Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:129/19.1BEPDL-S3
Secção:CA
Data do Acordão:10/07/2021
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL;
PROVA PERICIAL;
DIREITO À PROVA
Sumário:I. O despacho recorrido padece de flagrante erro de direito em virtude de a prova testemunhal produzida e a prova documental junta aos autos - que requer que sobre a mesma recaia um juízo técnico que possa contrabalançar, confirmando ou negando o juízo, também ele de natureza técnica, efetuado pelo júri do concurso -, não serem suficientes para o esclarecimento necessário à decisão da causa;

II. Os temas da prova convocam a apreciação de factos cuja valoração extravasa a mera subsunção jurídica e apelam a conhecimentos de outras ciências, pelo que a prova pericial requerida não é impertinente;

III. Estando em causa um processo urgente, cuja materialidade subjacente reclama uma decisão jurisdicional tão célere quanto possível, tal desiderato não deve, porém, ser alcançado à custa do direito à prova.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

F... – …, S.A., A. e ora Recorrente, interpôs recurso jurisdicional do despacho proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, de 28.04.2021, que indeferiu a prova pericial por si requerida.

Nas alegações de recurso que apresentou, culminou com as seguintes conclusões – cfr. fls. 2 e ss., ref. SITAF:

«(…)

1. O objeto do presente recurso é o despacho de indeferimento da prova pericial requerida, do qual cabe recurso de apelação autónoma, nos termos conjugados dos artigos 142.º, n.º 5 do CPTA e 644.º, n.º 2, alínea d) do CPC, que deve ser admitido com efeito suspensivo (cfr. artigo 143.º, n.º 1 do CPTA) e subida imediata em separado (cfr. artigo 645.º, n.º 2, alínea d) do CPC).

2. De harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 388.º do Código Civil, 476.º, n.º 1 do CPC e 91.º, n.º 3 do CPTA, a prova pericial só pode ser indeferida quando se mostre impertinente ou dilatória e claramente desnecessária.

3. A perícia requerida não se mostra dilatória, nem claramente desnecessária, porquanto a resposta às questões de facto fundamentais para a decisão do litígio não prescinde do conhecimento técnico especializado que apenas uma perícia pode emprestar.

4. Considerando os temas de prova fixados e a causa de pedir, mostra-se imprescindível proceder a uma interpretação correta e rigorosa dos requisitos técnicos indicados no Caderno de Encargos, bem como das propostas das Contrainteressadas, de forma a aferir a compatibilidade destas com aqueles.

5. Para poder proferir uma decisão, ao Tribunal impõe-se que dê resposta a um conjunto de questões de natureza eminentemente técnica, para as quais se mostram necessários conhecimentos especializados em matéria de análises clínicas e respetivos equipamentos, que o Tribunal não possui.

6. No seu despacho de indeferimento, o Tribunal a quo, contrariando o que lhe fora determinado pelo anterior Acórdão deste Venerando TCA Sul, não explicita de que forma a prova documental e a prova testemunhal se afiguravam suficientes e quais os concretos factos controvertidos que se consideram provados, ao ponto de permitir um juízo de desnecessidade da prova pericial por parte da Autora.

7. O processo administrativo não dá manifestamente resposta às concretas questões de facto relevantes - na verdade, do processo administrativo apenas se podem extrair as condições e as regras que nortearam o processo pré-contratual em causa, mas já não os juízos de compatibilidade das propostas das Contrainteressadas com o Anexo III do Caderno de Encargos, juízos esses de caráter eminentemente técnico.

8. Embora a prova testemunhal possa constituir um meio de prova complementar à instrução do processo, em matérias técnicas, é, como se sabe, particularmente falível, pois as testemunhas oferecidas pelas partes tendem a partilhar da respetiva interpretação dos aspetos técnicos relevantes.

9. O direito à prova constitui uma dimensão essencial da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo justo e equitativo consagrados no artigo 20.º da Constituição daí resultando igualmente que só excecionalmente, nos casos em que se mostre impertinente, por recair sobre factos irrelevantes, ou dilatória, por incidir sobre matéria que não carece de especiais conhecimentos pode ser indeferida a prova pericial.

10. Inerente ao direito à prova, está também o direito que cada parte tem em requerer a produção de mais do que um meio de prova sobre os factos tidos por relevantes.

11. O critério para aferir da necessidade da produção de prova pericial deverá reconduzir-se à razoável necessidade de conhecimentos técnicos e especializados por forma a alcançar uma perceção e apreciação suficientemente rigorosa e segura dos factos, que vise a justa composição do litígio.

12. A perícia requerida não se mostra, de forma patente, claramente desnecessária.

13. Ao indeferir a perícia, o despacho recorrido viola os artigos 388.º do Código Civil, 476.º, n.º 1 do CPC e 91.º, n.º 3 do CPTA e ainda o direito à prova ínsito no princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP). (…).»

A Entidade Demandada SECRETARIA REGIONAL DA SAÚDE E DESPORTO, contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso – cfr. fls. 31 e ss., ref. SITAF.

A contrainteressada, R... – ..., S.A., apresentou as suas contra-alegações, nas quais pugnou pelo não cumprimento do ónus de alegação por parte da Recorrente e, sem conceder, pelo não provimento do recurso - cfr. fls. 42 e ss., ref. SITAF:


Neste tribunal, o DMMP, não se pronunciou.

Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão ao Mmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduzem-se em apreciar se o despacho recorrido errou ao não ter admitido a produção de prova pericial requerida.

II. Fundamentação

II.1. De Facto e de Direito

Ainda que não venham destacados factos provados e não provados no despacho recorrido, dos autos resulta a seguinte factualidade, a qual, estruturada por este tribunal, se subordinará às alíneas que se seguem:

A) Em sede de audiência, realizada a 06.12.2019, no âmbito do incidente de levantamento do efeito suspensivo, a Entidade Demandada, Saudaçor, e a Contrainteressada, R..., foram notificadas para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciarem sobre o objeto da perícia apresentado pela Autora na petição inicial – cfr. ata da referida audiência a fls. 525, ref. SITAF, P. 129/19-S2.

B) Da ata da audiência prévia, realizada a 10.02.2020 – cfr. fls. 530, ref. SITAF, P. 129/19-S2–, consta, designadamente, o seguinte:

«(…) Proferido despacho saneador, nos casos em que os autos devam prosseguir, cumpre proferir despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC).

Assim, dando cumprimento ao preceito aludido e após debate com os Mandatários das Partes, pela Mmª. Juiz de Direito foi proferido o seguinte:

DESPACHO DE IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO DO LITÍGIO E DE ENUNCIAÇÃO DOS TEMAS DA PROVA:

A) Características do equipamento e dos reagentes (área da Imunologia) constantes da proposta da R... e da sua conformidade com os parâmetros do Caderno de Encargos

Autora: artigos 62.º a 131.º *, da petição inicial.

Entidade Demandada: artigos 36.º a 70.º * da sua contestação.

Contrainteressada R...: artigos 181.º a 236.º * da sua contestação.

(* - expurgados os artigos que contêm matéria de direito, matéria conclusiva ou meras considerações).

B) Características do equipamento (área da Imunologia) constantes da proposta da B... e da sua conformidade com os parâmetros do Caderno de Encargos

Autora: artigos 132.º a 185.º * da petição inicial.

Entidade Demandada: artigos 71.º a 96.º * da sua contestação.

Contrainteressada R...: ________

(* - expurgados os artigos que contêm matéria de direito, matéria conclusiva ou meras considerações).

*

Pelos Il. Mandatários das Partes, foi dito concordarem com o objeto do litígio e com os temas de prova, e não terem reclamações a apresentar.

(…)

Da perícia requerida pela Autora

A Autora requereu a realização de perícia singular, referindo que a mesma deverá ter por objeto a questão de saber se as propostas das Contrainteressadas R... e B... violam os requisitos mínimos definidos no Anexo III do Caderno de Encargos, fazendo remissão para os artigos da petição inicial.

A Contrainteressada R..., na sequência da notificação efetuada na audiência do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático, pelo requerimento de 17/12/2019 (registo n.º 45037), pronunciou-se sobre a diligência requerida, considerando-a, em súmula, inadmissível, devendo ser indeferida, mas caso assim não se entenda, requereu que seja a prova pericial realizada por meio de perícia colegial, com aditamento ou alteração do objeto para acolher a matéria indicada por si, bem como a concessão de prazo, após a decisão sobre a prova pericial e seu objeto para para indicar Perito.

A Entidade Demandada, pelo requerimento de 18/12/2019 (registo n.º 45064), pronunciou-se no mesmo sentido da Contrainteressada R....

Por ora, o Tribunal relega para momento posterior a pronuncia sobre a requerida perícia.(…)»

(negritos e sublinhados nossos).

C) Por despacho de 10.09.2020, a fls. 543, ref. SITAF, P. 129/19-S2, o tribunal a quo decidiu o seguinte:

«(…) Da perícia requerida pela Autora:

No âmbito dos presentes autos de contencioso pré-contratual, a Autora, requereu a produção de prova pericial (cfr. petição inicial - fls. 1 a 55 do SITAF).

Em sede de audiência do incidente de levantamento do efeito suspensivo, Entidade Demandada e Contrainteressada foram notificadas para, ao abrigo do princípio do contraditório, se pronunciarem sobre a produção de prova pericial.

A Contrainteressada, R... – ..., S.A.., pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade da perícia requerida pela Autora, ou caso assim não se entenda, requereu que seja realizada prova pericial por meio de perícia colegial, tudo como melhor resulta do requerimento de fls. 1497 a 1505 do SITAF.

A Entidade Demandada, pronunciou-se no mesmo sentido que a Contrainteressada R..., conforme resulta do requerimento de fls. 1515 a 1524 do SITAF.

Em sede de audiência prévia, o Tribunal relegou para momento posterior a apreciação e decisão sobre a requerida perícia.

A audiência final realizou-se nos dias 29, 30 e 31 de julho do corrente ano (cfr. atas de fls. 1899 a 1906, fls. 1927 a 1931 e fls. 1940 a 1943, do SITAF).

Cumpre apreciar e decidir.

A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas não devem ser objeto de inspeção judicial - cfr. artigo 388.° do Código Civil (CC).

Compete ao juiz da causa verificar se a perícia não é impertinente, nem dilatória. Impertinente, por não respeitar aos factos da causa, dilatória, por, embora, referir-se aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.

No caso vertente, atentas as questões controvertidas e tomando em conta a prova documental junta aos autos, aqui incluindo-se o processo administrativo, bem como a prova testemunhal produzida, considera este Tribunal que não estão preenchidos os pressupostos de que depende a realização de prova pericial.

Pelo supra exposto, indefere-se a prova pericial requerida pela Autora.» (sublinhados nossos).

D) Interposto que foi recurso jurisdicional do despacho que antecede, este tribunal recurso decidiu, por acórdão de 10.12.2020, o seguinte – cfr. fls. 599, ref. SITAF:

«(…) conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e ordenar a baixa dos autos para aí ser proferido novo despacho que admita a prova pericial requerida ou a indefira fundamentadamente, ao abrigo do art. 90.º, n.º 3, do CPTA.»

E) Em cumprimento do acórdão que antecede, o tribunal a quo, proferiu o seguinte despacho de 28.04.2021 [sendo este o despacho recorrido] – cfr. fls. 617 e ss., ref., SITAF:

«(…) Em cumprimento do douto Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no âmbito do processo n.° 129/19.1BEPDL- S2, que revogou o despacho proferido em 10/09/2020, que indeferiu a prova pericial requerida pela Autora, cabe proferir novo despacho.

No âmbito dos presentes autos de contencioso pré-contratual, a Autora, requereu a produção de prova pericial (cfr. petição inicial - fls. 1 a 55 do SITAF).

Em sede de audiência do incidente de levantamento do efeito suspensivo, Entidade Demandada e Contrainteressada foram notificadas para, ao abrigo do princípio do contraditório, se pronunciarem sobre a produção de prova pericial.

A Contrainteressada, R... – ..., S.A.., pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade da perícia requerida pela Autora, ou caso assim não se entenda, requereu que seja realizada prova pericial por meio de perícia colegial, tudo como melhor resulta do requerimento de fls. 1497 a 1505 do SITAF.

A Entidade Demandada, pronunciou-se no mesmo sentido que a Contrainteressada R..., conforme resulta do requerimento de fls. 1515 a 1524 do SITAF.

Em sede de audiência prévia, o Tribunal relegou para momento posterior a apreciação e decisão sobre a requerida perícia.

A audiência final realizou-se nos dias 29, 30 e 31 de julho do corrente ano (cfr. atas de fls. 1899 a 1906, fls. 1927 a 1931 e fls. 1940 a 1943, do SITAF).

Cumpre apreciar e decidir.

A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas não devem ser objeto de inspeção judicial - cfr. artigo 388.° do Código Civil (CC).

Compete ao juiz da causa verificar se a perícia não é impertinente, nem dilatória. Impertinente, por não respeitar aos factos da causa, dilatória, por, embora, referir-se aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.

No caso sub judice os temas de prova enunciados são:

A) Características do equipamento e dos reagentes (área da Imunologia) constantes da proposta da R... e da sua conformidade com os parâmetros do Caderno de Encargos.

B) Características do equipamento (área da Imunologia) constantes da proposta da B... e da sua conformidade com os parâmetros do Caderno de Encargos.

Quanto ao tema de prova A) resulta a necessidade de aferir da compatibilidade da proposta da Contrainteressada R... com o Anexo III do Caderno de Encargos (na parte relativa a Imunologia), na parte que determina que o equipamento a fornecer assegura a “Possibilidade de repetição automática das amostras, sempre que estão acima ou abaixo de limites previamente programados, com pré diluição e testes reflexos”.

Ora, para responder à questão controvertida e enunciada no tema de prova A), o Tribunal considera suficiente a prova documental junta aos autos (designadamente a constante de fls. 3574, fls. 4145 a 4149, fls. 4614 a 4617, todas do processo administrativo), conjugada com a prova testemunhal produzida (designadamente do depoimento da testemunha A…).

No que concerne ao tema de prova B) advém a necessidade de indagar da compatibilidade da proposta da Contrainteressada B... com o Anexo III do Caderno de Encargos (na parte relativa a Imunologia), no segmento em que se exige que o equipamento a fornecer assegure a “Deteção de nível insuficiente de amostra”.

Com vista a apreciar e decidir a questão enunciada no tema de prova B), o Tribunal considera suficiente a prova documental junta aos autos (designadamente a constante de fls. 495 a 510 do processo administrativo).

Por conseguinte, e face ao supra expendido indefere-se a prova pericial requerida pela Autora, por manifesta desnecessidade face à prova documental constante dos autos (incluindo processo instrutor) e à prova testemunhal já produzida (cfr. artigo 90.°, n.° 3, in fine do CPTA). (…)». (sublinhados nossos).

*

À semelhança do já decidido no anterior recurso jurisdicional – cfr. alínea D) da matéria de facto supra -, também aqui resulta claramente da leitura das conclusões recursais o devido enquadramento jurídico, considerando-se aquelas suficientemente percetíveis e concretas, conforme melhor explicitaremos infra, assim se indeferindo o invocado incumprimento do ónus de alegar e de formular conclusões, invocado pela RECORRIDA Contrainteressada.

*

Vejamos então.

Alega a Recorrente que «6. No seu despacho de indeferimento, o Tribunal a quo, contrariando o que lhe fora determinado pelo anterior Acórdão deste Venerando TCA Sul, não explicita de que forma a prova documental e a prova testemunhal se afiguravam suficientes e quais os concretos factos controvertidos que se consideram provados, ao ponto de permitir um juízo de desnecessidade da prova pericial por parte da Autora.» - cfr. 6.ª conclusão das alegações de recurso.

Porém, sem razão.

No acórdão proferido no apenso P. 129/19-S2 – cfr. alínea D) da matéria de facto supra –determinou-se apenas a baixa dos autos para que o tribunal a quo proferisse novo despacho que admitisse a prova pericial requerida ou que a indeferisse fundamentadamente, ao abrigo do art. 90.º, n.º 3, do CPTA e, dúvidas não há, que o despacho recorrido está fundamentado, pois que o tribunal a quo elencou expressamente que documentos o suportam e, bem assim, qual a prova testemunhal que também concorre para a suficiência da prova já produzida nos autos.

Razões pelas quais claudica a conclusão de recurso n.º 6.

Avancemos então para a questão nuclear do recurso em apreço: do erro de julgamento face ao critério legal para apreciação do requerimento de prova pericial.

No despacho recorrido fez-se constar, com interesse para a decisão do presente recurso, o seguinte – cfr. alínea E) da matéria de facto supra:

«(…) No caso sub judice os temas de prova enunciados são:

A) Características do equipamento e dos reagentes (área da Imunologia) constantes da proposta da R... e da sua conformidade com os parâmetros do Caderno de Encargos.

B) Características do equipamento (área da Imunologia) constantes da proposta da B... e da sua conformidade com os parâmetros do Caderno de Encargos.

Quanto ao tema de prova A) resulta a necessidade de aferir da compatibilidade da proposta da Contrainteressada R... com o Anexo III do Caderno de Encargos (na parte relativa a Imunologia), na parte que determina que o equipamento a fornecer assegura a “Possibilidade de repetição automática das amostras, sempre que estão acima ou abaixo de limites previamente programados, com pré diluição e testes reflexos”.

Ora, para responder à questão controvertida e enunciada no tema de prova A), o Tribunal considera suficiente a prova documental junta aos autos (designadamente a constante de fls. 3574, fls. 4145 a 4149, fls. 4614 a 4617, todas do processo administrativo), conjugada com a prova testemunhal produzida (designadamente do depoimento da testemunha A…).

No que concerne ao tema de prova B) advém a necessidade de indagar da compatibilidade da proposta da Contrainteressada B... com o Anexo III do Caderno de Encargos (na parte relativa a Imunologia), no segmento em que se exige que o equipamento a fornecer assegure a “Deteção de nível insuficiente de amostra”.

Com vista a apreciar e decidir a questão enunciada no tema de prova B), o Tribunal considera suficiente a prova documental junta aos autos (designadamente a constante de fls. 495 a 510 do processo administrativo).

Por conseguinte, e face ao supra expendido indefere-se a prova pericial requerida pela Autora, por manifesta desnecessidade face à prova documental constante dos autos (incluindo processo instrutor) e à prova testemunhal já produzida (cfr. artigo 90.°, n.° 3, in fine do CPTA).» (sublinhados nossos).

Vejamos.

Dispõe o art. 90.º, n.º 3 do CPTA que «No âmbito da instrução, o juiz ou relator ordena as diligências de prova que considere necessárias para o apuramento da verdade, podendo indeferir, por despacho fundamentado, requerimentos dirigidos à produção de prova sobre certos factos ou recusar a utilização de certos meios de prova, quando o considere claramente desnecessário

Por seu turno, dispõe o art. 476.º do CPC, sob a epígrafe «Fixação do objeto da perícia», que «1 - Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição. 2 - Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.»

E, at last but not least, o art. 388.º do CC, sob a epígrafe, «Objeto» que «A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial


O tribunal a quo, ao indeferir, pela segunda vez, a aprova pericial requerida, fê-lo «por manifesta desnecessidade face à prova documental constante dos autos (incluindo processo instrutor) e à prova testemunhal já produzida», do que se depreende que o tribunal a quo se considere, no caso em apreço, plenamente esclarecido e que antecipe que nada do que possa vir a resultar do meio de prova pericial requerido possa ser útil para melhor, por mais esclarecida, decisão da causa, ponderação esta que foi feita após a realização da audiência de julgamento, após inquirição das testemunhas arroladas pelas partes.

Retomando aqui a matéria de facto em causa, tal como alegado pela Recorrente em sede de alegações recursivas, «em face do teor dos factos articulados e dos temas da prova fixados, as questões essenciais a que é imprescindível dar resposta para a boa decisão da causa são as seguintes:

1. O Anexo III do caderno de encargos (na parte relativa a Imunologia), determina que o equipamento a fornecer assegure a “Possibilidade de repetição automática das amostras, sempre que estão acima ou abaixo de limites previamente programados, com pré-diluição e testes reflexos” (cfr. p. 45).

1.1. Do ponto de vista técnico como deve ser interpretada esta disposição no que se refere à “repetição automática das amostras pelo equipamento”?

1.2. Esta disposição exige que o equipamento seja capaz de, autonomamente, proceder a esta repetição automática, sem o apoio de qualquer solução externa?

1.3. O analisador Cobas e411 proposto pela R... cumpre autonomamente este requisito mínimo?

1.4. Do ponto de vista técnico como deve ser interpretada esta disposição no que se refere à “pré-diluição”?

1.5. Esta disposição exige que o equipamento seja capaz de, automaticamente, proceder a esta “pré-diluição”, sem intervenção manual?

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1.6. O analisador Cobas e411 proposto pela R... cumpre autonomamente este requisito mínimo?

1.7. De harmonia com a proposta da R... a diluição dos reagentes relativos aos testes “Ácido Fólico (folatos)”, “Anticorpos Anti-Tiroideus (Anti-TPO)”, “Vitamina B12 (Cianocobalamina)” e “Vitamina D (25-(OH)-Vitamina D)” tem de ser efetuada manualmente?

2. De acordo com o Anexo III do caderno de encargos (na parte relativa a Imunologia), exige-se que o equipamento a fornecer assegure a “Deteção de nível insuficiente de amostra” (cfr. p. 45).

2.1. Do ponto de vista técnico como deve ser interpretada esta disposição?

2.2. Deve entender-se que o equipamento detete e assinale a insufiência da amostra para o teste programado antes do seu início?

2.3. Deve admitir-se como suficiente a indicação de “QNS- quantity not sufficient” durante a execução do teste, no momento em que a amostra se esgote?

2.4. A realização dos testes nestas condições de insuficiência de amostra fica comprometida na sua integridade e fidedignidade?

2.5. A realização de testes com quantidade insuficiente pode danificar o equipamento?

2.6. O equipamento proposto pela B... (Access 2) cumpre esta disposição do Caderno de Encargos?»

Perante o que, e sem prejuízo de o tribunal, aquando a admissão do meio de prova pericial poder, dever, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes – cfr. art. 476.º, n.º 2, do CPC, supra citado e transcrito – o certo é que além da interpretação dos requisitos exigidos no Caderno de Encargos, que o tribunal pode já considerar-se esclarecido, importará ainda decidir sobre a compatibilidade dos equipamentos descritos nas propostas das Contrainteressadas com os mesmos.

Tal juízo de compatibilidade consta, de facto, dos autos, no relatório final de avaliação das propostas levado a cabo pelo júri do concurso – cfr. doc. fls. 118 e ss do SITAF – mas não nos podemos esquecer que essa é essa a fundamentação, que contém juízos eminentemente técnicos, por mais crível e suficiente que possa parecer, que a Recorrente pretende impugnar nos pentes autos.

Assim, a testemunha cujo depoimento é expressamente referido pelo tribunal a quo no despacho recorrido, A..., tendo sido arrolada por uma das contrainteressadas, empresa para a qual e tendo participado na elaboração da proposta em relação à qual do tema de prova A) resulta a necessidade de aferir a respetiva compatibilidade com o Anexo III do Caderno de Encargos (na parte relativa a Imunologia), «na parte que determina que o equipamento a fornecer assegura a “Possibilidade de repetição automática das amostras, sempre que estão acima ou abaixo de limites previamente programados, com pré diluição e testes reflexos”.», não pode ser considerado suficiente por si e nem mesmo que conjugado com a prova documental junta aos autos.

Na verdade, o tribunal a quo fundamenta também o seu cabal esclarecimento nos documentos que constam processo administrativo, designadamente, e expressamente, nas fls. 3574, fls. 4145 a 4149, fls. 4614 a 4617 – tema da prova A) – e fls. 495 a 510 – tema da prova B) - que correspondem, essencialmente, a partes das propostas apresentadas pelas Contrainteressadas - designadamente, fls. 497 e ss e fls. 4146 e ss. - e que a A., ora Recorrente, pretende sejam excluídas, por violação do Caderno de Encargos.

Atentemos no seguinte: «(…) compete o meio de prova pericial sempre que seja caso de recurso a lex artis que extravase o direito adjectivo e substantivo, isto é, quando se trate de valorar determinada factualidade segundo juízos próprios de outras ciências que não a ciência jurídica, vd. artºs 388º C. Civil, (…) o depoimento testemunhal incide sobre os factos da causa, com fundamento na razão de ciência que indicam (por ver e ouvir) a título justificativo do modo como vieram ao seu conhecimento, vd. artº 638º nº 1 CPC, não constituindo as suas declarações meio probatório idóneo para, com relevância adjectiva, emitir juízos de valoração técnica, próprios da prova pericial, expressos em relatório, vd. artºs. 568º nº 1 in fine e 586º nº 1 CPC.(1)»(2)(sublinhados nossos) - cfr. acórdão deste tribunal de recurso, de 23.02.2012, P. 08433/12.

Ora, no caso em apreço dúvidas não temos que os temas da prova congregam matéria de facto que terá de ser valorada segundo juízos próprios de outras ciências – designadamente de ciências médicas -, que não o direto adjetivo ou substantivo, a saber: «na parte que determina que o equipamento a fornecer assegura a “Possibilidade de repetição automática das amostras, sempre que estão acima ou abaixo de limites previamente programados, com pré diluição e testes reflexos”.»

Dúvidas também não temos que, por muito esclarecedor que tenha sido o depoimento da testemunha A..., ou de qualquer outra, mas desta testemunha em particular porque referida no despacho recorrido, arrolada que foi pela contrainteressada, tendo aquela referido que trabalha para esta empresa e que participou na elaboração da proposta, não é suficiente, só por si, para valer como o juízo técnico devidamente avalisado e suficientemente independente e isento sobre a compatibilidade da proposta, em cuja elaboração colaborou, em relação ao Caderno de Encargos. Só por manifesta má-fé ou inconsciência é que uma testemunha, que tenha participado na elaboração da proposta submetida a concurso, iria assumir que a mesma viola ou não cumpre o Caderno de Encargos. E isto porque, independentemente da sua convicção sobre a compatibilidade da proposta com os requisitos exigidos nas peças procedimentais do concurso, apenas um juízo técnico, paralelo ao que o júri do concurso efetuou, poderá esclarecer devidamente o tribunal acerca dos referidos factos.

Assim, imperioso se torna concluir que o despacho recorrido padece de flagrante erro de direito pois, face a todo o exposto, não pode a prova testemunhal produzida e nem a prova documental junta aos autos - que requer que sobre a mesma recaia um juízo técnico que possa contrabalançar, confirmando ou negando o juízo, também ele de natureza técnica, efetuado pelo júri do concurso – cfr. relatório final a fls. 118 e ss., ref SITAF -, suficiente para o esclarecimento necessário à decisão da causa.

Acresce que, como vimos, duvidas há que os temas da prova convocam a apreciação de factos cuja valoração extravasa a mera subsunção jurídica e apelam a conhecimentos de outras ciências, pelo que a prova pericial requerida não é impertinente.

Por fim, apenas uma última nota, tratando-se, como se trata, de um processo urgente, cuja materialidade subjacente reclama uma decisão jurisdicional tão célere quanto possível, tal desiderato não deve, porém, ser alcançado à custa do direito à prova, revelando-se até causador de demora desnecessária e evitável, como se pode ver pela tramitação dos presentes autos, pelo que, e sem necessidade de mais amplas considerações, grande parte delas já produzidas no acórdão anterior que conheceu do primeiro despacho de indeferimento da prova pericial requerida, impõe-se revogar o despacho recorrido e ordenar a baixa dos autos para que seja admitida a prova pericial requerida.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e ordenar a baixa dos autos para aí ser proferido novo despacho que admita a prova pericial requerida.

Custas pela Recorrida e pela contrainteressada.

Lisboa, 07.10.2021

Dora Lucas Neto (Relatora)

Pedro Nuno Figueiredo

Ana Cristina Lameira

(1) Ref. no texto original correspondente a Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil – Anotado, 2ª ed., Coimbra Editora/1980, pág.316; Anselmo de Castro, Direito processual civil declaratório, Vol. III, Almedina, págs. 332-333; Lebre de Freitas, CPC – Anotado, Vol. 2º, 2ª ed. Coimbra Editora/2008, págs. 522-523, 543 e 549.»

(2) A que correspondem os atuais art.s 516.º, 467.º e 484.º, respetivamente, do CPC.