Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:767/10.8BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:10/17/2019
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:COMPETÊNCIA;
LIQUIDAÇÃO;
IRS;
JUROS COMPENSATÓRIOS;
SISTEMA INFORMÁTICO.
Sumário:I – A competência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo está, em recurso jurisdicional, legalmente dependente de naquele apenas terem sido suscitadas questões de direito, como resulta claro da repartição de competências estabelecida nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), ambos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhece em segundo grau de jurisdição dos recursos de decisões dos tribunais tributários com exclusivo fundamento em matéria de direito; a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo conhece em segundo grau de jurisdição dos recursos de decisões dos tribunais tributários que não tenham como exclusivo fundamento matéria de direito.
II – Sendo a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo a única hierarquicamente competente para apreciar o recurso jurisdicional nas situações em que neste se suscitam questões de facto e existindo questões de facto a decidir no recurso que nos foi colocado para decisão – erro de julgamento na apreciação dos factos apurados e nas conclusões de facto dele extraídas - é imperioso concluirmos que o Supremo Tribunal Administrativo não é o competente para julgar o objecto do presente recurso jurisdicional.
III - Os sistemas informáticos e os programas que por recurso a estes são construídos pelas entidades, incluindo a Administração Tributária, para assegurar o cumprimento cada vez mais célere e eficaz dos superiores deveres que lhe estão cometidos não podem deixar de ser compatíveis com o cumprimento das normas de cariz procedimental, processual e substantiva que regem toda a actuação dos órgãos públicos.
IV - Constatada a impossibilidade do sistema informático em determinadas circunstâncias corrigir as declarações apresentadas pelo contribuinte, impõe-se à Administração Tributária que colmate, se necessário manualmente, essa impossibilidade informática, emitindo liquidações adicionais com as correcções devidas, incluindo o cômputo de juros compensatórios atendendo exclusivamente ao período de tempo que mediou entre o pagamento voluntário e tempestivo das primeiras liquidações e o pagamento do valor acrescido julgado devido.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I – Relatório

E... inconformado com as liquidações adicionais de juros compensatórios emitidos pela Administração Tributária relativos aos anos fiscais de 2006 a 2008, intentou reclamação graciosa e, posteriormente, a presente impugnação judicial, pedindo a anulação daqueles actos na parte em que excedem, em termos de incidência, os valores pagos a título de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS).

O Tribunal Tributário de Lisboa reconhecendo razão ao Impugnante, julgou procedente a acção e determinou a anulação dos actos tributários na parte impugnada.

O presente recurso jurisdicional traduz a reacção da Fazenda Pública à referida sentença, tendo nas alegações apresentadas, com vista à pretendida revogação daquela, sido formuladas as conclusões que infra se reproduzem:

«A) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a Impugnação deduzida por E... contra os atos tributários de liquidação de juros compensatórios n°2009 4005…, 2009 40048… e 2009 40049… nos montantes de €883,84, €3.026,15 e €640,79, referentes aos exercícios de 2006, 2007 e 2008 respetivamente, anulando parcialmente as referidas liquidações de juros compensatórios impugnadas.

B) O Tribunal a quo considerou essencialmente que tendo o ora Recorrido apresentado, dentro do prazo legal, as declarações Modelo 3 de IRS referente aos anos de 2006, 2007 e 2008, ainda que tenham sido verificadas divergências nas declarações apresentadas pelo ora Recorrido que conduziram a que fossem efetuadas declarações oficiosas relativamente aos três anos em análise, com consequente apuramento de novo imposto e juros compensatórios em cada liquidação, não deviam ter sido apurados juros compensatórios relativamente à totalidade dos montantes apurados.

C) Considerou o Tribunal a quo que as liquidações de juros compensatórios apuradas na sequência das declarações oficiosas relativas aos anos de 2006, 2007 e 2008, não tiveram em consideração as primeiras liquidações pagas pelo ora Recorrido, o mesmo será dizer, as liquidações resultantes da entrega das declarações Modelo 3 de IRS pelo ora Recorrido.

D) Entendeu o Tribunal a quo "(...) que as liquidações de juros compensatórios deveriam apenas contemplar as diferenças de imposto apurado entre as primeiras liquidações e as liquidações oficiosas", uma vez que "(...) os cofres do Estado" ficaram "com os montantes pagos no lapso de tempo decorrido desde o pagamento até à data da sua devolução".

E) Contrariamente ao que considerou o Tribunal a quo, o ora Recorrido embora tenha cumprido a sua obrigação declarativa, uma vez que apresentou dentro do prazo legal, as declarações Modelo 3 de IRS referente aos anos de 2006, 2007 e 2008, não o fez com cumprimento dos deveres que lhe são impostos, nomeadamente, o de declarar a sua real situação tributária.

F) Ora, o facto do ora Recorrido ter declarado uma situação de "União de facto" quando na verdade não estando verificados os requisitos para beneficiar do regime de união de facto, está na verdade na situação de solteiro, desencadeou liquidações na sequência das declarações Modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008, incorretas.

G) Pelo que, não estamos aqui na presença de uma simples divergência nas declarações entre o ora Recorrido e a AT, como se o ora Recorrido se considerasse em união de facto e a AT o considerasse solteiro.

H) Na verdade, o ora Recorrido não cumpria os requisitos para aplicação do regime da união de facto em sede de incidência pessoal de IRS, nomeadamente a identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos por período superior a dois anos, não podendo ele desconhecer tal facto.

I) Nessa medida, "a eliminação informática das declarações de IRS aquando da alteração do estado civil" foi consequência direta da entrega das declarações Modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008 com informação incorreta.

J) O reembolso das quantias já pagas constantes das liquidações fruto das declarações Modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008, e a anterior eliminação informática das declarações de IRS traduziu apenas a reconstituição plena, na esfera do sujeito passivo, da situação anterior do sujeito passivo, ora Recorrido, da situação que existiria antes do pagamento.

K) Pelo que, os juros compensatórios, devidos ao abrigo do art°35° da LGT, só podem incidir sobre a totalidade dos montantes apurados nas liquidações corretivas, contados a partir da data limite de entrega das correspondentes declarações Modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008, até à data de emissão das declarações oficiosas.

L) Pelo exposto, verifica-se um erro de julgamento, decorrente da circunstância de, com base na factualidade dada por provada, se ter concluído que as liquidações de juros compensatórios deveriam apenas contemplar as diferenças de imposto apurado entre as primeiras liquidações e as liquidações oficiosas, tendo anulado parcialmente as liquidações impugnadas.

M) Impunha-se à douta sentença recorrida, perante o probatório, fazer uma correspondência perfeita entre os factos dados como provados e o decidido, o que não aconteceu, manifestando a fundamentação jurídica da decisão uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, e por isso incorreta, o que conduziu à injusta decisão contra a ora Recorrente.

A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, nos termos supra expostos, o que conduziu à injusta decisão contra a ora Recorrente, impondo-se a sua revogação e substituição por acórdão que, julgue procedente o presente recurso, e, consequentemente procedente a presente Impugnação Judicial, nos termos das conclusões que seguem e que V. Exas melhor suprirão, julgando legal a sobredita correção.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso e revogada a douta sentença, como é de Direito e Justiça.»

O Recorrido, notificado da admissão do recurso interposto, não contra-alegou.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão da incompetência em razão da hierarquia deste Tribunal Central Administrativo Sul para conhecer do presente recurso com fundamento em que este se circunscreve à apreciação e decisão de uma questão de direito.

As partes, notificadas do parecer do Ministério Público e para, querendo, se pronunciarem, remeteram-se ao silêncio.

Colhidos os «Vistos» dos Ex. mos Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, em conferência, decidir.

II – Objecto do Recurso

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.°, n°1, do Código de Processo Civil) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (artigo 635.°, n°2 do Código de Processo Civil) esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.°3 do mesmo artigo 635.°). Assim, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Atento o exposto, e tendo presentes as conclusões de recurso apresentadas, importa, antes de mais, conhecer da questão prévia colocada pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal Central Administrativo Sul e que se prende com a nossa eventual incompetência para apreciar do mérito do presente recurso por eeste apena ter como objecto questões de direito.

Em caso negativo, importará, então, decidir se, como defende o recorrente, as liquidações adicionais relativas a juros compensatórios apenas deviam incidir sobre a diferença de valor de IRS devido em resultado da emissão das segundas liquidações adicionais e não sobre a totalidade do imposto por si tempestivamente liquidado.


III - Fundamentação de Facto

3.1. Em 1ª instância foram declarados como provados os seguintes factos:

A) O impugnante apresentou para os anos, 2006, 2007 e 2008 a respectiva declaração de IRS Mod. 3, conjuntamente com a sua esposa L…, respectivamente em 22 de Março de 2007, 11 de Março de 2008 e 6 de Abril de 2009 (cfr. docs 7, 8 e 9 juntos com a PI).

B) Na sequência da submissão das referidas declaração o impugnante foi notificado, por referência a cada um dos exercícios, dos respectivos actos de liquidação:
-Exercício de 2006 liquidação n°2007 40004…, no montante de €8.341,94;
-Exercício de 2007 liquidação n°2008 40001…, no montante de €57.642,28;
-Exercício de 2008 liquidação n°2009 40001… no montante de €29.224,46 (cfr. documentos n.ºs 10, 11, 12 juntos com a PI).

C) Os montantes liquidados em sede de IRS para os respectivos exercícios foram pagos dentro do prazo de pagamento voluntário (cfr. documentos n.º 13, 14 e 15 juntos com a PI).

D) Em relação às referidas declarações de Mod-3 de IRS foram os sujeitos passivos notificados para apresentar no respectivo serviço de finanças os documentos justificativos das situações irregulares alegadamente detectadas tendo, em relação à união de facto mantida dos sujeitos passivos, os serviços informado não ser possível o sistema informático da DGCI reconhecer, para os exercícios em causa, 2006, 2007 e 2008, os anos de vivência em comum no estrangeiro e em Portugal, no período em que estiveram instalados num hotel por não se verificar o requisito de identidade do domicílio fiscal há mais de dois anos e durante o período em causa (não contestado).

E) Os serviços procederam à eliminação das liquidações acima identificadas e procederam à emissão de liquidações oficiosas n.°s 2009 4005…, 2009 4004… e 2009 4004… respectivamente respeitantes aos exercícios de 2006, 2007 e 2008 (cfr. documentos n.ºs 4, 5 e 6 juntos com a PI).

F) Em resultado das eliminações efectuadas o impugnante foi reembolsado da totalidade dos montantes pagos (não contestado).
G) As liquidações adicionais tiveram os seguintes montantes:
- Ano de 2006 - IRS - €15.174,23 e Juros Compensatórios €1.606,38 sendo este cálculo dos juros efectuado da seguinte forma:
IRSData InicialData FinalNº de diasTaxaJuros Compensatórios
€15.174,2316-04-200706-12-20099654%€1.606,38

- Ano de 2007 - IRS - €60.688,96 e Juros Compensatórios €3.185,75 sendo este cálculo dos juros efetuado da seguinte forma:
IRSData InicialData FinalNº de diasTaxaJuros Compensatórios
€60.688,96 18-03-200809-07-20094784%€3.185,73
- Ano de 2008 - IRS - €31.567,54 e Juros Compensatórios €691,89 sendo este cálculo dos juros efetuado da seguinte forma:
IRSData InicialData FinalNº de diasTaxaJuros

Compensatórios

€31.567,5417-03-200902-10-20091994%€691,89
(cfr. documentos n.ºs 16, 17 e 18 juntos com a PI).

H) O impugnante efectuou o pagamento das liquidações oficiosas de imposto e juros compensatórios (cfr. documentos n°19, 20 e 21 juntos com a PI).

I) Não se conformando com os montantes liquidados e pagos deu entrada no Serviço de Finanças de Lisboa-6 das respectivas reclamações graciosas, com os fundamentos se dão por reproduzidos (cfr. fls. 22, 23 e 24 juntas com a PI).

J) As referidas Reclamações Graciosas foram objecto de despacho de indeferimento por parte do Serviço de Finanças de Lisboa-7 (cfr. documentos n°19, 20 e 21 juntos com a PI.).

K) O impugnante deu entrada no Tribunal Tributário de Lisboa da presente acção de Impugnação Judicial em 26 de Março de 2010 (cfr. fls. 2 dos autos).

3.2. Consta ainda da mesma sentença que «Não se provam outros factos, com relevância para a presente decisão» e que «A matéria de facto, dada como assente nos presentes autos, foi a considerada relevante para a decisão da causa controvertida, segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito e, a formação da convicção do tribunal, para efeitos da fundamentação dos factos, atrás dados como provados, encontra-se referida no probatório com remissão para as folhas do processo onde se encontram.»

IV – Fundamentação de Direito

No ponto II do presente acórdão, para além da enunciação das questões a apreciar, ficou igualmente estabelecida a ordem porque essa apreciação devia ser realizada. É, pois, nesse contexto, que enfrentamos antes de mais a questão prévia suscitada no parecer formulado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, em ordem a obter a resposta à questão aí colocada.

4.1. A competência para a apreciação do mérito deste recurso é da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo por, estando em causa apenas uma questão jurídica, ser aquele Tribunal superior o hierarquicamente competente para a decidir?

Entendemos que não.

É verdade, como se diz no douto parecer, que é à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo que compete conhecer dos recursos que que versem apenas sobre matéria de direito.

Esta asserção resulta clara da repartição de competências estabelecida nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), ambos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhece em segundo grau de jurisdição dos recursos de decisões dos tribunais tributários com exclusivo fundamento em matéria de direito; a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo conhece em segundo grau de jurisdição dos recursos de decisões dos tribunais tributários que não tenham como exclusivo fundamento matéria de direito.

O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que, para determinação da competência hierárquica - face ao preceituado nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e artigo 280º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário - o que é relevante é apurar se o Recorrente, nas alegações de recurso e respectivas conclusões, suscite qualquer questão de facto ou invoque como suporte da sua pretensão factos que não foram dados como provados na decisão recorrida. E que o recurso não versa exclusivamente matéria de direito se nas respectivas conclusões se discutir a questão factual, entendendo-se esta como qualquer tipo de divergência em relação ao julgamento de facto (insuficiência, excesso ou erro do julgamento) ou à forma como foram interpretados ou valorados os factos alegados ou provados.

No caso dos autos é evidente que existe controvérsia quanto à matéria de facto apurada, já que para a Recorrente o julgado, que censura, decorreu, precisamente “da circunstância de, com base na factualidade dada por provada, se ter concluído que as liquidações de juros compensatórios deveriam apenas contemplar as diferenças de imposto apurado entre as primeiras liquidações e as liquidações oficiosas, tendo anulado parcialmente as liquidações impugnadas.” (alínea L) das conclusões de recurso jurisdicional)” pugnando que se impunha que a “douta sentença recorrida, perante o probatório, fazer uma correspondência perfeita entre os factos dados como provados e o decidido, o que não aconteceu, manifestando a fundamentação jurídica da decisão uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável dos factos, e por isso incorreta, o que conduziu à injusta decisão contra a ora Recorrente.” [alínea M) das conclusões de recurso].

Como é bom de ver, a solução a dar a esta questão implica fazer um raciocínio sobre a matéria de facto em ordem a saber se essa valoração da factualidade apurada permite ou não chegar às conclusões de facto e à decisão de direito alcançadas pelo Tribunal a quo, sendo, por isso, evidente que o recurso não se confina, apenas, a matéria de direito.

Em suma, sendo a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo a hierarquicamente competente para apreciar o recurso jurisdicional nas situações em que neste se suscitam questões de facto e existindo questões de facto a decidir no recurso que nos foi apresentado, é imperioso concluir pela nossa competência para apreciar do seu mérito.

4.2. Fixada a nossa competência hierárquica para conhecer do mérito do recurso, enfrentemos, então, a questão que neste nos vem colocada: as liquidações adicionais relativas a juros compensatórios apenas deviam incidir sobre a diferença de valor de IRS devido em resultado da emissão das segundas liquidações adicionais e não sobre a totalidade do imposto por si tempestivamente liquidado?

As particularidades deste processo impõem que nos debrucemos de forma mais detalhada sobre o contexto de facto subjacente ao litígio, tanto mais que, como vimos, é com as ilações que daquele foram extraídas na sentença recorrida - na parte em que ficou vertida no probatório - que a Recorrente verdadeiramente discorda.

Nesse sentido importa começar por sublinhar que, como resulta dos factos provados, o Impugnante apresentou uma declaração conjunta com a sua companheira nos anos de 2006, 2007 e 2008, as declarações de rendimento para efeitos de liquidação de IRS, tendo, após submissão dessas declarações, sido emitidas as respectivas liquidações a cujo pagamento procedeu dentro do prazo legal [cfr. factualidade vertida no probatório sob as alíneas A), B) e C)].

Posteriormente, por determinação da Administração Tributária, foi solicitado ao ora Recorrido que apresentasse documentos comprovativos de irregularidades detectadas, informando que “o sistema informático da DGSI” não era capaz de reconhecer, para os referidos exercícios, os anos de vivência em comum no estrangeiro e em Portugal no período que viveram num hotel e, consequentemente, não estava verificado o requisito de identidade de domicílio fiscal há mais de dois anos durante o período em causa [cfr. factualidade vertida no probatório sob a alíneas D)].

E, nesse contexto, a Administração Tributária procedeu à eliminação das declarações que tinham sido apresentadas a 22 de Março de 2007, 11 de Março de 2008 e 6 de Abril de 2009, restituindo os valores pagos, e emitiu oficiosamente novas liquidações nas quais computou juros compensatórios, os quais entendeu devidos desde o termo do prazo de apresentação das declarações Mod. 3 dos anos de 2006, 2007 e 2008.

O Recorrido não contestou nestes autos a fundamentação substancial em que se suportam as novas liquidações (contestou a sua fundamentação formal e ficou vencido sem que contra esse segmento decisório se tenha insurgido através da ampliação do recurso ou sa interposição de recurso subordinado), designadamente alegando que é irrelevante se o domicílio fiscal não coincide com a residência fiscal dos unidos de facto nem que esta não deixa de ser possível configurar-se como tal só porque se desenvolve num hotel.

E também não questionou os valores apurados, a cujo pagamento procedeu dentro do prazo que lhe foi fixado.

Com o que o Recorrido se insurgiu, primeiro em sede graciosa e posteriormente nesta Impugnação Judicial, foi com o facto de a Administração Tributária não ter relevado a entrega tempestiva das declarações MOD. 3 e com o seu pagamento dentro do prazo voluntário, defendendo que o cálculo dos juros compensatórios apenas pode ter por referência a parte do imposto que adicionalmente devia ter suportado.

É, assim, a este ponto concreto e quanto à capacidade dessa factualidade, per se ou conjugado com os demais apurados, legitimar a conclusão de ilegalidade das liquidações impugnadas na parte relativa aos juros compensatórios que se resume o dissidio entre as partes.

Antes de nos centrarmos nos fundamentos do julgado e nas concretas razões adiantadas pela Administração Fiscal para o pôr em causa, cumpre notar que o IRS, para o que ora releva, se configura como um imposto essencialmente declarativo, ou seja, o seu apuramento faz-se, em regra a partir da declaração apresentada pelo próprio contribuinte – da qual deve constar a discriminação dos rendimentos obtidos no ano anterior, a sua situação pessoal e familiar e as despesas que constituem deduções à colecta -, nos termos que a este está imposto, especialmente, pelo artigo 57.º do Código de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS).

Note-se que, sem prejuízo do dever que está imposto à Administração Tributária de fiscalizar as declarações entregues e ao contribuinte de colaborar no âmbito dessa fiscalização (artigo 59.º n.º 4 e 31.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (LGT)], se enquanto essa fiscalização não for realizada e dela não resultarem comprovadamente irregularidades, as declarações se presumem verdadeiras e prestadas de boa-fé [artigos 59.º e 75.º, n.º 1 da LGT) e que, comprovada as irregularidades, à Administração Tributária cabe proceder às correcções devidas, através do método directo ou indirecto, consoante existam elementos para a aplicação daquele primeiro ou, não existindo, o segundo se mostre a única alternativa à determinação do quantum tributário (cfr. artigos 81.º e 87.º da LGT).
Por fim, é ainda de realçar, considerando que o objecto do litígio se circunscreve à parte das liquidações relativas a juros compensatórios, que na resolução da questão que nos é colocada importa temos forçosamente que ter presente que, nos termos do preceituado no artigo 35° da LGT, os juros compensatórios são devidos quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária (n.º 1); só são devidos pelo prazo máximo de 180 dias no caso de erro do sujeito passivo evidenciado na declaração ou, em caso de falta apurada em acção de fiscalização, até aos 90 dias posteriores à sua conclusão (n.º 7) e que se integram na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados. (n.º 8).
São estes marcos estruturais da exigibilidade do imposto que determinaram que o legislador impusesse igualmente que a liquidação tem que evidenciar claramente o montante principal da prestação e os juros compensatórios, explicando com clareza o respectivo cálculo e distinguindo-os de outras prestações devidas.
Em termos doutrinais e jurisprudenciais é pacífico que os juros compensatórios têm a natureza de reparação civil, substanciando a “liquidação” da indemnização devida ao credor pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada e oportunamente paga ou que foi indevidamente reembolsada: «A responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte, bem como da possibilidade de formular um juízo de censura à sua actuação (a título de dolo ou negligência). (1)
Ou seja, o dever de pagamento de juros compensatórios, porque assenta no pressuposto de ilicitude ou comportamento eticamente censurável e nos efeitos económicos de privação indevida do valor legalmente devido pressupõe, ainda, uma relação de causalidade entre aquele comportamento e o resultado a que deu origem,
Revertendo ao caso dos autos e focando agora a nossa atenção na sentença recorrida, logo se descortinam os três fundamentos que conduziram à procedência da acção: resultando dos factos provados que o Impugnante tinha cumprido os seus deveres declarativos e procedido dentro do prazo legalmente devido ao pagamento do montante decorrente de tais liquidações; que na sequência da alteração do estado civil do impugnante de «Unido de facto» para «Solteiro» tinham sido efectuadas declarações oficiosas relativamente aos três anos em análise das quais resultou apurado como devido um quantum superior ao anteriormente liquidado e pago, impunha-se que a Administração Tributária tivesse, na emissão dessas liquidações oficiosas, atentado ao imposto que já havia sido pago e emitido uma nota de compensação que reflectisse a diferença entre as liquidações, primitivas e oficiosas. E, após, exigido ao contribuinte o pagamento apenas o pagamento do valor diferencial, ou seja, o pagamento do imposto adicionalmente apurado, a que acresceria, por a liquidação adicional resultar de facto que àquele é imputável, tendo em vista a reparação dos prejuízos sofridos pela Autoridade Tributária e Aduaneira pelo atraso na arrecadação da liquidação dos impostos, juros compensatórios incidentes sobre o montante de que ficou efectivamente privada, ou seja, sobre a diferença entre o imposto inicialmente pago e o montante da liquidação oficiosa correctiva.

Contra este entendimento se insurgiu na contestação a Fazenda Pública nos exactos termos em que o faz neste recurso, discordando que na presente situação esteja em causa uma “mera divergência nas declarações entre o ora Recorrido e a AT, como se o ora recorrido se considerasse em união de facto e a AT o considerasse solteiro” [conclusão G) das alegações de recurso], antes que o que se verificou foi que “o ora Recorrido não cumpria os requisitos para aplicação do regime da união de facto em sede de incidência pessoal de IRS, nomeadamente a identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos por período superior a dois anos, não podendo ele desconhecer tal facto” [conclusão H) das alegações de recurso], pelo que Nessa medida, "a eliminação informática das declarações de IRS aquando da alteração do estado civil" foi consequência direta da entrega das declarações Modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008 com informação incorrecta [conclusão I) das conclusões de recurso], constituindo O reembolso das quantias já pagas constantes das liquidações fruto das declarações Modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008, e a anterior eliminação informática das declarações de IRS (…) apenas a reconstituição plena, na esfera do sujeito passivo, da situação anterior do sujeito passivo, ora Recorrido, da situação que existiria antes do pagamento” [conclusão J) das alegações de recurso]

Tudo em ordem a concluir que, face a estes factos que se mostram comprovados tinham necessariamente que conduzir o Tribunal a concluir que os juros compensatórios, devidos ao abrigo do artigo 35° da LGT, deviam incidir sobre a totalidade dos montantes apurados nas liquidações correctivas, contados a partir da data limite de entrega das correspondentes declarações Modelo 3 de IRS referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008, até à data de emissão das declarações oficiosas, o que, não tendo sido o julgamento adoptado, o fere de erro de julgamento na apreciação dos factos e na subsunção destes ao direito ([conclusões K) a M) das alegações de recurso]

Não cremos que lhe deva ser reconhecida razão. Saliente-se, aliás, que o Meritíssimo Juiz a quo esteve muito atento a este conjunto de alegações e que, no essencial, os factos convocados para suportar o juízo de legalidade aduzido pela Recorrente e que ora se expôs, adiantando na sua fundamentação clara, e muito bem, os motivos pelos quais os não acolhia.
Desde logo, ressalvando um facto que a própria Recorrente não contesta e que está provado: o Recorrido cumpriu com os seus deveres, quer quando apresentou as declarações MOD 3, quer quando procedeu voluntária e tempestivamente ao pagamento do imposto que foi entendido, face a essas declarações, como devido.
Depois, não descurando a responsabilidade do Recorrido pela entrega não atempada de parte do imposto que, face à fiscalização realizada (e com a qual nesta parte se conformou) se apurou ser devida, validando a actuação da Administração Tributária na parte em que entendeu serem devidos juros compensatórios.
No que não concedeu, pelas razões adiantadas, e muito bem, foi numa liquidação que incluía juros compensatórios devidos sobre a totalidade do imposto devido em cada um dos anos fiscais contados desde a data em que legalmente está prevista a sua apresentação e pagamento como se esta nunca tivesse ocorrido.
A questão é, distintamente do que defende a Recorrente, a existência de uma divergência ou de não comprovação de elementos que foram declarados. A questão é, contrariamente ao que defende a Recorrente, a Administração Tributária ter entendido, por razões que não se discutem nos autos, que o Recorrido não reunia os pressupostos a beneficiar do regime fiscal dos “unidos de facto”, antes, que os seus rendimentos deviam ser tributados pelo regime jurídico aplicável aos contribuintes que detém o estado civil de solteiro.
E é precisamente por serem essas as questões e tendo em referência os factos apurados e a que já por diversas vezes fizemos referência, que o Tribunal a quo entendeu, sem prejuízo de validar a actuação no que respeita à aplicação dessa alteração de regime por nos autos não vir discutida, designadamente ao imposto inicialmente pago e ao momento em que o foi, que restringiu o dever de pagamento de juros ao espaço de tempo e ao valor que preenchiam os pressupostos de que o pagamento de juros está dependente, isto é, ao valor indevidamente não pago por culpa do contribuinte (diferença entre o valor inicialmente pago e o que, a final, se julgou devido) e ao período de tempo em que efectivamente, por culpa do Recorrido, a Administração Tributária (credor) ficou privado do remanescente da prestação devida.
É verdade que a Administração fiscal busca ainda no sistema informático em que desenvolve a sua actuação a justificação para a sua conduta, designadamente explicando que nas situações como a presente o sistema elimina automaticamente as declarações originais, processa o reembolso e emite novas liquidações, incluindo o que for devido a título de juros compensatórios. E que, presume-se, na decorrência da eliminação das declarações primitivas e na liquidação de juros compensatórios o sistema efectua o cálculo daqueles por referência às datas em que as declarações eram devidas (anos de 2006, 2007 e 2008).
Quanto a este argumento, o Tribunal a quo, mais uma vez bem, limitou-se a adiantar que compreendia que a segurança do próprio sistema nestas situações de erro ou da alteração do estado civil se compreendia por razões de segurança do próprio sistema, mas que estas não podem nem devem causar prejuízos na esfera jurídica dos contribuintes.
Diz-se na sentença recorrida: “O tratamento informático bem como a correção das declarações dos contribuintes a nível interno, cabe apenas à própria AT, devendo assegurar, nos atos do procedimento a observância dos princípios da legalidade de segurança jurídica. O contribuinte, ora impugnante, não solicitou o reembolso do imposto que pagou, nem estão em causa novas declarações entregues por este. As declarações de rendimentos são as mesmas, embora corrigidas oficiosamente quanto ao estado civil do impugnante resultando das mesmas, um imposto superior ao anteriormente liquidado.
E assim é. Como tivemos já oportunidade de referir em acórdãos relatados pela ora relatora, os sistemas informáticos e os programas que por recurso a estes são construídos pelas entidades, incluindo a Administração Tributária, para assegurar o cumprimento cada vez mais célere e eficaz dos superiores deveres que lhe estão cometidos não podem deixar de ser compatíveis com o cumprimento das normas de cariz procedimental, processual e substantiva que regem toda a actuação dos órgãos públicos.

Daí que, quando se constata que um sistema informático não permite observar os ditames legais, como é o caso, já que, tanto quanto se percebe, não permite a mera correcção das declarações apresentadas pelo contribuinte, impõe-se que, ao invés de se conformarem com a resposta que o sistema oferece, a Administração colmate, se necessário por recurso a outros meios, incluindo-se aqui a forma manual, pelo menos enquanto não logre aperfeiçoar o sistema, essa impossibilidade informática, o que, no caso concreto, teria permitido que as liquidações oficiosas emitidas abarcassem apenas as correcções devidas, computando, para efeitos de juros compensatórios, exclusivamente o valor diferencial entre o que foi inicialmente pago e o que foi posteriormente devido, relativamente a cada ano fiscal.

De tudo quanto dissemos, resulta, pois, que acolhemos integralmente o julgamento do Tribunal a quo e a conclusão final a que chegou de que o fundamento adiantado pela Recorrente para justificar a liquidação na parte relativa aos juros de mora - «em virtude de ter sido entregue fora de prazo (o montante apurado na liquidação corretiva) foram calculados os competentes juros compensatórios desde 2008.03.18 (data limite de entrega da declaração) até 2009.07.09 (data da emissão da declaração oficiosa).Os juros ora reclamados incidem sobre a totalidade do imposto liquidado (...) uma vez que a liquidação anteriormente efetuada foi eliminada. (...)» não só não resultou provado como não tem acolhimento legal.
Em resumo e para concluir, a liquidação em causa é ilegal, na medida em que determina um montante de juros compensatórios a pagar superior ao que é devido e, em conformidade, julgando-se improcedentes as alegações de recurso jurisdicional mantém-se integralmente a sentença recorrida que, anulando as liquidações na parte impugnada, determinou que os juros compensatórios deviam incidir sobre a diferença de valor de capital de imposto constante nas primeiras liquidações e o valor de capital de imposto emergente das liquidações oficiosas correctivas, ou seja, devem incidir, no que respeita ao ano de 2006, a €6.832,29 (€8.341,94-€15.174,23); no que concerne ao ano de 2007 de €3.046,68 (€57.642,28-€60.688,96); e quanto ao ano 2008, de €2.343,08 (€29.224,46-€31.567,54).


V- Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso, em confirmar integralmente na ordem jurídica a sentença recorrida.

Custas pela Fazenda Pública.

Registe e notifique.


Lisboa, 17 de Outubro de 2019

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)

(Cristina Flora)


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(1) Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 21 de Janeiro de 2015, proferido no processo 632/14 e o acórdão da mesma Secção e Tribunal de 8-3-2018, proferido no processo n.º 942/16, ambos integralmente disponíveis em www.dgsi.