Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3616/15.7BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:05/09/2019
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PETIÇÃO INICIAL;
INEPTIDÃO
Sumário:i) De acordo com a al. a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, a petição inicial será inepta quando lhe falte a indicação do pedido ou da causa de pedir, ou os mesmos se mostrem ininteligíveis.

ii) A causa de pedir refere-se aos acontecimentos da vida em que se apoia o Autor, sendo que a ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir consiste na indicação em termos verdadeiramente obscuros ou ambíguos, de forma a não se saber, concreta e precisamente, o que pede o autor e com que base o pede.

iii) Indicando o A. um acervo factual mínimo e extraindo-se da petição inicial a imputação de responsabilidade ao Município ora Recorrido com fundamento em responsabilidade civil extracontratual do Estado por conduta omissiva, formulando-se nela pedidos indemnizatórios expressos e quantificados a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, não pode dar-se por verificada a ineptidão da petição inicial.

iv) Sendo que a leitura da contestação apresentada em juízo demonstra que o R. percebeu claramente o pedido formulado e os seus fundamentos, contraditando o mesmo e impugnando a factualidade alegada na petição inicial.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

João ................ (Recorrente) interpôs recurso jurisdicional do saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que absolveu da instância o Município de Sintra (Recorrido), com fundamento na ininteligibilidade da causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

a) O Autor não se conforma com a sentença proferida nos autos que decidiu absolver a Entidade demandada da Instância nos presentes autos, senão vejamos:

b) A douta sentença inicia-se logo com uma imprecisão, visto que vem referir que:

“(...)Cumpre dela conhecer sem a prévia realização da audiência prévia (cfr. artigo 87.º-B, n.º 1, do CPTA), proferindo-se, de imediato (...)”

c) A fls. poderá sempre confirmar-se que no dia 20 de Janeiro de 2017 já ocorreu a audiência prévia., constando do processo a respectiva acta e tendo a mesma sido realizada na sala de audiências deverá ter sido gravada.

d) O que também se pode confirmar pelo referido a fls. 6 da sentença.

e) Sendo que cumpre referir que no âmbito dessa diligência o Autor foi convidado a esclarecer alguns pontos da petição inicial, o que conseguiu fazer no momento.

f) Verificando-se que não foi nessa data notificado para apresentar qualquer esclarecimento ou mesmo para aperfeiçoar a petição.

g) Ou seja, na interpretação da Senhora Juíza que acompanhou essa supra referida diligência, não seria necessário apresentar qualquer aperfeiçoamento da petição inicial.

h) Posteriormente, após a notificação para aperfeiçoar a petição inicial, o Tribunal proferiu sentença a absolver a demandada da instância, sendo que na sentença descreve os factos alegados pelo Autor.

i) Ou seja, o Tribunal conseguiu perfeitamente perceber os factos alegados pelo Autor, caso contrário seria impossível efectuar uma súmula com tanto rigor.

j) A Demandada na Contestação apresentada não invoca qualquer ineptidão, embora tenha invocado uma excepção.

k) A decisão vem referir que “dedutivamente” permite enquadrar o permite enquadrar o objecto do processo na matéria da responsabilidade civil da Entidade demandada.

l) Com o devido respeito, que é muito, sempre temos que referir que não é dedutivamente, visto que o Autor quando convidado a aperfeiçoar a petição inicial referiu as normas que considera violadas, nomeadamente efectuado o enquadramento da lei no tempo.

m) O Autor no requerimento de 02.11.2017 indicou expressamente as normas jurídicas aplicáveis.

n) Ou seja, com o devido respeito que é muito, não é dedutivamente que o Tribunal enquadra o direito, mas sim expressamente.

o) Mas mesmos que assim não fosse, sempre teremos que referir que nos termos do artigo 674º do anterior CPC com o correspondente nº 3 do artigo 5º do novo CPC, sendo estas normas aplicáveis por remissão dos artigos 1.º e 35.º, n.º 1, do CPTA.

p) Ou seja, o Tribunal tem o poder/dever de aplicar o Direito conforme considerar mais adequado aos factos alegados.

q) Parece-nos ser este o cerne da discordância do Autor com a decisão do Tribunal, pelo que se entende que o Tribunal violou claramente o nº 3 do artigo 5º do NCPC aplicável por remissão dos artigos 1.º e 35.º, n.º 1, do CPTA.

r) Ou seja, o Tribunal decide a ineptidão da petição inicial pela não invocação da norma jurídica ( o que não corresponde à realidade bastando analisar o requerimento de 02.11.2017).

s) Assim sendo, o Tribunal não fundamenta a sua decisão, pelo menos no início da decisão, em deficiente alegação de factos mas sim de direito, o que desde já se entranha e viola claramente o nº 3 do artigo 5º do NCPC aplicável por remissão dos artigos 1.º e 35.º, n.º 1, do CPTA.

t) No entanto o Tribunal, acrescenta o seguinte:

“(...)A alegação do Autor, para além de destituída de qualquer causa de pedir jurídica, não continha igualmente factualização da qual fosse possível extrair a ilicitude, a culpa e o nexo causal entre a ilicitude e os danos invocados. (...)”

u) Vamos então olhar para a petição inicial conjugada com o requerimento de 02.11.2017, e aferir se o Tribunal teria razão:

v) Quanto à causa de pedir jurídica, a mesma foi alegada, sem contudo ser necessária essa alegação, não vamos repetir o supra exposto.

w) Vamos então à ilicitude e culpa e o nexo causal entre a ilicitude e os danos causados,bastando analisar os artigos 18, 19, 20, 22º, 23º, 24º 25º, 26º, 27, 29º, 31º e 32º todos da petição inicial:

x) O Autor nos artigos 21º, 28º e 30º a 66º vem o Autor identificar e quantificar os seus danos.

y) Assim sendo, resulta claro que, no caso concreto os factos descritos nos artigos 18, 19, 20, 22º, 23º, 24º 25º, 26º, 27 e 29º , se enquadram no âmbito de aplicação do diploma da responsabilidade civil, nomeadamente por omissão da execução de um plano de pormenor exequível.

z) A alegação do Autor é apresentada por omissão da execução de um plano de pormenor exequível.

aa) Ou seja, o Autor alegou os factos que, na sua perspectiva, lhe causaram e causam prejuízos muito avultados tendo enquadrado a aplicação do direito.

ab) Porquanto, não vislumbramos qualquer ineptidão da petição inicial, apenas estamos perante uma acção, menos comum diga-se, mas com objectivo de responsabilizar um Município por omissão.

ac) No caso concreto estamos perante uma omissão clara da Demandada, a qual é ilícita visto que os Municípios estão obrigados a executar os planos de pormenor existentes, não executando violam a boa-fé

ad) Não sendo possível executa-los, deverão substituí-lo por um plano de pormenor executável.

ae)A Constituição consagra o princípio da boa fé no art.266.º, nº2, enquanto princípio fundamental ao qual estão subordinados os órgãos e os agentes administrativos, no exercício das suas funções.

af) Este princípio decorre do Estado de Direito, por sua vez consagrado no art. 2.º da CRP: este implica a protecção da confiança dos cidadãos face às actuações do Estado, implicando um mínimo de certeza e de segurança na vida jurídica.

ag)Devendo esta norma ser conjugada com o artigo 10º do CPA, que consagra o princípio da Boa-Fé.

ah)Anteriormente, na vigência do antigo CPA, já o artigo 6º – A consagrava este princípio.

ai) O Tribunal vem ainda referir o seguinte:

“Convidado a aperfeiçoar a sua alegação inicial e visando suprir as deficiências da sua alegação inicial em matéria de causa de pedir fáctica, o Autor esclarece, em suma, que o facto que considera gerador dos danos cuja condenação ao pagamento é visada nos autos é a «omissão de execução de um plano de pormenor exequível» (cfr. artigo 7.º do articulado de aperfeiçoamento). Embora, paralelamente, a remissão do Autor para os artigos da petição inicial, contida nos artigos 2.º e 7.º do mesmo articulado de aperfeiçoamento, permita concluir que o facto gerador da responsabilidade alegado pelo Autor poderá ser – também ou alternativamente – a elaboração e aprovação desse plano de pormenor (cfr. concretamente a remissão para o artigo 29.º da petição inicial) ou até a elaboração, aprovação e manutenção de um plano de pormenor que, como o Autor teria alertado, seria inexequível e economicamente inviável (cfr. concretamente a remissão para o artigo 22.º da petição inicial). O tribunal – assim como a Entidade demandada – fica sem saber, ao certo (...)”

aj) Para responder à dúvida do Tribunal bastará ler o artigo 31º da petição inicial com o seguinte teor:

“Porém, a Ré, até este momento não executou o Plano de Pormenor por si aprovado e também não procedeu às necessárias alterações, prejudicando com a sua conduta e a sua negligência elevados prejuízos ao A.”

ak) O Tribunal vem ainda referir que considera a petição inepta porque em momento algum apresentou nos autos um facto, sequer, do qual possa ser extraída a ilicitude da conduta, activa ou omissiva.

al) Reiteramos que o facto está alegado e é a é a omissão da execução de um plano de pormenor exequível.

am) Quanto a esta referência, cumpre repetir o artigo 31º da petição inicial, será que não é ilícito a Demandada decorridos 15 anos (à data de entrada da acção) após a aprovação do programa Polis não ter executado um plano de pormenor exequível.

an) Efectivamente a matéria em causa é complexa, em virtude de o Autor responsabilizar a Demandada por omissão e não por acção.

ao) Pelo que a douta decisão viola o nº 3 do artigo 5º do NCPC aplicável por remissão dos artigos 1.º e 35.º, n.º 1, do CPTA, visto que os factos estão alegados e a aplicação do direito será efectuada livremente pelo Tribunal.

ap) O Autor considera ainda que a decisão viola o nº 1, nº 2 e nº 4 alínea b) do artigo 89.º, do CPTA, e nº 2 alínea a) do artigo 186.º ( em virtude de não existir qualquer ineptidão), n.º 1 e 2 do 576.º alínea b) do artigo 577.º, e 578.º do CPC, aplicáveis por remissão dos artigos 1.º e 35.º, n.º 1, do CPTA).

aq) Porquanto, desde já se requer que a douta sentença seja revogada e substituída por uma sentença que ordene o prosseguimento dos autos.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença que absolveu a demandada do pedido e substituída por uma decisão que ordene o prosseguimento dos autos.



O Recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.


Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, notificada nos termos do disposto nos art.s 146.º, n.º 1, e 147.º do CPTA, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.


Com dispensa dos vistos legais, importa apreciar e decidir.


I. 2. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se o Tribunal a quo errou ao ter concluído pela ininteligibilidade do pedido formulado, assim julgando verificada a ineptidão da petição inicial.


II. Fundamentação

II.1. De facto

Embora não tenha sido proferida decisão autónoma sobre a matéria de facto, da decisão do tribunal a quo é possível extrair, como incidências processuais, o seguinte como:

A) JOSÉ ................, melhor identificado nos autos, intentou a presente acção administrativa contra o MUNICÍPIO DE SINTRA, peticionando a condenação deste ao pagamento de uma indemnização no valor de € 404 335,46 (quatrocentos e quatro mil, trezentos e trinta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos).B) Convidado a aperfeiçoar a sua petição inicial, o Autor veio, além do mais, enquadrar juridicamente o seu pedido no RRCEE, referindo, na integração jurídica do seu pedido, as normas dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º e 7.º, n.º 1, desse regime, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. E, reportando-se à legislação vigente antes da entrada em vigor desse regime jurídico, o Autor sublinha também a existência das normas do artigo 96.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, entretanto revogado, e do artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa.

B) Na petição inicial, o Autor alega um circunstancialismo fáctico que passa (i) pela aprovação do Plano Director Municipal de Sintra, (ii) pela aprovação do Plano de Pormenor da Área Central do Cacém, (iii) pela publicação do Decreto-Lei n.º 119/2000, de 4 de Julho, com a delimitação das zonas de intervenção do Programa Pólis e com as respectivas normas preventivas, e (iv) pelo encetamento e alegado abandono de processo expropriativo dos imóveis em causa. Alega também a verificação de um conjunto de danos, depois qualificados e quantificados como patrimoniais e não patrimoniais.

C) Foi realizada a audiência prévia, para os efeitos das alíneas a) a c) do artigo 87.º-A, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cfr. despacho e acta de fls. 152 e 157-158 do processo físico, tendo o Autor requerido a concessão de um prazo para aditar o requerimento probatório, o que foi deferido.

D) Por requerimento de fls. 161 a 163 do processo físico, o Autor apresentou requerimento probatório, requerendo designadamente a realização de prova pericial.

E) Por requerimento de fls. 166 e 167 do processo físico, a Entidade demandada pronunciou-se sobre o requerimento de realização de perícia apresentado pelo Autor.

F) Por despacho de fls. 176 do processo físico, o Autor foi convidado a aperfeiçoar a sua petição inicial, completando a alegação, (a) esclarecendo, de entre os factos alegados, aquele ou aqueles que considera ser(em) a causa da obrigação de indemnizar, (b) identificando a norma que, no seu entendimento, lhe confere o direito a indemnização e (c) concretizando em que medida o facto ou factos identificados preenchem os pressupostos da referida norma.

G) O Autor apresentou o articulado de aperfeiçoamento de fls. 180 a 182 do processo físico, no qual conclui que os autos devem prosseguir.

H) Notificada para o efeito, a Entidade demandada apresentou o articulado de resposta de fls. 194 e 195 do processo físico, no qual invoca que no articulado de aperfeiçoamento o Autor não supriu as deficiências da sua alegação inicial, continuando a não ser possível identificar qual é o direito do Autor que foi lesado e, mais ainda, qual é o facto ilícito causador dos danos invocados.

I) Convidado a aperfeiçoar a sua alegação inicial e visando suprir as deficiências da sua alegação inicial em matéria de causa de pedir fáctica, o Autor esclarece, em suma, que o facto que considera gerador dos danos cuja condenação ao pagamento é visada nos autos é a «omissão de execução de um plano de pormenor exequível» (cfr. artigo 7.º do articulado de aperfeiçoamento).

J) Embora, paralelamente, a remissão do Autor para os artigos da petição inicial, contida nos artigos 2.º e 7.º do mesmo articulado de aperfeiçoamento, permita concluir que o facto gerador da responsabilidade alegado pelo Autor poderá ser – também ou alternativamente – a elaboração e aprovação desse plano de pormenor (cfr. concretamente a remissão para o artigo 29.º da petição inicial) ou até a elaboração, aprovação e manutenção de um plano de pormenor que, como o Autor teria alertado, seria inexequível e economicamente inviável (cfr. concretamente a remissão para o artigo 22.º da petição inicial).



II.2. De direito

A ineptidão da petição inicial gera a nulidade de todo o processo, nulidade esta que se consubstancia como excepção dilatória de conhecimento oficioso e que obsta ao conhecimento do mérito da causa (cfr. art.s 186.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, 577.º, al. b), e 578.º, todos do CPC. De acordo com o art. 89.º, nº 4, al. b) do CPTA, é excepção dilatória, entre outras, a nulidade de todo o processo.

Dispõe o artigo 186.º do CPC que há ineptidão da petição inicial quando (nº 2): “falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir” (al. a)), “o pedido esteja em contradição com a causa de pedir” (al. b)) ou “quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis” (al. c))

Nos termos do disposto no nº 3 do mesmo art. 186.º do CPC, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial, sem que se verifique prejuízo para a sua defesa.

Ora, no presente caso, temos que na audiência prévia realizada não foi o A. convidado a efectuar quaisquer esclarecimentos nem para aperfeiçoar a petição, o que só mais tarde veio a ocorrer, tendo o A. referido as normas que considera violadas, efectuando, nomeadamente o enquadramento da lei no tempo.

E anteriormente na contestação o Município de Sintra defendeu-se por excepção, com invocação da prescrição, e por impugnação, de nenhum passo avançando a ineptidão da petição inicial. Aliás, o ora Recorrido nessa peça processual demonstrou compreender perfeitamente os fundamentos do pedido, contraditando o mesmo e impugnando a factualidade que havia sido alegada para o sustentar; basta ler a contestação para o verificar (i.a os art.s 4.º a 8.º, 12.º, 14.º a 68.º, 69.º, 74.º a 79.º e 84.º a 87.º).

Por outro lado, não deixa de assistir razão ao Recorrente quando alega que “da forma como o tribunal descreve, na Decisão recorrida os factos alegados pelo A. resulta que o Tribunal conseguiu perceber, perfeitamente, os factos alegados, sendo certo que a Entidade Demandada (ED) na Contestação apresentada não invoca qualquer ineptidão, nem manifesta qualquer dificuldade em entender a petição, apresentando a sua contestação sem invocar qualquer dificuldade ou prejuízo na elaboração da sua defesa”.

Tudo visto, acompanharemos a pronúncia do Ministério Público nesta instância, a qual dá resposta integral à questão objecto do recurso, pelo que a passamos a transcrever na parte aqui relevante:

“(…)

Na verdade, como alega o recorrente o tribunal a quo descreveu, em síntese, os factos alegados pelo A. e dessa síntese, resulta que para fundamentar a sua acção o A., alegou que:

1. nos anos de 1998, 1999, 2009 e 2014, adquiriu quatro imóveis, todos situados na freguesia de Agualva-Cacém, no Município de Sintra, com a intenção de aí construir, que antes dessa aquisição, em 1994, apresentou um pedido de informação prévia junto da Entidade demandada, para aferir da aptidão construtiva de um dos imóveis, que teria sido aprovada em reunião camarária de 13 de Setembro de 1995 e mantida por despacho de 14 de Junho de 1999;

2. que o conjunto de imóveis em causa nos autos permite construir um edifício com dois blocos de 15mx15m com 10m2 salientes, com duas caves comuns com 570 m2/piso, permitindo a construção de duas caves com 40 lugares de estacionamento, quatro lojas no rés-do-chão e um total de 10 apartamentos de tipologia T2 e 10 apartamentos de tipologia T3 distribuídos por cinco andares. Em termos que, de acordo com um relatório de avaliação que junta aos autos, lhe permitiram alcançar uma margem de lucro de € 459.320,00 (quatrocentos e cinquenta e nove mil, trezentos e vinte euros);

3. faz alusão à criação, no ano 2000, do Programa Pólis na cidade de Agualva-Cacém, à criação de medidas preventivas e à proibição de realização de quaisquer obras na zona de intervenção desse programa sem a obtenção de parecer fundamentado daquela Sociedade Gestora;

4. também refere a aprovação de um Plano de Pormenor elaborado pela mesma Sociedade Gestora, em colaboração com a Entidade demandada, que integraria os quatro imóveis, que teria sido alterado e republicado em 2010.

5. participou no processo de discussão pública que antecedeu a aprovação daquele Plano de Pormenor, bem como na fase da sua alteração, mas que a Entidade demandada manteve as suas opções em matéria de planeamento, ignorando a inexequibilidade e inviabilidade económica das mesmas.

6. a execução deste Plano de Pormenor implica um reparcelamento muito complexo, só possível por imposição administrativa, envolvendo negociações com duas dezenas de proprietários confinantes. E, por último, que até este momento, a Entidade Demandada não tomou qualquer iniciativa no sentido dessa execução, nem procedeu à alteração desse Plano de Pormenor – ainda que o Autor não refira em que sentido deveria esse Plano ser alterado.

7. referiu a intenção de expropriação dos imóveis propriedade do Autor, por parte da Sociedade Gestora do Programa Pólis da Cidade de Agualva-Cacém, formulada no ano de 2002, que depois terá sido abandonada em 2006;

8. as vicissitudes ocorridas na execução do Programa Pólis de Agualva-Cacém e com a elaboração do Plano de Pormenor provocaram atrasos sucessivos na concretização dos seus intentos construtivos nos referidos imóveis, geradores de elevados prejuízos;

9. investiu todas as suas economias, contraiu empréstimos a particulares e alienou outros imóveis para investir naquele local com o propósito de ali construir; pagou uma indemnização no valor de Esc. 2.000.000,00 (dois milhões de escudos) à arrendatária de um desses imóveis, a título de indemnização por rescisão amigável do contrato de arrendamento e contratou técnicos da especialidade para realizar levantamentos topográficos e estudos preliminares, no custo global de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros), preparando-se para iniciar o procedimento administrativo de licenciamento do empreendimento que nunca chegou a fazer;

10. desenhou um cenário alternativo assente num conjunto de pressupostos: (i) que, em 2003, o Autor teria obtido o licenciamento urbanístico dos projectos de arquitectura, que não chegou a sujeitar a controlo urbanístico prévio, (ii) que concluiria a obra num período de 24 meses e (iii) que, iniciada imediatamente a fase de comercialização, teria realizado as escrituras de compra e venda de todas as fracções autónomas até ao fim do mês de Julho de 2006;

11. partindo desse cenário e assumindo a margem de lucro que, de acordo com o relatório de avaliação, conseguiria alcançar com a venda de todas as fracções autónomas que esperava construir, calcula em € 173.017,78 (cento e setenta e três mil, dezassete euros e setenta e oito cêntimos), o valor da primeira parcela de indemnização que lhe é devida pela Entidade demandada, correspondente à aplicação da taxa de juro de 4% ao montante da margem de lucro que esperava obter com a venda das fracções do empreendimento a construir;

12. com a venda dessas fracções conseguiria recuperar o «investimento referente ao terreno», razão pela qual quantifica em € 191.263,68 (centro e noventa e um mil, duzentos e sessenta e três euros e sessenta e oito cêntimos), o valor da segunda parcela de indemnização que entende ser-lhe devida pela Entidade demandada, correspondente à aplicação da mesma taxa de juro de 4% sobre o «valor do terreno» suportando no relatório de avaliação que junta aos autos e que ascende a € 507.600,00;

13. conclui que a Entidade demandada é responsável pelos prejuízos que lhe foram causados a título de danos patrimoniais, no valor de € 369.335,46 (trezentos e sessenta e nove mil, trezentos e trinta e cinco euros e quarenta e seis cêntimos), ao qual acresce o valor dos juros de mora que se vencerem até integral pagamento;

14. interrompeu a sua carreira na Administração Pública para se dedicar à vida empresarial e tinha grandes expectativas de que a realização do empreendimento que tinha destinado para estes imóveis em causa nos autos fosse um passo decisivo no desenvolvimento dessa sua actividade empresarial e que os lucros deste investimento permitir-lhe-iam concretizar outros projectos empresariais;

15. por força da actuação da Entidade demandada, viveu momentos de carência económica, sentiu humilhação, tristeza e amargura por não conseguir cumprir os seus compromissos e realizar os seus projectos;

16. calculou em € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) o valor dos danos não patrimoniais que a Entidade demandada lhe causou.

Como supra referimos, entendemos que o recorrente tem razão; da leitura da síntese acabada de referir resulta um conjunto de factos e razões que permitem entender a pretensão do A., ora recorrente; como se fez notar, a ED, ao elaborar a sua contestação apresentando a sua defesa, não manifestou qualquer dificuldade na apreensão dos factos nem manifestou qualquer prejuízo para a elaboração da sua defesa, verificando-se que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

De acordo com o disposto no artº 186º nº 2 do Código de Processo civil (CPC), diz-se inepta a PI

“a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”

De acordo com o nº 3 do mesmo preceito, porém “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.”

Efectivamente, a ED aqui recorrida apresentou contestação e não invocar a Ineptidão da PI revelando, ao invés, ter entendido a posição do A. e bem assim quais eram os argumentos apresentados para fundamentar a acção. Nesta perspectiva, por aplicação do artº 186º nº 3 citado, não deveria ter sido julgada verificada como foi, a questionada excepção.

Como se julgou no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo nº 013/08 em 02/04/2008, “não deve declarar-se a ineptidão da petição numa acção declarativa de condenação ao pagamento de indemnizações se os factos que integram a causa de pedir são deduzidos de forma suficientemente inteligível, e, bem assim os pedidos que foram formulados”.

Como naquele caso, também neste, salvo melhor opinião, os pedidos formulados na p.i. se mostram inteligíveis e demonstram os efeitos jurídicos que o ora recorrente pretende obter, tendo em conta a causa de pedir invocada, os pedidos formulados reconduziram-se, resumidamente e como se alcança da “síntese dos factos” elaborada pelo tribunal a quo constante da Decisão recorrida, na condenação do R. ao pagamento das quantias indicadas.

Na verdade, não pode dizer-se que através da petição formulada não era possível descortinar qual a pretensão do A. e em que fundamentos era a mesma alicerçada, não podendo afirmar-se que se verifica a ininteligibilidade da petição, do pedido e da causa de pedir. [sublinhado nosso]

Tal é a jurisprudência pacífica e unânime sobre a questão, nos tribunais protugueses, a qual não levanta já quaisquer dúvidas relevantes.

Em face de todo o exposto somos de parecer que deve ser concedido provimento ao presente recurso, alterando-se a sentença recorrida, determinando que o processo desça à 1ª Instância para prosseguir seus termos.

Na verdade, o tribunal a quo confundiu a eventual falta de fundamentos para a procedência do pedido – o que sempre cumprirá apreciar após a devida instrução – com a ineptidão da petição; confundiu, em síntese, o mérito com os pressupostos processuais.

Donde, na procedência do recurso, deverá revogar-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos os seus termos em ordem a ser proferida decisão sobre o mérito da causa (se a tal nada mais vier a obstar).



III. Sumário

i) De acordo com a al. a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, a petição inicial será inepta quando lhe falte a indicação do pedido ou da causa de pedir, ou os mesmos se mostrem ininteligíveis.

ii) A causa de pedir refere-se aos acontecimentos da vida em que se apoia o Autor, sendo que a ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir consiste na indicação em termos verdadeiramente obscuros ou ambíguos, de forma a não se saber, concreta e precisamente, o que pede o autor e com que base o pede.

iii) Indicando o A. um acervo factual mínimo e extraindo-se da petição inicial a imputação de responsabilidade ao Município ora Recorrido com fundamento em responsabilidade civil extracontratual do Estado por conduta omissiva, formulando-se nela pedidos indemnizatórios expressos e quantificados a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, não pode dar-se por verificada a ineptidão da petição inicial.

iv) Sendo que a leitura da contestação apresentada em juízo demonstra que o R. percebeu claramente o pedido formulado e os seus fundamentos, contraditando o mesmo e impugnando a factualidade alegada na petição inicial.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos, caso nada mais a tal obste.

Lisboa, 9 de Maio de 2019

Custas nesta instância pelo Recorrido.



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Pedro Marchão Marques


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Alda Nunes


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José Gomes Ferreira