD da LPFP, pelo que nenhuma invalidade pode ser assacada ao procedimento disciplinar.
Termos em que se nega provimento à ampliação do objecto do recurso apresentada por J....
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IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que compõem este Tribunal em:
a) conceder provimento ao recurso interposto pela Federação Portuguesa de Futebol, revogando o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto;
b) negar provimento ao pedido de ampliação do objecto do recurso apresentado por J….
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Custas pelo Recorrido J..., nos termos do art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 07 de Outubro de 2021

Ana Paula Martins
Carlos Araújo
Dora Lucas Neto