Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:03667/08
Secção:Contencioso Administrativo - 2º Juízo
Data do Acordão:03/13/2009
Relator:Rui Pereira
Descritores:PLANO DIRECTOR MUNICIPAL
PRÉDIO EM RUÍNAS
GARANTIA DE EXISTÊNCIA ACTIVA
RECONSTRUÇÃO
Sumário:I – Os Planos Municipais têm “natureza regulamentar”, normativa, e como regulamentos que são, não projectam os seus efeitos para o passado, ou seja, não têm efeitos retroactivos.
II – Ao estabelecerem “o regime de uso do solo, definindo modelos de evolução previsível da ocupação humana e da organização de redes e sistemas urbanos e, na escala adequada, parâmetros de aproveitamento do solo e de garantia da qualidade ambiental”, tais instrumentos devem conformar-se com normas de valor hierárquico superior, nomeadamente as que, à semelhança do disposto no artigo 60º do RJUE, estabelecem que “as edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares supervenientes” [nº 1], ou que “a concessão de licença ou autorização para a realização de obras de reconstrução ou de alteração das edificações não pode ser recusada com fundamento em normas legais ou regulamentares supervenientes à construção originária, desde que tais obras não originem ou agravem desconformidade com as normas em vigor, ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação” [nº 2].
III – A sentença recorrida interpretou o nº 1 do artigo 68º do Regulamento do PDM de Vila do Porto – que apenas permite trabalhos de manutenção de muros e edificações existentes à data da sua publicação no DR – no sentido da sua subordinação ao nº 2 do artigo 60º do RJUE, ou seja, aos dois objectivos que aquele preceito pretende compatibilizar: por um lado, a chamada garantia de existência activa, da qual é titular o proprietário ou utilizador do prédio; e, por outro lado, a não afectação das finalidades consagradas nos planos que vigoram sobre as áreas em causa, que correspondem, imediatamente, ao interesse público.
IV – É essa preocupação de “justa ponderação e superação dos conflitos de interesses coenvolvidos nos planos” que está plasmada no artigo 60º do RJUE.
V – O citado preceito do Regulamento do PDM de Vila do Porto não previu a possibilidade de obras de reconstrução, ou seja, na expressão da alínea c) do artigo 2º do RJUE, das obras de construção subsequentes à demolição total ou parcial de uma edificação existente, das quais resulte a manutenção ou a reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos, contando que as mesmas não originem nem agravem a desconformidade com as normas em vigor.
VI – Por isso, é acertada a conclusão contida na sentença recorrida, quando considerou que uma interpretação adequada da lei deveria levar-nos a concluir que na estatuição do artigo 68º, nº 1 do Regulamento do PDM de Vila do Porto, o legislador disse menos do que queria.
VII – Estando assente que o projecto em causa visa a (re)construção duma edificação idêntica à que existia no prédio, antes da sua ruína, tal não origina nem agrava desconformidade com as normas invocadas pelo acto administrativo, podendo dizer-se, ademais, que não acarreta alteração “da identidade do edifício originário”, sendo relevante, na perspectiva assinalada, que o projecto se integra no âmbito da protecção de interesses da recorrida, titulada pelo nº 2 do artigo 60º, e, simultaneamente, não colide com o interesse público que o mesmo acautela, na concretização que dele foi feita pelo acto impugnado.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO
Inês ..., com os sinais dos autos, interpôs no TAF de Ponta Delgada uma acção administrativa especial contra o Município de Vila do ..., pedindo a declaração de nulidade de deliberação da Câmara do réu que indeferiu licenciamento de obra de reconstrução de prédio que requereu ou, sem prescindir, a sua anulação, bem como a condenação do réu a deferir aquela sua pretensão.
Por sentença datada de 14-12-2007 foi a referida acção julgada procedente e, em consequência, anulada a deliberação e ordenada a sua substituição “por outra na qual se considere que a obra requerida respeita o disposto no artigo 68º do PDM de Vila do ...”.
Inconformada com tal decisão, veio o Município de Vila do ... recorrer jurisdicionalmente para este TCA Sul, tendo na respectiva alegação formulado as seguintes conclusões:
a) A matéria de facto considerada assente no que respeita ao estado da edificação, tendo por base a prova documental existente no processo administrativo deve ser corrigida nos seguintes termos: "à data da entrada em vigor do PDM de Vila do ... a edificação anteriormente existente no prédio estava em ruínas, apenas se mantendo uns pequenos muros cobertos de vegetação".
b) A interpretação segundo a qual a "os trabalhos de manutenção de muros e edificações existentes" referida no nº 1 do artigo 68º do regulamento do PDM de Vila do ... não comporta a reconstrução é a única possível sem forçar a letra da lei atento o imperativo do artigo 9º, nº 2 do Código Civil, nos termos do qual não é legítima a interpretação que não tenha um mínimo de correspondência no texto.
c) Tratando-se de norma secundária deve ser interpretado conforme a lei verificando-se se tal não for possível a ilegalidade do regulamento.
d) Os artigos 60º do DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, e 117º, nº 4 do DL nº 380/99, de 22 de Setembro, que estabelecem a garantia de existência apenas abrange as edificações existentes à data da sua entrada em vigor.
e) A edificação em causa nos autos já não existia à data da entrada em vigor do Regulamento do PDM de Vila do ... e por isso não é abrangida pela referida garantia de existência.
f) Aliás, sendo hoje unanimemente admitido que o direito de propriedade não engloba o direito a construir e tendo o princípio da garantia da existência por base o direito de propriedade constitucionalmente reconhecido bem se compreende que aquela garantia apenas proteja as construções existentes à data da vigência das novas regras.
g) O artigo 68º, nº 1 do regulamento do PDM, no que respeita às edificações que não existiam à data da sua entrada em vigor está conforme os diplomas legais citados, não sofrendo de qualquer ilegalidade.
h) Por isso, a deliberação impugnada não padece de qualquer vício, designadamente o de violação de lei.
i) Decidindo em contrário violou a douta decisão recorrida o mencionado artigo 68º, nº 1 do regulamento do PDM de Vila do ..., e o artigo 60º do DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, os quais devem ser interpretados conforme se pugna nas presentes alegações”.
A recorrida contra-alegou, pugnando pelo improvimento do recurso [cfr. fls. 162/170 dos autos].
Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença recorrida deu como assente a seguinte factualidade:
i. A autora é proprietária de um prédio urbano sito no ..., concelho de Vila do ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …..
ii. Em 2-11-2006, a autora entregou na Câmara do réu um projecto de conservação e restauro de habitação no referido prédio.
iii. Em reunião desta de 30-3-2007, foi deliberado indeferir tal “pedido de licenciamento para as obras de reconstrução de uma moradia, sita no lugar denominado São Lourenço, freguesia de Santa Bárbara, concelho de Vila do ..., uma vez que a zona onde se situa o pedido de licenciamento é definida no Plano Director Municipal como Espaço Natural e, em conformidade com as disposições do artigo 68º do Regulamento do PDM, apenas são permitidas, naquele espaço, obras de manutenção de muros e edificações e pinturas exteriores das edificações existentes, desde que não introduzam alterações cromáticas ou de textura.
A edificação que consta dos documentos registrais e fiscais está reduzida a ruínas e, por isso, a obra cujo licenciamento se requer não se enquadra no conceito de manutenção, antes configurando uma reconstrução.
Dadas as restrições previstas no artigo 68º do regulamento do PDM, a reconstrução não pode ser licenciada, quer por não estar incluída entre as actividades urbanísticas permitidas para o local, quer por contender com as proibições constantes das alíneas a) e c) do nº 3 do artigo 68º do Regulamento do PDM”.
iv. Actualmente, da construção originária existente no prédio, apenas se mantêm parte das paredes.
v. O projecto em causa visa a construção de edificação idêntica à que nele existia, antes da sua ruína.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Vejamos, pois, se assiste razão à entidade recorrente nas críticas que aponta à sentença recorrida, começando pela questão da [aparente] desconformidade entre a matéria de facto que foi dada como assente na sentença e a que resulta da prova documental existente no processo administrativo, não sem antes deixar expresso que o dito processo administrativo não acompanhou os presentes autos quando estes subiram em recurso.
Parece-nos, porém, não se afigurar necessária a confrontação entre os documentos constantes do processo administrativo para concluir que a matéria de facto dada como assente na sentença recorrida carece de correcção.
Com efeito, a sentença recorrida considerou assente que “actualmente, da construção originária existente no prédio, apenas se mantêm parte das paredes […] e que o projecto em causa visa a construção de edificação idêntica à que nele existia, antes da sua ruína”, sendo que, ao invés, a entidade recorrente defende a respectiva correcção, de forma a ficar consignado que “à data da entrada em vigor do PDM de Vila do ... a edificação anteriormente existente no prédio estava em ruínas, apenas se mantendo uns pequenos muros cobertos de vegetação”.
Em nosso entender, a matéria de facto dada como assente não carece ser corrigida, já que a realidade que se pretendeu ter por demonstrada é, no essencial, a mesma, para além de não ser susceptível de influir na determinação do regime jurídico aplicável ao caso.
Procuremos demonstrá-lo.
A sentença recorrida claramente reconheceu que o prédio relativamente ao qual a entidade recorrente indeferiu um projecto de conservação e restauro de habitação apresentado pela autora [e aqui recorrida] se encontra em ruínas, e que actualmente, da construção originária existente no prédio, apenas se mantêm parte das paredes [cfr. pontos iv. e v. da matéria de facto dada como assente].
Por seu turno, sustenta a entidade recorrente que o que deveria ter sido dado como assente – porque resultante da prova documental existente no processo administrativo – é que à data da entrada em vigor do PDM de Vila do ... a edificação anteriormente existente no prédio estava em ruínas, apenas se mantendo uns pequenos muros cobertos de vegetação.
Porém, pese embora a falta de rigor conceitual no tocante à alegação do facto que a entidade recorrente pretende ver corrigido – com efeito, o Tribunal fica sem saber se “os pequenos muros cobertos de vegetação” correspondem ou não “a parte das paredes da construção originária existente no prédio” –, não nos parece que essa aparente desconformidade seja susceptível de conduzir a solução jurídica distinta da atingida pela sentença recorrida. É que o cerne da questão está em determinar com rigor qual o sentido e alcance da norma constante de alínea a) do artigo 68º do Regulamento do PDM de Vila do ..., nomeadamente se aí também está contemplada a execução de obras de reconstrução de edifícios existentes à data da publicação do PDM no DR, tendo a sentença recorrida concluído pela afirmativa, conclusão essa relativamente à qual o Município de Vila do ... discorda.
Ora, para alcançar a pretendida conclusão é indiferente a forma como o facto essencial foi dado como assente na sentença recorrida, já que no fundo o que se verifica – e nisso as partes estão de acordo – é que o prédio em causa se encontra em ruínas, e que actualmente, da construção originária apenas se mantêm parte das paredes.
Daí que sendo indiferente para a solução jurídica a forma como o facto foi especificado na sentença, não carece a mesma de correcção, improcedendo assim a conclusão vertida na alínea a) da alegação da entidade recorrente.
* * * * * *
Vejamos então se, no tocante ao fundo da questão submetida à apreciação do TAF de Ponta Delgada, a sentença incorreu no erro de julgamento que a entidade recorrente lhe assaca.
Como se viu da matéria de facto supra descrita, a autora – proprietária de um prédio urbano sito no ...a, concelho de Vila do ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo 397º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00547/180789, do qual actualmente apenas se mantêm parte das paredes – submeteu à apreciação da Câmara de Vila do ..., em 2-11-2006, um projecto de conservação e restauro de habitação no referido prédio.
Porém, em reunião daquela Câmara, de 30-3-2007, foi deliberado indeferir esse pedido de licenciamento – que visava a construção de edificação idêntica à que existia no prédio, antes da sua ruína – com o fundamento no facto da zona onde se situa o aludido prédio estar definida no Plano Director Municipal como Espaço Natural e, em conformidade com as disposições do artigo 68º do Regulamento do PDM, apenas serem permitidas, naquele espaço, obras de manutenção de muros e edificações e pinturas exteriores das edificações existentes, desde que não introduzam alterações cromáticas ou de textura. Por isso, e considerando que a edificação que consta dos documentos registrais e fiscais está reduzida a ruínas e, porque a obra cujo licenciamento vinha requerido não se enquadra no conceito de manutenção, antes configurando uma reconstrução, dadas as restrições previstas no artigo 68º do regulamento do PDM, a reconstrução não pode ser licenciada, quer por não estar incluída entre as actividades urbanísticas permitidas para o local, quer por contender com as proibições constantes das alíneas a) e c) do nº 3 do artigo 68º do referido Regulamento.
Contudo, a sentença recorrida sufragou entendimento diverso, tendo anulado a deliberação em causa, com os seguintes fundamentos:
3. O cerne da questão que ora nos ocupa centra-se na determinação do alcance do conceito de "trabalhos de manutenção de muros e edificações", tendo em vista a possibilidade ou não de a autora levar a cabo a obra que pretende.
No pressuposto da dimensão normativa do referido plano director, consoante ao disposto no artigo 69º, nº 1 do DL nº 380/99, de 22 de Setembro, que estabelece o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial – «os planos municipais de ordenamento do território são instrumentos de natureza regulamentar, aprovados pelos municípios» –, a questão que se nos depara é de interpretação de uma norma jurídica.
As regras de interpretação da lei constam do artigo 9º do Código Civil, sendo com base no nº 2 deste preceito que o réu defende na sua contestação que o termo "manutenção" deverá corresponder ao significado natural que nos é dado pelos dicionários pelo que, no caso vertente, a pretensão da autora de repor a edificação ora em ruínas não se poderia conter no alcance do mesmo, antes cabendo no conceito de "reconstrução".
Anote-se, todavia, que se é certo que naquele nº 2 se preceitua a não consideração do "pensamento legislativo que não tenha na letra da lei o mínimo de correspondência verbal", o comando interpretativo fundamental é o que emana do nº 1 do mesmo artigo 9º, segundo o qual a interpretação se não deve cingir à letra da lei, "mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico". Sendo que outra das regras complementares é a plasmada no nº 3, segundo a qual o "intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".
Começando por este último subcritério, compulsemos a interpretação segundo a qual a recuperação de uma ruína não cabe no conceito de obra de manutenção.
Para anotarmos, com a autora, das consequências absurdas de tal posição. Na verdade, se perfilharmos a concepção estrita de manutenção que o réu defende, se, na sequência de um tremor de terra ou de uma tempestade, uma edificação situada em zona de espaço natural ruir [e, compulsadas as cartas de fls. 52 a 55 e 77, são meia dúzia delas, nas cercanias do prédio da autora], não será possível a recuperação da mesma por a obra a efectuar ser de reconstrução.
Presumindo que o legislador não comete absurdos, teremos assim de concluir que o conceito de "manutenção" que ele adopta se deve afastar do sentido natural do termo.
4. Tratemos pois de, não nos cingindo à letra da lei, tentar reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico.
O que passa indefectivelmente pelo compulsar de legislação estruturante daquela que ora queremos interpretar.
Como não poderia deixar de ser, começaremos pelo DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, que estabelece o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, no preâmbulo do qual se tecem considerações expressivas relativamente à articulação entre os direitos adquiridos pela pré-existência de edificações em relação às disposições que ex novo estatuam proibições de construção.
«Consagra-se ainda expressamente o princípio da protecção do existente em matéria de obras de edificação, retomando assim um princípio já aflorado nas disposições do Regulamento Geral das Edificações Urbanas mas esquecido nas sucessivas revisões do regime do licenciamento municipal de obras particulares.
Assim, à realização de obras em construções já existentes não se aplicam as disposições legais e regulamentares que lhe sejam supervenientes, desde que tais obras não se configurem como obras de ampliação e não agravem a desconformidade com as normas em vigor.
Por esta via se dá um passo importante na recuperação do património construído, já que, sem impor um sacrifício desproporcional aos proprietários, o regime proposto permite a realização de um conjunto de obras susceptíveis de melhorar as condições de segurança e salubridade das construções existentes».
Nessa linha, estatuiu-se no artigo 60º, nº 1, desse diploma que «as edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares supervenientes». Ainda mais especificamente, no nº 2, se formulou o princípio de que «a concessão de licença ou autorização para a realização de obras de reconstrução ou de alteração das edificações não pode ser recusada com fundamento em normas legais ou regulamentares supervenientes à construção originária, desde que tais obras não originem ou agravem desconformidade com as normas em vigor, ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação».
Princípios que colheram aplicação na prática jurisprudencial, nos acórdãos do STA de 3 de Novembro de 2005 [Simões de Oliveira] e de 1 de Março de 2005 [Alberto Oliveira], in http.dgsi.pt. Assim, no sumário deste último: «o nº 2 do artigo 60º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação [DL nº 555/99, de 16/12, alterado pelo DL nº 177/2001, de 4/6] pretende compatibilizar dois interesses, por um lado, o do proprietário ou utilizador do prédio, estabelecendo a chamada garantia de existência activa, por outro lado, o interesse público na manutenção das finalidades consagradas nos planos que vigoram sobre as áreas em causa».
Este respeito pela edificação [a originária, frise-se] que pré-existe à norma proibitiva, verdadeiro princípio da garantia da existência activa, não é mais do que uma vertente da tutela constitucional do direito à propriedade privada, tal como consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa. Consubstanciando aquele artigo 60º do DL nº 555/99 uma verdadeira densificação desse direito através da lei ordinária.
O mesmo se diga, aliás, do artigo 117º do DL nº 380/99, de 22 de Setembro, que estabelece o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, preceito relativo à suspensão de concessão de licenças no qual se aflora aquele mesmo princípio, no seu nº 4: «não se suspende o procedimento nos termos do presente artigo quando o pedido tenha por objecto obras de reconstrução ou de alteração em edificações existentes, desde que tais obras não originem ou agravem desconformidade com as normas em vigor ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação». Que igualmente ressuma do preceito do artigo 143º do mesmo diploma: «são indemnizáveis as restrições singulares às possibilidades objectivas de aproveitamento do solo, preexistentes e juridicamente consolidadas, que comportem uma restrição significativa na sua utilização de efeitos equivalentes a uma expropriação».
Aliás, no preâmbulo deste diploma, esclarecem-se as razões que levaram a estes preceitos: «inovação significativa é ainda a previsão de direito à indemnização decorrente da adopção de medidas preventivas nas seguintes situações: a) quando comportem, durante a sua vigência, uma restrição ou supressão substancial de direitos de uso do solo preexistentes e juridicamente consolidados, designadamente mediante licença ou autorização; b) quando a mesma ocorra dentro do prazo de quatro anos após a caducidade de medidas preventivas anteriores, correspondendo o valor da indemnização ao prejuízo efectivo provocado à pessoa em causa em virtude de ter estado provisoriamente impedida de utilizar o seu solo para a finalidade para ele admitida».
Ora, se a legislação estruturante da que ora visamos interpretar, em aspectos fundamentais, porque reportados a preceitos densificadores de direito consagrado constitucionalmente, nos leva a resultados incompatíveis com a interpretação da norma em análise propugnada pelo réu, impõe-se procurar-lhe sentido diverso. No limite, sob pena de inconstitucionalidade.
5. Vimos, portanto, que a interpretação do artigo 68º do Regulamento do PDM pretendida pelo réu não só é absurda como contraria outras disposições constantes de diplomas estruturantes e, portanto, com mais peso normativo do que aquele em que o referido preceito figura.
Vejamos se é possível encará-lo com outro sentido.
Pretende-se o significado de "trabalhos de manutenção de edificações".
No artigo 2º do DL nº 555/99 [Regime Jurídico da Urbanização e Edificação], são enunciadas definições que nos podem ajudar na tarefa hermenêutica que encetámos.
Assim, na alínea a), edificação: «a actividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência».
Na alínea c), obras de reconstrução: «as obras de construção subsequentes à demolição total ou parcial de uma edificação existente, das quais resulte a manutenção ou a reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos».
Na alínea f), obras de conservação: «as obras destinadas a manter uma edificação nas condições existentes à data da sua construção, reconstrução, ampliação ou alteração, designadamente as obras de restauro, reparação ou limpeza».
Verifica-se que não faz parte do elenco de tipo de obras aí definidas o constante daquele artigo 68º – "trabalhos, ou obras, de manutenção".
Poder-se-á dizer, todavia, que decorre do teor da alínea f) uma equiparação entre os conceitos de "conservação" e de "manutenção". Podendo perfeitamente tal alínea comportar a seguinte leitura: "obras de manutenção: as obras destinadas a conservar (...)"
Sem dúvida. Mas já vimos que dar tal sentido àquele artigo leva a consequências inaceitáveis, como a impossibilidade de recuperar uma edificação arruinada por um sismo ou por uma tempestade, ou à transformação de um prédio urbano em rústico, intuito que não esteve com certeza na mente de quem gizou aquela norma, consubstanciando, por outro lado, grave desrespeito ao princípio da garantia da existência activa, consagrado em diplomas com maior força vinculativa.
Anote-se, no entanto, que no conceito de obras de reconstrução da alínea c) que supra se transcreveu também se aplica o termo "manutenção", quando se reporta aquelas às obras de construção "das quais resulte a manutenção ou a reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos".
Porque não entender que a remissão daquele artigo é para esta alínea? Assim, teríamos que as obras seriam possíveis, desde que tivessem por objecto a manutenção ou reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos. Interpretação esta que, embora com menos correspondência no texto, dá sentido ao que parecia um absurdo e harmoniza o preceito com outras normas do mesmo ordenamento jurídico que lhe são hierarquicamente superiores.
Para quem entenda que esta interpretação extravasa os limites permitidos pelo nº 3 do artigo 9º do Código Civil, na parte em que exige ao intérprete que presuma que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, sempre se dirá que nesse preceito se parte de uma presunção que, como tal, pode ser elidida. O que, em situações limite, como a presente, se justifica. Aliás, mesmo essa presunção sempre colidiria com a outra também constante desse número que, ao impor que se presuma que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, impede que se possa pensar que pretendeu um absurdo lógico e/ou um desrespeito de princípios estruturantes da ordem jurídica. O que transforma em necessidade o afastamento da presunção de que o legislador se expressou devidamente.
6. Pelo exposto, reconstituindo o pensamento legislativo, levando sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, tenho por única interpretação lógica e sustentável do artigo 68º, nº 1 do Regulamento do PDM de Vila do ..., na parte em que se reporta à permissão de trabalhos de manutenção de edificações, a de que tal permissão se refere a obras que não alterem a estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos das mesmas”.
Vejamos pois se o entendimento sufragado na sentença, no tocante à interpretação a dar ao nº 1 do artigo 68º do Regulamento do PDM de Vila do ..., é de manter.
Como resulta do disposto no artigo 65º, nº 4 da CRP, compete ao Estado e às autarquias locais definirem “as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento” onde se incluem, entre outros, os Planos Directores Municipais [de ora em diante, abreviadamente designados apenas pela sigla PDM].
Nos termos do DL nº 380/99, de 22/9, os Planos Municipais de Ordenamento do Território, de que os PDM constituem uma espécie, “são instrumentos de natureza regulamentar, aprovados pelos municípios” [artigo 69º, nº 1].
A sua “elaboração” é da competência da Câmara Municipal [artigo 74º, nº 1]. Assim, depois de decorridos os procedimentos legalmente previstos, nomeadamente o período de “concertação”, “acompanhamento” e “discussão pública” [cfr. artigos 76º e 77º], a Câmara Municipal elabora a versão final da proposta para aprovação [artigo 77º, nº 8] a qual, uma vez concluída é objecto de “parecer” da respectiva “Comissão de Coordenação Regional” que incide “sobre a conformidade com as disposições legais e regulamentares vigentes, bem como sobre a articulação e coerência da proposta com os objectivos, princípios e regras aplicáveis no município em causa, definidos por quaisquer outros instrumentos de gestão territorial eficaz” [artigo 78º], sendo posteriormente aprovado “pela assembleia municipal, mediante proposta apresentada pela câmara municipal” [artigo 79º, nº 1].
Do exposto resulta que, nos termos do citado diploma, os Planos Municipais têm “natureza regulamentar”, ou seja, normativa, e como regulamentos que são, não projectam os seus efeitos para o passado, ou seja, não têm efeitos retroactivos.
Daí que, ao estabelecerem “o regime de uso do solo, definindo modelos de evolução previsível da ocupação humana e da organização de redes e sistemas urbanos e, na escala adequada, parâmetros de aproveitamento do solo e de garantia da qualidade ambiental”, tais instrumentos devem conformar-se com normas de valor hierárquico superior, nomeadamente as que, à semelhança do disposto no artigo 60º do RJUE, estabelecem que “as edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares supervenientes” [nº 1], ou que “a concessão de licença ou autorização para a realização de obras de reconstrução ou de alteração das edificações não pode ser recusada com fundamento em normas legais ou regulamentares supervenientes à construção originária, desde que tais obras não originem ou agravem desconformidade com as normas em vigor, ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação” [nº 2].
Ora, como se viu, a sentença recorrida interpretou o nº 1 do artigo 68º do Regulamento do PDM de Vila do ... no sentido da sua subordinação ao nº 2 do artigo 60º do RJUE, ou seja, aos dois objectivos que aquele preceito pretende compatibilizar: por um lado, a chamada garantia de existência activa, da qual é titular o proprietário ou utilizador do prédio; e, por outro lado, a não afectação das finalidades consagradas nos planos que vigoram sobre as áreas em causa, que correspondem, imediatamente, ao interesse público. Por isso, autores como Fernando Alves Correia sustentam que é, sem dúvida, essa preocupação de “justa ponderação e superação dos conflitos de interesses coenvolvidos nos planos” que está plasmada no artigo 60º do RJUE [Manual de Direito do Urbanismo, Volume I, 4ª Edição, Almedina].
O que estava em causa no projecto submetido pela aqui recorrida à apreciação da Câmara Municipal de Vila do ... era saber se era ou não possível a construção duma edificação idêntica à que nele existia originariamente, antes da sua ruína, e da qual apenas se mantêm actualmente parte das paredes.
A Câmara Municipal de Vila do ..., considerando que a zona onde o prédio em causa está implantado foi classificada no Regulamento do PDM como “espaço natural”, arrimou-se ao teor literal do artigo 68º, nº 1 daquele Regulamento, que determina que “o uso do solo nas áreas identificadas como biótopos e marcadas com símbolo «B» na planta de ordenamento, assim como as faixas costeiras referidas no artigo 66º, fica condicionado às disposições seguintes: 1) são permitidos trabalhos de manutenção de muros e edificações existentes à data da publicação do Plano Director Municipal no Diário da República”, vindo a indeferir o projecto de reconstrução apresentado pela aqui recorrida.
Porém, como se viu, diverso foi o entendimento expresso na sentença recorrida, a qual, reconstituindo o pensamento legislativo, levando sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, teve por única interpretação lógica e sustentável do artigo 68º, nº 1 do Regulamento do PDM de Vila do ..., na parte em que se reporta à permissão de trabalhos de manutenção de edificações, a de que tal permissão se refere a obras que não alterem a estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos das mesmas, por remissão para o conceito de obras de reconstrução referido na alínea c) do artigo 2º do RJUE, na qual também se aplica o termo “manutenção”, quando se reporta aquelas às obras de construção “das quais resulte a manutenção ou a reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos”.
A apontada remissão do artigo 68º do Regulamento do PDM de Vila do ... para a citada alínea do artigo 2º do RJUE acabaria por colmatar a lacuna existente no primeiro normativo, pois que assim tornaria possíveis as obras de reconstrução da edificação que no local existira, uma vez que as mesmas tinham por objecto a manutenção ou reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos, dando sentido ao que parecia um absurdo e harmonizando o preceito com outras normas do mesmo ordenamento jurídico que lhe são hierarquicamente superiores.
Em nosso entender a sentença recorrida ajuizou correctamente, constituindo o caso em análise um exemplo paradigmático da “justa ponderação e superação dos conflitos de interesses coenvolvidos nos planos”, plasmada no artigo 60º, nº 2 do RJUE.
Com efeito, é evidente que o citado preceito do Regulamento do PDM de Vila do ... não previu a possibilidade de obras de reconstrução, ou seja, na expressão da alínea c) do artigo 2º do RJUE, das obras de construção subsequentes à demolição total ou parcial de uma edificação existente, das quais resulte a manutenção ou a reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos, contando que as mesmas não originem nem agravem a desconformidade com as normas em vigor.
Por isso, é acertada a conclusão contida na sentença recorrida, quando considerou que uma interpretação adequada da lei deveria levar-nos a concluir que na estatuição do artigo 68º, nº 1 do Regulamento do PDM de Vila do ..., o legislador disse menos do que queria.
No caso, estando assente que o projecto em causa visa a construção duma edificação idêntica à que existia no prédio, antes da sua ruína, parece-nos evidente que tal não origina nem agrava desconformidade com as normas invocadas pelo acto administrativo, podendo dizer-se, ademais, que não acarreta alteração “da identidade do edifício originário” [cfr. Fernando Alves Correia, ob. citada].
O que releva é que, na perspectiva assinalada, o projecto se integra no âmbito da protecção de interesses da recorrida titulada pelo nº 2 do artigo 60º, e, simultaneamente, não colide com o interesse público que o mesmo acautela, na concretização que dele foi feita pelo acto impugnado.
É que o critério do artigo 60º tão pouco reside em se tratar ou não de trabalhos de manutenção de edificações. O preceito fala de “obras de reconstrução ou de alteração das edificações”, o que tem, naturalmente, um significado muitíssimo mais amplo. Apenas se exige que as obras não criem ou agravem a desconformidade com as normas construtivas [actualmente] em vigor, ou tenham como efeito a melhoria das condições de segurança e salubridade das edificações.
Ora, à vista da factualidade provada, a hipótese cabe precisamente neste nº 2, uma vez que a pretensão da recorrida consiste em (re)construir uma edificação idêntica à que existia prédio, antes da sua ruína, da qual resultarão efeitos benéficos em matéria de segurança e salubridade da edificação. Dificilmente se compreende que seja intenção da Câmara Municipal de Vila do ... manter na localidade de São Lourenço um conjunto de ruínas, sem qualquer préstimo ou interesse arqueológico, ao invés de pugnar pela reconstrução das que aí existem, de acordo com a traça original que esses edifícios – hoje em ruínas – possuíam.
E, de resto, também não se vê como delas possa advir o agravamento de quaisquer ilegalidades construtivas. De todo o modo, afigura-se-nos que teria de ser a recorrente jurisdicional a concretizar, no próprio acto de rejeição do pedido, que ilegalidades seriam essas, e por que forma sairiam agravadas através da pretendida reconstrução.
O que é certo é que o não fez, pela simples razão de que não lhe ocorreu que, “in casu”, o artigo 60º do DL nº 555/99, de 16/12, arredava a aplicação do Regulamento do PDM de Vila do ..., cujo artigo 68º supôs, manifestamente, esgotar o quadro normativo susceptível de ser convocado, inviabilizando por si só a reconstrução pretendida.
A sentença não incorreu, pois, em nenhuma das alegadas violações na aplicação fosse da lei, fosse do Regulamento do PDM, pelo que se impõe negar provimento ao presente recurso jurisdicional.

IV. DECISÃO
Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os juízes do 2º Juízo do TCA Sul em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando em consequência a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente jurisdicional.
Lisboa, 12 de Março de 2009


[Rui Belfo Pereira – Relator]

[Cristina Santos]

[Teresa de Sousa]