Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09126/12
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:10/18/2012
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR, PERICULUM IN MORA, ARTº 120º NºS 2 DO CPTA, ADOÇÃO DE PROVIDÊNCIA NÃO REQUERIDA, PRINCÍPIO DISPOSITIVO
Sumário:I. Não procedendo o recorrente, em momento algum da sua alegação ou das conclusões de recurso, à impugnação da matéria de facto assente, não assacando à decisão recorrida o erro de julgamento de facto ou sequer que certa matéria de facto assente deva ser alterada ou eliminada, não se mostram satisfeitos os requisitos previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 685º-B do CPC, que permitem a sindicabilidade do julgamento de facto.
II. O requisito do periculum in mora encontrar-se-á preenchido sempre que exista o fundado receio que quando o processo principal termine, a decisão que vier a ser proferida já não venha a tempo de dar resposta às situações jurídicas carecidas de tutela, seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão inútil, seja porque tal evolução gerou ou conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis.
III. São de reputar como danos dificilmente reparáveis ou que existe o fundado receito da constituição de uma situação de facto consumado, preenchendo o requisito do periculum in mora, previsto na alínea b) do nº 1 do artº 120º do CPTA, os danos relativos à perda de clientela e ao risco de encerramento do estabelecimento comercial, por falta de clientes no período diurno.
IV. Não sendo deduzido qualquer incidente em relação à inquirição das testemunhas indicadas pelo requerente, nem tendo sido impugnada a sua admissão, nos termos previstos nos artºs. 636º e 637º do CPC, valendo quanto à prova testemunhal o critério da livre apreciação da prova, segundo a convicção do julgador, nos termos do artº 396º do CC e não se mostrando esta impugnada ou contra ela dirigido o erro de julgamento de facto, carece de sentido a alegação de que as testemunhas ouvidas não são isentas ou que o seu depoimento carece de credibilidade.
V. Embora a entidade requerida invoque como interesses a defender, a salvaguarda da segurança e qualidade de vida de todos os que residem, trabalham ou frequentam o Bairro Alto, assim como a preservação da saúde pública e o ambiente urbano, mostram-se tais interesses suficientemente acautelados em consequência do decretamento das providências cautelares que foram efetivamente adotadas pelo Tribunal a quo, mediante a formulação do juízo de ponderação de todos os interesses contrapostos, nos termos do nº 2 do artº 120º do CPTA.
VI. A adoção da providência requerida, de suspensão judicial de eficácia do ato administrativo que ordenou a redução do horário de funcionamento do estabelecimento comercial, das 02H00, para as 20H00, em cumulação com a medida de proibição de possuir no seu interior e de vender ao público qualquer bebida em recipiente de vidro, permite assegurar o disposto na parte final do nº 2 do artº 120º do CPTA, que impõe ao juiz cautelar a adoção da medida cautelar adequada e proporcional, por no caso inexistir outra que assegure a menor lesão de todos os interesses envolvidos.
VII. A lesão do interesse público quando ponderada face aos prejuízos que o requerente irá sofrer, consiste na manutenção da situação de acumulação de vidro nas ruas do Bairro Alto e o potencial risco que tal situação é capaz de provocar para a segurança e integridade física dos seus frequentadores, dano este que é passível de ser evitado através da restrição de venda de bebidas em recipiente de vidro por parte do requerente sem pôr em causa o horário de funcionamento praticado até então pelo estabelecimento, evitando-se assim o encerramento do seu estabelecimento, a partir das 20h00.
VIII. É nula a sentença que, violando o princípio dispositivo, não observe os limites impostos pelo nº 1 do artº 661º do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido, segundo a alínea e), do nº 1 do artº 668º, do CPC.
IX. Porém, concede-se no nº 3 do artº 120º do CPTA, o poder ao juiz cautelar de decretar outras providências para além da requerida, designadamente, poder substituir a providência requerida por outra(s) e decretar a providência requerida em cumulação com outra(s), quando isso se revele necessário a evitar a lesão dos interesses contrapostos envolvidos, sem que tal constitua fundamento de nulidade da sentença recorrida, ao abrigo da alínea e), do nº 1 do artº 668º e do nº 1 do artº 661º, do CPC.
X. Está em causa uma limitação ou compressão do princípio dispositivo ou da vinculação do juiz ao pedido, no âmbito da justiça cautelar, ao permitir-se amplos poderes de conformação da instância, justificados por razões de urgência e de provisoriedade que caracteriza essa instância e ainda com vista a obter a justa composição dos interesses envolvidos.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

O Município de Lisboa e A..., devidamente identificados nos autos, respetivamente, requerido e requerente, inconformados, vieram interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 28/05/2012 que, no âmbito do processo cautelar de suspensão de eficácia movido por A..., julgou procedente o processo cautelar, determinando a suspensão de eficácia do despacho nº 138/P/2011, proferido pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, publicado no 1º Suplemento do Boletim Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, em 17/11/2011, no que respeita ao estabelecimento comercial do requerente, mais determinando a proibição desse estabelecimento de possuir no seu interior e de vender ao público qualquer bebida em garrafa de vidro.

Formula o recorrente, Município, nas respetivas alegações (cfr. fls. 441 e segs. – paginação referente ao processo em suporte físico, tal como as referências posteriores), as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“1. A decisão cautelar proferida padece de erro de julgamento, porquanto não só não foi feita prova indiciária suficiente, isenta e credível da verificação de uma situação de periculum in mora, dado que, com exceção do arrendamento, nenhum outro encargo ou prejuízo foi demonstrado pelo Requerente, como não foi efetuada correta ponderação dos interesses públicos e privados em presença.

2. Com efeito, o Recorrente não pode aceitar o juízo de verificação de uma situação de periculum in mora, quando a sua apreciação assentou exclusivamente nos testemunhos prestados por comerciantes com interesses convergentes com o do Requerente, pois também eles são requerentes da mesma tutela cautelar.

3. Ora, sem demonstração, ainda que perfunctória, dos encargos e da faturação alegados pelo Requerente, não poderia ter sido dado como verificado o periculum in mora, como decidido pelo Tribunal na sentença ora recorrida.

4. E mesmo que assim não fosse, era exigido à Meritíssima Juíza a quo que ponderasse devidamente os interesses públicos e privados em conflito, averiguando, descomprometidamente dos restantes critérios cautelares, se os danos que resultariam da concessão da providência requerida se mostravam superiores àqueles que poderiam resultar da sua recusa.

5. Pois se tal tivesse sido feito, ter-se-ia forçosamente concluído, conforme determina o art. 120º/2 do CPTA, pela prevalência dos direitos fundamentais à segurança e ao bom ambiente urbano, e o interesse público traduzido na salvaguarda da saúde pública, sobre o direito, eminentemente económico, à iniciativa privada, o qual sempre terá que ter presente o interesse geral das populações.

6. O que nos permite concluir que a decisão recorrida enferma de erro de julgamento, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que proteja os direitos fundamentais dos que residem, trabalham ou frequentam o Bairro Alto, à segurança e a um ambiente urbano equilibrado e sadio, bem como o interesse público consubstanciado na salvaguarda da saúde pública, pois é manifesto que os danos derivantes da concessão da providência serão sempre superiores aos prejuízos alegados – mas nunca demonstrados – pelo Requerente.”.

Termina pedindo a procedência do recurso jurisdicional e revogada a sentença.


*

O requerente, A..., notificado, interpôs igualmente recurso, formulando as seguintes conclusões (cfr. fls. 458 e segs.):

“a) A Recorrente, intentou providência cautelar contra a Recorrida peticionando a suspensão de eficácia do Despacho 138/P/2011 emitido pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, publicado em Boletim Municipal em 18 de novembro de 2011.

b) Determinou tal despacho a obrigatoriedade de encerramento dos estabelecimentos comerciais que procedessem à venda de bebidas alcoólicas sem serem possuidores de alvará para o efeito, a partir das 20h00.

c) Considerando que a venda de bebidas alcoólicas em recipientes de vidro após as 20h00, punha em causa a segurança e integridade física de agentes de visitantes do Bairro Alto,

d) Uma vez que a proliferação de detritos de vidro pelo Bairro, nomeadamente de garrafas de litro de cerveja que eram usadas como “armas de arremesso” tinha de ser “travada” o que seria viabilizado pelo encerramento dos estabelecimentos no período noturno, período de maior afluência de pessoas ao Bairro Alto.

e) O Recorrente foi convidado a pronunciar-se sobre a hipótese de adoção da providência conjuntamente com a medida cautelar de proibição de venda de bebidas em recipiente de vidro.

f) Convite a que o Recorrente se pronunciou favoravelmente por entender ser a medida que mais se adequava ao fim pretendido no ato suspendendo assegurando igualmente a manutenção do horário do Recorrente.

g) A douta sentença veio determinar, para além da referida medida cautelar, uma segunda medida que se traduz na proibição de posse de recipientes de vidro, o que, salvo o devido respeito, lhe estaria vedada.

h) O cumprimento da medida cautelar de proibição de venda de bebidas em recipientes de vidro é verificável mediante fiscalização pelas entidades competentes, nomeadamente pela Policia Municipal,

i) Pelo que, considera a Recorrente que deve ser revogada a medida cautelar determinada na douta sentença, de proibição de posse de recipientes de vidro por tal não ter sido peticionado na providência, nem o recorrente ter sido convidado a pronunciar-se sobre a mesma, o que determina a sua nulidade nos termos do disposto no art.° art. 661° n° 1 do C. P. Civil.”.

Pede que se julgue procedente o recurso e seja revogada a medida cautelar de proibição de posse de recipientes de vidro no estabelecimento comercial do recorrente.


*

O Município apresentou contra-alegações ao recurso interposto pelo requerente (cfr. fls. 478 e segs.), assim tendo concluído:

“1. Propugna o Recorrente que a decisão cautelar adicional proferida em 28/05/2012, pela qual foi determinada a proibição do seu estabelecimento possuir e comercializar bebidas em vasilhame de vidro, é excessiva, porquanto extravasa quer a finalidade do ato suspendendo, quer o próprio pedido cautelar formulado.

2. Sucede, porém, que ao invés do agora por este pretendido, tal medida mereceu expressa concordância do Recorrente, o qual não reclamou qualquer condição ou limitação dos efeitos da providência ao período horário posterior às 20H00 ou a qualquer espécie de bebida.

3. Pelo que não lhe assiste qualquer direito ou legitimidade para, sem sede de recurso e com fundamento em factos não alegados na ação cautelar, censurar o decretamento de uma providência com a qual expressamente concordou.”.

Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso interposto pelo requerente.


*

O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no artº 146º do CPTA, emitiu parecer no sentido da manutenção da sentença recorrida, por não padecer das ilegalidades que lhe vêm assacadas (cfr. fls. 506 e segs.).

*

O processo vai, sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos recorrentes, sendo certo que o objeto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos arts. 660º, n.º 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, n.º 1 todos do CPC ex vi artº 140º do CPTA.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma dos seguintes vícios:

A. Recurso interposto pelo requerido, Município:
1. Erro de julgamento quanto ao pressuposto periculum in mora [conclusões 1., 2. e 3.];
2. Erro de julgamento quanto ao juízo previsto no artº 120º nº 2 do CPTA [conclusões 4., 5. e 6.].

B. Recurso interposto pelo requerente:

1. Nulidade, nos termos do nº 1 do artº 661º do CPC, por a sentença extravasar o pedido formulado pelas partes.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

1) Em 31.3.2010, o Requerente “celebrou contrato de arrendamento” da fração designada pela letra B a que corresponde o Rés do Chão com entrada pelo n.° 17 e montra no n.°19, do prédio urbano, sito na Travessa da Espera, n° 15 a 21, freguesia da Encarnação, Lisboa, destinada ao exercício da atividade comercial, por cinco anos, “renovando-se automática e sucessivamente” por períodos de um ano, e pela “renda” mensal de EUR 810,00 (cfr. cópia do contrato a fls. 37 a 41 dos autos);

2) Em 28.4.2010, A..., ora Requerente, apresentou junto dos serviços de Direção Municipal e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de Lisboa, Proc. n.° 492/AE-DOC/2010, constante a fls. 25 a 30 dos autos e cujo teor se dá aqui por reproduzido, na qual consta o seguinte: “Declaração de Instalação, Modificação e de Encerramento dos Estabelecimentos Comerciais e de Serviços abrangidos pelo regime instituído pelo Decreto-Lei n° 259/2007, de 17 de julho”, com o “tipo de declaração: alteração do tipo de atividade ou ramo de comércio”, na “Travessa da Espera, 17-19, 1200-175 Encarnação”, no campo de “caracterização da atividade económica a exercer no estabelecimento” descreve a atividade económica a exercer como “Prestação de Serviços”, especificando “venda de produtos alimentares, bebidastabaco e produtos lácteos”, Classificação da Atividade Económica (CAE) “47293”, declara ainda, na qualidade de titular da exploração do estabelecimento “com plena responsabilidade, que este cumpre toda a legislação aplicável aos produtos e serviços nele comercializados, nomeadamente em matéria de instalações e equipamentos, higiene e segurança do trabalho e de ambiente”.

3) Em 28.04.2010, a Declaração descrita no ponto anterior deu entrada na Direção-Geral das Atividades Económicas (cfr. carimbo aposto afls.26 dos autos);

4) Em 20.4.2010, a CML emitiu a favor do ora Requerente um mapa do período de funcionamento, constante a fls. 32 dos autos e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, o qual prescreve:

(...)

Entidade exploradora: A...

Sede ou Morada: Travessa do Conde De Soure n.° 2, 4

Nome do Estabelecimento: b) B...- LOJA DE CONVENIÊNCIA

Local do Estabelecimento: Travessa da Espera n.° 17 a 19

Tipo de Estabelecimento: Loja de Conveniência

(...)

Grupo 1

ABERTURA 15:00 HORAS

ENCERRAMENTO 02:00 HORAS

(...)

a) Ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.° 48/96 de 15 de março alterado pelo Decreto-Lei n.° 126/96 de 10 de agosto e o disposto no Regulamento dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público, Prestação de serviços no concelho de Lisboa, aprovado por Deliberação 77/AM/97 (465CM97).

(...)

5) O requerente explora o estabelecimento comercial a que se reportam os pontos 2 a 4, na morada indicada no ponto n.° 1, no qual vende bebidas alcoólicas e produtos alimentares, atividade para a qual possui as autorizações administrativas e horário de funcionamentos descritos nos pontos anteriores (cfr. prova documental supra indicada e facto não contestado);

6) Em 17.11.2011 foi publicado no 1° suplemento ao Boletim Municipal da Câmara Municipal de Lisboa o despacho n.° 138/P/2011 de 16/11/2011, com a epígrafe “Limitação de horários – Bairro Alto”, constante a fls. 44 a 45 dos autos e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte:

“O Bairro Alto é uma área habitacional e comercial em que se desenvolve uma intensa atividade de restauração e bebidas e de diversão noturna, sendo que em particular na zona delimitada pela Rua de O Século, pela Calçada do Combro, pela Rua da Misericórdia, pela Rua Pedro de Alcântara e pela Rua D. Pedro V, se encontram instalados e em laboração cerca de 300 estabelecimentos de restauração e bebidas.

Verifica-se, porém, que também em face da limitação à instalação de novos estabelecimentos de restauração e bebidas constante do Plano de Urbanização aplicável têm vindo a iniciar laboração no Bairro Alto estabelecimentos de venda a retalho, nomeadamente designados de lojas de conveniência, bem como outros, que, não constituindo igualmente estabelecimentos de restauração e bebidas, são em abstrato suscetíveis de se integrar no Grupo I do Regulamento dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Publico e de Prestação de Serviços no Concelho de Lisboa, aprovado por Deliberação n.° 87/AM/1997, e publicado no Boletim Municipal n° 191, de 1997/20/14 (doravante Regulamento).

(...)

Com efeito, a atividade destes estabelecimentos e de outros que, embora vocacionados para um tipo de comércio distinto, procedem não obstante à venda de bebidas, tem-se traduzido essencialmente na venda de bebidas alcoólicas a retalho, com inicio nos períodos de maior afluência ao Bairro Alto, fazendo-o em garrafas de vidro, que os adquirentes transportam e consomem na via pública.

Por outro lado, a atividade descrita de venda de bebidas alcoólicas a retalho na zona é gravemente prejudicial para a segurança e saúde pública e contribui para a degradação da qualidade ambiental do Bairro Alto: como é notório e assinalado por várias entidades públicas e privadas, resulta na proliferação de materiais e detritos cortantes na via pública, com prejuízo para a saúde e qualidade de vida das populações e para o desenvolvimento das operações com vista a assegurar a limpeza das vias daquela zona da cidade.

Para mais, esta atividade de venda a retalho praticada é igualmente geradora de insegurança para pessoas e bens, especialmente numa zona também habitacional como é o Bairro Alto, dada a natureza dos materiais em causa garrafas de vidro facilmente projetáveis e utilizadas como arremesso – e o facto de aquela zona ser uma de forte afluência de pessoas, que muitas vezes se concentram num espaço bastante limitado.

Justifica-se por isso uma diferenciação destes estabelecimentos que procedam à venda de bebidas alcoólicas sem disporem de título que habilite a atividade de restauração e bebidas relativamente ao regime previsto para a generalidade do comércio enquadrável no Grupo I do Regulamento.

Assim, através do Edital n° 66/2011, publicado no Boletim Municipal n.° 893, de 24 de julho, e publicado igualmente nos meios de comunicação social, designadamente num jornal de referência nacional, foi colocado em discussão pública uma proposta de limitação dos horários de funcionamento, para o período compreendido entre as 08 horas e as 19 horas, todos os dias da semana, dos estabelecimentos integrados no Grupo I dos Regulamento que não correspondam a estabelecimentos de restauração e/ou bebidas, ou seja que não disponham de alvará sanitário, licença de abertura, licença ou autorização de utilização para efeitos restauração/bebidas, e que procedam à venda de bebidas alcoólicas.

Foram convidadas a pronunciar-se sobre esta proposta de decisão várias entidades, em cumprimento do n.° 3 do artigo 5° do Regulamento dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços no Concelho de Lisboa, aprovado pela Deliberação n.° 87/AM/1997, e publicado no Boletim Municipal n.° 191 de 1997/10/14

(...)

Assim, e em face do exposto, e ao abrigo do disposto o n.°5 do artigo 5° do Regulamento dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Publico e de Prestação de Serviços no Concelho de Lisboa, aprovado pela Deliberação n.° 87/AM/1997, e publicado no Boletim Municipal n°191, de 1997/10/14, determino o seguinte:

1 - A limitação do horário de funcionamento, para o período compreendido entre as 08 horas e as 20 horas, todos os dias da semana, dos estabelecimentos enquadrados na área geográfica delimitada no número seguinte, integrados no Grupo I do Regulamento que não correspondam a estabelecimentos de restauração e/ou bebidas, ou seja que não disponham de alvará sanitário, licença de abertura, licença ou autorização de utilização para efeitos de restauração/bebidas, e que procedam à venda de bebidas alcoólicas;

2 - A delimitação prevista no número anterior aplica-se aos estabelecimentos descritos no número anterior que se encontrem instalados ou que se venham a instalar nos seguintes lugares do Bairro Alto:

a) (...)

(...)

b) (...)

(...)

v) Rua do Diário de Noticias: totalidade dos números de policia;

(...)

4 - O Presente despacho não prejudica, contudo, as decisões de autorização de prolongamento de horário já tomadas pelo Município de Lisboa a pedido de interessados, na sequência de parecer favorável da Junta de Freguesia competente;

5 - O regime previsto no presente despacho não prejudica igualmente a possibilidade de promoção da restrição de horário de funcionamento de estabelecimentos enquadrados neste ou noutros Grupos do Regulamento de Horários em virtude da venda de vasilhames de vidro ou de natureza semelhante, capazes de fazer perigar a segurança e saúde públicas, devendo os órgãos de fiscalização do Município assegurar a respetiva monitorização.

6 - A Polícia Municipal, no âmbito da atividade de fiscalização, deverá em regra, quando detete uma infração aos limites de horário de funcionamento, promover a notificação pessoal imediata, para os efeitos previstos no artigo 50° do regime geral de contraordenações;

(...)

7 - O presente despacho entra em vigor no sétimo dia do calendário posterior à respetiva publicação em Boletim Municipal, devendo ser publicitado nos lugares de estilo.”

Largo do intendente Pina Manique, em 2011/11/16

O Presidente”

7) A restrição horária em causa foi precedida de um período de discussão pública, divulgado através do Edital n.° 66/2011, publicado no Boletim Municipal n.° 905, de 24/06 e no jornal Diário de Noticias de 24 de junho de 2011, tendo ainda sido disponibilizado o seguinte endereço de correio eletrónico para a receção dos contributos “emdiscussaopublica@em-1isboa.pt” (cf. fls. 149 e 150 dos autos).

8) Na discussão pública que precedeu a emissão do despacho indicado no ponto 6, foram ouvidas, a DECO, a Junta de Freguesia de S. Catarina, a Associação de Comerciantes do Bairro Alto e a AHRESP (cfr. fls. 200 a 206 e 218 dos autos).

9) O requerente manifestou a sua opinião através do endereço de correio eletrónico disponibilizado no edital e identificado em 7 (facto admitido por acordo, o qual foi alegado no art. 16.° da PI).

10) O Bairro Alto é uma zona histórica de forte atração turística (depoimentos de todas as testemunhas que prestaram depoimento).

11) O Bairro Alto vem sendo alvo de um fenómeno geracional – vulgarmente designado por “Botéllon” – cujos efeitos têm sido causa imediata da degradação do espaço público, pela acumulação na via pública de vasilhames de vidro e de bebidas alcoólicas (depoimento convergente das testemunhas C...e D...).

12) As grandes quantidades de garrafas de vidro deixadas nas ruas do Bairro Alto põem em causa a segurança dos moradores e frequentadores daquela zona (facto admitido por acordo e afirmado pelas testemunhas C...e D...).

13) O fenómeno descrito em 11) é provocado, na sua grande parte, pela venda a retalho de bebidas alcoólicas em garrafas de vidro (incluindo garrafas de litro) designadamente por lojas de conveniência que estão em funcionamento durante a noite, as quais praticam preços mais baixos do que os praticados pelos estabelecimentos de bebidas e restauração licenciados (cfr. depoimentos convergentes das testemunhas C...e D...).

14) O Bairro Alto sofre de desertificação diurna (depoimentos convergentes das testemunhas E...e F...).

15) As vendas realizadas pelo estabelecimento comercial do requerente são realizadas na sua maioria depois das 20h00 (cfr. depoimentos convergentes das testemunhas G..., F... e pela testemunha H...).

16) Existem pelo menos seis lojas de conveniência como a do ora requerente no Bairro Alto (depoimento das testemunhas I...).

17) A ordem de encerramento do estabelecimento do requerente depois das 20h00, põe em causa a manutenção do mesmo por falta de clientes no período diurno (depoimentos convergentes das testemunhas E...e F...).

18) O estabelecimento do requerente comercializa quase exclusivamente bebidas alcoólicas em período noturno, tabaco, batatas fritas e “snacks” (testemunha. H...).

Nada mais foi provado com interesse para a decisão em causa, atenta a causa de pedir.

Com relevância para a decisão da presente providência consideram-se não provados os seguintes factos:

A) A loja do requerente fatura em média EUR 3.500,00 a EUR 4.000,00, e 98% das vendas são faturadas depois das 20h000.

B) O requerente possuía funcionários no seu estabelecimento.

C) Os bares licenciados contribuem de igual forma para a proliferação de vidro nas ruas.

D) O estabelecimento do requerente cumpria o horário de funcionamento de pelo menos 18 horas diárias.

E) O estabelecimento do requerente encontra-se encerrado desde a prolação do despacho descrito em 6).


*

A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, e especificados nos vários pontos da matéria de facto provada e do depoimento das testemunhas G..., F... J..., K..., L..., que revelaram conhecimento direto dos factos derivado das profissões que exercem no Bairro Alto e na Câmara de Lisboa, prestaram os seus depoimentos de forma clara e coerente, assim se revelando convincentes.

Quanto aos factos não provados referidos em: A) e B) não foi produzida prova suficiente, nomeadamente documental que permitisse dar como verificado os factos alegados, bem como não foi produzida prova convincente relativamente aos factos alegados e descritos em C) a E).”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade supra fixada, importa entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

A. Do recurso interposto pelo Município:
1. Erro de julgamento quanto ao pressuposto periculum in mora [conclusões 1., 2. e 3.]

Alega o recorrente que a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado verificada uma situação de periculum in mora, quando em face da prova produzida, não é possível extrair tal conclusão.

Para o efeito invoca que da prova produzida não resulta toda a factualidade que foi dada como assente, além de que os depoimentos das testemunhas não merecem credibilidade, por se tratarem de outros comerciantes do Bairro Alto, com interesses convergentes aos do requerente, sendo também eles requerentes da mesma tutela cautelar.

Assim, considera que o Tribunal a quo não podia extrair dos depoimentos das testemunhas as conclusões constantes dos pontos 15) e 17) da matéria de facto assente, desconhecendo-se que outras “despesas e compromissos mensais diretamente decorrentes da sua atividade comercial” foram considerados na decisão recorrida.

Vejamos.

Nos termos que decorrem das conclusões do recurso em análise, o recorrente impugna o juízo efetuado na sentença recorrida relativo ao pressuposto de decretamento da providência previsto na alínea b) do nº 1 do artº 120º do CPTA, que consiste o periculum in mora, por considerar que o mesmo não se verifica, nem sobre o mesmo foi produzida prova.

Assim, constitui motivo de discordância quanto ao julgado, o julgamento feito no quadro do requisito do periculum in mora, nos termos previstos na alínea b) do nº 1 do artº 120º do CPTA, sem o qual não poderá a providência cautelar requerida ser decretada, atenta a cumulatividade dos requisitos legalmente previstos.

Porém, não obstante a alegação do recorrente de que não foi produzida prova sobre todos os factos constantes do probatório assente e que as testemunhas ouvidas não dispõem da isenção e do conhecimento direto dos factos, extrai-se que nas respetivas conclusões do recurso não se mostra impugnada a matéria de facto assente, não sendo invocado o erro de julgamento de facto, mas apenas o erro de julgamento de direito, quanto ao pressuposto do periculum in mora.

Extrai-se, por isso, que o recorrente põe em crise o erro de julgamento de direito constante da sentença sobre o requisito do periculum in mora, com base em pretenso erro de julgamento de facto, o qual, contudo, não se mostra invocado e suficientemente caracterizado, nos termos em que o exigem o disposto nas alíneas a) e b), do nº 1 do artº 685º-B, do CPC.

Segundo o artigo 685º-B do CPC, incumbe ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto o ónus de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

Além disso, nos termos do disposto no nº 1 do artº 685º-A, do CPC, o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual, conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos do recurso.

O recorrente, em momento algum da sua alegação ou das conclusões que formulou, procede à impugnação da matéria de facto assente, assaca à decisão recorrida o erro de julgamento de facto ou requer que certa matéria de facto assente seja alterada ou eliminada.

Por isso, vem o recorrente a juízo pôr em crise a sentença recorrida mediante invocação de erro de julgamento de direito, tendo como pressuposto o eventual erro de facto que, contudo, não se mostra dirigido.

Assim sendo, mantendo-se inalterada a matéria de facto assente, nos exatos termos em que a julgou o Tribunal a quo, por a mesma não se mostrar impugnada no âmbito do presente recurso, vejamos o invocado erro de julgamento cometido quanto à verificação do requisito do periculum in mora.

No que respeita ao requisito do periculum in mora, previsto na alínea b) do nº 1 do artº 120º do CPTA, extrai-se da sentença sob recurso, o seguinte:

“(…) Quanto ao periculum adveniente da não suspensão imediata do despacho n.° 138/P/2011, o requerente alega que o mesmo põe em risco a sobrevivência do seu estabelecimento comercial, na medida em que é altamente provável que a sua não suspensão imediata importe a constituição de uma situação de facto consumado de difícil reversão, pois o encerramento a partir das 20h00, é um encerramento definitivo por perda de faturação, até ser decidida a causa principal.

Da análise da matéria de facto, constata-se que ficou provado que:

a) A celebração pelo Requerente do contrato de arrendamento para o exercício da sua atividade comercial, com a duração mínima de cinco anos e pelo qual paga uma renda mensal de EUR 810,00.

b) O Bairro Alto sofre de desertificação diurna;

e) As vendas realizadas pelo estabelecimento comercial do requerente são realizadas na sua maioria depois das 20h00

d) Existem pelo menos, seis lojas de conveniência como a do ora requerente no Bairro Alto.

e) A ordem de encerramento do estabelecimento do requerente depois das 20h00, põe em causa a manutenção do mesmo por falta de clientes no período diurno.

Importa discernir se são os prejuízos alegados pelo requerente de difícil reparação, nos termos e para os efeitos da referida alínea b) do n° 1 do artigo 120° do CPTA.

Verifica-se que os danos alegados pelo requerente, ultrapassam o caráter patrimonial que possam significar, estando acima de tudo em causa a viabilidade do estabelecimento comercial e da atividade económica legalmente exercida.

A este propósito o requerente alegou e provou que tem despesas e compromissos mensais diretamente decorrentes da sua atividade comercial e para esta essenciais, cuja possibilidade de pagamento é seriamente posta em causa com a restrição de horário imposta, designadamente as despesas decorrentes do arrendamento.

Ora, estando em causa a viabilidade do estabelecimento comercial do requerente, o prejuízo assume-se claramente como de difícil reparação, na medida em que se trata de uma atividade económica em si mesma, que inclui além do perigo da perda definitiva das instalações que só são garantidas por um contrato de arrendamento a cumprir, mercadorias, clientela e investimento humano.

Na verdade, a atividade de lojista é uma atividade que tem como pressuposto de viabilidade e continuidade o seu funcionamento e a efetiva abertura ao público.

Ao que acresce o facto de o Bairro Alto ser uma zona de Lisboa que sofre de desertificação diurna e em consequência apenas produtiva comercialmente durante a noite.

Assim, importa ter presentes as especificidades de localização do estabelecimento do requerente nesta zona histórica, de forte atração turística, mas de vocação noturna cuja frequência por turistas e cidadãos que procuram divertir-se ocorre essencialmente à noite.

Nestes termos, para além dos residentes no Bairro Alto, o estabelecimento do requerente têm como potenciais clientes essas pessoas que aí se deslocam apenas para fins de diversão noturna, não sendo possível determinar quantas poderão em cada noite, das 20 ás 2 horas, efetuar compras no seu estabelecimento e quanto gastarão, nem quantas, tendo aí efetuado compras uma vez, voltarão a fazê-lo em próximas ocasiões. Se a providência requerida não for adotada e for proferida sentença de procedência no processo principal, não será possível quantificar os danos causados com o encerramento do estabelecimento às 20 horas por não se poder determinar que clientela foi perdida ou não no período em que não foi permitida a laboração, a partir das 20 horas, nem qual a faturação que a mesma faria nesse período, existindo, por isso, fundado receio de produção de prejuízos de difícil reparação.

Além do supra referido perigo do encerramento do atual estabelecimento comercial do requerente, que pode constituir uma situação de difícil reparação.

Pelo exposto, tem que se concluir pela verificação do requisito do periculum in mora, uma vez que encerrado o estabelecimento do requerente com a consequente perda do contrato de arrendamento, no caso de uma hipotética procedência futura da ação principal, dificilmente se restabeleceria o estabelecimento comercial do requerente, com as atuais características, mormente a localização.”.

Mostra-se correto o julgamento efetuado, pelo que, não assiste razão ao recorrente quanto à censura dirigida contra a sentença recorrida.

Vejamos.

As providências cautelares visam impedir que durante a pendência de qualquer processo principal a situação se altere de modo a que a decisão nela proferida, sendo favorável ao requerente, perca a sua eficácia, assim obviando a que a decisão judicial não se torne numa decisão platónica ou desprovida de sentido útil.

O requisito do periculum in mora encontrar-se-á preenchido sempre que exista o fundado receio que quando o processo principal termine, a decisão que vier a ser proferida já não venha a tempo de dar resposta às situações jurídicas carecidas de tutela, seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão inútil, seja porque tal evolução gerou ou conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis.

Deste modo, interessa como parâmetro decisório do primeiro segmento do critério previsto na al. b) do nº 1 do nº 120º do CPTA, respeitante ao periculum in mora, aferir da existência de um perigo de inutilidade da decisão a proferir no processo principal, ainda que meramente parcial, pela constituição de uma situação de facto consumado ou pelo receio de se produzirem prejuízos de difícil reparação.

Para tanto, deve o julgador proceder a um juízo de prognose ou de probabilidade das razões que determinam o receio de inutilidade da sentença a proferir na ação principal, pelo perigo da constituição de uma situação de facto consumado ou de se produzirem prejuízos de difícil reparação.

No que respeita ao perigo de, sendo a providência recusada, tornar-se impossível ou difícil, proceder à reintegração da situação conforme à legalidade, em caso de procedência do processo principal, este pressuposto relaciona-se com a possibilidade de se produzirem prejuízos de difícil reparação, não se aferindo esta dificuldade de reparação à possibilidade de avaliação ou quantificação pecuniária dos danos, mas antes à dificuldade de reintegração da situação que deveria existir caso o ato administrativo não tivesse sido praticado ou executado.

Assim, contrariamente ao entendimento anterior à reforma do contencioso administrativo, não procede à luz do atual regime, para afastar a dificuldade de reparação desses prejuízos, a exigência da irreparabilidade dos danos ou o argumento de os prejuízos serem suscetíveis de avaliação pecuniária ou passíveis de indemnização.

Contudo, não é um qualquer perigo que pode fundar o decretamento duma providência cautelar, porquanto se terá de exigir um perigo qualificado e que derive ou decorra da delonga processual.

Do ponto de vista do periculum in mora, a providência também deve ser concedida quando, mesmo que não seja de prever que a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade se tornará impossível, os factos concretos alegados inspirem o fundado receio da produção de prejuízos de difícil reparação no caso de a providência ser recusada, seja porque a reintegração no plano dos factos se perspetiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso, se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou, pelo menos, de reparar integralmente.

Os prejuízos de difícil reparação serão os que advirão do não decretamento da pretensão cautelar conservatória requerida e que, pela sua irreversibilidade, tornam extremamente difícil a reposição da situação anterior à lesão, gerando danos que, sendo suscetíveis de quantificação pecuniária, a sua compensação se revela insuficiente para repor ou reintegrar a esfera jurídica da requerente.

Quando se trata de aferir da possibilidade de se produzirem prejuízos de difícil reparação, o critério é o da maior ou menor dificuldade que envolve o restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar, devendo o juiz ponderar as concretas circunstâncias do caso em função da utilidade da sentença e não decidir com base em critérios abstratos.

Aliás e como refere José Carlos Vieira de Andrade o “juiz deve, pois, fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua esfera jurídica” (in “A Justiça Administrativa (Lições)”, 11ª ed., pág. 305).

Estar-se-á em presença duma situação de facto consumado quando se revele de todo em todo impossível a reintegração específica da esfera jurídica da requerente, tendo por referência a situação jurídica e de facto para ela existente no momento da respetiva lesão.

Assim, o STA sustentou no seu Acórdão de 31/10/2007, proc. n.º 0471/07 que numa “aceção lata, todo o facto acontecido consuma-se «qua tale», dada a irreversibilidade do tempo; mas não é obviamente esse o sentido da expressão da lei. Na economia do preceito, o «facto» será havido como «consumado» por referência ao fim a que se inclina a lide principal, de que o meio cautelar depende; e isto significa que só ocorre uma «situação de facto consumado» quando, a não se deferir a providência, o estado de coisas que a ação quer influenciar ganhará entretanto a irreversível estabilidade inerente ao que já está terminado ou acabado – ficando tal ação inutilizada «ex ante»” e, no mesmo sentido, o Acórdão do STA de 02/12/2009, proc. n.º 0438/09.

Na consideração dos prejuízos, devem ser atendidos todos os prejuízos relevantes para os interesses do requerente, independentemente de o perigo respeitar a interesses públicos ou privados, individuais ou coletivos.

Na caracterização do “fundado receio” releva o receio que seja “apoiado em factos que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Não bastam, pois, simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade, embora, de acordo com as circunstâncias, nada obste a que a providência seja decretada quando se esteja ainda face a simples ameaças advindas do requerido, ainda não materializadas, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efetivas lesões” (cfr. António S. Abrantes Geraldes in: “Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3.ª ed., pág. 103).

Por isso, obedecem a um maior rigor a apreciação dos factos integradores do requisito do periculum in mora, visto que a qualificação legal do receio como fundado visa restringir a adoção das medidas cautelares, evitando a concessão indiscriminada de proteção meramente cautelar, com o risco inerente de obtenção de efeitos que só podem ser obtidos através das ações principais.

Considerando o enquadramento antecedente, relativo à determinação do conceito de periculum in mora importa, então, reverter ao caso em análise.

Na alegação do recurso, o recorrente limita-se a invocar que a demonstração de tal requisito da providência não pode assentar exclusivamente nos testemunhos prestados por comerciantes com interesses convergentes ao do requerente, mas não constitui tal argumentação questão que em si mesmo abale o julgamento efetuado.

Não foi deduzido qualquer incidente em relação à inquirição das testemunhas em causa, nem foi impugnada a sua admissão, nos termos previstos nos artºs. 636º e 637º do CPC, valendo quanto à prova testemunhal o critério da livre apreciação da prova, segundo a convicção do julgador, nos termos do artº 396º do CC.

Além disso, a forma como o julgador firmou a sua convicção mostra-se fundamentada, nos termos que resultam, quer a propósito de cada alínea da matéria de facto, quer no seu final, mediante um juízo de apreciação global dos meios de prova produzidos, não sendo verdade dizer, como faz o recorrente, que a verificação do periculum in mora assenta exclusivamente nos depoimentos das testemunhas.

Acresce que, considerando a factualidade que se dá como assente nos autos e, reafirma-se, que não foi impugnada pelo recorrente, outro julgamento não pode ser efetuado a propósito do requisito de decretamento da providência, pois dá-se como provado que a ordem de encerramento, a partir das 20H00, põe em causa a sua manutenção, por falta de clientes no período diurno e, na sua maioria, as vendas do estabelecimento comercial serem realizadas depois desse horário – factos 15) e 17).

Atenta a matéria de facto demonstrada em juízo, que se mantém conforme ao decidido pelo tribunal a quo, e a fundamentação vertida na decisão judicial impugnada, temos que se afigura de improceder a argumentação desenvolvida pelo recorrente, por existir a demonstração na esfera jurídica do requerente duma situação passível de configurar ou integrar o conceito de periculum in mora em qualquer das situações que são pelo mesmo abarcadas, isto é, o fundado receito da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal, a que se refere a norma da alínea b) do nº 1 do artº 120º do CPTA.

Conclui-se, portanto, que a factualidade alegada e apurada permite sustentar a existência do periculum in mora, exigido pelo nº 1 do artº 120º do CPTA, razão pela qual se impunha ao tribunal a quo e se impõe nesta instância, julgar verificado tal pressuposto de decretamento da presente providência cautelar.

Pelo que, improcedem as conclusões do recurso em análise.


2. Erro de julgamento quanto ao juízo previsto no artº 120º nº 2 do CPTA [conclusões 4., 5. e 6.]

Nos termos da alegação do recorrente Município, incorre ainda a sentença recorrida em erro de julgamento de direito, por errónea interpretação do disposto no nº 2 do artº 120º do CPTA, por a entidade requerida ter alegado e provado que a adoção da providência prejudicaria o interesse público, sendo manifesto que os danos derivantes da concessão da providência serão sempre superiores aos prejuízos causados.

Alega estar em causa a prevalência dos direitos fundamentais à segurança e ao bom ambiente urbano, assim como o interesse público traduzido na salvaguarda da saúde pública, sobre o direito, eminentemente económico, à iniciativa privada, o qual terá que ter presente o interesse geral das populações.

Explanada a alegação do recorrente quanto ao fundamento do recurso em análise, importa remeter para o que se decidiu a seu propósito na sentença recorrida.

Da mesma resulta, por transcrição, o seguinte:

Relativamente à ponderação dos interesses públicos e privados em presença nos termos do n.° 2 do artigo 1200, do CPTA, importa averiguar da alegada lesão do interesse público causada pelo decretamento da providência, uma vez que como acima já se concluiu, a não concessão da presente providência terá consequências danosas para o requerente que provavelmente se verá atingido por danos de difícil reparação, designadamente, com o encerramento da sua atividade, por inviabilidade económica.

Quanto à existência de lesão do interesse público invocado pela entidade requerida na sua oposição ao decretamento da presente providência de suspensão, provaram-se os seguintes factos:

- O Bairro Alto, zona na qual se situa o estabelecimento do requerente, é uma zona histórica de forte atração turística que vem sendo alvo de um fenómeno geracional – vulgarmente designado por “Botellon”, cujos efeitos têm sido causa imediata da degradação do espaço público, pela acumulação na via pública de vasilhames de vidro de bebidas alcoólicas;

- Este fenómeno é provocado na sua grande parte pela venda a retalho de bebidas alcoólicas em garrafas de vidro, por lojas de conveniência como a do requerente;

- Estas lojas estão em funcionamento durante a noite e põem ao dispor da camada jovem as bebidas em garrafas de vidro, incluindo as garrafas de litro, vulgarmente chamadas de “litrosas”, cujo preço se revela mais económico.

Ora, as grandes quantidades de garrafas de vidro deixadas nas ruas do Bairro Alto, põe em causa a segurança dos moradores e frequentadores daquela zona, devido à possibilidade do seu arremesso e a suscetibilidade de provocar acidentes vários, constituindo uma ameaça à integridade física de quem vive, se diverte ou trabalha na zona e ao próprio espaço publico enquanto destino turístico.

A entidade requerida com o ato suspendendo pretende diminuir este fenómeno, evitando o acesso às bebidas em garrafas de vidro vendidas a retalho no próprio local, o que se revela adequado a produzir o efeito pretendido.

Efetivamente a ameaça de segurança nas ruas e nos espaços públicos, mormente espaços frequentados em massa e de diversão noturna, constitui um interesse de cariz público de forte ponderação, especialmente quando respeita à saúde e à integridade física das pessoas que neles circulam.

Este juízo em concreto, é um juízo de facto formulado com base em regras da vida e da experiência e partilhado pelas partes.

A necessidade de minorar esta insegurança derivada deste fenómeno do “Botellon” que se verifica ser suscetível de pôr em risco a integridade física das pessoas e a saúde pública, configura efetivamente um interesse público de forte ponderação contraposto aos interesses manifestados pelo requerente e que é naturalmente digno de tutela.

Os danos provocados pela continuidade daquele fenómeno afiguram-se fortemente desproporcionados em relação aos danos que o requerente pretende evitar na sua esfera jurídica com a providência, na medida em que surge contraposto aos interesses patrimoniais do requerente, o interesse de assegurar a saúde e a integridade física de pessoas.

Assim, ainda que a análise da situação concreta do requerente aconselhe o decretamento da providência, por se verificar o fumus boni iuris e o periculum in mora, isso não determina a sua efetiva adoção já que a mesma também se afigura de recusar quando “devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, uma vez que os danos que resultariam da sua concessão se mostram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, a não ser que tais efeitos possam ser atenuados ou evitados com a adoção de outra providência”. - n.° 2 do art.° 120.° do CPTA, como seja a proibição da venda de bebidas em garrafas de vidro pelo estabelecimento comercial do requerente.

Nessa medida, foram ouvidas as partes quanto à eventualidade de adoção desta providência em cumulação com a providência de suspensão do ato, ora requerida.

No âmbito desta audição a entidade requerida veio-se pronunciar a fls. 384 a 388 dos autos, onde defende que o decretamento da presente providência de suspensão do ato de restrição de horários, acompanhado da providência de proibição de venda de bebidas em garrafas de vidro não acautela, ainda assim, os interesses de saúde, de limpeza da via pública e de diminuição do consumo de álcool das camadas mais jovens, uma vez que potencia, apenas, a substituição da venda em recipientes de vidro pela venda a retalho de latas e plásticos que também serão abandonados na via pública, a partir das 20 horas.

Ora, a lesão do interesse público valorada e ponderada face aos prejuízos invocados pelo requerente na presente providência consiste na manutenção da situação de acumulação de vidro nas ruas do Bairro Alto e o potencial risco que provoca para a segurança e integridade física dos seus frequentadores, dano que é passível de ser evitado através da restrição de venda de bebidas em recipiente de vidro por parte do requerente sem pôr em causa o horário de funcionamento que têm praticado até então, evitando-se assim o encerramento do seu estabelecimento, a partir das 20h00.

Relativamente aos restantes danos invocados pela entidade requerida, devem os mesmos ser resolvidos por medidas legislativas adequadas ou por aplicação das já existentes, aliás, quanto à venda de álcool à camada mais jovem a preços baixos, não foi alegado nem provado que a sua existência é passível de ser imputada apenas aos estabelecimentos destinatários do ato suspendendo, cujo horário de funcionamento se pretende restringir ou que se verifiquem apenas no Bairro Alto, zona destinatária do ato suspendendo.”.

Tal juízo constante da sentença recorrida mostra-se corretamente formulado, por se ter procedido a uma correta interpretação e aplicação das normas legais, em face da factualidade alegada e demonstrada em juízo.

O Tribunal a quo procedeu a um juízo de ponderação de interesses, quanto à comparação dos prejuízos que o decretamento da providência é passível de provocar, seja na esfera jurídica do requerente da providência, seja para o interesse público prosseguido pelo Município, nos termos do disposto no nº 2 do artº 120º do CPTA, concluindo no sentido de não serem maiores os danos que resultarão da concessão da providência, em relação àqueles que podem resultar da sua recusa, pelo menos, quando sendo adotada, em cumulação, outra providência.

Embora a entidade requerida invoque como interesses a defender, a salvaguarda da segurança e qualidade de vida de todos os que residem, trabalham ou frequentam o Bairro Alto, assim como a preservação da saúde pública e o ambiente urbano, mostram-se os mesmos suficientemente acautelados em consequência do decretamento das providências cautelares que foram efetivamente adotadas pelo Tribunal a quo.

A lesão do interesse público, quando ponderada face aos prejuízos que o requerente irá sofrer, consiste na manutenção da situação de acumulação de vidro nas ruas do Bairro Alto e o potencial risco que tal situação é capaz de provocar para a segurança e integridade física dos seus frequentadores, dano este que é passível de ser evitado através da restrição de venda de bebidas em recipiente de vidro por parte do requerente, sem pôr em causa o horário de funcionamento que têm praticado até então, evitando-se assim o encerramento do seu estabelecimento, a partir das 20h00, tal como entendeu a sentença recorrida.

Deste modo, afigura-se que não se mostram superiores os danos que resultarão da adoção da providência, em relação aos que se podem resultar da sua recusa.

Neste sentido, improcedem as conclusões dirigidas contra a sentença recorrida, por ter a sentença recorrido procedido a uma correta interpretação e aplicação do normativo do nºs 2 do artº 120º do CPTA.


*

Pelo exposto, será de negar provimento ao recurso interposto pelo Município de Lisboa, por não provados os seus fundamentos.

B. Do recurso interposto pelo requerente:

1. Nulidade, nos termos do nº 1 do artº 661º do CPC, por a sentença extravasar o pedido formulado pelas partes

Vem o requerente a juízo interpor recurso da decisão judicial que decretou a medida cautelar de proibição do estabelecimento do requerente possuir no seu interior e vender ao público qualquer bebida em garrafa de vidro.

Alega, como fundamento único do recurso que intentou providência cautelar pedindo a suspensão judicial de eficácia do despacho suspendendo, que determinava a obrigatoriedade de encerramento dos estabelecimentos comerciais que procedessem à venda de bebidas alcoólicas, sem serem possuidores de alvará para o efeito, a partir das 20H00, por a venda de tais bebidas, após esse horário pôr em causa a segurança e integridade física dos frequentadores do Bairro Alto.

O requerente foi chamado a pronunciar-se sobre a possibilidade de adoção da providência requerida em cumulação com a medida cautelar de proibição de venda de bebidas em recipiente de vidro, tendo-se pronunciado favoravelmente, por entender que desse modo se asseguravam as finalidades do ato suspendendo e a manutenção do horário do requerente.

Contudo, segundo o recorrente, a sentença veio a determinar, além dessas medidas cautelares, uma outra que consiste na proibição de posse de recipientes de vidro, providência esta que não foi pedida e em relação à qual o requerente não foi chamado a pronunciar-se, o que determina a nulidade da sentença, nos termos do disposto no nº 1 do artº 661º do CPC.

Explanado o fundamento do recurso, vejamos o que decorre dos termos dos autos.

No final da diligência de produção de prova testemunhal, foi pela Mª Juíza a quo proferido despacho, em que convidou as partes a pronunciarem-se sobre a “possibilidade da adoção da providência de proibição da venda de bebidas em recipiente de vidro (garrafas de vidro), em cumulação com a suspensão ora requerida, na medida em que esta providência se possa revelar mais adequada a evitar a lesão dos interesses em presença”, por “considerar a existência das alegadas lesões do interesse privado do Requerente, bem como da eventual necessidade de salvaguardar o interesse público alegado pelo Requerido”.

Pronunciou-se o requerente e ora recorrente no sentido de que “tal solução se terá por ser a mais justa e equilibrada atendendo aos interesses públicos e privados em causa”, manifestando assim, nada ter a opor em relação ao decretamento da providência de proibição da venda de bebidas em recipiente de vidro (garrafas de vidro).

Contudo, tal como alegado no presente recurso, a providência que veio a ser adotada, consistiu, na “proibição desse estabelecimento de possuir no seu interior e vender ao público qualquer bebida em garrafa de vidro”.

Com isso, sustenta o recorrente que enferma a decisão recorrida, na parte em que decreta tal medida cautelar, de nulidade, ao abrigo do nº 1 do artº 661º do CPC.

Abstém-se o recorrente de subsumir a alguma das alíneas do nº 1 do artº 668º do CPC, preceito que regula as causas de nulidade da sentença, qual o fundamento de nulidade em causa.

Contudo, denota-se assacar o recorrente a nulidade a que se refere a alínea e) do nº 1 do citado artº 668º do CPC, isto é, com o fundamento de o juiz ter condenado em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Ao abrigo de tal disposição, é nula a sentença que violando o princípio dispositivo ou da vinculação do juiz ao pedido, que pretende assegurar a correspondência entre a decisão e o pedido, atendendo à conformação objetiva da instância, assente no pedido e na causa de pedir, não observe os limites impostos pelo nº 1 do artº 661º do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido.

Neste caso, tratar-se-á, apenas de uma nulidade parcial da sentença, por a mesma ser dirigida apenas quanto a uma parte da sentença, designadamente, contra a medida cautelar em causa, que determinou a “proibição desse estabelecimento de possuir no seu interior [e vender ao público] qualquer bebida em garrafa de vidro”.

Para o efeito, à luz das disposições do nº 1 do artº 661º e da alínea e), do nº 1 do artº 668º, do CPC, procederá a nulidade invocada se ao juiz cautelar estiver vedada a possibilidade de adotar medida cautelar diferente da requerida.

Porém, com relevo para a decisão a proferir, disciplina o nº 3 do artº 120º do CPTA, nos seguintes termos:

As providências cautelares a adotar devem limitar-se ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente, podendo o tribunal, ouvidas as partes, adotar outra ou outras providências, em cumulação ou em substituição daquela ou daquelas que tenham sido concretamente requeridas, quando tal se revele adequado a evitar a lesão desses interesses e seja menos gravoso para os demais interesses públicos ou privados em presença.”.

Significa tal preceito que o Tribunal a quo pode decretar outras providências, para além da requerida, designadamente, pode substituir a providência requerida por outra(s) e pode ainda decretar a providência requerida em cumulação com outra(s), quando isso se revele necessário a evitar a lesão dos interesses contrapostos envolvidos.

Tal solução tem o seu acolhimento na lei processual civil, já que o nº 3 do artº 392º do CPC autoriza o juiz cautelar a adotar providência diferente da concretamente requerida.

Assim, conferem as leis processuais, civil e administrativa, amplos poderes de conformação da lide cautelar, concedendo-se inequivocamente ao juiz cautelar administrativo o poder de decretar providência diferente da que lhe foi requerida.

Está em causa uma limitação ou compressão do princípio dispositivo ou da vinculação do juiz ao pedido, no âmbito da justiça cautelar, ao permitir-se amplos poderes de conformação da instância, os quais se justificam por razões de urgência e de provisoriedade que caracteriza essa instância e ainda com vista a obter a justa composição dos interesses envolvidos.

Neste caso, o Tribunal a quo considerou que a adoção da providência requerida de suspensão judicial de eficácia, sem ser acompanhada de outra que minimize ou atenue os seus efeitos, seria apta a causar prejuízos para o interesse público prosseguido pela entidade requerida, pelo que, entende que existe outra providência que, sendo adotada, em cumulação com a providência requerida, atenuará esse resultado.

Está em causa o disposto na parte final do disposto no nº 2 do artº 120º do CPTA, que impõe ao juiz cautelar que adote medida cautelar, mas sem que, no caso, não exista outra que caso fosse adotada, evitasse ou atenuasse os danos resultantes da sua concessão.

Em face de todo o exposto, é de concluir no sentido do princípio dispositivo se encontrar comprimido na instância cautelar, conferindo-se ao juiz cautelar o poder de decretar providência diferente da requerida pelo requerente, sem que tal constitua fundamento de nulidade da sentença recorrida, ao abrigo da alínea e), do nº 1 do artº 668º e do nº 1 do artº 661º, do CPC.

Poderá, porventura, o Tribunal a quo ter incorrido em erro de julgamento, por errada aplicação da lei, designadamente, ao não ter ouvido as partes sobre a possibilidade de proibir o estabelecimento do requerente de “possuir no seu interior” qualquer bebida em garrafa de vidro, nos termos exigidos pelo nº 3 do artº 120º do CPTA, mas não ocorre o fundamento invocado de nulidade da sentença, por violação do nº 1 do artº 661º, do CPC, conforme invocado no recurso.


*

Termos em que, improcedem as conclusões do recurso, sendo de negar provimento ao recurso interposto pelo requerente.

***

Pelo exposto, serão de julgar improcedentes ambos os recursos interpostos, por não provados os seus fundamentos.

***

Sumariando, nos termos do nº 7 do artº 713º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Não procedendo o recorrente, em momento algum da sua alegação ou das conclusões de recurso, à impugnação da matéria de facto assente, não assacando à decisão recorrida o erro de julgamento de facto ou sequer que certa matéria de facto assente deva ser alterada ou eliminada, não se mostram satisfeitos os requisitos previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 685º-B do CPC, que permitem a sindicabilidade do julgamento de facto.

II. O requisito do periculum in mora encontrar-se-á preenchido sempre que exista o fundado receio que quando o processo principal termine, a decisão que vier a ser proferida já não venha a tempo de dar resposta às situações jurídicas carecidas de tutela, seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão inútil, seja porque tal evolução gerou ou conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis.

III. São de reputar como danos dificilmente reparáveis ou que existe o fundado receito da constituição de uma situação de facto consumado, preenchendo o requisito do periculum in mora, previsto na alínea b) do nº 1 do artº 120º do CPTA, os danos relativos à perda de clientela e ao risco de encerramento do estabelecimento comercial, por falta de clientes no período diurno.

IV. Não sendo deduzido qualquer incidente em relação à inquirição das testemunhas indicadas pelo requerente, nem tendo sido impugnada a sua admissão, nos termos previstos nos artºs. 636º e 637º do CPC, valendo quanto à prova testemunhal o critério da livre apreciação da prova, segundo a convicção do julgador, nos termos do artº 396º do CC e não se mostrando esta impugnada ou contra ela dirigido o erro de julgamento de facto, carece de sentido a alegação de que as testemunhas ouvidas não são isentas ou que o seu depoimento carece de credibilidade.

V. Embora a entidade requerida invoque como interesses a defender, a salvaguarda da segurança e qualidade de vida de todos os que residem, trabalham ou frequentam o Bairro Alto, assim como a preservação da saúde pública e o ambiente urbano, mostram-se tais interesses suficientemente acautelados em consequência do decretamento das providências cautelares que foram efetivamente adotadas pelo Tribunal a quo, mediante a formulação do juízo de ponderação de todos os interesses contrapostos, nos termos do nº 2 do artº 120º do CPTA.

VI. A adoção da providência requerida, de suspensão judicial de eficácia do ato administrativo que ordenou a redução do horário de funcionamento do estabelecimento comercial, das 02H00, para as 20H00, em cumulação com a medida de proibição de possuir no seu interior e de vender ao público qualquer bebida em recipiente de vidro, permite assegurar o disposto na parte final do nº 2 do artº 120º do CPTA, que impõe ao juiz cautelar a adoção da medida cautelar adequada e proporcional, por no caso inexistir outra que assegure a menor lesão de todos os interesses envolvidos.

VII. A lesão do interesse público quando ponderada face aos prejuízos que o requerente irá sofrer, consiste na manutenção da situação de acumulação de vidro nas ruas do Bairro Alto e o potencial risco que tal situação é capaz de provocar para a segurança e integridade física dos seus frequentadores, dano este que é passível de ser evitado através da restrição de venda de bebidas em recipiente de vidro por parte do requerente sem pôr em causa o horário de funcionamento praticado até então pelo estabelecimento, evitando-se assim o encerramento do seu estabelecimento, a partir das 20h00.

VIII. É nula a sentença que, violando o princípio dispositivo, não observe os limites impostos pelo nº 1 do artº 661º do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido, segundo a alínea e), do nº 1 do artº 668º, do CPC.

IX. Porém, concede-se no nº 3 do artº 120º do CPTA, o poder ao juiz cautelar de decretar outras providências para além da requerida, designadamente, poder substituir a providência requerida por outra(s) e decretar a providência requerida em cumulação com outra(s), quando isso se revele necessário a evitar a lesão dos interesses contrapostos envolvidos, sem que tal constitua fundamento de nulidade da sentença recorrida, ao abrigo da alínea e), do nº 1 do artº 668º e do nº 1 do artº 661º, do CPC.

X. Está em causa uma limitação ou compressão do princípio dispositivo ou da vinculação do juiz ao pedido, no âmbito da justiça cautelar, ao permitir-se amplos poderes de conformação da instância, justificados por razões de urgência e de provisoriedade que caracteriza essa instância e ainda com vista a obter a justa composição dos interesses envolvidos.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento a ambos os recursos, por não provados os seus respetivos fundamentos, mantendo a decisão de decretamento das providências cautelares.

Custas pelos recorrentes.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Maria Cristina Gallego Santos)
(António Paulo Vasconcelos)