Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10642/01
Secção:Contencioso Administrativo - 1º Juízo Liquidatário
Data do Acordão:04/20/2006
Relator:João Beato de Sousa
Descritores:MDN
CEMA
SANÇÃO DISCIPLINAR
DELEGAÇÃO DE PODERES.
Sumário:A competência decisória do MDN sobre recursos hierárquicos dos actos de aplicação de sanções disciplinares, nos termos do artigo 93º do RDPM, não se enquadra no âmbito da "administração ordinária" nessa matéria e, portanto, não é válida a respectiva delegação de poderes no CEMA, ao abrigo da norma de habilitação geral prevista no artigo 35º/2 do CPA.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência no Tribunal Central Administrativo Sul (1º Juízo Liquidatário):

Carlos ...., agente da Polícia Marítima, residente na Travessa..., interpôs recurso contencioso do despacho do Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA) que manteve a pena disciplinar de 15 dias de multa que lhe foi aplicada

Em resposta, o recorrido sustentou a legalidade do acto.

1 - Não apenas a competência para conhecer dos recursos hierárquicos das decisões do Comandante-Geral da Polícia Marítima é expressamente atribuída pelo artigo 93° do Regulamento Disciplinar da Polícia Marítima (RDPM), aprovado pelo Decreto-Lei n° 97/99, de 24 de Março ao Ministro da Defesa Nacional (MDN), como, e ainda nos termos do artigo 18° do mesmo Regulamento, não é atribuída à autoridade ora recorrida qualquer competência em matéria disciplinar, pelo que a delegação de competências por parte do MDN no Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), em matéria disciplinar, é ilegal, por carecer de lei que a autorize, não podendo por esse facto a entidade ora recorrida prevalecer-se da referida delegação para invocar que à data dos factos o órgão competente para a decisão era o CEMA.
2 - Com a publicação do DL 248/95, de 21 de Setembro, a PM foi retirada do quadro de pessoal militarizado da Marinha, passando a pertencer à estrutura do Sistema de Autoridade Marítima, sendo uma força policial e uniformizada e regendo-se o seu pessoal militar por um Estatuto próprio, o Estatuto do Pessoal da Polícia Marítima (EPPM), e sendo dotado de um Regulamento de Disciplina próprio, o RDPM, pelo que a PM não se integra na estrutura da Marinha.
3 - O CEMA não é um órgão de comando da PM, nem esta está sujeita à sua tutela, já que a PM está sujeita à tutela do MDN conforme se dispõe no artigo 5°, alínea f) do EPPM, que determina que ao Comandante-Geral da PM (órgão superior do comando da PM) compete, exercer as competências delegadas pelo MDN.
4 - O ora recorrente deveria ter sido notificado do teor do acto recorrido, o que não aconteceu, tendo apenas sido notificado das conclusões do Parecer 2/01 da Assessoria Jurídica do seu Gabinete, que refere que obteve a concordância da autoridade recorrida.
5 - O ora recorrente não foi notificado nem do despacho recorrido nem do Parecer completo (foi apenas notificado das conclusões).
6 - Dispõe o artigo 124°, n°1, do CPA que os actos administrativos que total ou parcialmente imponham sanções, como no caso sub judice, devem ser fundamentados.
7 - O acto recorrido não cumpre o dever de fundamentação consignado nos artigos 124° e 125° do CPA, violando o conteúdo destas normas legais, e bem assim o disposto no artigo 268°, n°3 da CRP, sendo, consequentemente anulável, nos termos do artigo 135° do CPA.
8 - O ora recorrente requereu que fossem ouvidas testemunhas com o propósito de fazer prova de que não teve qualquer responsabilidade no acidente que conduziu à infracção disciplinar de que foi acusado e que conduziu ao presente processo.
9 - A falta de inquirição das testemunhas arroladas pelo ora recorrente, assim como a junção de documentos oferecidos pela defesa para contrariar a acusação (nos quais se incluem os documentos de resposta dos peritos aos quesitos que lhe foram formulados) integram a falta de audiência do recorrente, na medida em que podem afectar a defesa do mesmo, consubstanciando-se a nulidade insuprível do artigo 87°, n°1, do RDPM.
10 - Ao punir disciplinarmente o ora recorrente com quinze dias de multa, o despacho ora recorrido, por erro nos seus pressupostos, violou as normas constantes dos artigos 18°, n°1, 67°, 89°, n°2 e 93° do RDPM, 4°, 5°, b) e 8° do EPPM, 123°, c), d), e e), 124°, n°1, 125° e 133°, n°2, d) do CPA e 268°, n°3 da CRP.

O Recorrido contra alegou conforme fls. 47 e seguintes.

O Ministério Público emitiu douto parecer desfavorável ao provimento do recurso.

Cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO
Estão provados pelos documentos constantes do processo disciplinar anexo (PD), não impugnados e cujo conteúdo se considera reproduzido sempre que mencionados neste acórdão, os seguintes factos:

A) O Recorrente, agente Carlos Leigo, sofreu um acidente a 19/11/1999, quando conduzia uma carrinha da Polícia Marítima ao Tribunal da Comarca de Aveiro, por ordem do chefe de piquete.

B) Em consequência desse acidente foi ordenado o levantamento do respectivo processo disciplinar, por despacho do Comandante da Polícia Marítima de Aveiro, de 23/11/1999.

C) Notificado da acusação feita no âmbito daquele processo, o Agente Carlos Leigo veio apresentar a sua defesa, na qual, além do mais, requereu uma peritagem ao acidente e à viatura, nos termos dos artigos 94º a 97º do CPA, bem como a inquirição de duas testemunhas - Cfr. fls. 32/35 do PD.

D) O pedido referido em C foi indeferido por despacho do Instrutor do processo, em 30/12/1999 – Doc. fls. 36 do PD.

E) Desse indeferimento referido em D, o Recorrente interpôs recurso para o Comandante-Geral da Polícia Marítima, nos termos do artigo 85 nº2, do RDPM, aprovado pelo DL 97/99, de 24 de Março de 1999 – Fls. 37/39 PD.

F) O recurso referido em E foi indeferido por despacho do Comandante Geral da Polícia Marítima, de 11/02/2000, em concordância com a Informação 3/2000 – Fls. 52/57 PD.

G) Seguidamente foi elaborado o relatório final do Oficial Instrutor, que considerou: «Analisado o local por peritos da especialidade, confirmaram estes dados, pronunciando-se, contudo, pela culpabilidade do arguido no acidente, porquanto não teve em atenção o que estipula o nº1 do artigo 24°do Código da Estrada. Assim sendo, parece que o arguido Carlos Leigo, entre outras, não terá observado as normas reguladoras do trânsito, contribuindo fortemente para a danificação de um bem que não sendo o seu acarreta sérios prejuízos para o serviço a que está destinado, o que poderá fazer incorrer na infracção ao dever de zelo previsto no artigo 9° do Decreto-Lei n°97/99, de 24 de Março, (RDPM). Há a considerar como atenuantes a falta de registos disciplinares por parte do arguido e como agravantes, o facto de transitar todos os dias naquela via, conhecendo bem o local do acidente.»

H) Em concordância com aquele relatório, foi o Recorrente punido disciplinarmente, pelo Comandante Local da Polícia Marítima de Aveiro, nos termos do despacho de 14/03/2000: «Puno o agente da 3ª classe Carlos .... ao pagamento de 15 dias (quinze) de multa, de 4000$00 (quatro mil escudos) por dia, no valor total de 60 000$00 (sessenta mil escudos)».

I) Não se conformando com tal decisão punitiva, o arguido recorreu hierarquicamente, dos despachos de 11/02/2000 e de 14/03/2000, para o Ministro da Defesa Nacional (MDN) – Fls. 65/68 PD.

J) Sobre aquele recurso hierárquico foi elaborado o Parecer 02/01, de 19/02/2001, da Assessoria Jurídica do Gabinete do CEMA, no qual foram formuladas as seguintes conclusões:
«1°. No processo disciplinar relativo ao Agente Carlos Leigo foram integralmente assegurados os seus direitos de defesa e audiência;
2°. O pedido de realização de nova peritagem foi correctamente indeferido pelo Oficial Instrutor, por se tratar de uma diligência meramente dilatória;
3°. Na verdade os factos objecto de tal pedido já tinham sido devidamente apreciados no processo;
4°. O Recorrente poderia ter feito uso da faculdade concedida pelo Art.° 96 do CPA, apresentando os seus peritos no dia da realização da peritagem, não o tendo feito;
5°. As testemunhas apresentadas na defesa do Recorrente já se tinham pronunciado sobre aquela matéria;
6°. O despacho punitivo não se encontra efectivamente fundamentado, mas tal vício não acarreta a nulidade do acto e sim a sua mera anulabilidade;
7°. De qualquer maneira o referido vício encontra-se ultrapassado na medida em que o Recorrente demonstra conhecer perfeitamente as razões de facto e de direito que determinaram tal decisão;
8°. Além disso, a falta de fundamentação dum acto, quando se verifica, não afecta os direitos, liberdades e garantias do visado;
9°. E nos processos disciplinares os direitos fundamentais são os de audiência e defesa do arguido, que no caso foram cabalmente garantidos;
10°. Finalmente, não se verifica qualquer violação do art. 89 nº2 do RDPM uma vez que a previsão daquele preceito legal não é aplicável à situação em causa.»
K) O Parecer referido em J mereceu despacho de concordância do Chefe do Estado-Maior da Armada, conforme manuscritos datados de 01/03/01, constantes de fls. 65 e 73 do PD [tal despacho constitui o objecto deste recurso contencioso].

DE DIREITO

O Recorrente invoca a ilegalidade da delegação de poderes por parte do Ministro da Defesa Nacional (MDN) no Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), em matéria de recurso hierárquico de acto de aplicação de sanção disciplinar, por carência de lei habilitante.
O órgão recorrido reconhece que nos termos do artigo 93º do Regulamento Disciplinar da Polícia Marítima (RDPM) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 97/99 de 24 de Março, das decisões disciplinares do Comandante-Geral da Polícia Marítima cabia recurso hierárquico para o MDN, mas que ele (CEMA) teria adquirido essa competência mediante delegação de poderes conferida pelo Despacho do MDN nº22166/99, publicado no DR, II, nº269, de 18-11-99. E que a autorização legal dessa delegação de competências (lei habilitante) se retirava do regime geral previsto nos artigos 35º a 40º do CPA (DL 442/91, de15/11, na redacção dada pelo DL 6/96 de 31/01.
Afigura-se que tem razão o Recorrente.
A regra básica nesta matéria, consagrada no artigo 35º/1 do CPA, determina que a validade da delegação de poderes depende da existência de norma legal (“lei de habilitação”) que a preveja e autorize.
Em rigor, as disposições dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo 35º não constituem uma excepção àquela regra, mas sim modalidades de lei habilitante genérica para a delegação de poderes relativamente a determinados tipos de actos, definidos pela matéria e/ou pela autoria. A hipótese prevista no nº3 que trata da delegação de poderes dos órgãos colegiais nos respectivos presidentes não tem relevância na presente causa. Fundamental é a análise do nº2 do mesmo artigo 35º do CPA, que contém uma norma de habilitação geral para a prática de actos de “administração ordinária” no âmbito da hierarquia administrativa e poderia hipoteticamente enquadrar a delegação de poderes conferida ao CEMA pelo MDN. Para tanto teria que ser possível, ou lícito, qualificar as decisões que determinam a aplicação de penas disciplinares como actos de “administração ordinária”.
O conceito de “administração ordinária” tem sido utilizado e desenvolvido sobretudo em matéria de gestão financeira e a sua “importação” para o plano da actividade administrativa em geral coloca sérias dificuldades interpretativas. Sobre isto dão expressiva nota M. Esteves Oliveira, P. Gonçalves e J. Amorim (CPA Comentado, 2ª edição, pág. 216 e seguintes). Para estes autores, o critério de delimitação do conceito deverá partir da distinção entre a competência para a decisão do procedimento e a competência para a prática dos actos instrumentais (em reforço desta tese, invocam o afloramento previsto no artigo 86º do CPA). Quanto à exemplificação que fornecem não poderia ser mais sugestiva:
«Assim, a competência para decidir disciplinarmente não é delegável ao abrigo deste preceito pelo órgão dirigente do serviço público no seu adjunto para os recursos humanos: o que poderia ser delegado seria a sua competência para assegurar o cumprimento das penas aplicadas, que essa é que poderia ser a “administração ordinária” da competência (ou decisão disciplinar).»
Note-se que nesta perspectiva a decisão disciplinar não deixaria de ser susceptível de delegação de poderes, mas sê-lo-ia apenas mediante lei de habilitação específica que previsse a hipótese e não à sombra da cláusula geral do artigo 35º/2 do CPA. Todavia, adiante-se, tal susceptibilidade é de per si suficiente para afastar a invocação de nulidade do acto nos termos do artigo 29º do CPA, com base numa pretensa renúncia ou alienação de competências.
Na mesma senda restritiva do alcance daquela norma de habilitação genérica seguem D. Freitas do Amaral, João Caupers e outros, podendo ler-se no seu CPA Anotado, 3ª edição, em anotação ao citado artigo 35º:
«Por actos de administração ordinária devem entender-se os actos de gestão corrente, isto é, aqueles que se destinam imediatamente a assegurar a continuidade do serviço. (...) a nosso ver, a nota específica desta espécie de actos deve (...) buscar-se no seu carácter não inovador, complementar ou de execução face àqueles outros que configuram as verdadeiras e próprias decisões e fundo, com as características da intencionalidade e da originalidade que lhes são inerentes – e que, por tal motivo, não prescindem de um acto de delegação mais circunstanciado (o previsto no nº1 do presente artigo).»
Igualmente Santos Botelho, Autor Esteves e C. Pinho sugestivamente referem que «No domínio dos actos de administração ordinária, e portanto correntes e repetidos, não é precisa lei de habilitação» (Cfr. CPA Anotado e Comentado, 5ª edição, pág.215, sublinhado nosso). Obviamente, deve ler-se esta passagem restritivamente, no sentido de não ser precisa lei de habilitação específica, bastando para o efeito a “lei de habilitação” genérica prevista no artigo 35º/2. Na verdade, a pág. 214 da obra citada, os mesmos autores reconheciam que o primeiro requisito da delegação de poderes é «radicar na lei de habilitação», não podendo resultar de «mera vontade do órgão».
Finalmente, também na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo se encontra eco desta visão restritiva do potencial do artigo 35º/2 como lei habilitante dos actos de delegação de poderes, podendo ler-se no Acórdão da 2ª Subsecção do CA, de 14-06-2005, Processo 0483/05:
«O conceito de negócios correntes é similar ao conceito de administração ordinária estabelecido no artigo 35.º, n.º 2, do CPA, apenas abarcando poderes de actos instrumentais de actos decisórios, configurando uma delegação de poderes de natureza burocrática, deixando de fora poderes decisórios no âmbito de licenciamento de obras.»
É de seguir o rumo apontado pela doutrina e jurisprudência acabadas de expor.
No que concerne à necessidade de delimitação rigorosa do conceito “administração ordinária”, no âmbito do artigo 35º/2 do CPA, não podem subsistir dúvidas, pois entendimento diverso que fosse tributário de uma interpretação lata ou permissiva daquele conceito, incorreria fatalmente em contradição com a regra basilar prevista no artigo 35º/1, possibilitando uma alienação indiscriminada e ad libitum do exercício de competências que não poderia deixar de repugnar ao espírito do instituto da delegação de poderes, tal como se encontra configurado na nossa ordem jurídica.
No que se refere aos critérios materiais que devem presidir a essa delimitação, afigura-se que a decisão de aplicação ou confirmação, em recurso administrativo, de uma sanção disciplinar, ao resultar de um complexo de juízos de facto, de direito e de valoração de condutas humanas, se traduz numa competência não facilmente moldável mediante directivas ou instruções genéricas do órgão delegante. Por outro lado, é obviamente uma medida de fundo e não instrumental. Em suma, trata-se do exercício de uma competência decisória inovadora, de fundo, e não da prática dos actos instrumentais e/ou normalizados cujas características se deixem confortavelmente enquadrar no conceito de “administração ordinária”. Nestas circunstâncias, é de supor que o legislador teria formulado uma norma habilitante específica se entendesse ser de autorizar o MDN a delegar a competência decisória em matéria de aplicação de sanções disciplinares num inferior hierárquico em matéria administrativa, como o CEMA. Quanto à eventual delegação dessa competência noutro membro do Governo, por exemplo Secretário de Estado (sem relação de hierarquia), a sua validade estaria sempre salvaguardada pelo artigo 199º, e), da CRP.
Deste modo, embora não exactamente pelas razões invocadas pelo Recorrente, estamos efectivamente perante uma delegação de poderes inválida, que implica a incompetência da autoridade recorrida para a prática do acto impugnado.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e anular o acto recorrido.

Sem custas.

Lisboa, 20 de Abril de 2006