Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:628/05.2BELRA
Secção:CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Data do Acordão:06/14/2018
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:SUCESSÃO DE LEIS PROCESSUAIS NO TEMPO;
SELEÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO NO DESPACHO SANEADOR;
ALTERAÇÃO DO JULGAMENTO DE FACTO NA SENTENÇA
Sumário:I. O despacho que selecionou a matéria de facto assente e a base instrutória, sendo datado de 27/06/2011, foi proferido sob a vigência do anterior Código Processo Civil.
II. Tendo entrado em vigor o novo Código de Processo Civil em 01/09/2013, nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o mesmo passou a aplicar-se às ações pendentes, como previsto no n.º 1 do artigo 5.º da citada Lei n.º 41/2013, exigindo, quando caso disso, a respetiva adequação processual, de forma a adequar os atos já praticados e o processado da causa à nova regulação prevista.
III. Quer no regime anterior, quer sob a actual vigência do novo CPC, apresenta-se incontestado o poder de na sentença serem, antes, aditados factos e agora, fixados factos, segundo o disposto do atual n.º 3 do artigo 607.º do CPC.
IV. Em qualquer dos regimes sempre se admitiu e conferiu ao julgador a possibilidade de considerar na fase da sentença toda a factualidade adquirida no processo, segundo o princípio da aquisição processual, que determina que o juiz considere toda a factualidade provada, independentemente de quem tem a iniciativa ou sobre recai o respectivo ónus probatório.
V. Sob a vigência do anterior CPC, o despacho-saneador não cristalizava o material probatório relevante, mas marcava o momento processual da selecção do acervo factual com base no qual o juiz iria assentar o julgamento de direito, prevendo-se a possibilidade de aditamento de novos factos, após o contraditório das partes.
VI. Sob a vigência do actual CPC, não existindo qualquer despacho anterior que delimite os factos relevantes e nas base do qual será alicerçado o julgamento de direito, por apenas existir a delimitação feita através dos temas da prova, e tendo toda a prova sido já contraditada, quer pela junção de documentos aos autos, em relação à qual as partes tiveram a oportunidade de se pronunciar, quer pela prova testemunhal contraditada na própria audiência final, não se exige a notificação das partes para se pronunciarem sobre os factos que a sentença julgará como provados e como não provados.
VII. Integra o conteúdo da sentença e constitui esse o momento processual próprio, a discriminação dos factos que o juiz considera provados, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 607.º do CPC, não se exigindo a notificação das partes para se pronunciarem sobre os factos que o juiz irá dar como provados.
VIII. A legitimidade ativa enquanto pressuposto processual basta-se com a alegação da qualidade de parte na relação material controvertida, segundo o n.º 1 do artigo 9.º do CPTA.
IX. O direito ao recurso constitui um direito processual da parte que ficou vencida na causa e nele não tendo sido alegados fundamentos manifestamente infundados, nem distorcida a factualidade apurada, não se pode entender pelo uso anormal ou abusivo do meio processual, não ocorrendo a litigância de má-fé.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

O Município da N…, devidamente identificado nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, datada de 19/05/2017, que no âmbito da ação administrativa especial instaurada por M… P… O… R…, contra o Município da N… e as Contrainteressados, C… – C. e U. da M…, Lda. e C… M… e V… – S. I., Lda., julgou a ação totalmente procedente, declarando a nulidade do ato de licenciamento de 16/04/2002 e do ato de alterações de 30/09/2004, ambos da autoria do Presidente da Câmara Municipal da N….

Formula o aqui Recorrente, Município da N… nas respetivas alegações (cfr. fls. 569 e segs. – paginação referente ao processo em suporte físico, tal como as referências posteriores), as seguintes conclusões que infra e na íntegra se reproduzem:

“16. A decisão judicial recorrida [sentença], enferma de erro de Direito, por violação do artigo 3º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi, artigo 1º do CPTA, pois que o interpretou e aplicou, como se, fosse possível, ser proferida uma decisão, sem que ao Réu, seja concedido o direito ao contraditório, quanto à matéria de facto dada como provada, quando a interpretação e aplicação que temos por correta do mencionado preceito legal, implica a necessidade de ser dada a oportunidade de pronuncia ao R., para querendo se pronunciar, previamente, à decisão da matéria de facto, devendo em consequência ser revogada a decisão recorrida [sentença], na parte em que julgou provados os factos constantes dos pontos 1.36 e 1.37, da matéria de facto, por violação do preceito legal mencionado.

17. As decisões judiciais recorridas [saneador e sentença] enferma de erro de Direito, por violação do artigo 9º, n.º 1, do CPTA, e, artigo 278º, n.º 1, alínea d) do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, devendo em consequência ser revogada a decisão recorrida, por violação do preceito legal mencionado.”.

Termina, pedindo que seja revogada a decisão recorrida e absolvido o Réu da instância.


*

O ora Recorrido, M… P… O… R…, notificado da admissão do recursão, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 607 e segs.), formulando as seguintes conclusões:

“1) Liminarmente, não podemos deixar de consignar que é ostensivo que o R visa apenas e tão-somente, com o presente recurso, protelar o trânsito em julgado da sentença proferida nos autos, atentos os motivos recursivos adiantados, que são ostensivamente infundados.

2) Falamos da pretensa violação do direito ao contraditório invocada, isto quando, citado para a ação, o R. não apresentou sequer contestação, além de que pretende colocar em causa factos cuja veracidade é indesmentível e, assim, a realidade que ele bem conhece, estando em causa a localização e/ou implantação da moradia do A., que o R licenciou.

3) O R. incorre, pois, em litigância de má fé, uma vez que, no mínimo com negligência grave, deduz pretensões recursivas cuja falta de fundamento não pode ignorar, altera a verdade dos factos e faz um uso do presente meio processual manifestamente reprovável, com o fim único e manifesto de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da sentença - tudo nos termos do art. 542.º, n.º 2, als. a), b) e d), aplicável ex vi art. 1.º do CPTA.

4) Devendo ser condenado, por este motivo, a indemnizar o A. no montante do valor dos honorários que aquele terá acrescidamente que suportar com a dedução das presentes contra-alegações, que é de € 615 (seiscentos e quinze euros) - cfr. doc. 1 que se junta -, o que se requer ao abrigo dos arts. 542.º n.º 1 e 543.º do CPC, ex vi art. 1.º do CPTA.


***

5) Quanto ao recurso do despacho datado de 20/05/2009, na parte em que julgou improcedente a invocada exceção da ilegitimidade do autor, temos que a pretensa ilegitimidade foi arguida nos autos pela Contrainteressada C… - C. e U., M…, Lda., apenas e tão-somente quanto à impugnação dos atos praticados no âmbito do processo de licenciamento n.º 79/.. - cfr. art 5.º da contestação da Contrainteressada, a fls... dos autos.

6) Ora, esse processo de licenciamento n.º 79…e os pedidos relativos ao mesmo não são (rectius, deixaram de ser) objeto da presente ação por força do mesmo despacho recorrido, que decidiu pela impossibilidade de cumulação daqueles pedidos com os pedidos referentes ao processo de licenciamento n.º 110/…, sendo que, notificado para o efeito, o A consignou pretender manter, como objeto dos autos, os pedidos referentes a este último licenciamento - cfr. autos a fls...

7) Deste modo, a questão da pretensa ilegitimidade do A. ficou prejudicada, não sendo o despacho recorrido, de 20/05/2009, recorrível nesse segmento em que julgou a improcedência da exceção de ilegitimidade do A., ou, por outras palavras, sobre o mesmo formou-se caso julgado formal, nos termos dos arts. 142.º, n.º 5, 2.ª parte, do CPTA e 691.º, n.º 2, al. m) do CPC, aplicável ex vi arts. 1.º e 140.º do CPTA e na versão vigente à data da prolação do despacho.

8) O que o R. pretende materialmente não é recorrer desse despacho, como claramente se denota do facto de não invocar qualquer razão de discordância contra os fundamentos que motivaram o sobredito despacho, mas antes invocar ex novo uma questão prévia que não suscitou oportunamente (em sede de contestação, que não deduziu) e que não pode ser agora conhecida, ultrapassado que está há muito o momento processual próprio para o efeito.
9) Em segundo lugar, o que leva o R. a insurgir-se é, determinantemente, o facto da sentença recorrida dar como matéria assente factos não constantes do despacho de 27/06/2011 - nada obsta, contudo, a que tal suceda, na medida em que A selecção da matéria de facto, tenha ou não sido objecto de impugnação, não transita em julgado e, por isso, não se torna vinculativa no processo, nunca tornando indiscutível que os factos incluídos na base instrutória sejam efectivamente controvertidos, nem que os considerados assentes não sejam afinal controvertidos - nem ainda que não existam factos relevantes que não foram sequer seleccionados. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/03/2014, proc. 3721/1 l.9TBLRA.C1).

10) Depois e determinantemente, não só inexiste a suposta ilegalidade que o R invoca, de violação do seu direito ao contraditório, como tal alegação configura mesmo abuso de direito, pois o R não contestou a presente ação, logo, não invocou a pretensa ilegitimidade do A. nem sequer impugnou os factos que entende que não correspondem à realidade, nessa que seria a sede própria para o efeito (aliás, nunca em momento algum interveio no processo).

11) Deve, portanto, julgar-se ilegítima a presente atuação do R., ao interpor o presente recurso e alegar a motivação que vimos de assinalar, por configurar abuso de direito (cfr.art. 334.º do CC), na modalidade de venire contra factum proprio, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, isto tendo em conta a atuação processual de absoluta inércia ao longo de todo o processo e a invocação da pretensa violação do contraditório que agora faz.

12) Por outro lado, material e determinantemente, resultam provados nos autos, à saciedade, os factos constantes dos pontos 1.36 e 1.37 da fundamentação de facto da sentença (contra os quais se insurge o R.), por força dos documentos aí consignados e por força da aceitação que ambas as Contrainteressadas, que contestaram a ação, em relação aos mesmos - cfr. docs. 11 e 12 juntos pelo A. com a pi., doe. 6 junto pela Contrainteressada C… M… e V…, em sede de contestação, e arts. 13.º, 16.º, 20.º e 24.º da contestação da Contrainteressada C….

13) Mais e para além disso: o R e Recorrente conhece bem a realidade e veracidade dos factos que pretende colocar em causa, indiscutíveis, indesmentíveis e que aquele não ignora nem pode ignorar, antes conhece-os perfeitamente e até pessoalmente, já que licenciou a moradia do A. que confronta com o prédio objeto do processo de licenciamento n.º 110/01 e que, assim, ficou por este irremediavelmente afetada... - sendo, assim, inequivocamente censurável a atuação processual que leva a efeito.

14) Em suma, são frontalmente improcedentes as razões recursivas adiantadas pelo R., impondo-se, além do mais e no mínimo, que o(s) recurso(s) improceda(m) por completo.”.

Conclui pedindo que o Réu e Recorrente seja condenado como litigante de má fé e condenado a indemnizar o Autor e Recorrido no montante de € 615,00, em que se cifram os honorários dos seus mandatários pela apresentação das presentes contra-alegações de recurso, que a interposição do presente recurso é ilegítima, por configurar abuso de direito por parte do Recorrente e que o recurso seja julgado totalmente improcedente.


*

Notificado o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, foi emitido parecer que pugna por a decisão recorrida ter procedido a uma correta apreciação dos factos trazidos ao conhecimento do Tribunal e à sua subsunção ao Direito, não merecendo qualquer censura, acompanhando a fundamentação expendida na sentença recorrida.

*

O Recorrente, Município da N… veio pronunciar-se sobre o parecer do Ministério Público, invocando que não tem atribuições em matéria de impostos e que o Autor não conseguiu determinar a sua legitimidade ativa, sendo essa uma exceção dilatória.

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O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR


Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias

*nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

O Recorrente vem interpor recurso das seguintes decisões:

A. Do despacho-saneador, na parte em que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade do Autor;

B. Da sentença, ao julgar a acção totalmente procedente e declarar a nulidade do ato de licenciamento.

Segundo as conclusões do recurso, as questões suscitadas pelo Recorrente, resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de:

1. Erro de julgamento de direito, por violação do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, por decidir em violação do princípio do contraditório quanto à matéria de facto dada como provada, devendo ser dados como não provados os factos constantes dos pontos 1.36 e 1.37 da matéria de facto;

2. Erro de direito, por violação do artigo 9.º, n.º 1 do CPTA e artigos 278.º, n.º 1, al. a) do CPC.

Acresce que o Recorrido suscita como questão a decidir:

3. Litigância de má-fé do Recorrente.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

1. FACTOS PROVADOS

Tendo em atenção a posição das partes expressas nos articulados e o acervo documental junto aos autos, bem como o teor do relatório pericial e respectivos esclarecimentos, consideramos provada, com relevância para a decisão a proferir e de acordo com as várias soluções de direito possíveis, a seguinte matéria de facto, a qual se passa a subordinar aos seguintes números:

1.1) Na Conservatória do Registo Predial da N… mostra-se descrito o prédio rústico n.º 03019…., freguesia e concelho da N…, localizado em B…, Sítio da N…, com uma área de 2000 m2 (cf. doc. 2 junto à petição inicial e fls. 544 e 577 do processo administrativo a que aludem os artigos 1.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo e 84.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.2) O prédio referido em 1.1) foi objeto dos seguintes averbamentos no aludido registo predial (idem):

a) pelo Av.2 – Ap. 04/2000-04-12, foi retificada a área, que passou a ser de 2860 m2, inscrito na matriz respetiva sob os artigos 5 e 6 da Secção X;

b) pelo Av.3 – Ap. 03/2004-07-15, descrito como urbano, terreno para construção, artigo P8968;

c) pela cota G-3, Ap.14/2000-06-14, inscrita a aquisição a favor de C... M... e V... – Sociedade Imobiliária, Lda., por compra;

d) pela cota G – Ap. 1 de 2005/08/03, inscrita a aquisição, por permuta, a favor de C… – Construções e Urbanizações, Lda., convertida em definitiva pelo averbamento Ap 3 de 2005/09/12.

1.3) O prédio referido em 1.1) foi objeto da operação urbanística licenciada através do processo de licenciamento n.º 110…da entidade demandada, com projecto de arquitetura aprovado por despacho do Presidente da Câmara Municipal da N... de 18.06.2001 (cf. fls. 35 do processo de licenciamento n.º 110…, 1.ª pasta, adiante identifica do com o processo administrativo instrutor).

1.4) A 24.02.2003 foi emitido o Alvará de Licença de Construção n.º 28 de 2003, em nome da aqui contrainteressada C... M... e V... Sociedade Imobiliária, Lda., através do qual foi licenciada uma construção que incide sobre o prédio sito na B.... A…, C…, da freguesia de N..., descrito na Conservatória do Registo Predial de N... sob o n.º 03… e inscrito na matriz respetiva sob os artigos 5 e 6 da Secção X, no qual se deixou consignado, além do mais, o seguinte: «A construção aprovada por despacho do Presidente, de 16 de abril de 02, respeita o disposto no Plano Diretor Municipal e apresenta as seguintes características:

» Área de construção: 57 89 m2;

» Volume de construção: --- m3;

» N.º de pisos: quatro, sendo três acima da cota de soleira e um abaixo da mesma cota;

» Cércea: --- metros de altura, n.º de fogos: 27;

» Uso a que se destina a edificação: Habitação (26 fogos do tipo T3 e 1 fogo do tipo T1)

[…]» (cf. fls. 453 do processo administrativo instrutor, 3.ª pasta, cujo teor se dá por reproduzido).

1.5) A área de implantação da edificação coberta/cave é de 1450,80 m2 (facto não impugnado).

1.6) O prédio referido em 1.1) está inserido em área abrangida pela Unidade Operativa de Planeamento e Gestão UOPG-5 (Plano de Pormenor da T… do Sítio) definida na planta de ordenamento e na planta de delimitação a que alude o artigo 62.º do Regulamento do Plano Diretor Municipal da N..., ratificado por Resolução do Conselho de Ministros n.º 7/97, publicada no Diário da República, 1.ª série, N.º 13, de 16 de janeiro de 1997 (cf. relatório pericial constante de fls. 494 a 509 dos presentes autos em paginação eletrónica, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.7) O prédio referido em 1.1) está inserido em Espaço Urbano de Nível I – Vila da N..., em estrutura urbana consolidada, atendendo à planta de delimitação aludida no n.º 1 do artigo 42.º do Regulamento do Plano Diretor Municipal da N..., ratificado por Resolução do Conselho de Ministros n.º 7/97, publicada no Diário da República, 1.ª série, N.º 13, de 16 de janeiro de 1997 (idem; cf. Também esclarecimentos dos senhores peritos constantes de fls. 633 dos autos em paginação eletrónica).

1.8) O prédio referido em 1.1) não foi abrangido por operação de loteamento urbano ou por plano municipal de ordenamento do território de ordem inferior, a que se referem o n.º 4 do artigo 42.º e o artigo 62.º, ambos Regulamento do Plano Diretor Municipal da N..., ratificado por Resolução do Conselho de Ministros n.º 7/97, publicada no Diário da República, 1.ª série, N.º 13, de 16 de janeiro de 1997 (idem; facto notório, como pode ser atestado pela página da entidade demandada respeitante aos instrumentos de gestão territorial vigentes, acessível online in http://www.cm-nazare.pt/pt/urbanismo e diversos links aí existentes).
1.9) Na zona envolvente do edifício objeto do projeto de licenciamento n.º 110…, edificado no prédio referido em 1.1) sob a designação «B.... II», existiam as seguintes edificações (cf. documentos 8 a 10 juntos com a petição inicial e 1 a 4 juntos com a petição inicial e 1 a 4 juntos com a contestação da contra interessada C... M... e V...):

a) a Norte, habitações unifamiliares com 1 ou 2 pisos;

b) a Nascente, cerca de uma dezena de habitações unifamiliares com 1 ou 2 pisos, entre as quais a do autor, e uma habitação plurifamiliar com 2 pisos;

c) a Sul, edifícios de habitação plurifamiliar com 3 pisos, com cobertura plana e sem águas furtadas;

d) a Poente, algumas habitações plurifamiliares, com 3 ou 4 pisos.

1.10) À data do licenciamento referido em 1.3), a construção não preencheu espaços intersticiais ou de remate de malhas urbanas (idem; cf. também relatório pericial constante de fls. 494 a 509 dos presentes autos em paginação eletrónica, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.11) A 26.03.2004 a contrainteressada C... M... e V... apresentou no processo de obras n.º 110… instrumento escrito, endereçado ao Presidente da Câmara Municipal de N..., pelo qual solicitou «[…] informação sobre a possibilidade de se proceder à elevação das cotas de implantação do referido edifício em fase de construção, para a qual junta elementos gráficos explicativos da pretensão[…]» (cf. doc. 4 junto à petição inicial e fls. 460 do processo administrativo instrutor, 3 .ª pasta , cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.12) Junto ao requerimento referido em 1.11) seguia um instrumento escrito, sob a designação «Memória Descritiva» e com o seguinte teor (idem):

(…)

1.13) A 30.03.2004 foi solicitada por aquela sociedade a elevação das cotas de implementação do edifício, em fase de construção, em mais de um metro acima do terreno inicialmente considerado (cf. fls. 459 e 460 do processo administrativo instrutor, 3.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.14) Em resposta ao pedido referido em 1.13), o Presidente da Câmara da N... remeteu à contrainteressada, através do Ofício n.º 25…, de 04.06.2004, a transcrição do parecer emitido pelos Serviços da Divisão de Planeamento e Urbanismo da entidade demandada, onde se lê: «Foi solicitada informação sobre a possibilidade de elevação da cota de soleira do edifício por motivos técnicos. Aparentemente e dos elementos apresentados, parece não haver inconveniente na elevação da soleira do edifício contudo tal situação terá que passar necessariamente pelo licenciamento de alterações ao projeto aprovado onde se avaliarão com rigor todas as implicações dessa alteração.» (cf. fls. 461do processo administrativo instrutor, 3.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.15) A 06.07.2004 a aqui contrainteressada C... M... e V... solicitou a apreciação das alterações ao projeto de arquitetura do edifício, nomeadamente sobre a elevação das cotas em 1 metro, nos termos da proposta de 02.07.2004, subscrita pelo arquiteto responsável (cf. fls. 491 a 501 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.16) Sobre o requerimento referido em 1.15) foi a 30.09.2004 exarado despacho do seguinte teor, pelo Presidente da Câmara Municipal de N...: «Deferido de acordo com parecer de DPU. 30/09/04» (cf. fls. 501 a 504 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.17) Pelo ofício n.º 47…, de 26.10.2004 do Presidente da Câmara da N..., a contrainteressada referida em 1.15) foi informada de que pelo despacho referido em 1.16) havia sido deferida a alteração ao edifício, condicionada à entrega, no prazo de seis meses contados do dia seguinte ao da receção do ofício, dos projetos de especialidades (redes prediais de águas e esgotos), cuja não entrega dentro do referido prazo implicaria a caducidade do aludido deferimento (cf. fls. 505 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.18) A 25.10.2004 a contrainteressada referida em 1.15) solicitou junto do Presidente da Câmara Municipal de N... a apreciação das alterações do projeto de rede de distribuição predial de águas e rede de esgotos de um edifício de habitação coletiva (cf. fls. 524 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.19) O projeto de abastecimento de águas foi objeto de decisão do Presidente da Câmara Municipal da N..., datada de 30.12.2004, no sentido de transmitir o parecer dos Serviços Municipalizados e da Divisão de Planeamento e Urbanismo, exarados sobre o requerimento referido em 1.18) (cf. fls. 528 a 530 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.20) A 24.02.2005, a sociedade C... M... e V... requereu, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 88.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, a emissão de nova licença para proceder ao acabamento da construção cujo licenciamento havia sido titulado pelo alvará de construção n.º 28/… (cf. fls. 546 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.21) O processo de alteração solicitado pelo requerimento referido em 1.18) foi aprovado por despacho do Presidente da Câmara Municipal da N... de 13.05.2005, após os pareceres favoráveis da Divisão de Planeamento e Urbanismo (cf. fls. 561 e 562 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.22) Pelo ofício n.º 39…, de 24.05.2005 da entidade demandada a contrainteressada referida em 1.15) foi informada do teor da decisão final referida em 1.21), pela qual o processo de alteração do edifício habitacional foi aprovado, devendo no prazo de ano requerer a emissão do alvará de licença de construção, sob pena do ato de aprovação caducar (cf. fls. 540 e 567 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.23) A 30.05.2005 a contrainteressada C... M... e V... requereu a emissão do alvará de licenciamento para proceder às obras de alteração do edifício (cf. fls. 574 e 57 4-v. do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.24) O pedido referido em 1.23) foi deferido por despacho do Presidente da Câmara Municipal da N... de 07.06.2005 (idem).

1.25) Na sequência do despacho referido em 1.24), foi emitido o alvará de obras de alteração n.º 74/…, em nome da contrainteressada C... M... e V..., que titula a aprovação das obras de alteração que incidem sobre o prédio sito em A…, C… ou B...., Sitio da N..., da freguesia da N..., descrito na Conservatória do Registo Predial da N..., sob o n.º 030.. e inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 89…, da respetiva freguesia, sendo no referido alvará consignado, além do mais, o seguinte: «As obras aprovadas por despacho do Presidente da Câmara, de 13/05/2005, respeitam o disposto no Plano Diretor Municipal […] e apresentam as seguintes características: » Execução de alterações ao licenciado pelo alvará de construção n.º 28/03, de 24 de fevereiro de 2003. Estas alterações não provocam qualquer alteração à cércea, n.º de pisos, área de construção, n.º de fogos ou tipologia.» (cf. fls. 575 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.26) Sobre o pedido referido em 1.20) foi prestada a informação técnica na qual se deixou consignado, além do mais, o seguinte: «Foi solicitada a emissão e licença especial para a conclusão da obra ao abrigo do no 3 do art. 88° do DL 555/99, de 16 de dezembro.
» Da visita ao local pode-se constatar que a obra está já num te, Município da N… nas respetivas alegações (cfr. fls. 569 e segs. – paginação referente ao processo em suporte físico, tal como as referências posteriores), as seguintes conclusões que infra e na íntegra se reproduzem:estado bastante adiantado de execução pelo que se justifica a emissão da licença especial.

» O presente edifício está integrado numa área cujas infraestruturas de suporte estão garantidas no âmbito do processo de loteamento n.º 4/2….

» Não obstante o acesso estar já fisicamente garantido com arruamento asfaltado, o facto é que não foi ainda emitido o alvará de loteamento não estando por isso juridicamente resolvidas integralmente as condições de execução das infraestruturas de suporte, cuja responsabilidade é da mesma entidade deste processo.

» Assim e face ao exposto não se vê inconveniente na emissão de licença especial mas só após a emissão do alvará de loteamento do processo no 4/2… para juridicamente fiquem resolvidas todas as condições de execução das infraestruturas de suporte desta zona.» (cf. fls. 558do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta , cu jo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.27) A 18.09.2005 o Presidente da Câmara Municipal da N... exarou despacho sobre um parecer de concordância com a informação técnica referida em 1.26), com o seguinte teor: «Transmita-se ao requerente o parecer da DPU.» (idem).

1.28) No Processo de Loteamento n.º 4…, mencionado na informação referida em 1.26), também figurava como promotora a aqui contrainteressada C... M... e V... (cf. doc. 5 junto à contestação da contra interessada C... M... e V..., cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.29) No Alvará de Loteamento n.º 3/20…, com obras de urbanização, relativo ao Processo 4/20… a que aludia a informação técnica referida em 1.26), emitido a 06.10.2005, na sequência das deliberações municipais de 30.04.2001, 29.04.2002, 09.06.2003 e 20.12.2004, referente ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da N... sob o n.º 46…, consignou-se, além do mais, o seguinte: «A titular do presente alvará fica obrigada a executar todas as obras de urbanização, conforme projetos apresentados e oportunamente aprovados pelas entidades consultadas e pelas deliberações camarárias referidas retro.

» […]

» Condicionantes de licenciamento: as constantes do processo de licenciamento, as do presente alvará, bem como as transmitidas pela PT Comunicações e EDP Distribuição de Energia, […]» (cf. relatório pericial constante de fls. 494 a 509 dos presentes autos em paginação eletrónica, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.30) As obras de infraestruturas referidas em 1.29) foram garantidas pela hipoteca dos lotes 1, 2 e 5, entretanto substituído pelo lote 6 por escritura de 25.10.2012 (idem).

1.31) A 02.11.2005 foi aprovado, por despacho do Presidente da Câmara Municipal da N..., o pedido de averbamento para o novo titular do processo n.º 110/…, a aqui contrainteressada C… (cf. fls. 578 e 587 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.32) A 18.06.2007 foi deferido por despacho do Presidente da Câmara Municipal da N... um pedido de prorrogação do prazo concedido pelo alvará n.º 74/2…, pelo período de um ano, para a conclusão da obra (cf. fls. 590 e 590-v. do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.33) A 10.08.2007 a entidade demandada emitiu certidão pela qual foi certificado que o edifício tem uma área total de 2860 m2, sito no A…., C… ou B...., Sitio da N..., com uma área de implantação de 1552,40 m2, área ocupada por terraços e logradouros de 1228,20 m2, tendo sido cedida gratuitamente para integração do domínio público municipal, livre de ónus ou encargos, uma parcela de terreno com a área de 79,40 m2 destinada a passeios (cf. fls. 597 e 606 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.34) Da Caderneta Predial Urbana referente ao prédio referido em 1.1), após as operações urbanísticas promovidas pelas contrainteressadas, consta designadamente o seguinte: «Identificação do prédio

» Artigo matricial: 89…

» Descrito na C.R.P. de N... sob o registo n.º 030…

» Descrição do prédio

» Tipo de prédio: Terreno para construção

» Área total do terreno: 2.860,0000 m2

» Área de implantação do edifício: 1.552,4000 m2

» Área bruta de construção: 5.7 89,0000 m2

» Área bruta dependente: 1.552,4000 m2

» Ano de inscrição na matriz: 2007» (cf. fls. 602 do processo administrativo instrutor, 4.ª pasta, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.35) Os projetos objeto originariamente da licença de construção n.º 28/20… e posteriormente da licença de alteração do edifício titulada pelo Alvará n.º 74/20… não respeitaram os seguintes condicionamentos (cf. relatório pericial constante de fls. 494 a 509 dos presentes autos em paginação eletrónica, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):

a) os alinhamentos existentes, porque não observaram um recuo em relação aos respetivos arruamentos;

b) a cércea dominante das construções existentes envolventes, que era de 3,50 metros a 6,5 metros, sendo que o prédio referido em 1.1) tinha uma altura de 13,40 metros no projeto inicial, a que acresceu uma altura adicional de 0,68 metros após alteração, ascendendo a 14,08 metros;

c) excederam a altura média prevista para quatro pisos, tendo uma altura equivalente a 4,58 pisos, sendo 4 acima da cota da soleira.
1.36) As traseiras do edifício «B.... II», a que se reporta o projeto n.º n.º 110/01, implantado no prédio referido em 1.1), com a alteração autorizada pelo despacho referido em 1.16), foram elevadas em um metro, e confrontam com a moradia unifamiliar do autor, ficando o ponto mais elevado daquele prédio ao nível do R/C e não ultrapassando a quota soleira desta, permitindo avistar o mar desde o 1.º andar (cf. documentos 11 e 12 juntos com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

1.37) A propriedade do autor é constituída por uma moradia unifamiliar, composta por 2 pisos e sótão, num local mais elevado face à implantação do prédio referido em 1.1) (cf. doc. 6 junto à contestação da contrainteressada C... M... e V..., cujo teor se dá por integralmente reproduzido).


*

2. FACTOS NÃO PROVADOS

Não há factos alegados e a dar como não provados com interesse para a decisão a proferir nos presentes autos.


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3. MOTIVAÇÃO

Importa agora enunciar os fatores que permitiram a este tribunal fundar a sua convicção probatória, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.

Preliminarmente, esclarecemos que nos presentes autos foi proferido in illo tempore despacho saneador, no âmbito do qual foi selecionada a matéria de facto relevante, atendendo à disciplina constante do Código de Processo Civil de 1961.

Como é consabido, a lei processual civil cogente, aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, é já aplicável aos presentes autos, porquanto, atento o disposto no n.º 1 do artigo 5.º da antedita Lei, «[s]em prejuízo do disposto nos números seguintes, o Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes».

Por seu turno, os despachos saneadores proferidos ao abrigo do Código de Processo Civil de 1961 não se adequam completamente à tramitação processual proclamada e pretendida pelo legislador nestas fases processuais – ao menos nos moldes em que a anterior lei processual as informava e enquadrava. Com efeito, verifica-se na cogente lei processual a (tendencial) supressão da base instrutória e respetiva substituição pela inovatória fixação de temas de prova.

Julga-se, não obstante, que o legislador, ao estatuir as disposições transitórias do novo Código de Processo Civil, não teve por escopo prejudicar os atos processuais praticados e consolidados na pendência dos processos. Assim, nada obstava – pelo contrário, o princípio do aproveitamento de atos aconselhava e aconselha – a que se aproveit(ass)e a seleção da matéria de facto previamente efetuada, deixando intocados os factos considerados assentes (posto que alheios a qualquer controvérsia e, por isso mesmo, sem carecer de qualquer instrução ou produção de prova) e utilizando a base instrutória como mero indicador, não preclusivo, quer dos temas de prova a atender em sede de audiência final, quer da matéria levada a probatório a final, em sede de julgamento da matéria de facto e de direito.

Por outro lado ainda, o juízo probatório não pode pura e simplesmente desconsiderar a forma como vem articulada a pretensão do autor e a posição assumida pelos réus. Por isso, atentas as causae petendi em que o autor estriba a sua pretensão impugnatória, nas quais avultava a suposta violação dos direitos fundamentais ao ambiente e qualidade de vida, sem que tenha sido tal matéria levada nem aos factos assentes nem à base instrutória (mesmo considerando o labor emprestado pelo tribunal na fixação dos factos e da «base instrutória» no despacho proferido in illo tempore, que norteou a produção de prova nos presentes autos), e tendo o autor prescindido da prova testemunhal e dos esclarecimentos dos senhores peritos na audiência final convocada para o efeito, nada impede o tribunal de, atenta a distribuição do ónus probandi, por um lado, e os meios de prova disponíveis nos autos, independentemente de quem os produziu e até de beneficiarem ou prejudicarem quem os produziu, por outro lado, de se pronunciar e tomar uma posição quanto a esses pontos.

Daí que os pontos 1.36) e 1.37) [e também os pontos 1.9) e 1.12)] tenha(m) sido inserido(s) neste ponto para melhor habilitar a decisão a proferir, a final, segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito controvertidas, faculdade de que lançou mão este tribunal, ciente que está também de que a seleção da matéria de facto não tem valor definitivo. Com efeito, constituindo a especificação e a base instrutória, mesmo à luz do anterior Código de Processo Civil, simples projetos parcelares de julgamento e de seleção da matéria de facto, não fazem as mesmas caso julgado, e podem ser corrigidas até ao encerramento da discussão e, mesmo, até ao julgamento na segunda instância [cf. a alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º e artigo 712.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil de 1961]. Hoc sensu, vide ANSELMO DE CASTRO (1982:282 ss.) e ANTUNES VARELA et al. (1985:427 ss.).

Dito isto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aqui aplicável mutatis mutandis por força da remissão operada pelo artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, faz-se consignar que o tribunal atendeu à factualidade essencial alegada pelas partes, bem como à factualidade instrumental que decorreu da instrução da causa [artigo 5.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil] e da factualidade complementar resultante dos meios de prova produzidos e sujeitos a contraditório [artigo 5.º, n.os 1 e 2, alínea b), do mesmo diploma]. Para o efeito, atendemos a todos os factos invocados e trazidos ao conhecimento do tribunal, bem como a todas as provas documentais carreadas para os autos, independentemente de aproveitarem ou não à parte que as produziu (artigo 413.º do Código de Processo Civil).

A esta luz, consigna-se que a convicção do tribunal quanto à matéria levada ao probatório se formou essencialmente com base na análise crítica da documentação, quer junta aos articulados iniciais das partes, quer com os sucessivos instrumentos processuais produzidos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais (artigo 607.º, n.º 5, in fine, do Código de Processo Civil). Atendemos também ao teor do relatório pericial e respetivos esclarecimentos, com respostas produzidas por unanimidade, e respetivos esclarecimentos prestados nos autos. Tudo nos termos e com os fundamentos melhor discriminados no final de cada alínea do probatório.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional, segundo a sua ordem lógica ou de precedência de conhecimento.

1. Erro de julgamento de direito, por violação do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, por decidir em violação do princípio do contraditório quanto à matéria de facto dada como provada, devendo ser dados como não provados os factos constantes dos pontos 1.36 e 1.37 da matéria de facto

Nos termos da alegação do recorrente a matéria de facto assente e a fixada na base instrutória foi seleccionada por despacho de 27/06/2011, sem que fosse incluído o facto de o Autor ser proprietário de edificação para habitação, confinante da edificação relativa aos atos de licenciamento impugnados na presente ação.

Sustenta o Recorrente que na sentença foram fixados os factos que ora constam sob os n.ºs 1.36) e 1.37), que antes não constavam da selecção da matéria de facto, pelo que a sua inclusão na sentença, sem que tenha sido dada a oportunidade às partes de se pronunciarem constitui uma decisão surpresa, em violação do princípio do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do CPC.

Pugna por dever ser revogada a sentença, na parte em que julgou provados os factos constantes nos pontos 1.36 e 1.37 do probatório.

Vejamos.

A questão que vem suscitada respeita a saber se, após ter sido seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, nos termos do despacho, datado de 27/06/2011 (cfr. fls. 182-190), elaborado sob a vigência do anterior Código de Processo Civil, pode a sentença, elaborada em 19/05/2017, já sob a vigência do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, após a fase de instrução e de julgamento da causa, vir a fixar novos factos, dando-os como provados, com base na factualidade alegada nos articulados das partes, com base na prova documental produzida e ainda com base na prova testemunhal produzida na audiência final, ou seja, considerando quer os factos essenciais alegados pelas factos, quer os factos instrumentais resultantes da instrução da causa, quer os factos complementares resultantes dos meios probatórios produzidos no processo, sem antes notificar as partes para se pronunciarem.

O cerne da questão, tal como alegado pelo Recorrente está em saber se a inclusão ou aditamento de outros factos na sentença, carece de prévia notificação das partes para exercerem o contraditório.

Como resulta do processado dos presentes autos, o despacho, datado de 27/06/2011, foi proferido sob a vigência do anterior Código Processo Civil, nele tendo sido elaborada a selecção da matéria de facto assente e a base instrutória.

Tendo entrado em vigor o novo Código de Processo Civil em 01/09/2013, nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o mesmo passou a aplicar-se às ações pendentes, como previsto no n.º 1 do artigo 5.º da citada Lei n.º 41/2013, exigindo, quando caso disso, a respectiva adequação processual, de forma a adequar os atos já praticados e o processado da causa à nova regulação prevista.

As alterações introduzidas pela nova lei processual civil foram significativas em matéria de saneamento, instrução e julgamento da causa, já que se acentuou a relevância da audiência prévia e desapareceu a finalidade do despacho saneador para a seleção da matéria de facto assente e para a elaboração da base instrutória, nos termos do artigo 595.º do Código de Processo Civil, passando a prever-se a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova, segundo o artigo 596.º, enquanto enunciado geral das questões fácticas que será objecto de produção de prova na audiência final.

Toda esta alteração quanto aos atos processuais a praticar na acção ocorreram durante a pendência da causa, o que se apresenta amplamente compreendido na sentença recorrida, na parte da motivação do julgamento de facto.

Quer no regime anterior, quer sob a actual vigência do novo Código de Processo Civil, apresenta-se incontestado o poder de na sentença serem, antes, aditados factos e agora, fixados factos, segundo o disposto do atual n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.

Em qualquer dos regimes sempre se admitiu e conferiu ao julgador a possibilidade de considerar na fase da sentença toda a factualidade adquirida no processo, segundo o princípio da aquisição processual, que determina que o juiz considere toda a factualidade provada, independentemente de quem tem a iniciativa ou sobre recai o respectivo ónus probatório.

Em relação à questão que ora se configura como fundamento do presente recurso, sobre a necessidade de conferir o contraditório das partes, deteta-se uma diferença de regime entre o anterior Código de Processo Civil e o vigente.

Anteriormente, tendo sido elaborado o despacho-saneador nos termos do qual foi seleccionada a factualidade relevante para a decisão a proferir, de acordo com as várias soluções plausíveis em direito, exigia-se o contraditório das partes em momento anterior ao da consideração de novos factos na sentença.

O despacho-saneador não cristalizava o material probatório relevante, mas marcava o momento processual da selecção do acervo factual com base no qual o juiz iria assentar o julgamento de direito, prevendo-se a possibilidade de aditamento de novos factos após o contraditório das partes.

Sob a vigência do actual Código de Processo Civil é outro o entendimento, porquanto não existindo qualquer despacho anterior que delimite os factos relevantes e na base do qual será alicerçado o julgamento de direito, por apenas existir a delimitação feita através dos temas da prova, e tendo toda a prova sido já contraditada, quer pela junção de documentos aos autos, em relação à qual as partes tiveram a oportunidade de se pronunciar, quer pela prova testemunhal contraditada na própria audiência final, não se exige a notificação das partes para se pronunciarem sobre os factos que a sentença julgará como provados e como não provados.

A discriminação dos factos que o juiz considera provados integra o conteúdo da sentença e constitui esse o momento processual próprio, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, não se exigindo a notificação das partes para se pronunciarem sobre os factos que o juiz irá dar como provados.

A questão suscitada no presente recurso teria, pois, sentido à luz do anterior Código de Processo Civil, não tendo fundamento nos termos da actual lei processual civil que é aquela ao abrigo da qual a sentença foi elaborada.

Toda a fase de instrução da causa, da audiência e da sentença ocorreram já sob a vigência do novo Código de Processo Civil, o qual teve aplicação imediata aos processos pendentes.

De resto, a própria sentença recorrida reflecte bem este entendimento, fundamentando de facto e de direito a inclusão dos factos sob os pontos 1.36) e 1.37) na parte da motivação do julgamento de facto, em termos que se conformam com o julgamento antecedente.

Ao contrário do defendido pelo Recorrente não era exigível a prévia notificação das partes para a inclusão de factos na sentença, os quais segundo a sua própria fundamentação resultam da prova documental carreada para os autos pelas partes e sobre a qual, em momento próprio, tiveram a oportunidade de se pronunciar, tendo podido contraditar tais meios de prova.

A inclusão dos factos a que se referem os pontos 1.36) e 1.37) do julgamento de facto da sentença, não estava, pois, dependente, da notificação das partes para se pronunciarem, visto estar em causa factos alegados pelas partes e cuja prova documental obedeceu às regras do contraditório, sendo a sentença o momento processual para a discriminação dos factos provados e não provados, segundo o disposto no artigo 607.º do Código de Processo Civil, aplicável à sentença recorrida.

Neste sentido, será de julgar não provada a violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil e em manter os factos constantes dos pontos 1.36) e 1.37) da matéria de facto assente na sentença recorrida.

Termos em que, em face de todo o exposto, falece razão ao Recorrente, sendo de julgar improcedente, por não provada, a conclusão do recurso em análise.


2. Erro de direito, por violação do artigo 9.º, n.º 1 do CPTA e artigos 278 n.º 1, al. a) do CPC

Nos termos da alegação do Recorrente, o Autor veio alegar ser proprietário e residir em edificação confinante, enquanto causa de pedir e fundamento da sua legitimidade.

No entanto, defende o Recorrente que o Autor não fez prova dessa sua qualidade, não fazendo prova da sua propriedade, pelo que é parte ilegítima por não ter demonstrado que era titular do direito de propriedade e que reside nessa propriedade, confinante com a edificação licenciada.

Alega que a ilegitimidade activa constitui fundamento para a absolvição da instância, o que requer, devendo o Réu ser absolvido da instância quanto aos pedidos apresentados pelo Autor.

Vejamos.

Como decorre da alegação do Autor e da conclusão do recurso, vem o Recorrente pôr em crise o pressuposto processual da legitimidade ativa do Autor, invocando faltar-lhe legitimidade para estar em juízo e consequentemente, dever o Réu ser absolvido da instância.

Tal questão, revestindo a natureza de exceção dilatória foi decidida no despacho-saneador, datado de 20/05/2009, o qual se mostra agora impugnado

Aí se decidiu a legitimidade do Autor, nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do CPTA, com fundamento em o autor ser parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida e o Autor na acção alegar essa qualidade no artigo 68.º e seguintes da petição inicial (cfr. fls, 151 dos autos).

Tal julgamento sobre a matéria de exceção suscitada afigura-se correto, quer em face da alegação do Autor em juízo, nos termos em que se apresenta segundo o objecto do litígio, configurado pelo pedido e pela causa de pedir, quer segundo a prova produzida, nos termos que resulta vertido na selecção dos factos assentes constantes da sentença recorrida, designadamente nos pontos 1.36) e 1.37) dos factos dados como provados.

Segundo a lei processual civil, a verificação do pressuposto processual da legitimidade ativa basta-se com a alegação da qualidade de parte na relação material controvertida, não se confundindo com o interesse processual em agir.

Não se verificam os pressupostos, nem de facto, nem de direito, em que o Recorrente alicerça o presente fundamento do recurso, pois ao contrário do por si alegado, não só o Autor alega a qualidade de parte na relação material controvertida, como se encontram demonstrados factos que atestam essa sua qualidade de parte na selecção da matéria de facto assente.

Pelo que, carece de fundamento o invocado erro de julgamento cometido no despacho-saneador e na sentença, a respeito da falta de legitimidade ativa do Autor, devendo ser julgada improcedente, a conclusão do recurso.


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Em face do exposto, não assiste razão ao Recorrente na censura que dirige às decisões recorridas, sendo de julgar improcedentes, por não provadas, as conclusões do presente recurso, assim negando procedência ao recurso.

3. Da litigância de má-fé do Recorrente

Suscita o Recorrido na sua contraalegação de recurso a questão da litigância de má-fé do Recorrente, sob o fundamento de que pretende protelar o trânsito em julgado da sentença, por serem ostensivamente infundados os fundamentos do recurso e ainda por pretender pôr em crise factos cuja veracidade é indesmentível.

Alega que o Recorrente incorre em litigância de má fé, por, no mínimo com negligência grave, deduzir pretensões recursivas cuja falta de fundamento não pode ignorar, alterar a verdade dos factos e fazer um uso do presente meio processual manifestamente reprovável, com o fim único e manifesto de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da sentença, nos termos do artigo 542.º, n.º 2, alíneas a), b) e d), aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.

Pede que o Recorrente seja condenado a indemnizar o Autor, ora Recorrido, no montante do valor dos honorários que terá que suportar com a dedução das contraalegações, que reputa no valor de € 615, o que requer ao abrigo dos artigos 542.º n.º 1 e 543.º do CPC.

Sem razão, não se subsumindo o alegado pelo Recorrido nos motivos que integram a litigância de má-fé.

O direito ao recurso constitui um direito processual da parte, sendo legítimo que a parte que ficou vencida na causa e discorde da decisão proferida, pretenda a reapreciação do decidido por um tribunal de recurso.

Embora não sejam procedentes os fundamentos do recurso, a interposição do recurso, assim como as concretas questões nele suscitadas, não constituem qualquer uso anormal ou abusivo dos atos processuais, por não ser deduzida pretensão que se configure como manifestamente infundada ou em distorção da factualidade apurada, antes traduzindo o uso normal dos mecanismos ao dispor das partes, no contexto de uma litigância normal.

O Recorrente colocou em crise as questões decididas na sentença recorrida que entendeu, no uso de um direito processual que lhe assiste e em defesa dos interesses que representa, sem que seja possível afirmar qualquer litigiosidade menos séria e muito menos abusiva.

Nestes termos, não tem fundamento o pedido de condenação do Recorrente em litigância em má-fé e, consequentemente, o pedido de condenação ao pagamento da quantia peticionada.

Termos em que será de julgar improcedente, por não provada, a questão da litigância de má-fé do Recorrente.


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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. O despacho que selecionou a matéria de facto assente e a base instrutória, sendo datado de 27/06/2011, foi proferido sob a vigência do anterior Código Processo Civil.

II. Tendo entrado em vigor o novo Código de Processo Civil em 01/09/2013, nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o mesmo passou a aplicar-se às ações pendentes, como previsto no n.º 1 do artigo 5.º da citada Lei n.º 41/2013, exigindo, quando caso disso, a respetiva adequação processual, de forma a adequar os atos já praticados e o processado da causa à nova regulação prevista.

III. Quer no regime anterior, quer sob a actual vigência do novo CPC, apresenta-se incontestado o poder de na sentença serem, antes, aditados factos e agora, fixados factos, segundo o disposto do atual n.º 3 do artigo 607.º do CPC.

IV. Em qualquer dos regimes sempre se admitiu e conferiu ao julgador a possibilidade de considerar na fase da sentença toda a factualidade adquirida no processo, segundo o princípio da aquisição processual, que determina que o juiz considere toda a factualidade provada, independentemente de quem tem a iniciativa ou sobre recai o respectivo ónus probatório.

V. Sob a vigência do anterior CPC, o despacho-saneador não cristalizava o material probatório relevante, mas marcava o momento processual da selecção do acervo factual com base no qual o juiz iria assentar o julgamento de direito, prevendo-se a possibilidade de aditamento de novos factos, após o contraditório das partes.

VI. Sob a vigência do actual CPC, não existindo qualquer despacho anterior que delimite os factos relevantes e nas base do qual será alicerçado o julgamento de direito, por apenas existir a delimitação feita através dos temas da prova, e tendo toda a prova sido já contraditada, quer pela junção de documentos aos autos, em relação à qual as partes tiveram a oportunidade de se pronunciar, quer pela prova testemunhal contraditada na própria audiência final, não se exige a notificação das partes para se pronunciarem sobre os factos que a sentença julgará como provados e como não provados.

VII. Integra o conteúdo da sentença e constitui esse o momento processual próprio, a discriminação dos factos que o juiz considera provados, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 607.º do CPC, não se exigindo a notificação das partes para se pronunciarem sobre os factos que o juiz irá dar como provados.

VIII. A legitimidade ativa enquanto pressuposto processual basta-se com a alegação da qualidade de parte na relação material controvertida, segundo o n.º 1 do artigo 9.º do CPTA.

IX. O direito ao recurso constitui um direito processual da parte que ficou vencida na causa e nele não tendo sido alegados fundamentos manifestamente infundados, nem distorcida a factualidade apurada, não se pode entender pelo uso anormal ou abusivo do meio processual, não ocorrendo a litigância de má-fé.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em:

1. Negar provimento ao recurso, por não provado e em manter as decisões recorridas na ordem jurídica e

2. Julgar improcedente o pedido de condenação do Recorrente como litigante de má-fé, por não provado.

Custas pelo Recorrente.
Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Pedro Marques)

(Helena Canelas)