Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:01820/98
Secção:Contencioso Administrativo
Data do Acordão:09/18/2003
Relator:António de Almeida Coelho da Cunha
Descritores:DIREITO ADMINISTRATIVO
CASOS OMISSOS
RESCISÃO CONVENCIONAL ANTECIPADA POR PARTE DE PILOTO-AVIADOR
ARTS. 183º Nº 1 E 405º DO EMFAR
INTEGRAÇÃO DE LACUNA COM RECURSO AO REGIME GERAL DA FUNÇÃO PÚBICA (ART. 28º Nº 2 DO D.L. 427/89)
Sumário:I - Em Direito Administrativo, o suprimento dos casos omissos deve efectuar-se, primeiro, pela analogia e, depois, pelos princípios gerais do Direito.
II - A situação de rescisão convencional do regime de contrato celebrado entre um piloto-aviador e a Força Aérea (arts. 183º nº 1 e 405º do EMFAR) permite concluir pela existência de uma lacuna da lei, na medida em que não prevê o pagamento de uma indemnização aos casos de rescisão antecipada.
III - Tal lacuna é integrável recorrendo ao disposto no artº 28º nº 2 do Dec-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1ª Secção (2ª Subsecção) do T.C.A.

1. Relatório.
R...., piloto-aviador, veio interpor recurso contencioso dos despachos proferidos pelo Sr. Chefe do Estado Maior da Força Aérea em 3 e 8 de Julho de 1998, condicionaram a cessação do regime de contrato do recorrente com aquela instituição ao pagamento de uma indemnização pecuniária no valor de Esc. 2.591.088$00 (dois milhões quinhentos e noventa e um mil e oitenta e oito escudos).
Por decisão de fls. 44 e ss. foi o recurso rejeitado por ilegalidade da sua interposição, em virtude de se ter considerado que o meio processual próprio para dirimir o litígio era a acção, e não o recurso contencioso.
Revogada tal decisão pelo Acordão do STA de fls. 109 e ss., e após cumprido o estatuido no artº 67º do R.S.T.A., as partes produziram alegações finais, cujo teor aqui se dá por reproduzido (cfr.. conclusões do recorrente a fls. 133 e do recorrido a fls. 146).
A Digna Magistrada do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Matéria de Facto
Emerge dos autos a seguinte factualidade relevante:
a) O recorrente iniciou serviço na Força Aérea em 1.1.90, na qualidade de oficial miliciano piloto-aviador, por um período de seis anos;
b) Em 1.1.95, o recorrente aderiu ao regime de contrato em vigor no âmbito das Forças Armadas, o qual deveria terminar em 31.12.99
c) Em 27.4.98, o recorrente solicitou a sua passagem à disponibilidade para o dia 25.6.98, ao abrigo da al. a) do nº 1 do art. 405º do EMFAR, em virtude de ter perspectiva de emprego em empresa civil;
d) Após informação dos serviços competentes, o Sr. Chefe do Estado Maior da Força Aérea proferiu dois.
Em 3 de Julho, o seguinte:
"Deferido, devendo ser desligado do serviço após o pagamento da indemnização que vier a ser calculada".
E em 8 de Julho, após cálculo da indemnização a pagar pelo recorrente, o seguinte:
"Concordo e aprovo a metodologia aqui apresentada";
e) O conteúdo dos despachos do Sr. C.E.M.F.A. foi notificado ao recorrente em 17.7.98;
f) O recorrente procedeu à liquidação da importância em causa, embora tenha formalmente declarado que não concordava com o teor do despacho que aplicava ao seu caso uma fórmula de cálculo prevista para o pessoal ligado ao Quadro Permanente
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Direito Aplicável
O recorrente alega que o método aplicado para a liquidação da indemnização imposto, ou seja, o previsto no art. 184º nº 1, al. c) e nº 3 do EMFAR, que prevê o pagamento de uma indemnização pelos militares do QP quando solicitem o abate ao efectivo antes do cumprimento do tempo mínimo de serviço é ilegal, por ter sido incorrecto o recurso à analogia, o que não se justificava visto que o regime dos militares do Q.P. e o dos militares em situação de contrato é totalmente diferente.
Alega ainda o recorrente que se não encontrava em tempo de serviço em que teria de obrigatoriamente manter-se na instituição que escolheu para a compensar da formação técnico-profissional adquirida, e que o seu estatuto, em regime de contrato onde a formação não é imperativamente tida em consideração, pressupondo a posse de qualidades técnicas com interesse para as Forças Armadas, não obriga contudo à permanência por mais algum tempo na instituição militar, razão pela qual não se justifica qualquer indemnização no caso de optarem pela passagem à disponibilidade antes do termo do contrato.
Querer ver uma lacuna nas normas que regulam a rescisão convencional dos militares em regime de contrato a pretexto de nela não estar contemplada uma sanção de índole pecuniária, na tese do recorrente, é uma forma errada de analisar o instituto da analogia, o que torna irregular, no caso concreto, a imposição do art. 184 nº 1 al. c) e nº 3 do EMFAR. Ou seja, se o legislador impôs apenas o estatuido no artº 184º aos militares do QP, atendendo à especificidade do seu estatuto, é inadequada a extensão do ali prescrito aos militares em regime contrato.
Conclui, assim, o recorrente que houve violação dos arts. 410º e 184 nº 1, al. c) do EMFAR, devendo o acto impugnado ser parcialmente anulado e restituida ao recorrente a quantia de Esc. 2.591.000$00 paga como condição necessária à cessação do contrato.
Por sua vez, a entidade recorrida considera que o artº 405º do EMFAR, sendo omisso no que se refere à imposição de qualquer contraprestação de natureza indemnizatória na sequência de rescisão convencional em regime de RC, configura a existência de uma lacuna da lei, a integrar com recurso ao art. 10º do Codigo Civil e nº 2 do art. 28º do Dec. Lei nº 427/89 de 7 de Dezembro.
A Digna Magistrada do Ministério Público considera, do mesmo modo que a Administração apenas aceitou a rescisão convencional mediante o pagamento de uma indemnização, o que está de acordo com os princípios gerais regulados no Dec. Lei nº 427/89 de 7 de Dezembro (arts. 28º nº 2 e 30º).
É esta a questão a analisar.
Como é sabido, a existência de uma lacuna de lei significa pressupõe que haja falta de previsão e, consequentemente, de regulação de um caso concreto que deva ser juridicamente regulado. O artº 10º do Código Civil determina que as lacunas sejam integradas pelo recurso à analogia, isto é, pela norma aplicável aos casos análogos, remetendo o artº 239º do mesmo diploma para os ditames da boa fé quando se trate de questões omissas num negócio jurídico.
Nas palavras de Larenz, "a verificação de uma lacuna da lei é (...) já por si, o produto de uma consideração crítica, de uma consideração valorante. No preenchimento de uma lacuna, exige Heck que o juiz tenha presentes os interesses em jogo e, embora de harmonia com os princípios de valoração contidos na lei, que os avalie de maneira autónoma. A analogia justifica-se por causa «da identidade da situação dos interesses, a qual requer uma idêntica valoração à luz dos interesses da comunidade jurídica». cfr. Karl Larenz; "Metodologia da Ciência do Direito", 2ª ed., 1969, p. 61 e seguintes.
Segundo Marcello Caetano, "Em Direito Administrativo tem de entender-se que o suprimento de tais casos (casos omissos) deve ser dado, primeiro, pela analogia e, depois, pelos princípios gerais do Direito" (cfr. Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, 10ª ed. p. 135).
Escreve o autor: "Quando o caso omisso numa lei é igual a casos previstos noutras leis, a integração é fácil: basta apurar a inexistência de razões impeditivas da adopção das soluções legisladas para os casos idênticos e, verificado que nada se opõe, adoptar essas soluções. Ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio.
Na maior parte das vezes, porém, os casos previstos nas outras leis não são rigorosamente iguais ao omisso são apenas parecidos, semelhantes, análogos.
Então há que ver se os pontos de contacto existentes entre o caso omisso e os casos análogos que a lei prevê não se filiarão numa razão comum que permita integrá-los, como espécies, no mesmo género. Se assim for, se a disciplina legal de cada caso tiver a sua origem, não na natureza própria dele, mas na aplicação que às suas circunstâncias particulares se faça de um princípio mais geral, então é lícito adoptar para o caso omisso a regra induzida dos casos análogos previstos nas outras leis". (ob. cit. p. 135 e ss.).
Vejamos, então, à luz de tais princípios, o caso delineado nos autos.
Como decorre da matéria de facto provada, o recorrente, após ter iniciado serviço na Força Aérea em 1.10.90, na qualidade de oficial miliciano piloto-aviador por um período de seis anos, veio a aderir em 1.1.95 ao regime de contrato em vigor no âmbito das Forças Armadas, o qual deveria terminar em 31.12.99.
Contudo, em 27.4.98, o recorrente solicitou a sua passagem à disponibilidade para o dia 25.6.98, ao abrigo da al. a) do nº 1 do art. 405º do EMFAR, em virtude de perspectiva de emprego em empresa civil, de seu interesse.
Após informação dos serviços competentes, o Sr. Chefe do Estado Maior da Força Aérea proferiu dois despachos, em 3 de Julho e em 8 de Julho de 1988, do seguinte teor, respectivamente:
"Deferido, devendo ser desligado do serviço após o pagamento da indemnização que vier a ser calculada", e "Concordo e aprovo a metodologia aqui apresentada".
O recorrente procedeu à liquidação da importância em causa, embora tenha declarado que não concordava com o teor do despacho que aplicava ao seu caso uma fórmula de cálculo para o pessoal ligado ao Quadro Permanente.
Nas suas alegações o recorrente alega mesmo que o deferimento pela entidade recorrida da requerida passagem à disponibilidade consubstancia um acto administrativo proferido no âmbito dos seus poderes, e que a entidade recorrida considerou não haver prejuízo para o organismo, e consequentemente para o interesse público conceder a rescisão do contrato antes do fim do prazo previsto.
Não nos parece que seja assim.
No nosso sistema jurídico vigora o princípio de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos (art. 406º nº 1 do Código Civil), o que desde logo abrange o aspecto temporal do contrato. Como diz Inocêncio Galvão Teles, "o contrato deve ser executado "ponto por ponto", satisfazendo-se cabalmente todos os deveres dele resultantes "(Direito das Obrigações", 1979, 2ª ed., p. 72).
Ao solicitar a rescisão convencional antes do prazo previsto para 31.12.99, com a ideia de ingressar numa empresa civil, o recorrente criou uma situação excepcional, que só foi aceite mediante a imposição de uma indemnização, o que se afigura inteiramente lógico.
Por outro lado, e no tocante à existência de prejuízo para a instituição, a mesma é evidente.
Tendo a Administração efectuado tal contrato para suprir deficiências de pessoal, e atentas as qualidades técnicas do recorrente, a sua desvinculação antecipada frustrou expectivas e causou inevitáveis prejuízos, afectando os seus legítimos interesses.
A nosso ver não estaria de acordo com o princípio da boa fé que o recorrente pudesse, a todo o momento e sem quaisquer consequências, solicitar a antecipação do termo do contrato.
Consequentemente, e contendo o EMFAR regras que impõem determinadas contraprestações aos militares que pretendam cessar a prestação de serviço militar efectivo por abate aos QP, mas não prevendo regras aplicáveis aos militares que pretendam cessar a prestação de serviço militar efectivo por rescisão do respectivo, o cotejo do disposto nas alíneas c) e d) do nº 1 do artº 183º do EMFAR, na redacção dada pela Lei nº 27/91 com o disposto na alínea a) do nº 1 do artº 405º do mesmo Estatuto permite concluir pela existência de uma lacuna da lei, ou seja, de um caso omisso no regime jurídico do pessoal militar em RC, o que impõe a aplicação das normas que contemplem casos análogos.
Estando os militares dos três ramos das Forças Armadas integrados num corpo especial da função pública (alínea b) do nº 2 do artº 16º do Dec. Lei nº 184/89, a integração da lacuna na situação de rescisão convencional identificada efectua-se com recurso à regra prevista no nº 2 do artº 28º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, que prescreve o seguinte: «A relação jurídica de emprego dos funcionários e agentes pode ainda cessar por mútuo acordo entre o interessado e a Administração, mediante indemnização» (sublinhado nosso).
Não havendo regras estabelecidas sobre a matéria, as soluções alcançadas serão sempre casuísticas, variando de serviço para serviço (cfr. José Ribeiro e Soledade Ribeiro, "A Relação Jurídica de Emprego na Administração Pública", Almedina, 1994, p. 60).
Não merece, assim, qualquer crítica a solução perfilhada pela autoridade recorrida, como aliás se entendeu no Ac. de 9.5.2002, deste T.C.A. (P. 3551/99, 1ª Secção, 1ª Subsecção).
Conclui-se, pois, pela total improcedência das conclusões do recorrente.
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4. Decisão.
Em face do exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça e a procuradoria, respectivamente, em 250 Euros e 120 Euros.
Lisboa, 18.9.03
as.) António de Almeida Coelho da Cunha (Relator)
Carlos Evêncio Figueiredo Rodrigues de Almada Araújo
João Beato Oliveira de Sousa