Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1073/05.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/19/2019
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:ARTIGO 75.º, N.º 3, DO REGULAMENTO DO PLANO DIRETOR MUNICIPAL
ARTIGO 68.º, AL. A), DO RJEU
NULIDADE DO ATO; APROVEITAMENTO DO ATO
Sumário:
I. O despacho de deferimento de licença de edificação proferido por Vereadora de Câmara Municipal que viola o disposto no artigo 75.º, n.º 3, do Regulamento do Plano Diretor Municipal, ao não ponderar se as obras eram de interesse urbanístico, social ou económico e se não era posta em causa a reestruturação urbanística da área, é nulo, de acordo com o disposto no artigo 68.º, al. a), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJEU, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de junho).
II. A pronúncia do tribunal neste caso incide sobre o cumprimento dos condicionalismos previstos no referido artigo 75.º, n.º 3, do RPDM, e não sobre a fundamentação do ato impugnado ou sobre o concreto interesse urbanístico, social ou económico do edifício ou das condições mais adequadas à reconversão urbanística da área.
III. O ato impugnado declarado nulo não é suscetível de ratificação e apenas ocorre a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos à situação de facto daquele decorrente nos termos previstos no artigo 134.º, n.º 3, do CPA de 1991 (atual artigo 162.º, n.º 3), que no caso não tem evidentemente aplicação, desde logo porque não subsiste situação de facto a salvaguardar.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
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Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
O Ministério Público instaurou ação administrativa especial, tramitada sob a forma de processo ordinário, contra o Município de Lisboa, na qual peticionou a declaração de nulidade do despacho proferido pela Vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, em 19/5/2004, que deferiu, a favor da …………………….., S.A., aqui contrainteressada, o pedido de licenciamento de construção de obra localizada no quarteirão definido pelas Ruas de Cascais, Rua da Cozinha Económica e Largo das Fontainhas, na Freguesia de Alcântara, em Lisboa, no âmbito do processo camarário n.º 866/EDI/2003.
Citado, o réu apresentou contestação, onde informou ter procedido à ratificação do ato impugnado, alegando a inutilidade superveniente da lide por perda de objeto.
Citada, a contrainteressada apresentou contestação, onde pugnou pela rejeição da ação, por inutilidade superveniente da lide, face à ratificação-sanação e, caso assim, não se entenda, pela sua improcedência.
Por despacho saneador de 15/06/2011, o TAC de Lisboa julgou parcialmente extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto ao alegado vício de incompetência.
Por sentença de 23/01/2013, julgou a ação procedente e declarou nulo o despacho impugnado.
Após reclamações para a conferência da contrainteressada e do réu, por acórdão de 09/07/2013 foram aquelas julgadas improcedentes e decidido manter na íntegra a decisão reclamada.
Inconformada, a contrainteressada interpôs recurso desta decisão, bem como do despacho saneador, pugnando pela respetiva revogação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“1.ª A decisão interlocutória recorrida enferma de erro de julgamento ao julgar persistir interesse e utilidade da instância em face da superveniente deliberação licenciadora das obras mediante expressa invocação da fundamentação necessária ao preenchimento dos requisitos previstos no artigo 75º, n.º 3 do RPDM, o que não foi nem é questionado nos presentes autos.
2.ª Ao contrário do entendimento expresso pelo Tribunal a quo, a situação patenteada nos autos em face da deliberação camarária que veio a licenciar as obras a coberto do artigo 73. º do RPDM, deveria passar pela extinção da instância por superveniente inutilidade e falta de interesse ou, no limite, pela improcedência da ação em face do artigo 45.º do CPTA por se mostrar revelada situação obstativa à concretização dos deveres a que a administração seria condenada.
3.ª Ao contrário do entendimento expresso na decisão recorrida, ao deferir um pedido de operação urbanística fundado pelo requerente no interesse urbanístico, social e económico da obra e na sua valia para a reestruturação da área, o despacho impugnado aceitou e incorporou esses mesmos fundamentos, mostrando-se praticado a coberto dos artigos 75.º/3 e 77.º do RPDM que regem para tal tipo de operações urbanísticas e em harmonia com tais normas.
4.ª O incumprimento do dever de fundamentação a que apela o artigo 75º./3 do RPDML relativamente às condições excecionais previstas nessa norma não traduz uma violação das normas do Plano, mas sim do corpo de normas constitucionais e legais que estabelecem o dever de fundamentação – normas que o articulado desse Plano reitera secundum legem –, sendo o respetivo regime de invalidade aquele que decorre da lei (no caso, a anulabilidade).
5.ª Ao contrário do entendimento expresso na decisão recorrida, os conceitos a que apela o artigo 75.º/3 do RPDM de Lisboa, designadamente o "interesse urbanístico, social ou económico", ou a definição do que possa colocar "em causa a reestruturação urbanística, da área", são conceitos vagos e indeterminados cujo preenchimento compete ao Município em juízos que, embora não estejam isentos de sindicação por parte dos Tribunais, só o podem ser em caso de erro grosseiro ou de utilização de critério manifestamente desajustado - cfr., entre outros, os Acs. STA, de 19-03- 1996 no Rec. 34547, de 10-12-1998 no Rec. 37572, de 11-05-1999 no Rec.43 248, de 16-11-2000 no Rec. 46 148 e de 29-03-2001 no Rec. 46 939, in www.dgsi.pt.
6.ª Ao contrário do entendimento expresso na decisão recorrida, nada nos autos permite indiciar que o despacho impugnado enferme de erro grosseiro ou faça uso de um critério de decisão manifestamente desajustado, não sendo possível ao Tribunal pronunciar-se a respeito do interesse urbanístico, social ou económico do edifício ou das condições mais adequadas à reconversão urbanística da área.”
Igualmente inconformado, o réu interpôs recurso da mesma decisão, pugnando pela respetiva revogação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“1. Ao contrário do entendimento expresso na decisão recorrida, o despacho impugnado não padece de nulidade;
2. A decisão sob recurso padece de erro de julgamento porquanto os conceitos vagos e indeterminados consignados no nº 3 do artigo 75° do RPDM foram correctamente preenchidos pelo ora Recorrente e, assim sendo, a decisão proposta não poderia ser no sentido de que o foi;
3. Na verdade, ao deferir o pedido de licenciamento formulado pela contra-interessada, deferimento esse alicerçado no interesse urbanístico, social e económico do projecto, o despacho em crise aceitou e incorporou os fundamentos, requisitos e pressupostos constantes do nº 3 do artigo 75° do RPDM e, em consequência, respeitou este comando regulamentar;
4. Ainda que assim se não entenda e, considerando o princípio do aproveitamento do acto administrativo, a repetição do acto de igual teor nenhuma vantagem traria quer para o interesse público, quer para o interesse da contra-interessada;
5. Ao decidir como decidiu, a douta decisão recorrida, para além de padecer de erro de julgamento violou, por errada interpretação, o nº 3 do artigo 75° e o artigo 77°, ambos do RPDML.”

O Ministério Público apresentou as suas contra-alegações de recurso, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“1 - Por despacho de 19 de Maio de 2004, proferido pela Vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, foi deferido a favor da contra-interessada " ……………………., S.A." o pedido de licenciamento de construção de um edifício de habitação, comércio e serviços no quarteirão definido pelas Ruas de Cascais, Rua da Cozinha Económica e Largo das Fontainhas, na freguesia de Alcântara, em Lisboa.
2 - O despacho de 19 de Maio de 2004 é nulo nos termos do artigo 68.º a) RJUE, por violação do artigo 75.º n.º 3 do RPDM, na medida em que na sua emissão não foi ponderado se as obras eram de interesse urbanístico, social ou económico e se não era posta em causa a reestruturação urbanística da área;
3 - Assim, conforme declarado em 1ª instância, nos termos do artigo 134.º do CPA está sujeito ao regime geral da nulidade dos actos administrativos, ou seja à não produção dos respectivos efeitos jurídicos e à insusceptibilidade de ratificação, reforma ou reconversão nos termos do artigo 137.º, n.º 1, do CPA.
4 - Diversamente do alegado pelos recorrentes, entendemos que a douta decisão do tribunal a quo não padece de qualquer erro de julgamento, maxime, quanto à (in)utilidade da lide e a um suposto erro na interpretação e aplicação do art.º 75º, n.º 3 do RPDM de Lisboa, que ora invocam em sede de recurso.”
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Perante as conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as seguintes questões:
- aferir do erro de julgamento da decisão recorrida, ao julgar persistir interesse e utilidade da instância em face da deliberação superveniente com fundamentação necessária ao preenchimento dos requisitos previstos no artigo 75.º, n.º 3, do RPDM;
- aferir do erro de julgamento da decisão recorrida, ao considerar que o despacho impugnado não cumpriu o dever de fundamentação previsto naquele normativo e ao pronunciar-se a respeito do interesse urbanístico, social ou económico do edifício e das condições mais adequadas à reconversão urbanística da área, quando o despacho impugnado não enferma de erro grosseiro nem fez uso de critério manifestamente desajustado.
- aferir da aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1) O réu apresentou a contestação constante de fls. 158, dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, através da qual informou que, em 16/5/2005, procedera à ratificação do acto impugnado, por via da deliberação n.º 255/CM/2005, alegando a inutilidade superveniente da lide por perda de objecto.
2) A contra-interessada apresentou a contestação a fls. 169 a 188/196 a 205, dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual designadamente pugnou pela rejeição desta acção por inutilidade superveniente da lide, face à ratificação-sanação ocorrida em 16/5/2005.
3) Em 15/6/2011 foi proferido o despacho saneador constante a fls. 328 a 337, dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se consignou designadamente o seguinte:






4) Dá-se aqui por integralmente reproduzida a decisão proferida no presente processo em 23.1.2013, a qual consta de fls. 378 a 388, dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde se refere designadamente o seguinte:
« (...)

II.- FUNDAMENTAÇÃO:
Com interesse para a decisão consideram-se assentes os seguintes factos:
1) A contra-interessada é proprietária de um terreno no quarteirão situado na Rua de Cascais, que abrangia os prédios urbanos com os n.º …., …, …. e …., do Largo das Fontainhas n.º …, inscrito na matriz sob os números …, …., …., …., …., …., …. e o prédio urbano situado na Rua ………, n.ºs …., …. e ….., inscrito na matriz sob o n.º …….., todos descritos na 6.ª Conservatória, freguesia de Alcântara, no Registo Predial em Lisboa, (cf. certidão da conservatória do registo predial a fls. 17 a 21, planta de localização folhas 22 a 23 dos autos em suporte de papel - numeração em suporte de papel, a que correspondem as demais referências, sem menção de origem).
2) No último prédio descrito no ponto anterior com a matriz sob o n.º 1695, estava instalado um supermercado "………….." de Alcântara, cuja demolição, para o efeito, foi autorizada no âmbito do processo camarário n.º 261/EDI/2004, no qual foi emitida a licença de demolição n.º 9/ED/2004 (cf. planta de localização a fls. 22 a 24 dos autos e licença de demolição a fls. 25 dos autos e por acordo).
3) O terreno descrito no ponto l) encontra-se inserido em área definida no Plano Director Municipal de Lisboa (PDML) como "Área de Reconversão Urbanística de Usos Mistos" (cfr. fls. 78 dos autos -por acordo).
4) Por requerimento apresentado em 30 de Junho de 2003, a contra-interessada requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa o licenciamento de uma obra nova de construção de um edifício de habitação, comércio e serviços no terreno descrito em 1), cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, o qual consta a fls. 12 a 16 dos autos.
5) Na memória descrita e estudo de tráfego, a qual consta de fls. 48 a 72 dos autos e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, o projecto referido no ponto anterior compreende a construção numa área de terreno de 85552, 34 m2, de seis blocos de edifícios com as letras A, B, C, D, E e F, com dois pisos subterrâneos, destinados a estacionamento e instalações técnicas, e 7 pisos acima do solo, destinados à habitação, escritórios, comércio e supermercado, ocupando uma superfície de implementação de 4 907,45 m2, com uma área bruta de construção acima do solo de 15 934,30 m2, referindo-se nessa memória descritiva nomeadamente o seguinte:
" (...)
"O projecto apresentado para o terreno do ……….. em Alcântara constitui um importante equipamento para a cidade de Lisboa, propondo-se desta forma, contribuir para a revitalização de um núcleo habitacional, comercial e terciário de grande significado para esta zona tão degradada da nossa cidade e em continuação ao já construído nos terrenos adjacentes na Antiga Fábrica das Fontainhas (Alcântara Rio).
(...)"
6) O projecto referido em 4) e 5) constitui a "continuação ao já construído nos terrenos adjacentes na antiga fábrica das Fontainhas (Alcântara Rio), correspondendo esta à 3.ª fase de construção" (cf. Informação n.º 5649/DPE/DPP/GESTURBE/2003 a fls. 78 e 79 dos autos).
7) Por despacho de 19 de Maio de 2004, da Vereadora do Pelouro do Licenciamento e Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa, foi deferido o pedido de licenciamento referido em 4), nos termos constantes de fls. 83 dos autos, e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
8) Em 26/5/2004 foi emitido alvará de licença de construção com o n.º 58/CE/2004 por 18 meses (cf. alvará a fls. 85 dos autos).
9) Na data em que foi proferido o despacho descrito em 7) não existia plano de pormenor ou de urbanização para o local referido em 1), sendo tal local abrangido pela Unidade Operativa de Planeamento e Gestão (UOP) n.º 19 (cfr. acordo).
10) A Vereadora do Pelouro do Licenciamento Urbanístico e Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa apresentou, junto da Câmara Municipal de Lisboa, a proposta de deliberação n.º 255/2005, datada de 6 de Maio de 2005, com o seguinte teor:
«imagem no original»
«imagem no original»

(cf. proposta a fls. 161 a 164 dos autos)
11) A Câmara Municipal de Lisboa, em reunião realizada em 16 de Maio de 2005, aprovou, por maioria, a deliberação n.º 255/CM/2005 com os fundamentos constantes da proposta referida em 10) (cf. fls. 166 dos autos).
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir neste processo cingem-se a saber se:
- ocorre erro de julgamento da decisão recorrida, ao julgar persistir interesse e utilidade da instância em face da deliberação superveniente com fundamentação necessária ao preenchimento dos requisitos previstos no artigo 75.º, n.º 3, do RPDM;
- ocorre erro de julgamento da decisão recorrida, ao considerar que o despacho impugnado não cumpriu o dever de fundamentação previsto naquele normativo e ao pronunciar-se a respeito do interesse urbanístico, social ou económico do edifício e das condições mais adequadas à reconversão urbanística da área, quando o despacho impugnado não enferma de erro grosseiro nem fez uso de critério manifestamente desajustado.
- é de aplicar o princípio do aproveitamento do ato administrativo.


a) da utilidade da instância

Com o recurso da decisão final, veio a contrainteressada impugnar igualmente a decisão interlocutória proferida no despacho saneador, na parte em que julgou subsistente a utilidade da instância, ao abrigo do disposto no artigo 142.º, n.º 5, do CPTA.
Invoca que a decisão interlocutória recorrida enferma de erro de julgamento, ao julgar persistir interesse e utilidade da instância em face da superveniente deliberação licenciadora das obras mediante expressa invocação da fundamentação necessária ao preenchimento dos requisitos previstos no artigo 75.º, n.º 3, do RPDM, o que não foi nem é questionado nos presentes autos. Pelo que se impunha a extinção da instância por superveniente inutilidade e falta de interesse ou, no limite, pela improcedência da ação em face do artigo 45.º do CPTA por se mostrar revelada situação obstativa à concretização dos deveres a que a administração seria condenada.
A fundamentação apresentada no despacho saneador amparou-se no acórdão deste TCAS de 13/01/2011 (proc. n.º 01952/06, disponível em http://www.dgsi.pt), proferido no apenso A aos presentes autos, onde se concluiu:
- ser seguro que a ratificação não podia abranger qualquer eventual nulidade do ato impugnado, atento o disposto no artigo 137.º, n.º 1, do CPA então vigente (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro), que havia sido invocada na petição inicial;
- que esta nulidade do ato não podia ser sanada, nem ocorrer válida substituição, atento o teor dos artigos 147.º e 141.º, n.º 1, do CPA;
- que a ratificação apenas podia sanar o vício da incompetência, cujo desvalor jurídico é a anulabilidade, cf. artigo 135.º do CPA, e não as nulidades expressamente invocadas;
- na petição inicial foi invocado o desrespeito pelos artigos 75.º e 77.º do RPDM e 94.º e 97.º, n.º 1, als. c) e d), do RJIGT, que, violados, dão lugar a nulidades, cf. artigos 68.º, al. a), do RJUE e 103.º do RJIGT.
Efetivamente, tendo o Ministério Público invocado vícios cominados com a sanção da nulidade, como fez, o ato não era suscetível de ratificação, atento o disposto nos indicados normativos.
Por outro lado, não se vê que se esteja perante uma situação de impossibilidade absoluta de satisfação dos interesses do autor ou que o cumprimento por parte da Administração dos deveres a que seria condenada originaria um excecional prejuízo para o interesse público, em face do artigo 45.º do CPTA então vigente, nem o recorrente minimamente densifica tal alegação.
Nesta medida, impõe-se concluir que bem andou o Tribunal a quo, ao perspetivar que a eventual procedência da ação determinava a impossibilidade de existência de qualquer ato ratificativo, pelo que a inutilidade superveniente da lide apenas se poderia cingir ao vício de incompetência.
Improcede, pois, o recurso do despacho saneador.

b) do incumprimento do dever de fundamentação e pronúncia a respeito do interesse urbanístico, social ou económico do edifício e das condições mais adequadas à reconversão urbanística da área

Sustenta a contrainteressada que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, ao considerar que o despacho impugnado não cumpriu o dever de fundamentação previsto naquele normativo, na medida em que este aceitou e incorporou os fundamentos do pedido sobre o qual se pronunciou, mostrando-se praticado a coberto dos artigos 75.º, n.º 3, e 77.º do RPDM.
Está em causa na presente ação saber se é nulo o despacho de Vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, datado de 19/05/2004, através do qual foi deferido a favor da contrainteressada o pedido de licenciamento de construção de um edifício de habitação, comércio e serviços no quarteirão definido pelas Ruas de Cascais, Rua da Cozinha Económica e Largo das Fontainhas, na freguesia de Alcântara, em Lisboa.
Conforme consta da factualidade assente, o terreno em causa encontra-se inserido na zona de Alcântara, em área abrangida pelo Plano Diretor Municipal de Lisboa (PDM), ratificado por Resolução do Conselho de Ministros n.º 94/94, de 14/07/1994, publicada no DR de 29/09/1994, classificada como “Área de Reconversão Urbanística de Usos Mistos” nos termos dos artigos 71.º a 77.º do Regulamento do PDM (RPDM) de Lisboa, com a alteração publicada na 2.ª Série do DR n.º 64, de 16/03/2004.
São consideradas áreas de reconversão urbanística os espaços urbanos cuja ocupação e usos atuais, industriais e habitacionais, e espaços livres intersticiais, pela sua degradação e desadequação às áreas urbanas envolventes, devem ser sujeitos a reconversão de usos e das características morfológicas e das edificações, definidas em função do respectivo uso predominante futuro pelas categorias “habitacional” ou “mista”, de acordo com os artigos 71.º e 72.º do RPDM.
Em face da inexistência de um plano de urbanização ou pormenor para esta zona de Alcântara, o artigo 77.º, n.º 1, do RPDM, manda aplicar à remodelação e ampliação dos edifícios existentes nas Áreas de Reconversão Urbanística de Usos Mistos, as regras supletivas constantes do artigo 75.º, que prevê o seguinte:
“1. Nas Áreas de Reconversão Urbanística Habitacional, na falta dos planos referidos no artigo anterior, apenas são permitidas obras de remodelação e ampliação, desde que não sejam alterados os usos nem as características construtivas dos edifícios e visem melhorar as condições habitacionais existentes.
2. Nas obras de ampliação, o aumento de área não pode ultrapassar 10% da superfície de pavimento existente à data da entrada em vigor do presente Regulamento.
3. Poderão excepcionalmente, por Deliberação da Câmara Municipal, ser autorizados loteamentos e obras novas que não estejam abrangidas pelo número anterior, com ou sem mudança de uso, quando os mesmos forem considerados de interesse urbanístico, social ou económico e desde que não seja posta em causa a reestruturação urbanística da área, devendo o loteamento, a obra ou os novos usos ser compatíveis com a categoria de espaço onde se localizam.”
Ora, como se assinala na decisão recorrida, na emissão do despacho de 19 de maio de 2004, aqui objeto de impugnação, não foi ponderado se as obras eram de interesse urbanístico, social ou económico e se não era posta em causa a reestruturação urbanística da área, como impunha o citado n.º 3 do artigo 75.º do RPDM
De acordo com o artigo 68.º, al. a), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJEU, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de junho), são nulas as licenças ou autorizações previstas no presente diploma que violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território.

Como é bom de ver, não está aqui em causa a fundamentação do ato administrativo, como pretende a recorrente, mas antes os limites e proibições impostos pelo artigo 75.º em questão, que apenas podem ser excecionadas em certos casos concretos e fundamentados pelo decisor administrativo, como já reconhecido no acórdão deste TCAS de 13/01/2011, proferido no apenso A aos presentes autos.

Quanto ao argumento da decisão recorrida se pronunciar a respeito do interesse urbanístico, social ou económico do edifício ou das condições mais adequadas à reconversão urbanística da área, quando o despacho impugnado não enferma de erro grosseiro nem fez uso de critério manifestamente desajustado, manifestamente não colhe, posto que novamente se olha para a questão de través.
O que está em causa, e foi merecedor de análise na decisão recorrida, é a licença ter de cumprir os condicionalismos previstos no artigo 75.º do RPDM, sob pena de nulidade, conforme previsto no artigo 68.º, al. a), do RJEU.
E não qualquer pronúncia a respeito do interesse urbanístico, social ou económico do edifício ou das condições mais adequadas à reconversão urbanística da área, que não ocorre em passo algum da decisão recorrida.
Constitui facto assente que no despacho em questão, ao licenciar a edificação, não foi feita a ponderação expressa dos condicionalismos exigidos naquele artigo 75.º.
Donde decorre a sua nulidade, prevista no artigo 68.º, al. a), do RJEU.

c) do aproveitamento do ato administrativo.

Finalmente, o réu/recorrente apela à aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo, invocando que a repetição do ato de igual teor nenhuma vantagem traria quer para o interesse público, quer para o interesse da contrainteressada.
Ao contrário do que se defende, não se vê que aqui possa ter lugar o aproveitamento do ato administrativo.
Decorre do supra exposto que:
- o ato impugnado licenciou edificação sem fazer a ponderação expressa dos condicionalismos exigidos no artigo 75.º do RPDM, pelo que é nulo, à luz do disposto no artigo 68.º, al. a), do RJEU;
- este ato não era suscetível de ratificação, pelo que a deliberação n.º 255/CM/2005 não produziu quaisquer efeitos jurídicos.
O regime da nulidade então previsto no CPA não diverge na sua essência do atual, ali se prevendo, artigo 134.º, o seguinte:
“1 - O ato nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade.
2 - A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal.
3 - O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito.”
Por comparação com o atual artigo 162.º do CPA, como nota Mário Aroso de Almeida, apenas se introduziu uma alteração subtil no respetivo n.º 3, retirando “a consideração do decurso do tempo do centro da ponderação de princípios a efetuar, para o efeito de se decidir se devem ser atribuídos efeitos jurídicos a situações constituídas ao abrigo de atos nulos” (Teoria Geral do Direito Administrativo, 2018, pág. 303).
Bem distinto é o regime da anulabilidade, que aqui não tem aplicação atento o supra exposto, apesar da recorrente persistir no erro de o invocar. No CPA de 1991, o pouco expressivo artigo 136.º limitava-se a prever a possibilidade de revogação do ato administrativo anulável nos termos previstos no artigo 141.º, e a suscetibilidade da sua impugnação. Já o CPA de 2015 veio pormenorizar o regime da anulabilidade, determinando as circunstâncias e as condições em que é admissível o afastamento do efeito anulatório no artigo 163.º, como desde logo se nota no respetivo preâmbulo.
Em particular o n.º 5 deste artigo 163.º do CPA de 2015 passou a prever que não se produz o efeito anulatório quando:
a) o conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.
Sem prejuízo de apenas agora encontrar apoio normativo expresso, esta possibilidade de aproveitamento do ato já encontrava sólido suporte na nossa jurisprudência, negando a eficácia invalidante do vício nos casos de atividade vinculada da Administração, quando o novo ato a praticar tivesse forçosamente o conteúdo decisório idêntico ao do ato anulado (vejam-se, v.g., os acórdãos do STA de 22/11/2006, proc. n.º 425/06, de 04/07/2006, proc. n.º 418/03, e de 23/05/2006, proc. n.º 1618/02, disponíveis em http://www.dgsi.pt).
Sucede que nos casos em que o ato foi declarado nulo, como o que agora nos ocupa, apenas ocorre a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos à situação de facto daquele decorrente nos termos previstos no artigo 134.º, n.º 3, do CPA (atual artigo 162.º, n.º 3). Que no caso não tem evidentemente aplicação, desde logo porque não subsiste situação de facto a salvaguardar.
Nem sequer se pode falar em prática de um novo ato de igual teor ao declarado nulo, que como é bom de ver seria nulo também, mas sim de um eventual novo procedimento, no âmbito do qual se impõe o respeito, designadamente, pelos normativos cuja violação aqui se constatou.
Termos em que igualmente improcede o alegado quanto ao recurso ao aproveitamento do ato.


Em suma, são de julgar improcedentes os recursos.

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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 19 de junho de 2019

(Pedro Nuno Figueiredo - relator)


(Cristina dos Santos)


(Paulo Pereira Gouveia)