Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1249/10.3BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:01/11/2024
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
GERÊNCIA DE FACTO
PROVA
Sumário:I - Aa responsabilidade subsidiária depende, antes de mais, do efetivo exercício da gerência ou administração, ainda que somente de facto.
II - Não há qualquer norma legal que estabeleça uma presunção legal relativa ao exercício da gerência de facto, designadamente que ela se presume a partir da gerência de direito.

III - A gerência de facto de uma sociedade consiste no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade

IV - A circunstância do pacto estipular a necessidade da assinatura de um ou mais sócios da executada originária para a poderem vincular perante terceiros, não acarreta forçosamente que ela assim tenha procedido, podendo ter girado comercialmente sem respeitar tal condicionalismo.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de execução fiscal e de recursos contra-ordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais, da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul


I – RELATÓRIO

A ……………………………, deduziu no Tribunal Tributário (TT) de Lisboa oposição à execução fiscal nº ………………374 e aps. que corre termos no Serviço de Finanças de Loures-4, e que contra si reverteu depois de inicialmente instaurada contra a sociedade “A ………………………, Unipessoal Lda.”, para cobrança coerciva de dívidas de IVA relativas a 2005, 2006 e 2007 e, ainda, de IRC referente ao exercício de 2006, no montante total de € 4.975,07.

Por sentença datada de 21/02/17, o TT de Lisboa julgou a presente oposição procedente.

Inconformada com o assim decidido, a Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional para este Tribunal Central Administrativo (TCA), acompanhado das respetivas alegações, as quais apresentam as seguintes conclusões:

“I. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a oposição à margem referenciada com as consequências aí sufragadas, na parte em que o douto Tribunal considerou que a oponente é parte ilegítima.

II. Não se conforma a Fazenda Pública com a douta decisão recorrida, porquanto considera que da prova produzida se não podem extrair as conclusões que lhe serviram de base, determinando que se julgasse pela ilegitimidade da oponente consubstanciada na ausência de prova da gerência de facto, por parte da oponente no período que decorreu entre 15/05/2006 e 28/05/2006 (período em que se completáramos prazos de pagamento voluntário dos tributos, aqui cobrados coercivamente, de acordo com a alínea b), do n° 1 do artigo 24.° da LGT).

Senão vejamos:

III. Da análise da certidão de registo comercial a fls. nos autos constata-se que a ora oponente consta como a única sócia e gerente da sociedade “A …………………., Unipessoal, Lda., NICP …………………., Lda. (devedora originária) desde a sua constituição, (cfr. fls. 53 a 55)

IV. Acresce ainda que, face à natureza jurídica da sociedade em causa, isto é, enquanto sociedade unipessoal que é, por regra a respectiva gerência pertence, quer de direito, quer de facto, ao seu único sócio.

V. Por outro lado, é de referir que nas suas alegações a oponente nunca põe em causa a sua condição de gerente, quer de facto, quer de direito, mas, tão somente, que no período a que se reportam as dívidas, não ter exercido as funções de gerente da sociedade originalmente executada (cfr. artigo 3.° da petição inicial)

VI. Ou seja, confirma que é gerente da sociedade devedora originária, (cfr. artigo 3.° da petição inicial)

VII. Pelo que fundamenta a sua alegada ilegitimidade numa simples alegação de que teria encerrado a sua actividade em Abril de 2006.

VIII. Ora, como muito bem refere o Ilustre Procurador da República, "Em parte alguma consta documento que a sociedade tenha deixado de laborar na mencionada data, nem a Oponente faz prova da tal factualidade, como lhe competia fazer, segundo o princípio de quem invoca um direito tem de fazer a prova dos respectivos factos constitutivos - cf. Art.°342.°, n.°1, do CC e art° 74°, n.°1 da LCT” (cfr. Parecer n.91/2016, de 05-04-2016, de fls. 60 a 64)

IX. Existindo nos autos os referidos elementos que permitem concluir com grande certeza pelo exercício efectivo da gerência por parte da oponente, têm estes de ser valorados e tidos em atenção, não podendo escudar-se a sentença em que a prova não foi feita pela Fazenda Pública, para assim decidir contra esta,

X. Foi este o sentido da decisão do douto Acórdão do STA, de 2008/12/10, processo n.°0861/08, onde se retira o entendimento que o Tribunal chegará a tal conclusão com base num juízo de facto, baseado nas regras da experiência comum e não em qualquer norma legal, ou seja, com base, não numa presunção legal, mas numa presunção judicial.

XI. Sendo que, na ponderação da adequação ou não de uma tal presunção em cada caso concreto, há que ter em conta o facto de o gerente ter essa qualidade de direito, bem como outros elementos que, abstractamente, podem influir esse juízo de facto, como, por exemplo, o que as partes alegaram ou não no processo e a prova que apresentaram ou deixaram de apresentar.

XII. Resulta de forma clara e notória dos autos que a oponente foi sempre a única sócia e gerente da sociedade devedora originária, aliás, confirmado por ela própria, pelo que faz todo o sentido que o tenha sido também no período relevante.

XIII. A situação concreta demonstra, para além do incumprimento no pagamento (IVA), a inércia, o abandono ou falta de vontade do gerente e, por outro, a violação dos seus deveres para com a sociedade. E, exteriorizando o gerente, director ou administrativo, a vontade da sociedade nos mais diversos negócios jurídicos realizados (cfr. Artigos 248°, 249° e 250° Código das Sociedades Comerciais), é licito que este seja responsabilizado pelo cumprimento das obrigações públicas da sociedade, já que age através daquele.

XIV. Face aos elementos carreados nos autos, designadamente a informação elaborada pelo Serviço de Finanças de Loures 4, nos termos e para os efeitos do n° 1 do art. 208° do CPPT, verifica-se que a oponente não só não cumpriu com os pagamentos devidos fiscalmente, como também não cumpriu com todas as obrigações declarativas a que uma sociedade se encontra obrigada.

XV. Houve, aqui, portanto, um comportamento negligente que originou prejuízos para a sociedade, quando a ora oponente deveria, na sua qualidade de gerente, cumprir as suas obrigações fiscais até à cessação da actividade para efeitos de IVA e até à liquidação da mesma para efeitos de IRC.

XVI. Destarte, no entender da Fazenda Pública, e sem embargo de melhor opinião, constata-se que a douta sentença recorrida padece de erro de julgamento de facto e de direito, porque não procedeu ao correcto enquadramento da matéria de facto no disposto no artigo 24.°, n.° 1, b) da LGT, na medida em que considera não ter a Fazenda Pública feito prova, em sede de reversão, do exercício da gerência de facto pela oponente.

Nestes termos, em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se. a douta sentença ora recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo por Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA.”


*


A recorrida, A …………………, na contra-alegação que apresenta, formula as seguintes conclusões:

1.° A Recorrida A …………….., na resposta à Autoridade Tributária e Aduaneira em 25/02/2010 em sede de audiência prévia, nos seus Artigos Terceiro e Sétimo, alegou que a Oponente, desde o início de 2006, que não mais exerceu efectivamente a gerência.

2.° A mesma alegação foi feita na sua Oposição, como responsável solidária, entregue em 20/04/2010.

3.° A douta decisão do Tribunal Tributário de Lisboa deu-lhe razão no que respeita a ilegitimidade da Recorrida, decisão esta que a Recorrida acolhe e acompanha de pleno.

Termos em que, com os demais em direito aplicáveis, deve manter- se a decisão proferida, fazendo-se a habitual Justiça!”


*


A Exma. Magistrada do Ministério Público (EMMP) no parecer que antecede o acórdão defende o não provimento do recurso e, como tal, a manutenção da sentença recorrida.

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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

a) O serviço de finanças de Loures-4 instaurou o processo de execução fiscal n.º ………………374 e apensos, contra a sociedade A ………………………… Unipessoal Ld.ª, para cobrança coerciva de créditos de IVA, relativos ao 1.º trimestre de 2006, no montante de € 466,76, de créditos de IVA, relativos ao ano de 2005, no montante de € 374,10, de créditos de IVA, relativos ao ano de 2006, no montante de € 1.122,30, de créditos de IRC, relativos ao ano de 2006, no montante de € 1.515,51, e de créditos de IVA, relativos ao ano de 2007, no montante de € 1.496,40, perfazendo a quantia exequenda a quantia de € 4.975,07 (quatro mil, novecentos e setenta e cinco euros e sete cêntimos) - informação do serviço de finanças de fls. 17 a fls. 19 dos autos, mandado de penhora de fls. 44 do PEF, mandado de citação de fls. 45 do PEF e certidões de dívida de fls. 46 a fls. 52 do PEF apenso aos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

b) Das liquidações, que constituem a dívida exequenda, ids. na alínea antecedente, constavam os seguintes prazos de pagamento voluntário:

- Liquidação de IVA, relativa ao 1.º trimestre de 2006, no montante de € 466,76: prazo de pagamento voluntário até 15/05/2006;

- Liquidação de IVA, relativa ao ano de 2005, no montante de € 374,10: prazo de pagamento voluntário até 03/05/2007;

- Liquidação de IVA, relativa ao ano de 2006, no montante de € 1.122,30: prazo de pagamento voluntário até 06/12/2007;

- Liquidação de IRC, relativa ao ano de 2006, no montante de € 1.515,51: prazo de pagamento voluntário até 25/02/2009;

- Liquidação de IVA, relativa ao ano de 2007, no montante de € 1.496,40: prazo de pagamento voluntário até 28/05/2009 - citadas certidões de dívida.

c) Por despacho, datado de 02/03/2010, o chefe do serviço de finanças de Loures-4 ordenou a reversão do crédito exequendo, no montante de € 4.975,07 (quatro mil, novecentos e setenta e cinco euros e sete cêntimos), id. em 4.2.a), contra a ora oponente A …………………… - despacho de reversão de fls. 70 do PEF, apenso aos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.

d) A reversão do crédito exequendo, conforme referido na alínea antecedente, foi efectuada nos termos e com fundamentos que constam do despacho de reversão, que refere taxativamente o seguinte:
“- Face às diligências de fls. 4 e 12 e estando concretizada a audição do(s) responsável(veis) subsidiário(s), prossiga-se com a reversão da execução fiscal contra A ………………….. (…) Atenta a fundamentação infra, a qual tem de constar da citação, proceda-se à citação do (s) executado(s) por reversão, nos termos do art.º 160.º do CPPT, para pagar no prazo de 30 dias, a quantia que contra si reverteu sem juros de mora nem custas (n.º5 do artigo 23.º da LGT).
- Fundamento da reversão - Dos administradores, directores ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas (…) por não terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período de exercício do cargo (art.24/n.º1b)LGT)- citado despacho de reversão de fls. 70 do PEF, já dado por reproduzido.

e) Por sua vez, no referidos “auto de diligências” constata-se a inexistência ou insuficiência de bens por parte da sociedade A ………………… Unipessoal Ld.ª. – autos de fls. 15 e fls. 58 do PEF, apenso aos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.

f) A ora oponente assumiu funções nominais de gerente da sociedade em 08/09/2005, constando da respectiva certidão do registo comercial o contrato de sociedade, mas nada mais constando relativamente à administração, à prestação de contas ou a quaisquer outras vicissitudes da sociedade, nos anos posteriores, para além de uma inscrição, com data de 07/10/2015, informando que a sociedade se encontrava pendente de dissolução administrativa - certidão permanente de registo comercial, emitida a 30/03/2016, junta a fls. 53 e segs. dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.

4.3.

FACTOS NÃO PROVADOS

1 - Que, nos períodos em que se verificou o prazo de pagamento das dívidas tributárias, que constituem a quantia exequente (todos após Abril de 2006), a ora oponente tenha exercido “de facto” a gerência e praticado actos de gestão, agindo em nome e representação da sociedade devedora, nomeadamente representando-a junto de entidades públicas ou privadas, assinando declarações de impostos, recepcionando correspondência fiscal, preenchendo e assinando títulos de crédito como representante da referida sociedade, contratando com fornecedores ou pessoal ou recebendo remunerações e rendimentos.

4.4.

Resultou a convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, da análise dos documentos juntos aos autos e ao PEF, supra ids., a propósito de cada uma das alíneas do probatório, cujo conteúdo não foi impugnado por qualquer das partes.

Quanto ao facto não provado, referido em 4.3.1., resultou a convicção do Tribunal de nenhuma prova ter sido feita sobre o mesmo pela AT, pois que, no despacho de reversão e nos autos de diligências para os quais aquele remete, não existe qualquer suporte documental donde se possa retirar a ilação da gerência, de facto, por parte da oponente, nos períodos de pagamento voluntário dos tributos, subjacentes à execução, que ocorreram entre 15/05/2006 e 28/05/2009, atendendo ao facto de que a reversão foi efectuada de acordo com o disposto na alínea b), do n.º1 do artigo 24.º da LGT.

Isto é, não constam dos autos quaisquer documentos, nomeadamente, contratos celebrados entre a sociedade e os seus clientes ou os seus trabalhadores, recibos de remunerações, declarações de impostos ou outros, relacionados com a actividade da executada originária, que se encontrem assinados pela ora oponente, sendo certo que, era à administração fiscal que competia reunir essa prova documental, a qual de acordo com jurisprudência pacífica nessa matéria, terá de ser contemporânea ao despacho de reversão.

Efectivamente, a única prova documental existente nos autos é a nomeação da oponente para a gerência “de direito” da sociedade. Contudo, inexiste no sistema jurídico-tributário actual, presunção legal que faça decorrer da qualidade nominal de gerente, o efectivo exercício da função.

Resta assim concluir que, não tendo a AT reunido e coligido quaisquer outros elementos que permitam fazer a prova da gerência de facto por parte da oponente, o referido facto foi dado como não provado.”


*

- De Direito

Como resulta evidente daquilo que atrás ficou exposto, o Tribunal Tributário de Lisboa julgou procedente a oposição deduzida por A ……………… à execução fiscal nº ……………374 e aps., originariamente instaurada contra a sociedade “A ……………………………., Unipessoal Lda.”, com vista à cobrança coerciva de dívidas de IVA e IRC, de 2005 a 2007, no montante total de € 4.975,07.

Inconformada com tal decisão, a Recorrente, Fazenda Pública, interpôs o presente recurso jurisdicional.

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Lidas as conclusões das alegações de recurso, resulta claro que a Fazenda Pública se insurge contra o decidido em 1ª instância quanto à ilegitimidade da Oponente para a execução fiscal que contra si reverteu.

Com efeito, analisando a responsabilidade da Oponente, e após fazer o devido enquadramento legal e jurisprudencial da questão, a Mma. Juíza a quo alinhou o seguinte discurso argumentativo que (parcialmente) de reproduz:

“Ora, de acordo com a factualidade apurada e com a corrente jurisprudencial hoje firmada, temos de concluir não ter a Fazenda Pública feito qualquer prova da administração de facto, por parte da oponente no período que decorreu entre 15/05/2006 e 28/05/2009 (período em que se completaram os prazos de pagamento voluntário dos tributos, aqui cobrados coercivamente, de acordo com a alínea b), do n.º1 do artigo 24.º da LGT).

Pelo exposto, não pode o juiz, inferir a administração de facto por parte da oponente naqueles períodos, pois que, não há quaisquer provas nos autos que a comprovem ou sequer a indiciem.

A oponente é, pois, parte ilegítima, procedendo assim a oposição, quanto ao alegado fundamento da ilegitimidade”.

Regressando ao articulado que nos vem dirigido, da leitura conjugada das conclusões da alegação de recurso e do corpo das alegações, é possível concluir que a Recorrente se insurge contra o juízo formulado, considerando que o TT apreciou incorretamente a matéria de facto relevante e errando na interpretação e aplicação das normas legais sub judice. Em particular, como se constata, refere-se a Fazenda Pública à prova produzida e às conclusões que lhe serviram de base.

Vejamos, então.

Importa ter presente que a impugnação da matéria de facto, tal como resulta do disposto no artigo 640º do CPC, obedece a regras que não podem deixar de ser observadas. Em tal preceito se dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Ainda que com pouco rigor, as conclusões (concatenadas com o corpo da alegação, em especial o seu ponto 3) evidenciam pretensão de aditamento à matéria de facto correspondente à condição de gerente única da sociedade devedora originária, por parte da Oponente. Trata-se de matéria com relevo para a decisão da causa e que se mostra documentalmente demonstrada.

Nestes termos, adita-se ao probatório o seguinte:

g) De acordo com a certidão permanente a que se reporta o ponto precedente, junta a fls. 53 e ss, A ……………… foi designada gerente da A ………………………….. Unipessoal Lda, correspondendo a estrutura da gerência ao exercício por um ou mais gerentes, obrigando-se a sociedade com a assinatura da gerente A……………….

No mais, em especial quanto à consideração de que “da prova produzida se não podem extrair as conclusões que lhe serviram de base”, dir-se-á que a leitura do transcrito artigo 640º do CPC, no confronto com as conclusões da alegação de recurso (e até do teor das alegações), mostra à saciedade que a matéria de facto não foi impugnada de forma que, nos termos da lei, permita qualquer alteração da mesma, concretamente os pontos incorretamente julgados (provados ou não provado) e a indicação dos meios probatórios que implicavam uma diversa apreciação de facto, pelo que qualquer pretensão adicional de alteração da matéria de facto (provada ou não provada) só pode estar condenada ao insucesso.

Estabilizada a matéria de facto, avancemos.


*

Apreciemos, então, a sentença do TT de Lisboa que decidiu pela procedência da oposição, com fundamento, na ilegitimidade da oponente, tendo presente que já acima mencionámos o essencial do discurso fundamentador adotado.

Tal como resulta da matéria de facto, a oponente, ora Recorrida, foi designada gerente da sociedade devedora originária, o que, aliás, quanto à gerência nominal, não é sequer questionado pela Oponente, ora Recorrida.

Ora, a AT reverteu a execução fiscal contra a A ………………. com base na gerência de facto da apontada sociedade comercial A na …………………………….. Lda, invocando, para tanto, o disposto no artigo 24º, nº1, alínea b) da LGT.

Nos termos de tal preceito, temos que:

«1 - Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

(…)

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento».

Como é evidente, a reversão operada ao abrigo da apontada alínea b) do nº1 do artigo 24º da LGT, pressupõe que o gerente de facto o tenha sido no momento em que se verifica o termo do prazo legal de pagamento ou entrega das dívidas tributárias, sendo que nesta hipótese, e se assim for, caberá ao revertido provar que não lhe foi imputável a falta de pagamento.

É para nós claro, face à prova produzida, como o Tribunal a quo evidenciou, que a AT não demonstrou o que lhe competia, isto é, que a revertida era gerente de facto da devedora originária no período temporal aqui em causa, não oferecendo dúvidas que é à Fazenda Pública, enquanto titular do direito de reversão, que cabe fazer a prova do exercício da gerência.

Na verdade, em função da inclusão na disposição apontada das expressões “exerçam, ainda que somente de facto, funções” e “período de exercício do seu cargo”, fácil é concluir que não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respetivas funções. Assim, desde logo se vê que a responsabilidade subsidiária depende, antes de mais, do efetivo exercício da gerência ou administração, ainda que somente de facto.

Com efeito, e como repetidamente se vem considerando na jurisprudência, da gerência de direito não se retira, por presunção, a gerência de facto.

A este propósito, deixamos transcritas as considerações feitas no acórdão do TCAN, de 30/04/14, processo nº 1210/07.5, as quais assumem aqui inteira pertinência:

“(…)

Pois bem, e tal como se aponta no Ac. do S.T.A. de 02-03-2011, Proc. nº 0944/10, www.dgsi.pt, “… Na verdade, há presunções legais e presunções judiciais (arts. 350.º e 351.º do CC). As presunções legais são as que estão previstas na própria lei. As presunções judiciais, também denominadas naturais ou de facto, simples ou de experiência são «as que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos hauridos através da observação (empírica) dos factos». (ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 486; Em sentido idêntico, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, páginas 215-216, e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume I, 2.ª edição, página 289.).

De facto, não há qualquer norma legal que estabeleça uma presunção legal relativa ao exercício da gerência de facto, designadamente que ela se presume a partir da gerência de direito.

No entanto, como se refere no acórdão deste STA de 10/12/2008, no recurso n.º 861/08, «o facto de não existir uma presunção legal sobre esta matéria, não tem como corolário que o Tribunal com poderes para fixar a matéria de facto, no exercício dos seus poderes de cognição nessa área, não possa utilizar as presunções judiciais que entender, com base nas regras da experiência comum.

E, eventualmente, com base na prova de que o revertido tinha a qualidade de gerente de direito e demais circunstâncias do caso, nomeadamente as posições assumidas no processo e provas produzidas ou não pela revertida e pela Fazenda Pública, o Tribunal que julga a matéria de facto pode concluir que um gerente de direito exerceu a gerência de facto, se entender que isso, nas circunstâncias do caso, há uma probabilidade forte (certeza jurídica) de essa gerência ter ocorrido e não haver razões para duvidar que ela tenha acontecido. (Sobre esta «certeza» a que conduz a prova, pode ver-se MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, páginas 191-192.).

Mas, se o Tribunal chegar a esta conclusão, será com base num juízo de facto, baseado nas regras da experiência comum e não em qualquer norma legal.

Isto é, se o Tribunal fizer tal juízo, será com base numa presunção judicial e não com base numa presunção legal.»

Todavia, ainda que não seja possível partir-se do pressuposto de que com a mera prova da titularidade da qualidade de gerente que o revertido tinha não se pode presumir a gerência de facto, é possível efectuar tal presunção se o Tribunal, à face das regras da experiência, entender que há uma forte probabilidade de esse exercício da gerência de facto ter ocorrido.

Mas, por outro lado, na ponderação da adequação ou não de uma tal presunção em cada caso concreto, nunca há num processo judicial apenas a ter em conta o facto de a revertida ter a qualidade de direito, pois há necessariamente outros elementos que, abstractamente, podem influir esse juízo de facto, como, por exemplo, o que as partes alegaram ou não e a prova que apresentaram ou deixaram de apresentar” (fim de citação).

Ora, da factualidade apurada apenas resulta – repita-se – que a oponente foi designada gerente da sociedade unipessoal, devedora originária, e que a mesma se obrigava com a assinatura da dita gerente.

Daquilo que se trata, no que vem evidenciado, é da gerência de direito, a qual, repete-se, não foi questionada.

Com relevo determinante, no caso em apreciação, emerge como não provado na sentença que “nos períodos em que se verificou o prazo de pagamento das dívidas tributárias, que constituem a quantia exequente (todos após Abril de 2006), a ora oponente tenha exercido “de facto” a gerência e praticado actos de gestão, agindo em nome e representação da sociedade devedora, nomeadamente representando-a junto de entidades públicas ou privadas, assinando declarações de impostos, recepcionando correspondência fiscal, preenchendo e assinando títulos de crédito como representante da referida sociedade, contratando com fornecedores ou pessoal ou recebendo remunerações e rendimentos”.

Trata-se – sublinhe-se – de matéria considerada não provada e que não foi eficazmente impugnada e, nessa medida, assume-se como um circunstancialismo determinante e que este Tribunal não pode ignorar na apreciação que lhe vem pedida.

Na verdade, rigorosamente nada ficou provado com interesse para a conclusão sobre o exercício da gerência de facto por banda da A …………………, sendo que – repete-se - a matéria de facto não provada é inequívoca no sentido do não exercício da gerência. Note-se, de resto, que já no articulado inicial de oposição a Recorrida defendia que, todo o período a que se reporta o pagamento das dívidas, entre 2006 e 2007, correspondia ao não exercício de facto da gerência da devedora originária.

Em boa verdade, a Fazenda Pública, a este propósito (leia-se, do exercício efetivo da gerência) praticamente se limitou a invocar a condição de gerente nominal da Oponente relativamente à devedora originária, o que se afigura manifestamente insuficiente, atento o ónus da prova que sobre a Fazenda recai quanto ao concreto exercício da gerência.

Note-se que a gerência de facto de uma sociedade consiste no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros - nestes termos, Rúben Anjos de Carvalho - Francisco Rodrigues Pardal, Código de Processo das Contribuições e Impostos, Anotado e Comentado, 2ª Edição, Coimbra, 1969, pág. 139” – cfr. acórdão do TCA Norte, de 30/04/14, no processo nº 1210/07.5 BEPRT.

É verdade – e este parece ser o argumento de maior peso apresentado pela Fazenda Pública - que a Oponente era a única gerente designada da sociedade executada, cuja assinatura vinculava a devedora originária, o que parece levar a Recorrente a considerar que a viabilidade funcional da sociedade devedora ficaria comprometida sem a intervenção da oponente.

Contudo, como se considerou no acórdão do TCA Norte, de 12/06/14, no processo nº 00013/12.0BEBRG, “tal argumento não se revela assim tão decisivo, na medida em que, se bem que se afigure compreensível que se postule a necessidade da respectiva intervenção no que concerne ao giro comercial normal da executada originária, tal apenas é legítimo, no entanto, à luz do enquadramento legal aplicável, nada impedindo, de facto, que ela exerça a actividade para que se constituiu, negociando com clientes e fornecedores, sem o acatamento da aludida prescrição estipulada no pacto e que, como é sabido, inúmeras vezes é desconhecida daqueles que entram em relações comerciais com as empresas que assim operam.

Ou seja e dito de outra forma, a circunstância do pacto estipular a necessidade da assinatura de um ou mais sócios da executada originária para a poderem vincular perante terceiros, não acarreta forçosamente que ela assim tenha procedido, podendo ter girado comercialmente sem respeitar tal condicionalismo, sendo certo que tal conduta apenas se reflecte ao nível da sua responsabilidade perante aqueles e, por consequência, se e na medida em que não cumpra os acordos e transacções comerciais que tenha celebrado” – no mesmo sentido, o acórdão deste TCA de 06/12/18, processo nº 550/11.3 BESNT.

No caso, porém, e tal como resulta da p.i, a Oponente nega o exercício da gerência, sem que tal seja comprovadamente contrariado pela FP. Mais, aliás: a matéria de facto não provada - e não eficazmente impugnada – é de sentido contrário à tese da Recorrente e, nessa medida, não permite que este Tribunal se afaste das conclusões alcançadas em 1ª instância.

Em face de tudo o que vem dito e tendo presente o circunstancialismo fáctico que subjaz à oposição/ recurso em análise, constata-se que ficou por demonstrar uma realidade suscetível de evidenciar o exercício efetivo dos poderes de gerência por parte da ora Recorrido, sendo que, como antes já dissemos, era sobre a FP que recaia o ónus de provar o exercício da mesma (no caso, repita-se, foi considerado não provado precisamente o contrário da gerência efetiva).

Em suma, não se provando o exercício efetivo da gerência, o qual é pressuposto da responsabilidade subsidiária que se pretende efetivar através da reversão, é evidente que só se pode manter a sentença recorrida que julgou verificado o fundamento de oposição previsto no artigo 204º, nº1, alínea b) do CPPT.

Tanto basta, pois, sem necessidade de maiores considerandos, para concluir pela improcedência das conclusões da alegação de recurso, impondo-se, como tal, confirmar a decisão sindicada, negando-se provimento ao recurso jurisdicional em análise.


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III - DECISÃO




Termos em que, acordam os juízes da subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais, da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso.


Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 11/01/24


Catarina Almeida e Sousa

Hélia Gameiro Silva

Isabel Fernandes