Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:672/13.6BELLE-A
Secção:CA
Data do Acordão:04/19/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:MARINA DE VILAMOURA
CONCESSÃO DE EXPLORAÇÃO DO DOMÍNIO PÚBLICO
FUNÇÃO ADMINISTRATIVA
PODERES PÚBLICOS
Sumário:I - Na concessão de exploração de um bem do domínio público há uma transferência ou delegação de poderes públicos.
II - A concessão da exploração ou gestão de domínio público não privatiza – para fora do ambiente jurídico da função administrativa - os poderes públicos inerentes a tal exploração da coisa pública.
III - A relação jurídica estabelecida entre a concessionária e o particular administrado tem natureza jusadministrativa, uma vez que esta existe (i) quando se exercem poderes públicos, como é o caso presente, ou (ii) quando se atua ao abrigo de normas de Direito Administrativo (cf. assim o artigo 2º/1 do CPA).
IV - Indeferir um pedido de colocação de um “deck” numa zona dominial de uma marina cuja exploração está concessionada a uma entidade privada é um ato administrativo (artigo 148º do CPA).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO
A autora F… & C…L, Lda., interpôs a presente acção administrativa especial para obter, como peticiona, (i) a anulação da decisão que imputa à M… de V…, S.A., de 21 de Maio de 2013, que indeferiu o pedido de colocação de um deck na zona dominial da m… de V…, (ii) a condenação da L… – E…, S.A. e da M… DE V…, S.A., “como concessionária e sub-concessionária”, a deferirem o seu pedido de colocação do referido deck na zona dominial, e (iii) a condenação das entidades demandadas ao pagamento de uma indemnização pelos prejuízos que sofreu.
Após os articulados, no despacho saneador de 07-10-2016, o TAC de Loulé decidiu o seguinte:
-Julga-se improcedente a excepção da incompetência material do tribunal;
-Julga-se improcedente a excepção da inimpugnabilidade do acto impugnado;
-Julga-se verificada a ilegitimidade passiva das contra-interessadas e, em consequência, absolve-se as mesmas da instância;
-Indefere-se o pedido de intervenção espontânea deduzido por S..., Lda.;
-Condena-se a autora no pagamento das custas emergentes da relação processual com as contra-interessadas.
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Inconformadas com tal decisão, as rés L… e M… interpuseram o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. O Recorrido incorreu em erro de julgamento ao considerar a jurisdição administrativa como a jurisdição competente para a apreeiação da validade do ato de indeferimento do pedido de instalação de deck na área da M… de V…, porquanto o ato praticado pela 2" Recorrente insere-se no âmbito da sua atividade de exploração de um bem dominial em benefício privado, nos termos conferidos pelo Contrato de Concessão cujas bases foram aprovadas pelo Decreto-Lei 215/70, de 15 de Maio.
2. Em causa não está, pois, uma concessão de serviço público mas antes e tão-só uma concessão da exploração em benefício próprio de um bem que foi integrado no domínio público, tendo sido atribuído à 1º Recorrente o direito de usar e fruir a coisa cio domínio públ ico por motivo ela mutação dominial operada pelo Decreto-Lei 215/70.
3. É esta particularidade que distingue a concessão em análise das demais concessões de atividades públicas, nas quais o Estado transfere a gestão ou exploração de uma atividade pública. Com efeito, na concessão em análise foi unicamente concedido à 1º Recorrente o direito de explorar ou gerir uma parcela do domínio público, em benefício próprio, atividade que se rege por imperativos de direito privado.
4. Nessa medida, a escolha elas áreas adequadas para a instalação dos clecks caracterizou­ se por critérios de adequação e economicistas no âmbito ela atividade comercial da 2º Recorrente. Com efeito, quando a 2." Demandada decidiu avançar com a implementação de decks suspensos sobre o enrocamento da marina, fê-lo no entendimento que seria necessário inovar e renovar a imagem e a oferta na zona envolvente do porto de recreio. Sendo que a concretização dessa ideia passou por uma análise criteriosa de todas as condicionantes e a sua localização foi cuidadosamente avaliada e decidida após ponderação de fatores considerados relevantes para o conforto do nauta, nomeadamente a distância aos postos de amarração, o estacionamento em terra para nautas ou a distribuição das classes de embarcações pela marma.
5. É assim o próprio Decreto-Lei que vem estabelecer, no seu artigo 6º, que o "direito de exploração" atribuído abrange os poderes de uso e fruição, por parte da concessionária, sobre a zona dominial, estabelecendo a Base XIII, nº 1, que:
A exploração do porto de recreio e dos demais serviços operacionais concedidos deve ser levada a feito segundo métodos racionais de empresa industrial e comercial, conforme os progressos técnicos adotados em estabelecimentos similares.
6. Nessa medida, a atribuição da autorização para a instalação de decks não corresponde um ato praticado no exercício de poderes administrativos, na aceção da alínea d), do n.º 1 do artigo 4º do Estatuto cios Tribunais Administrativos e Fiscais, não tendo, em consequência, a jurisdição administrativa competência para a apreciação do presente processo.
7. A 2ª Recorrente aprovou um "Regulamento de Instalação e Utilização de Decks no Interior da Bordadura da M… ele V…" (junto como Documento nº 4 à Oposição nos autos cautelares), no qual definiu as áreas e os critérios que presidem à atribuição do direito de instalação de decks, tendo previamente obtido a autorização do concedente - IPTM - para a respetiva instalação.
8. Neste Regulamento foram definidas com total concretização as condições para atribuição do direito a instalar decks na M… de V…. Assim, o Regulamento define através da planta constante do Anexo 1 o local onde é permitida a instalação dos decks (que corresponde às áreas autorizadas pelo IPTM), estabelendo de forma expressa que "a área de instalaçüo dos decks será dfinida pelo prolongamento das linhas de demarcaçüo de cada um dos estabelecimentos sitos nos lotes col?finantes com a zona envolvente da m… de V…, conforme estabelecido pela M… de V…, S.A. e identificado na planta anexa ao Contrato de Ocupaçüo a celebrar" .
9. Para esse efeito, a 2ª Recorrente previamente obteve a competente autorização por parte da entidade competente - o IPTM, não podendo sequer a 2ª Recorrente autorizar a instalação de decks em áreas que não se encontrem previamente autorizadas pelo IPTM.
10. Significa assim que não foi o ato impugnado que indeferiu a pretensão da Recorrida. Com efeito, o ato limitou-se a declarar os efeitos já decorrentes do Regulamento, cujo conteúdo não foi impugnado. Na verdade, o conteúdo do ato impugnado encontrava-se já totalmente definido pelo Regulamento, o qual estabeleceu de forma clara os respetivos destinatários e definiu os critérios de atribuição do direito de instalar decks.
11. Neste sentido, não se pode dizer que o Ato Impugnado corresponde a uma decisão administrativa definidora de uma situação individual e concreta, tal como exigido nos pelo artigo 120.º do Código do Procedimento Administrativo, com a redação em vigor à data da sua prática.
12. O Tribunal Recorrido incorreu assim em erro de julgamento ao considerar que o ato impugnado tem "carácter decisório e produz efeitos lesivos sobre a esfera da autora", porquanto o ato em causa não tem caracter decisório mas meramente declarativo sendo que os "efeitos lesivos" para a ora Recorrida decorrem do teor do Regulamento aprovado - cuja validade não foi contestada - o qual não permite a adoção de uma decisão em sentido contrário.
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A autora contra-alegou.
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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.
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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:
Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 15ª ed., pp. 411 ss; artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA).
Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido muito amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos para o efeito.
Assim, as questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
a.
É o seguinte o teor fundamentador do despacho recorrido:
“Da incompetência em razão da matéria (ou em razão da jurisdição)
Determina o artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Como se tem vindo a entender, esta reserva constitucional (não absoluta) de jurisdição ou competência material, nos termos em que se encontra consagrada, delimita, por um lado, o âmbito natural (ainda que não exclusivo) da jurisdição administrativa e fiscal e torna-a, por outro, a jurisdição comum (mas não necessária) dos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais.
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), transpondo a assinalada norma constitucional para o plano legislativo, prescreve, no artigo 1.º, n.º 1, na redacção aplicável no momento da propositura da acção, que os tribunais desta jurisdição são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais e concretiza, no artigo 4.º, através de uma enumeração meramente exemplificativa, as questões que necessariamente devem ser submetidas à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais e as que dela estão excluídas.
E diz-nos expressamente, neste artigo 4.º, na alínea d) do n.º 1, no que ora interessa, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos.
É, pois, face a este quadro constitucional e legal que importa aferir, no caso concreto, se o conhecimento desta causa compete ou não aos tribunais administrativos. Olhemos, para tanto, aos termos em que foi esta acção, para efeitos de aferir a natureza da relação controvertida, tal como esta vem configurada em juízo, e perceber, em função dela, se este tribunal tem ou não medida de jurisdição que lhe permita, à luz da pretensão deduzida (o pedido) e dos respectivos fundamentos (a causa de pedir), conhecer das questões que nele suscitam resolução.
A autora vem utilizar esta acção administrativa especial para obter, como peticiona, (i) a anulação da decisão que imputa à M… de V…, S.A., de 21 de Maio de 2013, que indeferiu o pedido de colocação de um deck na zona dominial da m… de V…, (ii) a condenação da L… – Empreendimentos Imobiliários e Turísticos, S.A. e da M… de V…, S.A., “como concessionária e sub-concessionária”, a deferirem o seu pedido de colocação do referido deck na zona dominial, e (iii) a condenação das entidades demandadas ao pagamento de uma indemnização pelos prejuízos que sofreu “pelo facto dos contra-interessados terem disposto de decks para a exploração dos seus restaurantes desde o Verão de 2011, o que permitiu o desvio de clientela do restaurante da autora”, e pelos honorários devidos ao seu mandatário judicial, em valor a determinar em execução de sentença.
Demanda, para tanto, a L… – Empreendimentos Imobiliários e Turísticos, S.A., na qualidade de concessionária da exploração do porto de recreio em causa (conhecido por m… de V…), e a M… de V…, S.A., na qualidade de subconcessionária da administração e exploração total da dita marina e dos demais serviços operacionais adstritos (incluindo a administração e usufruto de todos os bens móveis e imóveis adstritos a tal exploração).
E para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, que as entidades demandadas, apesar de terem promovido a instalação de outras estruturas tipo deck, destinadas a servir de espaços de apoio (esplanadas) a diversos bares e restaurantes ao longo da zona limítrofe do porto de recreio, nas margens da marina, que se encontra concessionada e que integra o domínio público do Estado (doravante, “zona dominial” – cfr. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 215/70, de 15 de Maio de 1970) – instalação que foi objecto de “aprovação” (ou parecer favorável) por parte do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, I.P. - se recusaram, violando as normas e princípios de direito administrativo que invoca, a deferir o seu pedido de autorização para colocação de um deck no prolongamento do seu estabelecimento de restauração, também em zona dominial.
É evidente, pois, que as entidades demandadas figuram na relação material controvertida, tal como esta vem estruturada em juízo pela autora, como concessionária e subconcessionária da exploração do domínio público, actuando, como tal, investidas em poderes de gestão e de exploração dos bens que o integram (a denominada “zona dominial”), os quais lhes advêm, à primeira, do contrato de concessão celebrado com o Estado, nos termos do Decreto-Lei n.º 215/70, de 15 de Maio de 1970, e à segunda, da posterior subconcessão da administração e exploração total da marina (que alegadamente inclui a dita “zona dominial”).
Ora, através deste contrato inicial, que integra uma concessão de exploração do domínio público (acoplada, no caso, com uma concessão de obras públicas), foram transferidos para a primitiva concessionária “direitos especiais” sobre a coisa que passou a integrar o domínio público, que não se resumem a um mero direito à utilização (com aproveitamento ou poderes de uso e fruição) da “zona dominial”, mas incluem o direito (e o dever) de exercer a sua administração, a qual, se não fosse a concessão, estaria necessariamente na titularidade da Administração e teria que ser directamente gerida pela mesma (porque tertium non datur).
E entre estes poderes públicos de gestão e exploração (ou administração) da “zona dominial” (integrada no domínio público) do porto de recreio que foram transferidos do Estado para a sua co-contratante particular, e que esta passou desde então a exercer (directamente ou através da subconcessionária), estão incluídos, precisamente, o de decisão sobre a atribuição de direitos de utilização ou uso privativo desses bens dominiais, utilização privativa que, no caso concreto, foi recusada à autora. Com efeito, no contrato inicialmente celebrado está expressamente prevista essa transferência de poderes de atribuir a terceiros o direito de utilização privativa de bens do domínio público e de arrecadar as respectivas receitas, designadas por “taxas” (cfr. Base XXIV do contrato de concessão do porto de recreio).
E é, pois, ao abrigo desta concessão (e da subsequente subconcessão) de exploração ou gestão do domínio público (cuja definição se encontra actualmente prevista no artigo 30.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto) que as entidades demandadas foram chamadas pela autora a actuar e decidir, exercendo os poderes de natureza pública que lhe foram conferidos sobre a zona dominial, e nomeadamente os de atribuição (ou recusa) do direito de utilização privativa a terceiros sobre parcelas nela integradas.
É certo, pois, que neste caso a concessionária - e através dela, a subconcessionária - ao deterem a gestão da zona dominial, ocupam, na relação com o domínio público, a posição que, se não fosse a concessão, seria exercida pela Administração: elas actuam, efectivamente, «em nome e em lugar da Administração pública, nos termos com esta pactuados e sob a sua fiscalização» (cfr. Marcello Caetano, «Algumas Notas para a Interpretação da Lei n.º 2105», in O Direito, ano XCIII, pág. 96, citado por Ana Raquel Gonçalves Moniz, «Contrato público e domínio público», in Estudos de Contratação Pública – I, Coimbra Editora, 2008, págs. 839 a 846; cfr., também, Pedro Gonçalves, O Contrato Administrativo - Uma instituição do direito administrativo do nosso tempo, Almedina, pág. 75, e Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, pág. 542).
Não procede, por isso, a argumentação das entidades demandadas, quando, para sustentarem uma invocada incompetência material do tribunal, defendem que o acto impugnado consubstancia um mero acto de gestão privada, que tem apenas por base a prossecução dos seus próprios interesses privados, ou que as relações jurídicas constituídas ao abrigo do direito de uso e fruição do bem dominial público de que são titulares são regidas apenas pelas regras gerais de direito privado.
Com efeito, a concessão da exploração, apesar de precipuamente dirigida à satisfação do interesse privado (e designadamente económico) e em proveito da própria concessionária (e da subconcessionária), implica também, neste caso, a prossecução de um interesse público de gestão dos serviços de natureza pública do porto de recreio e do domínio público, actividade que, como reiteramos, se não fosse exercida pela entidade privada, teria que ser prosseguida pelo concedente público.
E, apesar destes poderes de gestão, incluídos originariamente no direito de propriedade pública, terem sido conferidos a favor de uma entidade gestora privada – e designadamente a faculdade de decisão sobre a possibilidade de terceiros utilizarem parcelas dominiais – o seu exercício está sujeito aos termos contratados com a Administração e à sua fiscalização.
Pelo que, independentemente da natureza (privada ou pública) das regras aplicáveis ao caso concreto e dos parâmetros de gestão (tipicamente privados ou públicos) contratados – questão que interessará apenas ao mérito da presente acção - não pode dizer-se que não existe, na decisão de atribuição (ou recusa) de instalação ou exploração dos decks em zona dominial, qualquer exercício de poderes administrativos ou de prerrogativas (ou deveres) de direito público, e tão pouco pode considerar-se que este poder de atribuição (ou recusa) do direito de uso da parcela do domínio público em causa a terceiros, dada a destinação a que o próprio bem está por natureza e definição afecto, não está sujeita a quaisquer normas de direito administrativo, mas exclusivamente de direito privado. Pelo que, apesar da natureza privada dos sujeitos que praticaram o acto impugnado, deve reconhecer-se que são de natureza administrativa, e não privada, os poderes e a actividade que as entidades demandadas, ao emiti-lo, pretenderam exercer. E este factor de administratividade basta-nos para que consideremos que a relação jurídica estabelecida entre a autora e as entidades demandadas, na qual estas actuaram, quanto à atribuição do direito de uso da zona dominial, investidas em poderes públicos de autoridade sobre esta zona dominial (que, se não lhes houvessem sido delegados, seriam exercidos pela própria Administração), tem natureza administrativa, e não privada.
Nessa medida, o litígio que é objecto da presente acção – que visa a impugnação de um acto de indeferimento do pedido de atribuição do direito de utilização privativa de uma parcela integrada na zona dominial - por pressupor um “agir administrativo” de sujeitos privados no exercício de poderes públicos conferidos pelo Estado sobre uma coisa do domínio público – poderes que tais sujeitos não teriam, se não fosse a concessão de exploração do domínio público – encontra subsunção na hipótese da acima referida alínea d) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Este tribunal administrativo tem, pois, em razão da matéria, competência (e medida de jurisdição) para conhecer das questões que suscitam resolução na presente causa.”
b.
No essencial, as recorrentes consideram que aquilo que a autora ataca é um ato jurídico de direito privado. Ou seja, que a cit. decisão impugnada, de 21-05-2013, não cabe no previsto no artigo 120º do CPA/1991 (hoje artigo 148º do CPA/2015) e no artigo 51º/1 do CPTA. Não haveria naquela decisão o exercício de um poder de administração pública.
Nesses termos, a jurisdição administrativa, face ao artigo 4º/1 do ETAF (e, supomos, ao artigo 212º/3 da CRP), não teria competência para julgar o presente processo.
c.
Desde já cumpre estabelecer que o presente processo e este recurso estão sujeitos ao CPC/2013 (cf. artigo 5º/1 da Lei 41/2013). E que cabe recurso imediato deste despacho saneador na parte da competência em razão da jurisdição, ao abrigo dos artigos 142º/5 do CPTA e 644º/2-b) do CPC/2013.
d.
Passemos à questão a resolver: erro de direito quanto à competência jurisdicional dos tribunais administrativos para julgar esta ação.
d.1.
Já vimos o pedido formulado na p.i.
E já vimos que a autora aponta as seguintes ilegalidades à decisão impugnada:
-violação das bases do contrato de concessão celebrado com o Estado,
-violação do disposto nos artigos 3º a 6º do CPA/1991 e
-violação do dever de fundamentação previsto nos artigos 124º e 125º do CPA/1991.
d.2.
A atividade das rés, aqui sindicada pela autora, resulta de um contrato (administrativo) de concessão de exploração ou gestão de domínio público.
Com efeito, o DL nº 215/70 autorizou o Governo a conceder, nos termos do diploma e das bases anexas, a construção e exploração de um porto destinado ao serviço da navegação de recreio, junto da povoação da …., no Algarve.
De acordo com o artigo 1º daquele DL, ficou o Governo autorizado a conceder, nos termos do decreto-lei e das bases anexas, que dele se consideram parte integrante, a construção e exploração de um porto destinado ao serviço da navegação de recreio, junto da povoação de …., no Algarve, com vista ao aproveitamento turístico da região. Sem prejuízo dos fins de turismo, poderá o porto de recreio ser parcialmente utilizado pela navegação de pesca, de carácter artesanal, em condições a estabelecer entre o Estado e a concessionária.
Nos termos do artigo 6º/1, o direito de exploração do porto de recreio abrange os poderes de uso e fruição (que são originariamente do Estado), por parte da concessionária, sobre a zona dominial.
Nos termos do artigo 10º/1, compete ao Governo, sob proposta da concessionária, aprovar os regulamentos necessários à exploração da concessão.
Dispõe a Base X do contrato administrativo cit.:
1. A concessionária promoverá a instalação e exploração regular e contínua dos serviços operacionais de apoio portuário, quer às embarcações, quer ao pessoal navegante, exigidos pela satisfação das necessidades ligadas à prática do turismo náutico.
2. Os serviços abrangidos no n.º 1 compreendem, nomeadamente:
a) Restaurantes para tripulações e para passageiros;
b) Abastecimentos de água e energia eléctrica às embarcações;
c) Fornecimento de combustíveis;
d) Instalações sanitárias;
e) Oficinas e instalações para reparações;
f) Armazenagem de sobresselentes, ferramentas e aprestos;
g) Agência bancária.
3. Estes serviços poderão ser instalados dentro ou fora da zona dominial, onde a sua localização melhor permita o prestamento de conveniente apoio portuário.
Estamos, pois, ante uma concessão de exploração de um bem do domínio público, como hoje se define no artigo 30º do RJPIP (DL nº 280/2007, cuja última alteração resulta da Lei 82-B/2014 de 31-12): “Através de acto ou contrato administrativos podem ser transferidos para particulares, durante um período determinado de tempo e mediante o pagamento de taxas, poderes de gestão e de exploração de bens do domínio público, designadamente os de autorização de uso comum e de concessão de utilização privativa”.
d.3
Ora, indeferir um pedido de colocação de um deck numa zona dominial de uma marina é ou não um ato administrativo (vd. hoje o artigo 148º do CPA) quando praticado por pessoa coletiva pública?
É claro que sim.
E é-o, não por causa da natureza jurídica dessa pessoa, mas por causa do poder exercido nesse local de domínio público do Estado.
Com efeito, a concessionária - ou a subconcessionária - está aqui, perante a autora desta ação, a atuar no exercício de poderes públicos (cf., hoje, os artigos 2º/1 e 148º do CPA, bem como os artigos 280º/1-a)-c) e 407º ss do CCP) que lhe foram delegados ou transferidos.
Como resulta claramente do cit. artigo 30º do RJPIP (DL 280/2007), a entidade privada está a exercitar poderes delegados ou transferidos sobre bens públicos.
Pelo que a concessionária tem poderes de autotutela e de outorga de usos da coisa pública a outras entidades, como a ora autora.
A concessionária ou subconcessionária ocupa, pois, a posição originária da Administração, porque esta lhe delegou – por lei, por ato ou por contrato – funções públicas.
Assim, a relação jurídica estabelecida entre a autora da decisão ora impugnada e a ora demandante tem natureza jusadministrativa, uma vez que esta existe (i) quando se exercem poderes públicos, como é o caso presente, ou (ii) quando se atua ao abrigo de normas de Direito Administrativo (cf. assim o artigo 2º/1 do CPA).
Quer dizer: à luz do CPA/1991, o ato aqui impugnado é um ato materialmente administrativo praticado no exercício de um contrato administrativo, ato que exercita poderes próprios do Estado quanto à utilização do domínio público; à luz do artigo 148º do atual CPA, é um ato administrativo praticado no exercício de um contrato administrativo, ato que exercita poderes próprios do Estado quanto à utilização do domínio público.
E, por isso, essa atividade funcional e materialmente administrativa de tais entidades privadas está sujeita aos princípios gerais e ao procedimento da atividade administrativa previstos no CPA (cf. artigo 2º/1 do CPA).
Cf. assim MÁRIO AROSO, T.G.D.A., 4ª ed., Primeira Parte, I, nº 3, nº 7 e nº 8-c); JOÃO MIRANDA et al., Comentário ao Regime Jurídico do Património Imbiliário Públco, Almedina, 2017, notas aos artigos 27º e 30º.
d.4
Finalmente, sublinhamos que, ao contrário do que estranhamente referem as recorrentes (invocando a base XIII, nº 1, do contrato de concessão cit.), imperativos de gestão racional nada têm de incompatível com as atividades de administração pública. Antes pelo contrário (vd. o atual artigo 5º do CPA).
E a concessão da exploração ou gestão de domínio público não privatiza – para fora do ambiente jurídico da função administrativa - os poderes públicos inerentes a tal exploração da coisa pública.
Além disso, o nº 2 dessa Base, como que confirmando ou exaltando a administratividade da atuação aqui em causa, dispõe: “as condições de prestação dos serviços a que der lugar a execução da presente concessão serão, tanto quanto possível, idênticas para todos os utentes colocados em igualdade de condições”.
d.5
Neste contexto, a competência jurisdicional é a que resulta do artigo 4º/1-d) do ETAF (fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos) e do artigo 212º/3 da CRP (relação jurídica administrativa).
*
III - DECISÃO
Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo das recorrentes.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 19-04-2018