Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10/07.7BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:05/07/2020
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:IRC
PROVISÕES / PROCESSOS JUDICIAIS EM CURSO
PRINCÍPIO DA JUSTIÇA
Sumário:I - O artigo 33º, nº 1, alínea c) do CIRC determinava que podem ser deduzidas as provisões “destinadas a ocorrer a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso por factos que determinariam a inclusão daqueles entre os custos do exercício”.
II - Sendo a recorrida demandada judicialmente por um colaborador que exige o pagamento de uma indemnização a que se considera com direito, ocorre, na procedência da acção, uma obrigação de pagamento que corresponde a um custo aceite pela lei fiscal.
III – No caso, dando como certo que o valor de 24.500.000$00 não é respeitante a uma provisão das previstas na alínea a) do nº1 do artigo 33º do CIRC, tal como foi declarada no mapa de provisões preenchido pelo sujeito passivo, dúvidas não restam que se trata de um montante susceptível de ser provisionado, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do mesmo preceito, e, como tal, aceite como custo fiscalmente dedutível.
IV - Trata-se de um custo que, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, já que a sua imputação, nos termos em que foi feita, não se afigura como uma omissão voluntária e intencional, com vista a obter benefícios indevidos ou prejudicar o Estado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

V...- Distribuidora de Publicações, Lda., veio deduzir IMPUGNAÇÃO JUDICIAL contra o acto que lhe indeferiu a reclamação graciosa que apresentou contra a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, referente ao exercício de 1993, no montante total de €85.591,27.

O Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida, anulando a liquidação contestada na parte “que resultou da desconsideração como custo das provisões relativas a processos judiciais em curso” e mantendo-a quanto ao demais.

Inconformada, a Fazenda Pública, veio recorrer da referida sentença, tendo apresentado as suas alegações e formulado as seguintes conclusões:

«A) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que declarou parcialmente procedente a Impugnação deduzida pela Impugnante V... – Distribuidora de Publicações, Lda (de ora em diante, V...) contra a liquidação adicional de IRC, referente ao ano de 1993, decorrente de ação inspetiva realizada pela Administração Fiscal, na parte julgada procedente referente à provisão constituída relativa Provisões de Cobrança Duvidosa.

B) Não há dúvidas porquanto decorre dos autos e figura no probatório que, no mapa de provisões foi inscrito na linha relativa a “Provisão para créditos de cobrança duvidosa (art.34º do CIRC) Créditos em contencioso (alíneas a) e b) do nº1 do artigo 34º), o reforço de provisões efectuado no valor de 27.254.908$00.

C) A Impugnante registou na sua conta 2930000 – Processos Judiciais em curso, uma provisão no valor de 24.500.000 euros, com a descrição “contencioso Sr. C...”

D) Não obstante se dar por provado que o Mapa das Provisões alude a “PROVISÕES PARA CRÉDITOS DE COBRANÇA DUVIDOSA” e ao ART.34º DO CIRC, não obstante a própria Impugnante alegar que a correcção efectuada deriva unicamente de um erro no preenchimento do mapa de provisões, o que levou ao erro da AT na decisão aqui em causa – o tribunal a quo apenas crê, apesar de tudo, que o erro possa ter sido provocado, pasme-se, pela própria AT.

E) Há um mapa de provisões cujo conteúdo foi levado ao probatório e que é preenchido pela própria Impugnante (não pela AT) no exercício dos factos tributário.

F) É manifesto que com base na prova valorada não podia o tribunal a quo alvitrar a ideia de que o suposto erro teria sido provocado pela Administração Fiscal e ao fazê-lo incorreu em manifesto erro na sua valoração e que conduziu à produção de um conjunto de juízos que indelevelmente não têm aderência perante o que a prova revela.

G) Verifica-se ainda que a decisão recorrida não logrou sequer valorar o Balancete do Razão – mês de fecho (anexo 4), sublinhando-se que inexiste qualquer tipo de referência quer a Provisões Judiciais em curso quer ao montante a que a conta 2930000 – Processos Judiciais em curso faz referência.

H) Observa-se que as demais Provisões encontram-se lá inscritas. Estão lá as “CONTAS 28 – PROVISÕES P/ COBRANÇA DUVID”; 29 – PROVISOES P/RISCOS E ENCARG; 39 – PROVISOES P/ DEPRECIAÇAO EXI”, com os respetivos montantes.

I) Recorrendo às presunções judiciais (apesar de sabermos bem da resistência que perpassa pela primeira instância administrativa e fiscal no uso deste tipo de instrumentos de auxílio à convicção) não seria curial ao tribunal a quo perguntar-se porque motivo não logrou a Impugnante juntar aos autos prova documental da suposta ação laboral intentada contra a impugnante?

J) É óbvio que a sentença recorrida não logrou sequer compreender o fundamento da correção. Se assim fosse teria alcançado que a AT fundou-se no art.34º do CIRC Provisões para créditos de cobrança duvidosa, em virtude dos documentos que supostamente deveriam suportar a inscrição contabilística (Mapa de Provisões e Balancete do Razão), e que se apresentam sem assombro de dúvida mais concretos e credíveis do que a insólita inscrição na conta 293000 – Processos Judiciais em curso, e, nas próprias afirmações da Impugnante que reconhece um erro.

L) Saber se o erro foi no Mapa de Provisões e no Balancete do Razão ou na conta 293000 é outra questão sobre a qual já colocámos em evidência, mas o que não há dúvida é que há uma divergência entre a inscrição contabilística e os documentos que a suportam. E que essa divergência só pode ser imputada à Impugnante

M) Teria também alcançado, nesse sentido, que a AT ao suportar-se na documentação que suporta a contabilidade (Mapa das Provisões – art. 34º CIRC) e no Balancete da razão – mês de fecho (que é um documento contabilístico com tanto valor probatório como a própria conta 293000 e que não evidencia a provisão para processos judiciais em curso) põe inegavelmente em causa a Provisão referente ao risco relativo a processos judiciais em curso prevista no art.33º, nº1, alínea c), do CIRC.

N) Estamos no âmbito de correções meramente aritméticas, pelo que, por um lado, não tem a AT a obrigação de fundamentar em sentido negativo a posição por si sufragada à semelhança das correções efetuadas por métodos indiretos, por outro lado, havendo divergências manifestas na escrita da Impugnante e por si reconhecidas e por si provocadas, se a própria alega tratar-se de provisão destinada a Processos Judiciais em curso, - então impunha-se que dela fizesse prova à luz não só do art.74º, nº1 mas também do art.75º, nº2, ambos da LGT, o que não fez.

O) Causa perplexidade a conclusão imediata com que a sentença recorrida reputa de coerente o registo da provisão com a mera alegação referente a uma suposta ação laboral contra a Impugnante que nem provada está!!!

P) E não se descortina, enfim, no seio de uma apreciação conjugada da prova:
-a incoerência desse registo não estar devidamente suportado, decorrendo do Mapa de Provisões que esta reporta-se a Provisão para créditos de cobrança duvidosa (art. 34º do CIRC)
-a incoerência da Impugnante dar conta da existência de um erro na sua escrita por si provocado
-a incoerência do Balancete do Razão não evidenciar a contabilização da Provisão da conta 293000 – Processos Judiciais em curso e a sua quantificação, mas evidenciar a contabilização de Provisões para créditos de cobrança duvidosa (bem, aqui, em bom rigor, se a sentença recorrida nem a análise a este documento fez nem no âmbito da incoerência estamos)
- a incoerência de não estarmos perante um mas uma pluralidade de erros na escrita e no que a suporta.
- a incoerência da Impugnante alegar que a provisão refere-se ao risco associado à indemnização referente a uma ação laboral intentada contra a Impugnante, e esta não fazer prova cabal desse facto.

Q) Da perspetiva oposta, a sentença dá conta de uma suposta incoerência da correção à luz do que foi alegado pela Impugnante e com o pressuposto factual da provisão, menosprezando:
- a incoerência que seria não valorar a documentação mais concreta que suporta o registo contabilístico e que contraria a natureza da Provisão alegada pela Impugnante
- a incoerência de tomar por boas apenas as alegações produzidas pela Impugnante quando as mesmas assentam em divergências da sua escrita e da documentação de suporte
- a incoerência de tomar por credíveis factos alegados que não se mostram minimamente provados pois que a Impugnante nem se deu ao trabalho de os juntar ao processo inspetivo se entendia que a Provisão respeitava efetivamente a processos judiciais em curso
-por fim, no que tange às próprias presunções judiciais, a posição da Impugnante em todo este processo. Nomeadamente, a oportunidade e o ónus dinâmico que sobre si impende, à luz do art. 74º, nº 1 e 75º, nº 2, da LGT

R) A AT daria crédito à alegada Provisão da conta 293000 se, a par do registo contabilístico, a alegação do sujeito passivo lograsse ser suficientemente concretizada que possibilitasse a esta ir em busca da sua confirmação.

S) Ora, a Impugnante em momento algum sequer concretizou esse facto identificando o contencioso laboral apresentado e que impusesse aos SIT a sua corroboração. Assim, como pode um tribunal exigir aos serviços de inspeção que cumpram esse dever investigatório se a Impugnante se queda por uma alegação abstrata, sem identificação do processo, sem identificação do tribunal de trabalho onde esse suposto contencioso corre os seus termos processuais, sem identificação sequer do seu trabalhador ou colaborador? Como pode um tribunal formar a sua convicção assente num montante inscrito suportado num facto não concretizado?

T) Para que efetivamente estivéssemos perante um valor de provisão que devesse ser mantido impunha-se não à AT mas à Impugnante fazer prova desse facto pois foi ela quem o alegou e só quando a própria detetou aquilo que no seu entender seriam erros do Mapa de Provisões. Sendo certo que a anulação não poderia ter outro fundamento que não aquele em que se baseou a AT à luz da prova que recolheu e que lhe foi apresentada, menosprezada, por um lado, pelo tribunal a quo, e que, por outro lado, não logrou apreciar levando-o ao probatório (Balancete do Razão – mês de fecho).

U) A sentença recorrida assim não o tendo feito incorreu nos seguintes erros de julgamento, a saber:
- incorreta apreciação da prova porquanto tendo sido levado ao probatório os factos A), B) e H) e valoradas que foram as alegações produzidas pela Impugnante não podia o douto Tribunal alvitrar a ideia de que o erro no alegado deficiente preenchimento do Mapa de Provisões teria sido produzido pela Administração Fiscal.
- não apreciação de um documento contabilístico manifestamente relevante para a boa decisão da causa (Balancete do Razão – mês de fecho – Anexo 4) o qual, à semelhança do Mapa de Provisões, mais uma vez revela a ausência de montantes provisionados a título de Processo Judiciais em curso, contrariando mais uma vez o registo inscrito na conta 293000, e que se impunha que fosse levado ao probatório.
-erro de julgamento pela malograda credibilidade que acabou por ser dada à inscrição na conta 293000, quando, de uma forma conjugada, o Balancete do Razão – mês de fecho, o Mapa de Provisões (documento de suporte), os indícios reunidos que contendem com as presunções judiciais e a ausência de prova referente a Processos Judiciais em curso cujo ónus impendia sobre a Impugnante nos termos do art.74º e 75º, nº 2, da LGT (alegado que foi pelo SP tratarem-se de provisões daquela natureza sem que tal facto se mostre provado), ditariam um juízo de legalidade sobre a correcção efectuada, nos termos do art. 34º do CIRC por falta dos pressupostos que estão na base das Provisões de Cobrança Duvidosa, reforçado pela ausência da prova a cargo da Impugnante a qual reverteria necessariamente em seu desfavor, por ofensa aos arts. 34º, nº1, alíneas a), b) e c), por referência ao art.33º, nº 1 alínea a), ambos do CIRC, arts 74º e 75º, nº 2, ambos da LGT.

Termos em que, com o mui douto suprimento deste Venerando Tribunal., deverá ser considerado procedente o presente recurso e revogado o segmento da douta sentença que logrou declarar procedente a presente Impugnação Judicial, e que assim, deve ser julgada improcedente.
Na certeza, porém, que V/Exas não deixarão de fazer sã justiça»



*

A Recorrida veio oferecer as suas contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

«A) Foi dado como provado que a ora contra-alegante efetuou na sua contabilidade, na conta 293000- Provisões para riscos e encargos - Processos Judiciais em Curso, uma provisão, no valor de 24.500.000$00, com a descrição "Contencioso Sr. C...".

B) Foi invocado mero "lapso de preenchimento" na relevação, no Mapa das Provisões, da supra mencionada provisão, ao incluí-la, por lapso, no montante das "provisões para créditos de cobrança duvidosa".

C) Não se entende, à luz do princípio da prevalência da substância sobre a forma, o argumentário, não raro excessivo e despropositado, que a este propósito é deduzido nas alegações, seja a propósito da ora contra-alegante, seja, inclusivamente e, no mínimo, deselegante, da, aliás, douta sentença recorrida.

D) A, aliás, douta decisão recorrida, na sua fundamentação, tomou em consideração os factos que a prova documental evidenciava.

E) As alegações da FP relevam, apenas, de um despropositado destaque, a que parece estar subjacente uma ideia de falsidade que, todavia, nunca é expressamente referida (!) dado à pretendida ausência de elementos sobre o processo judicial que motivou a constituição da provisão.

F) São inaceitáveis, nesta fase processual, insinuações deste tipo para tentar pôr em causa a legalidade e a justiça da, aliás, douta sentença recorrida que se limitou a aplicar, e bem, o direito.

G) A asserção de que em cujos termos "a correção efetuada deriva unicamente de um erro no preenchimento do mapa de provisões, o que levou ao erro da AT na decisão aqui em causa" e que tanta azia parece causar no Digno Representante da Fazenda Pública, é imputada na, aliás, douta sentença recorrida à impugnante, ora contra-alegante, e não parece, salvo melhor entendimento, que tenha tido qualquer influência nessa mesma decisão.

H) Existe a nítida perceção de que "como decorre igualmente do probatório, e em concordância com o alegado, reportada a 3111211993, a impugnante registou na sua conta 2930000 - Processos Judiciais em curso, uma provisão no valor de 24.500.000 euros (rectius escudos), com a descrição "contencioso Snr. C...".

I) Por maioria de razão, os SIT se deveriam ter apercebido de tal "discrepância" e, tendo dúvidas, as deveriam ter, na devida altura, dissipado. É, aliás, o que decorre das atribuições que lhes estão acometidas por lei - vide artigos 55° e 58º da LGT.

J) Não lhes estaria vedado, na altura e em sede própria, levantarem o incidente de falsidade relativamente à constituição da provisão, com todas as legais consequências.

K) A verdade, todavia, é que não apenas o não fizeram, como, e bem o demonstra a, aliás, douta sentença recorrida, fundamentaram mal, de direito, a correção que então efetuaram à matéria coletável sujeita a IRC da ora-recorrente com referência ao exercício de 1993.

L) É o que, aliás, está espelhado no seguinte fundamento jurídico da, aliás, douta decisão recorrida:
"Veja-se que, não obstante a impugnante ter aprovisionado valor relativo a risco relativa a processos judiciais em curso, o que a AT não põe em causa, com previsão legal no artigo 33, nº1, alínea c) do CIRC, a decisão baseia-se no disposto no artigo 34º, onde está previsto o regime relativo às provisões para cobrança duvidosa, sendo que é o próprio artigo, no seu número um, a estabelecer o seu âmbito de aplicação objetiva às provisões previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 33.°".

M) Quanto a como e quem remeteu para o artigo 34.º ou o que a isso deu origem, como muito bem se refere na, aliás, douta sentença recorrida, "Não é possível determinar se assim é".

N) Ou seja, os SIT deviam, quando tiveram oportunidade para isso, fazer bem o trabalho de casa, se tinham de o fazer ou não será nesse comportamento que se materializam as diligências que lhe são impostas pelo citado artigo 58° da LGT "...diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material..."

O) Posteriormente, concluiu-se no momento de decidir que "...o que é possível concluir é que a correção efetuada pela AT incorre em erro de direito, por se fundar em norma que não é aplicável ao caso dos autos. Assim, e em cumprimento do artigo 33º alínea c) do CIRC, o valor da provisão devia ter sido mantido, ou anulado com outro fundamento, mas não se pode manter na ordem jurídica uma liquidação que se baseou em erro de direito, e por essa razão tem de proceder a presente impugnação, quanto à provisão para outros riscos e encargos" (último fundamento jurídico da, aliás, douta sentença recorrida, quanto a este ponto).

P) O que evidencia não poder pretender agora o Exmo. Representante da Fazenda Pública que o Venerando Tribunal ad quem se cubra com as vestes dos SIT e, por eles, faça, no momento de julgar, o que lhes competia terem feito no momento em que propuseram a correção que foi, e bem, decidido não manter, com todas as consequências, na ordem jurídica.

Q) Muito menos pode, como deliberada e reiteradamente fez, nas suas alegações pretender fundamentar o seu recurso na existência de vícios que invalidam a, aliás, douta sentença de que recorre, a partir de ilações abusivas que retira da apreciação do Balancete do Razão, admitindo-se que o faz com conhecimento de causa, isto é, que sabe do que fala, o que, a não ser assim, levaria a conclusão muito pior.

R) É que o Balancete do Razão é um balancete que apresenta apenas contas do razão - contas de 2 dígitos - contas que, naturalmente, se desdobravam em subcontas, de acordo com o previsto no Plano Oficial de Contabilidade (POC) então em vigor e que foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 410/89, de 21 de Novembro.

S) A designação das contas é oficial, não depende, como é óbvio, da vontade da ora contra-alegante!

T) E, nos termos daquele Plano, a conta 29 Provisões para outros riscos e encargos agregava, além de outras, a conta 293 Provisões para processos judiciais em curso, como se pode ver do ponto 11 do POC, sob a epígrafe Código do Contas.

U) Só a Conta 29 Provisões para outros riscos e encargos poderia, ex lege, figurar no Balancete do Razão, o mesmo não sucedendo com as suas subcontas!

V) Com o uso deste insólito argumento contra legem, a pretender impor que no Balancete do Razão estivesse espelhada e expressa a provisão para processos judiciais em curso, o Digno Representante da Fazenda Pública parece não pretender senão viciar qualquer raciocínio que se possa fazer e, mais, a tentar induzir em erro o Digno Tribunal.

W) Na verdade, não reinava o caos na ora contra-alegante: os registos eram consentâneos com a documentação suporte e a contabilidade era consentânea com a declaração, e não pode pretender­ se transformar um lapso declarativo num mapa anexo à declaração de rendimentos (mapa das provisões) numa cabala idealizada pela ora contra-alegante para enganar o fisco.

X) Haja (alguma) honestidade: o Balancete do Razão não tinha, nem podia ter, por natureza, uma conta designada provisão para processos judiciais em curso. Tinha, como devia ter, a conta que agrega a conta 293 Provisões para processos judiciais em curso e que é a conta 29 Provisões para outros riscos e encargos. O resto, ou é desconhecimento ou coisa pior.

Y) Não obstante, para que não restem dúvidas sobre a existência desse processo judicial e fique desfeita a insinuação inqualificável que decorre da grande maioria das alegações do Digno Representante da Fazenda Pública, junta-se a contestação da ora contra-alegante, onde se pode verificar, para além do mais, o Tribunal, Secção e número de processo onde correu o processo que motivou a constituição da provisão, como Documento 1.

TERMOS EM QUE, com o mui douto suprimento de V. Ex.ª, Venerando Desembargador Relator, deve ser considerado improcedente o presente recurso por não provado, mantendo, com a plenitude dos seus efeitos na ordem jurídica, a, aliás, douta sentença recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA».



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O Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso.

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Com dispensa dos actuais vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.



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II – FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«a) A impugnante foi alvo de inspecção interna, da qual se concluiu (cfr. documento de fls. 37 do PAT – 1.ª parte):


«Imagem no original»


b) Na sequência das conclusões da análise interna à declaração de IRC da impugnante, a 03/09/1998, foi emitida a liquidação adicional n.º8…, onde se apurou uma matéria colectável no valor de 542.182.471$00, e um valor a pagar de 17.447.337$00 (cfr. nota de liquidação, de fls. 12 do PAT – 2.ª parte);

c) A 06/11/1998 foi interposta reclamação graciosa à liquidação adicional (cfr. requerimento de fls. 2 do PAT – 2.ª parte);

d) A 24/03/2006 foi emitido projecto de indeferimento da Reclamação graciosa a que se refere a alínea anterior (cfr. despacho de fls 21 do PAT –2.ª Parte);

e) A impugnante pronunciou-se sobre o projecto de indeferimento (cfr. requerimento de fls. 29 e ss. do PAT – 2.ª parte);

f) A 07/12/2006 foi indeferida reclamação graciosa, com os fundamentos que constam de fls. 41 e ss. do PAT, que se dão por reproduzidos;

g) A 17/02/1994 foi emitida a seguinte lista de livros que em 31/12/1993 foram identificados como “monos”, por se encontrarem “danificados”, “sem venda por terem estado por longos períodos nos pontos de venda”, ou “por terem sido emitidas novas edições” (cfr. documentos de fls. 5 e ss. do PAT – 2.ª parte):


«Imagem no original»

h) Pela impugnante foi preenchido mapa de provisões, relativo ao exercício de 1993, como parte integrante da sua declaração Modelo 22, nos termos seguintes (cfr. fls. 8 do PAT, 2.ª parte):


«Imagem no original»

i) A 21/06/1994 a impugnante vendeu 840kg de livros, pelo preço de 10$00 o quilo, num total de 7.241$00, a que acresceu o IVA (cfr. factura n.º0001351, de fls. 9 do PAT – 2.ª parte);

j) Na conta “293000 – Provisões para riscos e encargos Processos Judiciais em curso” foi contabilizado, a 31/12/1993, o valor de 24.500.000$00, com a descrição “Contencioso Sr. C...” (cfr. documento de fls. 11 do PAT, 2.ª parte).

Não há factos alegados e não provados com interesse para a decisão da causa.

Os factos provados assentam na análise crítica dos documentos juntos aos autos e não impugnados, conforme se indica em cada alínea do probatório, não relevando para o caso dos autos a depoimento das testemunhas.»


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- De Direito

Na impugnação judicial deduzida pela V... estavam em causa duas correcções: (i) uma de 674.971$00, respeitante à constituição de provisões para a depreciação de existências e (ii) outra de 24.500.00$00 relativa a processos judiciais em curso.

A primeira correcção já aqui não está em discussão, posto que o TAF de Sintra não acolheu as razões da Impugnante e esta não interpôs recurso jurisdicional da parte correspondente.

Está, assim, unicamente em causa a correcção no montante de 24.500.00$00.

Antes de entrarmos no recurso jurisdicional propriamente dito, e a fim de facilitar a compreensão daquilo que se segue, deixaremos transcrito o teor da sentença na parte respeitante à correcção ora em análise.

Assim, lê-se na decisão recorrida o seguinte:

“(…)

Da provisão constituída relativa a processos judiciais em curso.

Nesta parte a impugnante começa por defender que a correcção efectuada deriva unicamente de um erro no preenchimento do mapa de provisões, o que levou ao erro da AT na decisão aqui em causa.

Decidiu a AT, em face da análise efectuada às declarações da impugnante, corrigir a sua matéria colectável, por não considerar preenchido o vertido no artigo 33.º, n.º1 alínea a) e 34.º, alínea a), b) e c) do CIRC.

Dispunha o artigo 34.º “Provisão para créditos de cobrança duvidosa”

1 - Para efeitos da constituição da provisão prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, são créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade se considere devidamente justificado, o que se verificará nos seguintes casos:

a) O devedor tenha pendente processo especial de recuperação de empresa e protecção de credores ou processo de execução, falência ou insolvência;

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente;

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respectivo vencimento e existam provas de terem sido efectuadas diligências para o seu recebimento.”

E é do confronto entre a norma em que se fundou a decisão da AT com a natureza da provisão reforçada em 1993 que analisaremos a questão que nos é colocada.

Como decorre do probatório, no mapa de provisões foi inscrito na linha relativa a “Provisão para créditos de cobrança duvidosa (art. 34.º do CIRC) Créditos em contencioso (alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 34.º), o reforço de provisões efectuado no valor de 27.254.908$00. Como decorre igualmente do probatório, e em concordância com o alegado, reportada a 31/12/1993, a impugnante registou na sua conta 2930000 – Processos Judiciais em curso, uma provisão no valor de 24.500.000euros, com a descrição “contencioso Sr. C...”.

Nos presentes autos a impugnante alega que a provisão se refere ao risco associado a ter de pagar uma indemnização, em resultado de uma acção intentada contra a impugnante, o que é coerente com a provisão registada. O que não é coerente com o alegado e com o que a AT concluiu relativamente ao pressuposto factual da provisão é o quadro em que funda a correcção efectuada.

Veja-se que não obstante a impugnante ter aprovisionado valor relativo a risco relativo a processos judiciais em curso, o que a AT não põe em causa, com previsão legal no artigo 33.º, n.º1 alínea c) do CIRC, a decisão baseia-se no disposto no artigo 34.º, onde está previsto o regime relativo às provisões para cobrança duvidosa, sendo que é o próprio artigo, no seu número um a estabelecer o seu âmbito de aplicação objectiva às provisões previstas na alínea a) do n.º 1 do antigo 33.º.

Cremos ser por a AT remeter que o artigo 34.º do CIRC que a impugnante afirma que a correcção deriva unicamente do erro no preenchimento do mapa de provisões, onde preencheu a linha relativa às provisões criadas no âmbito daquela norma.

Não é possível determinar se assim é, mas o que é possível concluir é que a correcção efectuada pela AT incorre em erro de direito, por se fundar em norma que não é aplicável ao caso dos autos. Assim, e em cumprimento do artigo 33.º, alínea c) do CIRC, o valor da provisão devia ter sido mantido, ou anulado com outro fundamento, mas não se pode manter na ordem jurídica liquidação que se baseou em erro de direito, e por essa razão tem de proceder a presente impugnação, quanto à provisão para outros riscos e encargos.

De todo o exposto, procede parcialmente a presente impugnação, quanto à parte relativa aos custos com provisão no valor de 24.500.000$00, para risco relacionado com processos judiciais em curso, improcedendo quanto ao mais”.

Vejamos, então.

A primeira questão que temos que resolver é a de saber se pode ser, ou não, admitido o documento que o Recorrido juntou com as contra-alegações.

Com efeito, como resulta da conclusão Y), afirma o Recorrido “… para que não restem dúvidas sobre a existência desse processo judicial e fique desfeita a insinuação inqualificável que decorre da grande maioria das alegações do Digno Representante da Fazenda Pública, junta-se a contestação da ora contra-alegante, onde se pode verificar, para além do mais, o Tribunal, Secção e número de processo onde correu o processo que motivou a constituição da provisão, como Documento 1”.

Recuperando o enquadramento feito no acórdão deste Tribunal de 25/01/18, no processo nº 312/17.4BEBJA, deve lembrar-se que “Vigora no direito português o modelo de apelação restrita, de acordo com o qual o recurso não visa o reexame, sem limites, da causa julgada em 1ª. Instância, mas tão- somente a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o Tribunal “a quo” no momento em que proferiu a sentença. Como resulta de uma jurisprudência uniforme e reiterada, os recursos são meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais e não ocasião para julgar questões novas. Em princípio, não pode alegar-se matéria nova nos Tribunais Superiores, em fase de recurso, não obstante o Tribunal “ad quem” tenha o dever de apreciar as questões de conhecimento oficioso. Daí que, não devam ser juntos documentos novos na fase de recurso. A lei, porém, prevê excepções que passamos a analisar.

Dispõe o artº.523, do C.P.Civil (cfr.artº.423, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6), que os documentos, como meios de prova, da acção ou da defesa, devem ser apresentados com o articulado em que se invoquem os factos que se destinem a demonstrar. Não sendo apresentados com o respectivo articulado, ainda e por livre iniciativa das partes litigantes, enquanto apresentantes, podem ser juntos ao processo até ao encerramento da discussão em 1ª Instância (actualmente até vinte dias antes da realização da audiência final - cfr.artº.423, nº.2, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6), embora com a condenação do apresentante em multa, salvo demonstração de que os não pôde oferecer com o articulado próprio.

Em fase de recurso, a lei processual civil (cfr.artºs.524 e 693-B, do C.P.Civil; artºs.425 e 651, nº.1, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6), somente possibilita a junção de documentos ao processo, sempre e só com as alegações (ou contra-alegações) e não em momentos posteriores, quando ocorra alguma das seguintes circunstâncias:

1-Quando não tenha sido possível a respectiva apresentação em momento anterior (artº.524, nº.1, do C.P.Civil);

2-Quando se destinem à demonstração de factos posteriores aos articulados (artº.524, nº.2, do C.P.Civil);

3-Quando a respectiva apresentação se tenha tornado necessária em resultado de ocorrência posterior ao encerramento da discussão em 1ª Instância (artº.524, nº.2, do C.P.Civil);

4-Quando a junção de documentos se torne necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª Instância (cfr.artº.693-B, do C.P.Civil; artº.651, nº.1, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6);

5-Nos casos previstos no artº.691, nº.2, als.a) a g) e i) a n), do C. P. Civil (cfr.artº.693-B, do C.P.Civil).

A verificação das circunstâncias que se acabam de elencar tem como pressuposto necessário que os factos documentados sejam relevantes/pertinentes à decisão a proferir, o que decorre, desde logo, directamente da circunstância dos documentos cuja junção se pretende deverem ter por desiderato a prova dos fundamentos da acção e/ou da defesa (citado artº.523, do C.P.Civil) e, indirectamente e como consequência do que se vem de referir, do facto de o juiz se encontrar vinculado a mandar retirar do processo os que sejam impertinentes ou desnecessários, por força do estipulado no artº.543, do mesmo compêndio legal (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 23/3/2011, proc.4593/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/11/2013, proc.6953/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/3/2014, proc.2912/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 9/6/2016, proc.8610/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 25/07/2016, proc.9718/16; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.96 e seg.; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª. Edição, 2017, pág.229 e seg.).

No que diz respeito à hipótese de junção de documentos quando esta se torne necessária em virtude do julgamento efectuado em 1ª Instância (cfr.nº.4 supra), o advérbio “apenas”, usado no artº.693-B, do C. P. Civil (cfr.artº.651, nº.1, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6), significa que a junção só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª Instância, isto é, se a decisão da 1ª Instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento. A lei quis, manifestamente, cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes da decisão da 1ª. Instância ser proferida. Por outras palavras, a jurisprudência sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos visando a prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a demonstração, mais não podendo servir de pretexto da junção a mera surpresa quanto ao resultado (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/11/2013, proc.6953/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/3/2014, proc.2912/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 9/6/2016, proc.8610/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 25/07/2016, proc.9718/16; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 25/10/2018, proc.6584/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/02/2019, proc.118/18.3BELRS; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.533 e 534; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª. Edição, 2017, pág.230)”.

No caso concreto, este Tribunal rejeita a junção documental requerida, uma vez que ela é absolutamente desnecessária.

Com efeito, o documento em causa, como a Recorrida refere, visa demonstrar “o Tribunal, Secção e número de processo onde correu o processo que motivou a constituição da provisão”, esclarecendo, assim, as dúvidas suscitadas pela Recorrente nas suas alegações de recurso.

E, na verdade, no recurso jurisdicional, a Fazenda Pública refere, além do mais, que a V... não cumpriu o ónus da prova que sobre si impendia, pois não procedeu à “identificação do processo”, à “identificação do tribunal de trabalho onde esse suposto contencioso corre os seus termos processuais”, à identificação “do seu trabalhador ou colaborador. Como pode um tribunal formar a sua convicção assente num montante inscrito suportado num facto não concretizado?.”

Foi, portanto, perante estas questões que a Recorrida sentiu a necessidade de juntar o documento em causa.

Sucede, porém, que foi afirmado na sentença – e bem – que a impugnante provisionou o montante indicado (24.500.000$00), “valor relativo a risco relativo a processos judiciais em curso, o que a AT não põe em causa”.

Ora, como se vê, até pelo que consta da seguinte transcrição do RIT – “Linha 6 Quadro 20 – O Sujeito passivo constituiu provisões para Créditos de Cobrança Duvidosa nos termos das alíneas a), b) e c) do nº1 1 do Artº 34º do CIRC, e não respeitou o previsto na alínea a) do Nª 1 do Artº 33º do mesmo código, dado ter considerado para o cálculo destas, o montante de 24.500.000$00, referente a uma indemnização solicitada por um trabalhador da empresa na qualidade de Director Operacional com processo a decorrer no Tribunal de Trabalho. As provisões sobre esses encargos não são aceites fiscalmente, pois estes não são considerados créditos resultantes da actividade normal da empresa” os SIT não colocaram em causa, assumindo, até, que o valor de 24.500.000$00 era relativo a “uma indemnização solicitada por um trabalhador da empresa na qualidade de Director Operacional com processo a decorrer no Tribunal de Trabalho”, o que permite perceber que não tenha havido, até às alegações de recurso, a necessidade de juntar o documento 1, agora exibido com as contra-alegações.

Basta o que se escreveu anteriormente para perceber que a origem do apontado valor, de 24.500.000$0, nunca esteve em causa; o que se discute é a sua contabilização e a aceitação desse valor enquanto provisão fiscalmente dedutível, ao abrigo das alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 34º do CIRC e da alínea a) do nº1 do artigo 33º do mesmo código.

Nesta conformidade, e repetindo a ideia já avançada, não é de admitir o documento junto com as contra-alegações. Mais se deve dizer que não se condena o apresentante em multa por se entender que foi a Recorrente, pelas razões expostas, que levou à consideração da necessidade de exibir o apontado documento.

Isto dito, avancemos, não perdendo de vista o teor da sentença já transcrita.

Tal como resulta dos factos provados, no exercício de 1993, a V... constituiu provisões para créditos de cobrança duvidosa, ao abrigo das alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 34º do CIRC e da alínea a) do nº1 do artigo 33º do mesmo diploma, aí fazendo incluir o montante de 24.500.000$00, referente a uma indemnização solicitada por um trabalhador da empresa na qualidade de Director Operacional com o respectivo processo a correr no Tribunal de Trabalho.

Os SIT não aceitaram tal provisão, na parte correspondente aos referidos 24.500.000$00, por entenderem que esse valor não respeita a um “crédito resultante da actividade normal da empresa.” Nessa conformidade, tal encargo/provisão não foi aceite como fiscalmente dedutível.

E, na verdade, dúvidas não restam (e a própria Impugnante o aceita) que o valor “referente a uma indemnização solicitada por um trabalhador da empresa na qualidade de Director Operacional com processo a decorrer no Tribunal de Trabalho” não visa a “cobertura de créditos resultantes da actividade normal que no fim do exercício possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”, tal como prevê o artigo 33º, nº1, alínea a) do CIRC. E assim sendo, por decorrência óbvia, nenhum sentido fará a discussão sobre a inserção do valor em causa nas alíneas a), b) ou c) do nº 1 do artigo 34º do CIRC.

Quer isto dizer, como parece claro no caso, que a consideração do valor de 24.500.000$00 como provisão para cobertura de crédito resultante da actividade normal da empresa, tal como foi considerado no mapa de provisões (cfr. alínea h) dos factos provados), é manifestamente errada.

Isso mesmo disseram os SIT e é reconhecido pela Impugnante, além de que resulta da sentença essa mesma conclusão.

Sucede que a análise do caso concreto não se pode ficar por aqui e, nessa medida, fundada no específico circunstancialismo de facto evidenciado no autos, a sentença foi mais longe e chamou à colação o que em sede de articulado inicial já se havia evidenciado: é que, na realidade, o valor de 24.500.000$00 respeita a uma indemnização pedida à V... “num processo movido pelo Senhor A...”, colaborador da empresa (o que não foi sequer questionado pelos SIT) e, bem assim, que a impugnante registou na sua conta 2930000 – processos judiciais em curso, a referida provisão, sendo certo que o artigo 33º, nº 1, alínea c) do CIRC determinava que podem ser deduzidas as provisões “destinadas a ocorrer a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso por factos que determinariam a inclusão daqueles entre os custos do exercício”.

Vejamos, então, os termos em que se revela a discordância da Recorrente com a análise feita sentença.

Ora, se bem lermos os termos do recurso jurisdicional, percebemos que a o ataque à sentença resulta, em grande medida, de o Tribunal não ter dado a valoração e enquadramento correctos à circunstância de existir “um mapa de provisões cujo conteúdo foi levado ao probatório e que é preenchido pela própria impugnante (não pela AT) no exercício dos factos tributários” e, nessa medida, não ter sido perpetrado qualquer erro por parte dos SIT (mas sim por parte do sujeito passivo). Por outro lado, resulta alegado no recurso que a V... não provou, como lhe competia, “o contencioso laboral apresentado”, sendo que não foi apreciado “um documento contabilístico manifestamente relevante para a boa decisão da causa (Balancete do Razão – mês de fecho – Anexo 4) o qual, à semelhança do Mapa de Provisões, mais uma vez revela a ausência de montantes provisionados a título de Processo Judiciais em curso, contrariando mais uma vez o registo inscrito na conta 293000, e que se impunha que fosse levado ao probatório”.

Vejamos, então.

O Tribunal a quo valorou como tinha que valorar o dito mapa de provisões, fazendo-o constar dos factos provados, tal como preenchido e apresentado às autoridades tributárias pela Impugnante.

Coisa diferente é a conclusão de que o mesmo evidencia um erro de preenchimento manifesto (por parte do sujeito passivo), o que, aliás, não parece ter escapado à análise dos SIT, já que – repete-se – na base fundamentadora da correcção em causa logo se fez menção a tratar-se de um valor respeitante a “uma indemnização solicitada por um trabalhador da empresa na qualidade de Director Operacional com processo a decorrer no Tribunal de Trabalho”.

Contrariamente ao que ora sustenta a Recorrente, Fazenda Pública, pouco sentido faz, neste momento e como forma de pôr em causa os alicerces de facto da sentença, argumentar, tal como consta das conclusões da alegação de recurso, no sentido de que não foi valorado “o Balancete do Razão – mês de fecho (anexo 4)” ou questionar se “não seria curial ao tribunal a quo perguntar-se porque motivo não logrou a Impugnante juntar aos autos prova documental da suposta ação laboral intentada contra a impugnante?”, já que “impunha-se que dela fizesse prova à luz não só do art.74º, nº1 mas também do art.75º, nº2, ambos da LGT, o que não fez”. Para a Recorrente, “Causa perplexidade a conclusão imediata com que a sentença recorrida reputa de coerente o registo da provisão com a mera alegação referente a uma suposta ação laboral contra a Impugnante que nem provada está!!!”, não se descortinando “-a incoerência desse registo não estar devidamente suportado, decorrendo do Mapa de Provisões que esta reporta-se a Provisão para créditos de cobrança duvidosa (art. 34º do CIRC)”; “-a incoerência da Impugnante dar conta da existência de um erro na sua escrita por si provocado”; “-a incoerência do Balancete do Razão não evidenciar a contabilização da Provisão da conta 293000 – Processos Judiciais em curso e a sua quantificação, mas evidenciar a contabilização de Provisões para créditos de cobrança duvidosa (bem, aqui, em bom rigor, se a sentença recorrida nem a análise a este documento fez nem no âmbito da incoerência estamos)”; a “a incoerência de não estarmos perante um mas uma pluralidade de erros na escrita e no que a suporta”; “a incoerência da Impugnante alegar que a provisão refere-se ao risco associado à indemnização referente a uma ação laboral intentada contra a Impugnante, e esta não fazer prova cabal desse facto”. Evidencia, ainda, a Recorrente que “A AT daria crédito à alegada Provisão da conta 293000 se, a par do registo contabilístico, a alegação do sujeito passivo lograsse ser suficientemente concretizada que possibilitasse a esta ir em busca da sua confirmação”, sendo que, nas palavras da Recorrente, “a Impugnante em momento algum sequer concretizou esse facto identificando o contencioso laboral apresentado e que impusesse aos SIT a sua corroboração”.

Ora, o pouco sentido de tal alegação deve-se a uma única razão: jamais a AT, através dos SIT, puseram em causa que o valor de 24.500.000$00 respeitasse a uma indemnização solicitada por um trabalhador da empresa na qualidade de Director Operacional, com processo a decorrer no Tribunal de Trabalho. Pelo contrário, repete-se, assumiram isso mesmo, abstendo-se de, na pendência da fiscalização e se dúvidas persistissem, solicitar elementos de prova adicionais, em particular aqueles que, agora (em sede de recurso jurisdicional), a Fazenda Pública insiste que deviam ter sido juntos.

Nesta conformidade, improcedem as conclusões que temos vindo a analisar e que de forma dispersa e menos sistematizada respeitavam ao erro na apreciação crítica da prova e, consequentemente, erro de julgamento da matéria de facto.

Aqui chegados, avancemos para o final, tendo presente que se tem como adquirido que o montante de 24.500.000$00 corresponde ao valor da indemnização solicitada por um trabalhador da empresa na qualidade de Director Operacional com processo a decorrer no Tribunal de Trabalho, tal como consta do RIT.

Como já antes dissemos, nos termos do artigo 33º do CIRC, podem ser deduzidas para efeitos fiscais as provisões destinadas a ocorrer a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso por factos que determinariam a inclusão daqueles entre os custos do exercício [alínea c) do nº 1].

No caso, sendo a recorrida demandada judicialmente por um colaborador que exige o pagamento de uma indemnização a que se considera com direito, ocorre, na procedência da acção, uma obrigação de pagamento que corresponde a um custo aceite pela lei fiscal. “E, sendo certo que a constituição de uma provisão implica sempre uma avaliação por parte do sujeito passivo, haverá que notar que, como sublinha Rui Duarte Morais (Ob. citada, pags. 128/129.), dada a incerteza que qualquer pleito judicial envolve, existe sempre um risco real de a empresa ser condenada no valor total peticionado, pelo que, verificando-se os demais condicionalismos legais, deverá ser aceite a relevância fiscal de uma provisão correspondente ao montante do pedido” (cfr. acórdão do STA, de 14/03/18, processo nº 716/13).

Assim sendo, e não obstante a incorrecta relevação declarativa do registo contabilístico da provisão relativa à indemnização solicitada, entendemos, tal como o tribunal a quo (embora com fundamentação algo diversa) que a correcção operada pela AT não pode manter-se, devendo, no caso, sem hesitações, dar-se prevalência ao princípio da justiça sobre o princípio da legalidade.

Com efeito, dando como certo que o valor de 24.500.000$00 não é respeitante a uma provisão das previstas na alínea a) do nº1 do artigo 33º do CIRC, tal como foi declarada no mapa de provisões preenchido pelo sujeito passivo, dúvidas não restam que se trata de um montante susceptível de ser provisionado, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do mesmo preceito, e, como tal, aceite como custo fiscalmente dedutível.

Trata-se de um custo que, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, já que a sua imputação, nos termos em que foi feita, não se afigura como uma omissão voluntária e intencional, com vista a obter benefícios indevidos ou prejudicar o Estado.

Trata-se, pois, no caso, de dar a devida prevalência ao princípio da justiça. Aliás, trata-se de uma linha argumentativa e decisória que, algumas vezes, os Tribunais já têm vindo a lançar mão, dando prevalência ao princípio da justiça. A título exemplificativo, veja-se o acórdão antes citado, do STA, de 14/03/18, no qual se pode ler, no confronto entre o princípio da especialização dos exercícios e o princípio da justiça, o seguinte:

“(…) De facto, como ficou sublinhado no referido Acórdão 214/07, «no caso do referido art. 18, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes.

Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266, n.º 2, da CRP e 55 da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio.»

Neste contexto haveremos de concluir que serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, actos de correcção da matéria tributável que, como no caso subjudice, conduzam a situações injustas deste tipo.

Pelo que é de aceitar, para efeitos fiscais, a contabilização efectuada pela recorrida já que não estão alegados ou provados factos através dos quais se demonstre que houve a intenção deliberada de proceder à transferência de resultados de exercício ou de fuga à tributação”
No caso em análise, movemo-nos por considerações absolutamente equivalentes, sendo de concluir, também aqui, que não se demonstra qualquer intenção de obter benefícios indevidos ou de fugir à tributação, pelo que seria flagrantemente injusto não aceitar como custo dedutível a provisão relativa ao valor de uma indemnização solicitada por um colaborador do sujeito passivo, provisão esta que encontra respaldo no artigo 33º, nº1, alínea c) do CIRC.

Assim, e com esta fundamentação, não inteiramente coincidente com a adoptada pelo TAF de Sintra mas com o mesmo resultado invalidante da correcção em análise, julgam-se improcedentes as conclusões da alegação recursória e nega-se provimento ao recurso jurisdicional.

Mantém-se, pois, nos termos expostos, a sentença recorrida.


*




III - DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.


Custas pela Recorrente.

Registe e Notifique.

Lisboa, 07/05/20


(Catarina Almeida e Sousa)

(Hélia Gameiro)

(Benjamim Barbosa)