Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:247/163.8BECTB
Secção:CA 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/06/2017
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES -relator por vencimento
Sumário:i) No contencioso administrativo a ilegitimidade passiva constitui um fundamento que “obsta ao prosseguimento do processo”, dando lugar à aplicação do regime dos artigos 87.º, 88.º e 89.º do CPTA.

ii) Num caso em que a petição inicial revela uma antinomia entre a entidade pública indicada como réu e a entidade pública identificada como sujeito da relação material controvertida, é de proferir despacho a convidar o autor a aperfeiçoar a petição quanto à identificação da entidade pública que pretende demandar.

iii) De acordo com o disposto no artigo 87.º, n.º 7, do CPTA, apenas deverá determinar-se a absolvição da instância no caso de falta de suprimento de excepções dilatórias ou de correcção, dentro do prazo que for estabelecido, das deficiências ou irregularidades da petição inicial, o que impõe ao juiz, sob pena de incorrer em nulidade processual, a prolação de prévio despacho com essa finalidade.
Votação:COM UM VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

C............. – Artigos ………………………., Lda., veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, datada de 31.01.2017, que no âmbito da acção administrativa de condenação à prática de acto devido instaurada contra o IAPMEI – Agência para a Competitividade e Inovação, IP, julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva singular e, em consequência, absolveu a entidade demandada da instância.

Formula a aqui Recorrente nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

1 - O presente recurso é interposto quanto à matéria de direito, por a ora recorrente dela discordar e com ela não se conformar.

2 - A Meritíssima Juiz a quo proferiu sentença na qual julgou o Réu parte ilegítima nos presentes que ora se recorre, como se pode ver de sentença que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos efeitos.

3 - Como primeira nota temos que a legitimidade processual é o pressuposto processual através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo levado a tribunal.

4 - Tal pressuposto, sem margem para dúvidas, deverá ser aferido nos estritos termos em que o A. no articulado inicial delineou ou configurou a relação material controvertida, gozando de legitimidade passiva a outra parte nesta relação (cfr. arts. 9.º, n.º 1 e 10.º do CPTA).

5 - O n.º 1 do art. 10.º retoma a regra geral enunciada no art. 30.º do CPC, segundo o qual a legitimidade passiva corresponde à contraparte na relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, devendo este demandar em juízo quem alegadamente estiver colocado, no âmbito dessa relação, em posição contraposta à sua.

6 - A titularidade e, consequentemente, a legitimidade deverá ser aferida, pois, pelas afirmações do A. na petição inicial, pelo modo como este unilateral e discricionariamente entende configurar o objeto do processo, sem que na determinação das partes legítimas se deva ter de aferir em função da efetiva titularidade da relação material controvertida existente, tomada de forma provisória como objetivamente existente com a configuração que vier a resultar das afirmações do A. e do R., confirmadas pela instrução e discussão da causa.

7 - Nesta sede o preenchimento do requisito da legitimidade processual (entendido como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa e não como uma condição de procedência da ação) não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A. porquanto se basta com a alegação dessa titularidade.

8 - Na verdade, a legitimidade constitui um pressuposto processual e não uma condição de procedência, pelo que os problemas que se suscitam em torno da existência da relação material controvertida prendem-se com o fundo da pretensão ou mérito da mesma e nada tem que ver com a definição da legitimidade processual dos sujeitos intervenientes num processo.

9 - Daí que para um juízo positivo sobre a existência da legitimidade passiva basta uma afirmação fundamentada em factos decorrente da alegação do A . da titularidade no R. dum interesse direto em contradizer, traduzido na utilidade derivada do prejuízo que da procedência da ação possa derivar .

10- Presentes o enquadramento normativo antecedente e os considerandos acabados de expender temos que, inequivocamente, ressalta a ilegitimidade passiva do ente demandado «IAPMEI» porquanto a Autora demanda em nome próprio um outro ente administrativo com personalidade jurídica, que intervém no procedimento, mas que não praticou o ato impugnado, nem lhe compete praticar o referido acto e fá-lo porque não obstante o teor do acto descrito em 5) dos factos provados, o qual explicita referência aos autores do ato (comissão de investimentos do Fundo de Modernização do Comércio e Secretário de Estado Adjunto e do Comercio, no uso de poderes delegados pelo Ministério de Economia, termos em que não assistia ao R. legitimidade processual passiva no quadro dos arts. 10.º, 57.º e 78.º do CPTA.

11- Ocorre que, todavia, a decisão judicial impugnada ainda assim não pode ser confirmada no que na mesma se conclui e se decide em termos das consequências a extrair daquela constatação.

12- É que por força do que no quadro do art. 88.º do CPTA se determina e impõe ao julgador, em sede do dever de conhecer obrigatoriamente de «todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo», do mesmo ressalta, em decorrência do princípio da cooperação processual (arts. 08.º CPTA e 6º e 411º.º CPC), a existência dum dever de providenciar pela prévia correção dos articulados e do suprimento das exceções dilatórias.

13- Na verdade, admite-se no art. 88.º do CPTA não apenas a correção oficiosa de deficiências ou irregularidades de caráter formal de que as peças processuais eventualmente padeçam mas também o suprimento de exceções dilatórias e de irregularidades dos articulados ainda que com anulação de atos processuais caso não possam ser aproveitados, no que configura regime de regularização mais amplo que aquele que se mostrava previsto na LPTA (cfr. seu art. 40.º).

14- Configura tal despacho de aperfeiçoamento um convite que o julgador dirige à parte ativa para que esta supra ou corrija o vício de que padeça o articulado inicial em termos de assim se assegurar o prosseguimento do processo.

15- Estando em questão exceções dilatórias o seu suprimento e possibilidade de correção na sequência de convite está dependente do facto do vício que as gera não inviabilizar a substituição da petição inicial.

16- Com efeito, o convite não será admissível e como tal haverá proferimento de decisão de absolvição da instância quando estejamos em presença da exceção dilatória insuprível que não consente a renovação da instância [v.g., a inimpugnabilidade do ato, a ineptidão da petição inicial, a caducidade do direito de ação, a litispendência, o caso julgado].

17- Ora para além das enunciadas exemplificativamente no art. 89.º, n.º 3 CPTA contam-se, nomeadamente, entre as situações passíveis de suprimento ou correção a ilegitimidade passiva do demandado, a coligação ilegal, a falta identificação dos contrainteressados em preterição de litisconsórcio necessário passivo e a cumulação ilegal pretensões [cfr. art. 89.º, n.º 1, als. d), e), f) e g) do CPTA] [vide M. Aroso Almeida e Carlos A. Fernandes Cadilha in: ob. cit., págs. 584/ 585].

18- Atente-se, ainda, que a regularização da instância neste quadro não está dependente de qualquer juízo sobre a desculpabilidade ou não do erro cometido.

19- Daí que na situação vertente impunha-se ao julgador “a quo” que tivesse formulado, previamente à emissão da decisão de absolvição da instância nos termos em que veio a ocorrer, convite dirigido à A. no sentido desta vir suprir a exceção através da apresentação de nova petição inicial dirigida ao ente administrativo dotado de efetiva legitimidade passiva, aperfeiçoando dessa forma aquele articulado.

20 - Não o tendo feito incorreu em erro de julgamento com consequente revogação da decisão judicial em crise na certeza de que o nela invocado de não ser passível de sanação, pois tal implicaria uma modificação subjectiva da instância operada pela substituição da parte demandada por uma outra que ocuparia o seu lugar o que não é processualmente admissível, nem o artigo 10º nº 10 do CPTA não está pensado para o suprimento da ilegitimidade passiva singular, se mostra insubsistente dado tudo o supra referido e considerando inclusive aquilo que se dispõe no n.º 2 do art. 89.º do CPTA.

21º - A sentença viola o preceituado nos artigos 6º, 30º e 411º todos do CPC e os artigos 8º, 10º, 57º, 78º, 88º e 89º todos do CPTA e o artigo 40º da LPTA..

O ora Recorrido, IAPMEI, não apresentou contra-alegações.



Neste Tribunal Central Administrativo, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.



O processo teve vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, indo à Conferência para julgamento.



I. 1. Questões a apreciar e decidir:

A questão suscitada resume-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento quanto à questão de impossibilidade de correcção oficiosa e por não ter proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial no que respeita ao pressuposto processual da ilegitimidade passiva singular.



II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663º, nº 6, do Código de Processo Civil.



II.2. De direito

O presente recurso jurisdicional tem como objecto a decisão do TAF de Castelo Branco que absolveu o IAPMEI – AGÊNCIA PARA A COMPETITIVIDADE E INOVAÇÃO, IP, por ter julgado procedente a excepção de ilegitimidade passiva singular.

Alega, em bom rigor, a Recorrente a existência de nulidade secundária em que terá ocorrido o TAF de Castelo Branco, ao não ter convidado os AA. a aperfeiçoarem a petição quanto à correcta identificação da entidade pública demandada.

Na decisão recorrida entendeu-se que a excepção de ilegitimidade passiva singular não era passível de correcção, seja por iniciativa do autor, seja através de convite ao aperfeiçoamento, determinando sempre a absolvição da entidade demandada da instância, com o fundamento de que essa convolação implicaria uma modificação subjectiva da instância, operada pela substituição da parte demandada por uma outra que ocuparia o seu lugar, o que não seria processualmente admissível.

Mais resulta do discurso fundamentador da decisão recorrida que o incidente de intervenção principal provocada de um terceiro apenas permite o suprimento da ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário passivo, nos termos do disposto no artigo 316.º do CPC, sem que o CPTA regule a matéria ora controvertida.

Consta ainda da decisão recorrida que do disposto nos vários números do artigo 10.º do CPTA não existe disposição que conduza ao resultado pretendido pela ora Recorrente, prevendo-se no seu n.º 10 a aplicação subsidiária do disposto na lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, não estando tal preceito pensado para o suprimento da excepção de ilegitimidade singular passiva, à semelhança do regime processual civil.

Da matéria factual demonstrada em juízo resulta ter sido demandada uma entidade diferente do autor do acto impugnado, sem que um e outro pertençam à mesma pessoa colectiva pública. O acto impugnado foi praticado pela Comissão de Investimentos do Fundo de Modernização do Comércio, posteriormente homologado pelo Secretário de Estado Adjunto e do Comércio, no uso de poderes delegados do Ministro da Economia, pelo que, o que é indiscutível (e não vem sequer questionado no recurso), não se pode manter na presente instância como entidade demandada o IAPMEI, pois não é este instituto público titular de um qualquer interesse directo em contradizer, em função da utilidade derivada do prejuízo que da procedência da acção possa derivar.

O que aqui está em causa é a possibilidade de sanação, no direito processual administrativo, da excepção de ilegitimidade passiva singular.

Ora, tal questão foi já tratada recentemente por este TCAS no acórdão de 18.05.2017, proc. nº 298/16.2BELLE, no qual se adoptou em larga medida o discurso fundamentador do acórdão de 23.01.2015 proferido pelo TCA Norte, em caso em tudo semelhante ao presente, no proc. n.º 442/13.1BEPNF. Uma vez que tal jurisprudência dá integralmente resposta à questão objecto deste recurso, limitar-nos-emos a transcrever, na sua parte relevante, o acórdão referido:

“(…)

A legitimidade é um pressuposto processual através do qual se expressa a relação entre a parte e o concreto objeto de uma ação (não é um atributo do sujeito, em si mesmo, mas antes uma qualidade desse sujeito em relação a uma determinada ação com um certo objecto). Nos termos dos artigos 577.º/e) e 578.º do CPC/2013, a ilegitimidade, enquanto exceção dilatória, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância. Neste quadro legal, tem sido entendimento generalizado que, ao contrário do que sucede com a legitimidade plural (litisconsórcio necessário ativo ou passivo), em que a exceção é sempre suprível, nos casos de ilegitimidade singular ativa ou passiva, a exceção é insuprível, por força do disposto nos artigos 288.º/1-d) e 493.º/2 do CPC, correspondentes aos atuais artigos 278.º/1-d) e 576.º/2 do CPC/2013 (v. neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do TRLx, de 14.12.2004, P. 6921/2004-4; e do TRE, de 22.09.2010, P. 555/2002.E1).

Foi precisamente com base neste regime do processo civil, aplicado subsidiariamente por força do artigo 1.º do CPTA, que o tribunal a quo julgou verificada a ilegitimidade do R. e determinou, em consequência, a sua absolvição da instância.

Acontece que as regras do processo civil em matéria de ilegitimidade (passiva) não podem ser transpostas, sem mais, para o processo administrativo.

Por um lado, porque o disposto na lei de processo civil apenas é aplicável supletivamente ao processo nos tribunais administrativos (artigo 1.º do CPTA) e a ação administrativa especial (como é o caso da presente) segue a tramitação regulada no Capítulo III do Título III CPTA, pelo que importa primeiro apurar se no CPTA existem regras próprias que regulem diretamente a questão em apreço, o que, diga-se desde já, assim acontece.

Por outro lado, porque a relação entre a parte e o objeto do processo (em que se traduz a legitimidade) assume, no caso das entidades públicas demandadas (legitimidade passiva), contornos diversos dos que estão subjacentes ao regime da ilegitimidade no processo civil: enquanto que no mundo das pessoas jurídicas privadas (singulares ou coletivas) a regra é a total separação das esferas jurídicas, correspondentes a distintos (e inconfundíveis) centros de imputação de direitos e deveres, já no universo das pessoas coletivas públicas predomina a complexidade da organização administrativa: não é raro que no âmbito do mesmo departamento do Estado (Ministério) proliferem entidades com competências próximas e interligadas, algumas dotadas de personalidade jurídica outras constituindo meros órgãos ou entes não personificados; e é frequente que numa mesma relação material controvertida intervenham várias entidades públicas, com ou sem personalidade jurídica, mas todas com personalidade judiciária (que, para além de coincidir com a personalidade jurídica pública é também extensiva a entes sem personalidade, como os ministérios ou os órgãos administrativos). Por isso mesmo, a par de um conjunto de regras relativas à identificação da entidade pública que deve ser demandada nas ações que têm por objeto “ação ou omissão de uma entidade pública” (constantes do artigo 10.º), o CPTA consagrou um regime que em certa medida é de tolerância ao erro na identificação entidade pública demandada, tornando irrelevantes (desprovidos de consequências) os erros que se traduzem em demandar o órgão administrativo em vez de demandar o ministério ou a pessoa coletiva a que pertence o órgão ou em intentar a ação contra órgão diverso, mas pertencente à mesma pessoa coletiva pública (cfr. artigos 10.º/4, 11.º/5, 78.º/2-e)/3, 81.º/2/3 do CPTA).

3.3. Sem prejuízo deste regime particular, permanecem casos de ilegitimidade passiva, em sentido próprio, nomeadamente aqueles em que é demandada uma pessoa coletiva pública diversa daquela em cujo âmbito foi praticado o ato ou omissão ou em que se indique um órgão pertencente a uma pessoa coletiva que não é a titular da relação material controvertida.

De acordo com o artigo 89.º/1-d) CPTA, a ilegitimidade passiva constitui um fundamento que “obsta ao prosseguimento do processo” e que dá lugar à aplicação do regime dos artigos 88.º e 89.º do CPTA. [no NCPTA, o art. 89.º, n.º 4, al. e)]

Nos termos do disposto no artigo 88.º/2, quando a correção oficiosa não seja possível, incumbe ao juiz proferir “despacho de aperfeiçoamento destinado a providenciar o suprimento de exceções dilatórias e a convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado”. Ainda de acordo com o artigo 89.º/2, a absolvição da instância sem prévia emissão de despacho de aperfeiçoamento não impede o autor de, no prazo de 15 dias, apresentar nova petição, com observância das prescrições em falta, a qual se considera apresentada na data em que o tinha sido a primeiro, para efeitos da tempestividade da sua apresentação. Só no caso de incumprimento do despacho de aperfeiçoamento, e consequente absolvição da instância com esse fundamento, é que o autor fica sem possibilidade de substituição da petição (artigo 88.º/4 aplicável por força do artigo 89.º/4 do CPTA). [no NCPTA, o art. 87.º, n.º 1, al.s a) e b), e n.ºs 2, 7 e 9]

Ora, à luz deste regime e, nomeadamente, das normas conjugadas dos artigos 88.º/1/2 e 89.º/4 do CPTA [v. supra] não pode afirmar-se, sem mais, que no contencioso administrativo a ilegitimidade (singular) do demandado é insanável e que tem sempre como consequência necessária a sua absolvição da instância. Pelo menos no caso a seguir referido, o juiz deve previamente exercer o seu poder/dever de convidar ao aperfeiçoamento da petição.

É certo que, quando ocorra absolvição da instância sem prévia emissão de despacho de aperfeiçoamento, o autor tem a faculdade de, no prazo de 15 dias, apresentar nova petição, a qual se considera apresentada na data em que tinha sido a primeira (artigo 89.º/2). Contudo, por força dos princípios da promoção do acesso à justiça (in dubio pro actione), do aproveitamento dos atos e da economia processual, justifica-se convidar ao aperfeiçoamento da petição quando, nomeadamente, o único erro verificado respeite à identificação da entidade pública demandada. Embora a sanação desse obstáculo obrigue à repetição do ato de citação, não deixa de constituir a mesma pretensão, com o mesmo pedido e causa de pedir, permitindo o aproveitamento da petição inicial com a correção do demandado e permitindo aproveitar os atos de distribuição e de autuação do processo.

Em suma, no caso, porque a única irregularidade que a petição inicial apresenta consiste numa errada identificação do réu que, de acordo com os factos nela alegados, devia ser a pessoa coletiva Fundo de Garantia Salarial e não o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, que tutela e superintende àquele Fundo, é de proferir despacho a convidar o autor a aperfeiçoar a petição quanto à identificação da entidade pública demandada.

O entendimento acima exposto não é novo, nem está isolado.

Igualmente versando situações de errada identificação da entidade pública demandada, alguma jurisprudência tem entendido, ainda que sem uniformidade, que tal obstáculo é suprível e que o tribunal deve proferir despacho que convide ao aperfeiçoamento da petição – v., entre outros, os Acórdãos do TCAN, de 25.05.2012, P. 01505/09.3BEBRG; e de 28.02.2014, P. 01788/09.9BEBRG; e os Acórdãos do TCAS, de 08.05.2008, P. 01509/06; e de 22.04.2010, P. 05901/10.

Também a doutrina se tem pronunciado no sentido de a ilegitimidade do demandado (artigo 89.º/1-d) do CPTA) dar lugar à aplicação do regime dos artigos 88.º e 89.º do CPTA (Mário Esteves de Oliveira/ Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, I, 2004, 170); e constituir situação passível de suprimento ou correção através de convite ao aperfeiçoamento (Mário Aroso de Almeida/ Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., 2007, 529).

Neste quadro legal, assim interpretado, impunha-se ao tribunal a quo que, previamente à decisão de absolvição da instância, tivesse convidado o autor a suprir esse obstáculo, apresentando nova petição inicial dirigida ao Fundo de Garantia Salarial.

3.4. Mas independentemente da posição que adotemos acerca da (im)possibilidade de suprir a ilegitimidade (ou a falta de personalidade judiciária) da entidade pública demandada, a verdade é que o caso em apreço apresenta contornos que impunham, também por outras razões, que previamente à decisão de absolvição da instância, o autor tivesse sido convidado a aperfeiçoar a petição inicial.

Se atentarmos no teor da petição inicial que foi apresentada e no contexto que está subjacente ao erro cometido na identificação da entidade pública demanda, concluiremos que este caso é bem ilustrativo, não apenas da dificuldade nessa correta identificação, como da desadequação de a sancionar com a absolvição da instância, sem prévio convite ao aperfeiçoamento.

Retira-se do teor da petição inicial que a ação visa a condenação do réu a deferir, na íntegra, o requerimento que o A. entregou, num Serviço Local da Segurança Social, mediante o preenchimento de um formulário (modelo GS001), com o cabeçalho da “Segurança Social – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP” e intitulado “Requerimento – Pagamento de Créditos Emergentes do Contrato de Trabalho – Fundo de Garantia Salarial”, no qual foi aposto um carimbo do Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital do Porto, Serviço Local de Baião (doc. fls. 7 dos autos).

O referido requerimento foi objeto de despacho do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Social (que deferiu parcialmente o pedido), despacho esse cujo teor foi notificado ao autor, não diretamente, mas por informação constante do ofício de 06.05.2013, impresso em papel timbrado da Segurança Social/Instituto da Segurança Social, IP, Centro Distrital do Porto, e assinado pelo Diretor da Segurança Social.

No cabeçalho da petição, o A. indica como réu o referido Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social (MSESS) e termina pedindo a condenação do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, “através do Fundo de Garantia Salarial”, a deferir na íntegra o referido requerimento. Também no artigo 16.º da petição, o autor afirma que “pretende que o Fundo de Garantia Salarial pague ao Autor a quantia de 4.932,39€ reconhecida no processo de insolvência”.

Ou seja, lida a petição inicial, verifica-se que há uma certa antinomia entre os termos em que é exposta a relação material controvertida e o réu que é identificado no introito da petição, bem como entre a identificação do referido Réu e os termos em que, a final, é formulado o pedido. Pois, embora identificando como Réu o MSESS, o Autor não deixa de indicar o Fundo de Garantia Salarial como responsável pelo pagamento que decorrerá do deferimento do requerimento em causa e termina pedindo a condenação do Réu, “através do referido Fundo”.

Essa antinomia é de certo modo explicável pela complexidade da organização administrativa, a que já aludimos, e que está bem ilustrada no caso em apreço: quer no modelo de requerimento através do qual o autor fez o pedido, quer no ofício que o notificou da decisão de deferimento parcial, surgem interligadas as várias entidades administrativas acima mencionadas.

Além disso, no caso vertente, a ilegitimidade passiva do Ministério é algo não necessário e até certo ponto acidental. O Fundo de Garantia Salarial insere-se na esfera de influência e no âmbito de atribuições do referido Ministério, contudo, foi configurado como um instituto com personalidade jurídica, ficando sob a tutela e superintendência ministerial (artigos 1.º e 4.º do Regulamento do Fundo de Garantia Salarial, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 139/2001, de 24 de abril). Por isso, nos termos do artigo 10.º/2 do CPTA, a ação tem que ser intentada contra o Fundo de Garantia Salarial, por se tratar de pessoa coletiva pública distinta do Estado. Mas o objeto da ação não é estranho à esfera de atribuições do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social e, na verdade, caso o legislador não tivesse entendido atribuir personalidade jurídica ao referido Fundo, o mesmo constituiria ente público não personificado, sempre sob a égide do referido Ministério e, consequentemente, seria este ministério a parte legítima na ação (cfr. o mesmo artigo 10.º/2 do CPTA). Resta dizer que a atribuição de personalidade judiciária a entes públicos carateriza-se por um certo grau de instabilidade e precariedade, que agravam a referida dificuldade na identificação da entidade pública demandada (veja-se o caso exemplar dos Centros de Saúde, que, como salientado no Acórdão TCAN, 17.1.2008, P. 00425/06.8BEBRG, tiveram personalidade jurídica entre 1999 e 2004, deixaram de a ter em 2004 e 2005 e voltaram depois a ser entes personificados – cfr. os Decretos-Lei n.ºs 157/99, 60/2003 e 88/2005).

O circunstancialismo descrito revela que o ónus de identificação do demandado, a cargo do autor, é significativamente dificultado pela complexidade da organização administrativa, nem sempre permitindo à parte e seu mandatário judicial, mesmo quando tenham usado da diligência normal, proceder a essa correta identificação. Também por esta razão, deve intervir o princípio do favorecimento do processo, sancionando o entendimento acima enunciado, quando à possibilidade de reparação do erro na identificação da entidade demandada (ilegitimidade passiva).

Mas além disso, os termos da própria petição inicial suscitam dúvidas quanto à identificação da entidade pública que o autor, de facto, pretendia demandar: embora o réu indicado no cabeçalho da petição seja o Ministério, ao longo do articulado e na formulação do pedido, o autor acaba por indicar o Fundo de Garantia Salarial (e não o Ministério) como o responsável pela satisfação da pretensão deduzida.

Em igual sentido, podem ver-se os acórdãos do TCAN de 25.05.2012, proc. nº 1505/09.3BEBRG ou o acórdão de 27.01.2017, proc. nº 16063/13.4BEBRG-A, bem como do STA o acórdão de 19.05.2016, proc. nº 1080/15.

E como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., 2017, p. 604: “Nas situações em que o erro envolva ilegitimidade passiva, deverá ser corrigida a petição, nos termos do artigo 87.º, n.º 1, alínea a), mediante despacho de aperfeiçoamento, por forma a assegurar o correto prosseguimento da ação, com a devida citação da entidade a quem efectivamente corresponde a legitimidade passiva, sendo que, nesse caso, a não satisfação do convite do tribunal conduz à absolvição da instância (artigo 87.º, n.º 1).” Concluindo os autores citados que as “[s]ituações passíveis de suprimento ou correção serão as identificadas nas alíneas e) (ilegitimidade do demandado e falta da identificação dos contrainteressados), f) (ilegalidade da coligação de réus) e i) (ilegalidade da cumulação de pretensões) do n.º l do artigo 89.º” (idem, p. 661).

No caso presente, considerando o autor do acto e o disposto no Decreto-Lei nº 178/2004, de 27 de Julho, republicado pelo Decreto-Lei nº 143/2005, de 26 de Agosto, que criou o Fundo de Modernização do Comércio no âmbito do Ministério da Economia, a parte com legitimidade para intervir na acção é o Ministério da Economia.

Pelo exposto, conclui-se que verificada a ilegitimidade do IAPMEI, IP., diversamente do que ocorre na lei processual civil - esta só aplicável subsidiariamente, sendo que existe disposição regulatória expressa no CPTA - o tribunal a quo devia ter convidado a A. a aperfeiçoar a petição inicial, no que respeita à identificação da entidade pública demandada. Não o tendo feito, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 7.º e 87.º, n.ºs 1, al.s a) e b), e 2 e 7 do CPTA e incorreu, portanto, na nulidade processual que lhe vem imputada.



III. Conclusões

Sumariando:

i) No contencioso administrativo a ilegitimidade passiva constitui um fundamento que “obsta ao prosseguimento do processo”, dando lugar à aplicação do regime dos artigos 87.º, 88.º e 89.º do CPTA.

ii) Num caso em que a petição inicial revela uma antinomia entre a entidade pública indicada como réu e a entidade pública identificada como sujeito da relação material controvertida, é de proferir despacho a convidar o autor a aperfeiçoar a petição quanto à identificação da entidade pública que pretende demandar.

iii) De acordo com o disposto no artigo 87.º, n.º 7, do CPTA, apenas deverá determinar-se a absolvição da instância no caso de falta de suprimento de excepções dilatórias ou de correcção, dentro do prazo que for estabelecido, das deficiências ou irregularidades da petição inicial, o que impõe ao juiz, sob pena de incorrer em nulidade processual, a prolação de prévio despacho com essa finalidade.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e em anular a decisão recorrida, determinando a sua substituição por despacho que declare nula a citação já efectuada e convide a A. ao aperfeiçoamento da petição, quanto à identificação da entidade pública demandada, seguindo-se os demais termos do processo, se a tanto nada mais obstar.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2017



____________________________
Pedro Marchão Marques (por vencimento)


____________________________
Helena Canelas


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Ana Celeste Carvalho



Voto vencida, porque salvo o devido respeito pela posição que mereceu vencimento, negaria provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, que decidiu pelo insuprimento da exceção dilatória de ilegitimidade passiva singular, nos termos e com os fundamentos seguintes.

A questão material controvertida consiste em determinar, em face do quadro legal aplicável, se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento quanto à impossibilidade de correção oficiosa e por não proferimento de despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial no que respeita ao pressuposto processual da ilegitimidade passiva singular, no âmbito de uma ação administrativa de impugnação de ato administrativo, em que é pedida a anulação do ato impugnado.

1. O Juiz a quo alicerçou o julgamento de que a exceção de ilegitimidade passiva singular não é passível de correção, seja por iniciativa do autor, seja através de convite ao aperfeiçoamento, determinando sempre a absolvição da entidade demandada da instância, com o fundamento de que essa convolação implicaria uma modificação subjetiva da instância, operada pela substituição da parte demandada por uma outra que ocuparia o seu lugar, o que não é processualmente admissível.

Mais resulta do discurso fundamentador da decisão recorrida que o incidente de intervenção principal provocada de um terceiro apenas permite o suprimento da ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário passivo, nos termos do disposto no artigo 316.º do CPC, sem que o CPTA regule a matéria ora controvertida.

Consta ainda da decisão recorrida que do disposto nos vários números do artigo 10.º do CPTA não existe disposição que conduza ao resultado pretendido pelo ora Recorrente, prevendo-se no seu n.º 10 a aplicação subsidiária do disposto na lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, não estando tal preceito pensado para o suprimento da exceção de ilegitimidade singular passiva, à semelhança do regime processual civil.

2. Resulta da matéria factual demonstrada em juízo que foi demandada uma entidade diferente do autor do ato impugnado, sem que um e outro pertençam à mesma pessoa coletiva pública.

Apurando-se que o ato impugnado foi praticado pela Comissão de Investimentos do Fundo de Modernização do Comércio, posteriormente homologado pelo Secretário de Estado Adjunto e do Comércio, no uso de poderes delegados do Ministro da Economia, não se pode manter na presente instância como entidade demandada, o IAPMEI, pois não é este instituto público titular de um interesse direto em contradizer, em função da utilidade derivada do prejuízo que da procedência da ação possa derivar.

3. Delimitando o direito aplicável, na presente instância foi deduzido o pedido de anulação de ato administrativo, pelo que estamos perante uma ação administrativa impugnatória, cujo regime particular aplicável se encontra previsto nos artigos 50.º a 65.º, para além do regime geral da ação administrativa, previsto nos artigos 37.º a 48.º e da aplicação das disposições fundamentais do Código, consagradas nos artigos 1.º a 35.º, todos do CPTA.

Com relevo no que respeita ao regime da marcha do processo, tem ainda aplicação o disposto nos artigos 78.º a 96.º do CPTA, prevendo-se a fase do despacho pré-saneador e do despacho saneador, nos artigos 87.º e 88.º do citado Código.

Procedendo ao enquadramento fáctico-jurídico não existe divergência que no caso foi demandada pessoa jurídica diferente da que praticou o ato impugnado, concordando a Recorrente que se verifica a exceção de ilegitimidade passiva singular.

4. Para o conceito de legitimidade passiva releva o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do CPTA, nos termos dos quais a ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor, o que no caso de processos intentados contra entidades públicas é a pessoa coletiva de direito público, salvo nos processos contra o Estado ou as Regiões Autónomas que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos respetivos ministérios ou secretarias regionais, em que parte demandada é o ministério ou secretaria regional a cujos órgãos sejam imputáveis os atos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.

Considerando o conceito de legitimidade previsto no artigo 30.º do CPC, invocado pela Recorrente no presente recurso, ele não conduz a resultado diferente, pois é manifesto que a entidade demandada em juízo, o IAPMEI, não tem interesse direto em contradizer (n.º 1), por inexistência de prejuízo que dessa procedência advenha (n.º 2), além de que não é o sujeito da relação material controvertida.

Para que o juiz possa conhecer do mérito da causa é preciso que as partes tenham legitimidade para a ação, que autor e entidade demandada sejam legítimas, ou seja, que estejam no processo as partes que devam estar, sejam as “partes exatas” – cfr. Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 129.

Tem legitimidade passiva quem tiver o poder de se defender da pretensão deduzida em juízo, a pessoa que juridicamente se pode opor à procedência da pretensão, por ser a pessoa cuja esfera é diretamente atingida pela providência requerida, sob pena de assim não for, a decisão que o tribunal venha a proferir sobre o mérito da causa não poder produzir o seu efeito útil, por não vincular os verdadeiros sujeitos da relação material controvertida, que estiveram ausentes na ação.

Interessa por isso que seja demandado na lide o titular da relação jurídica em face do direito substantivo aplicável, o titular da relação que serve de fundamento à pretensão deduzida em juízo, a posição ocupada pela parte para que o juiz possa pronunciar-se sobre o mérito da causa.

Por isso, a legitimidade consiste numa posição da parte perante determinada ação, sendo uma “questão de posição das partes em relação à lide” – Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, I, pp. 74.

Por estar em causa uma referência concreta da legitimidade à ação, a legitimidade já foi designada como legitimatio ad causam, como forma de legitimação para determinada ação, por oposição à legitimatio ad processum, que é a capacidade judiciária – vide Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, obra cit., pp. 132.

Assim, “Não basta assim saber quem são as partes (em sentido formal) no processo. Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, importa ainda saber quais devem ser as partes em sentido substancial, porque só a intervenção destas em juízo garante a legitimidade para a acção.” – Idem, pp. 132.

“A legitimidade, tal como os restantes pressupostos processuais, constitui um requisito essencial para que o juiz profira decisão, não apenas sobre a causa, mas sobre o mérito da acção. E para tal não basta (…) ser parte em sentido formal; é essencial ser parte em sentido substancial. Não basta, noutros termos, saber quem propôs a acção e contra quem a providência foi requerida; torna-se necessário saber quem devia propor e contra em quem devia ser proposta, para que o juiz possa utilmente conhecer do fundo da causa. E essa resposta só pode ser obtida em face da relação material controvertida.” – Ibidem, pp. 151.

O CPTA considerou no disposto do n.º 1 do artigo 10.º do CPTA, como critérios definidores da legitimidade passiva:

(i) os sujeitos da relação material controvertida (1.ª parte),

e, quando for caso disso,

(ii) os titulares de interesses contrapostos aos do autor, ou seja, quem tiver interesse direto em demandar (2.ª parte).

No presente caso foi demandada em juízo uma pessoa coletiva pública diferente da que praticou o ato impugnado, o que resulta que não é ela a outra parte na relação material controvertida.

Por outro lado, não sendo demandado um órgão integrado na pessoa coletiva que devesse estar em juízo como entidade demandada, visto que o IAPMEI é uma pessoa coletiva de direito público distinta do Estado português, não tem aplicação o disposto no n.º 4 do artigo 10.º do CPTA, que permite a sanação da irregularidade da petição inicial.

Nestes termos, em face dos factos apurados, ao invés de a ação ter sido instaurada contra o IAPMEI, devia ter sido instaurada contra o Ministério da Economia, sendo a entidade demandada parte ilegítima para estar em juízo, pelo que verifica-se a exceção de ilegitimidade passiva singular.

A ilegitimidade passiva constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causada, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal, segundo o disposto no n.º 2 e na alínea e), do n.º 4, do artigo 89.º do CPTA.

Nestes termos, tal como o ora Recorrente admite nos termos da conclusão 10.ª do recurso, verifica-se a exceção de ilegitimidade passiva da entidade administrativa indicada na petição inicial.

5. No que respeita à questão controvertida, respeitante à possibilidade de suprimento da exceção dilatória de ilegitimidade passiva singular no direito processual administrativo, a Recorrente invoca a violação pela decisão recorrida do disposto nos artigos 6.º, 30.º e 411.º do CPC e dos artigos 8.º, 10.º, 57.º, 78.º, 88.º e 89.º do CPTA, defendendo que da sua interpretação conjugada é possível concluir pela possibilidade de suprimento da referida exceção.

Não obstante o disposto no artigo 1.º do CPTA prever a aplicação supletiva da lei processual civil, importa considerar prima facie o que estabelece a lei processual administrativa, considerando ser a lei especial aplicável ao caso da presente ação administrativa instaurada pela Autora.

No direito processual administrativo sob a vigência do regime processual do CPTA na sua redação inicial, a maioria da jurisprudência vinha decidindo no sentido na impossibilidade de sanação do pressuposto processual da ilegitimidade passiva singular, nos termos em que o decidiu a decisão recorrida, acompanhando a jurisprudência dos Tribunais Judiciais.

O disposto no artigo 88.º do CPTA, aplicável à então ação administrativa especial, previa a intervenção do juiz destinada ao suprimento de exceções dilatórias, segundo a redação do seu n.º 2.

Preceituavam os n.ºs 1 e 2 do artigo 88.º do CPTA, na sua versão originária, com a epígrafe “Suprimento de excepções dilatórias e aperfeiçoamento dos articulados”, o seguinte:

1 – Quando, no cumprimento do dever de suscitar e resolver todas as questões que possam obstar ao conhecimento do objeto do processo, verifique que as peças processuais enfermam de deficiências ou irregularidades de carácter formal, o juiz deve procurar corrigi-las oficiosamente.

2 – Quando a correcção oficiosa não seja possível, o juiz profere despacho de aperfeiçoamento, destinado a providenciar o suprimento de excepções dilatórias e a convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado, fixando o prazo de 10 dias para o suprimento ou correcção do vício, designadamente por faltarem requisitos legais ou não ter sido apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

No mesmo sentido, a reforma do CPTA de 2015 estabelece no artigo 87.º, em correspondência com o regime processual civil, no n.º 2 e segs. do artigo 590.º do CPC, o despacho pré-saneador, nos termos do qual o juiz (i) conhece de todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo, (ii) providencia pela correção das irregularidades formais ou substanciais dos articulados e (iii) pelo suprimento de exceções dilatórias, em respeito do disposto no artigo 88.º do CPTA e do dever de gestão processual, previsto no n.º 2 do artigo 6.º do CPC e no n.º 2 do artigo 7.º-A do CPTA.

Enquadrando normativamente o alvo de discórdia, está em causa a interpretação a expender em relação ao disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2, do artigo 87.º, em conjugação com os n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º-A, do CPTA.

Não obstante se tratarem de normas jurídicas não invocadas pela Recorrente como fundamento do presente recurso jurisdicional, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC, ora aplicável, por força do artigo 1.º do CPTA.

O artigo 87.º, sob a epígrafe “Despacho pré-saneador”, adota a seguinte redação:

1 – Findos os articulados, o processo é concluso ao juiz, que, sendo caso disso, profere despacho pré-saneador destinado a:

a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias;

b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;

c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.

2 – O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.” (sublinhados nossos).

O artigo 7.º-A, epigrafado “Dever de gestão processual”, prevê o seguinte:

1 – Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismo de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2 – O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância, ou quando a danação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando-as a praticá-lo.” (sublinhados nossos).

Quanto ao que releva para a questão controvertida, dos citados preceitos resulta um poder-dever de suprimento oficioso de exceções dilatórias, seja por regularização por iniciativa do tribunal, seja por sanação por impulso processual da parte mediante convite do tribunal.

6. O estabelecido nos n.ºs 1, alínea a) e n.º 2, do artigo 87.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º-A, do CPTA, não diferem significativamente do disposto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 590.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º, do CPC.

Os n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º do CPC, a respeito do dever de gestão processual a cargo do juiz, prevê que cumpre ao juiz promover “oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação” (n.º 1) e que “o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais que sejam suscetíveis de sanação” (n.º 2).

O artigo 590.º do CPC, concretizando o dever de gestão inicial do processo, consagra o poder-dever de o juiz “providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º” [n.º 2, al. a)].

7. No âmbito do direito processual civil, sob um quadro normativo idêntico ao previsto no CPTA quanto ao conceito de legitimidade passiva e quanto ao dever genérico de o juiz providenciar pela sanação de pressupostos processuais e pela regularidade da instância, nos termos previstos nos artigos 6.º, n.ºs 1 e 2 e 590.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do CPC, por confronto aos artigos 7.º-A e 87.º do CPTA, não se admite a possibilidade de correção oficiosa ou a possibilidade de suprimento do pressuposto processual de ilegitimidade passiva singular, conduzindo a sua procedência à absolvição da entidade demandada da instância, como decidido na decisão recorrida.

Este é o entendimento que tem sido generalizadamente e ao longo dos anos, sob várias redações da lei processual civil, adotado pela jurisprudência emanada dos tribunais judiciais, limitando-se a possibilidade de suprimento à exceção de ilegitimidade passiva plural.

Neste sentido, entre outros, cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/12/2011, Processo n.º 1223/10, segundo o qual: “1 – O mecanismo de sanação previsto no n.º 2 in fine do artigo 265.º do CPC, aplicado à ausência do pressuposto processual da legitimidade, só é viável nas situações de preterição de litisconsórcio necessário, sendo inviável nas situações de ilegitimidade singular.”.

Neste sentido também a doutrina processual civil assume que “São insanáveis a ilegitimidade singular, a falta de personalidade judiciária (fora do caso referido no art. 8º), a incompetência absoluta, o caso julgado e a litispendência.”, cfr. António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 3.ª ed., 2000, Almedina, pp. 64.

No mesmo sentido, “a lei é expressa quanto à sanabilidade da falta de determinados pressupostos e ao modo de a sanar. É o que acontece com a falta de personalidade judiciária em certos casos (art. 14), com a incapacidade judiciária e a irregularidade de representação (art. 27), com a falta de autorização ou deliberação (art. 29), com a falta do consentimento conjugal (art. 34-2), com a ilegalidade da coligação (art. 38), com a falta de constituição de advogado (art. 41), com a falta, insuficiência e irregularidade do mandato (art. 48) e com a falta de litisconsórcio necessário (art. 261). Mas a norma geral do art. 6-2 não se limita a remeter para estas e outras disposições específicas: abrange todos os pressupostos cuja falta possa, por sua natureza, ser sanada, sem que tal necessariamente implique a inutilidade de tudo o que se tiver processado...” – José Lebre de Freitas, obra cit., pp. 158.

No caso da ilegitimidade passiva singular “parece natural que não possa remediar-se a falta do pressuposto processual de legitimidade singular, até porque, de qualquer modo, o processo deveria recuar praticamente ao seu início.” – vide António Abrantes Geraldes, obra cit., nota 104, pp. 64.

Isto é, a possibilidade de sanação das exceções dilatórias está limitada ou condicionada a que não “implique a inutilidade de tudo o que se tiver processado, pois a ideia que a ela preside é que devem ser removidos todos os impedimentos da decisão de mérito que possam sê-lo.” – José Lebre de Freitas, obra cit., pp. 158.

Este entendimento alicerça-se na circunstância de que, verificando-se a exceção de ilegitimidade passiva singular, nada se pode aproveitar da instância constituída, pois além de a citação dever ser repetida, com o consequente prazo para contestar e a apresentação de uma nova contestação por um novo sujeito processual, também a petição inicial carece de ser aperfeiçoada ou corrigida, não apenas quanto à indicação da entidade demandada, mas quanto à alegação dos factos relevantes essenciais, que consubstanciam a relação jurídica substantiva com outra parte que não foi a inicialmente demandada em juízo.

Daí que, segundo o regime processual civil nunca se tenha admitido a sanação da ilegitimidade singular, porque nada há a aproveitar da instância anteriormente constituída.

Sob o atual e vigente CPC de 2013, a doutrina mantém o anterior entendimento, não concedendo a possibilidade de sanação do pressuposto processual de legitimidade passiva singular, segundo a locução de que “a ilegitimidade singular da parte, a ineptidão da petição inicial, sem prejuízo do art. 186-3, a falta de personalidade judiciária, fora dos casos do art. 14, ou a incompetência absoluta do tribunal devem ser consideradas insanáveis” – cfr. José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª ed., Coimbra Editora, pp. 158 (nota 7).

No entanto há a assinalar que tem existido uma evolução no regime da possibilidade de suprimento dos pressupostos processuais na lei processual civil.

Já nas disposições do CPC na redação emergente da reforma de 1961 se previa a “intervenção corretora do juiz no sentido de procurar, “ex officio”, a superação da falta de tais pressupostos processuais.”, cfr. António Abrantes Geraldes, obra cit., pp. 63.

A inovação prevista na reforma do CPC aprovada em 1995/96 consistiu em “se ter expressamente localizado após os articulados essa intervenção judicial e de se ter alargado o leque de circunstâncias capazes de a fundamentar à generalidade das exceções dilatórias típicas e atípicas que sejam supríveis”, Idem, pp. 63.

Esta evolução continuou no CPC de 2013, pois sendo o poder de o juiz convidar ao aperfeiçoamento ao tempo do CPC revogado um poder discricionário, não podendo o seu não uso fundar a arguição de nulidade (artigo 195.º do CPC), assim como o despacho proferido não era recorrível (artigo 630.º, n.º 1 do CPC), na atualidade o CPC em vigor atribuiu ao juiz um poder vinculado, que o juiz tem o poder-dever de exercer – neste sentido José Lebre de Freitas, obra cit., pp. 156-157.

A finalidade subjacente ao regime legal prende-se com a realização do sistema de justiça e com a função processual em permitir o mais latamente possível a emissão de uma decisão de mérito.

Estabelece-se o “dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressupostos processuais que seja sanável: o juiz deve determinar a realização dos atos necessários à regularização da instância e, quando não o possa fazer oficiosamente, por se estar no campo da exclusiva disponibilidade das partes, convidar estas a praticá-los (art. 6-2).” – José Lebre de Freitas, obra cit., pp. 158.

8. Quer na lei processual administrativa, quer na lei processual civil, prevê-se a possibilidade de suprimento de certos pressupostos processuais, mas, simultaneamente, admite-se que haja pressupostos processuais que não são sanáveis.

No tocante à lei processual administrativa encontram-se referências expressas à sanação da falta de personalidade e capacidade judiciárias no caso de a ação ter sido proposta contra o ministério, quando o devia ser contra o Estado português (artigo 8.º-A, n.º 4), no caso da ilegitimidade passiva, a ação ter sido instaurada contra o órgão pertencente à pessoa coletiva de direito público, ao ministério ou à secretaria regional a que o órgão pertence (artigo 10.º, n.º 4), a ilegalidade da coligação (artigo 12.º, n.ºs 3 e 4) e a incompetência do tribunal (artigo 14.º, n.º 3)

No CPTA não se encontra expressamente prevista a possibilidade de sanação da exceção de ilegitimidade passiva, por indicação como entidade demandada de pessoa coletiva pública diferente daquela que praticou o ato impugnado, configurada como ilegitimidade passiva singular, pois os vários números do artigo 10.º não contemplam esta situação.

A doutrina processual administrativa afirma que “Tratando-se de exceções dilatórias, o uso da faculdade da substituição da petição inicial está dependente do concreto fundamento invocado, que deverá consistir num vício que não inviabilize a substituição da petição.”, por referência ao disposto no n.º 8 do artigo 87.º do CPTA – cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4.ª ed., Almedina, pp. 660.

Não se pode subscrever este entendimento, que admite a possibilidade da substituição da petição inicial no caso de estar em causa um vício que não inviabilize a substituição da petição

A interpretação que fazemos do disposto do n.º 8 do artigo 87.º do CPTA é que se admite a apresentação de nova petição, quando tenha sido decretada a absolvição da instância, sem prévia emissão de despacho pré-saneador, nos casos em que possa haver lugar ao suprimento de exceções dilatórias ou de irregularidades.

A possibilidade de o autor apresentar uma nova petição inicial, com observância das prescrições em falta e beneficiar da data da apresentação da primeira petição, está condicionada à admissibilidade do suprimento da exceção dilatória ou da irregularidade em causa, sem que tenha sido proferido despacho pré-saneador para essa finalidade, sem que se possa extrair do citado n.º 8 do artigo 87.º do CPTA a admissibilidade de suprimento da exceção dilatória sempre que seja possível a substituição da petição inicial.

Neste sentido, não se pode retirar dos termos do disposto no n.º 8 do artigo 87.º do CPTA que é porque a petição inicial pode ser substituída que a exceção dilatória é passível de ser suprida, mas antes que nos casos em que podia haver lugar ao suprimento de exceções dilatórias – nos casos em que o sejam – se não tiver sido proferido despacho pré-saneador, pode a petição ser substituída por outra.

Poderá entender-se de iure condendo que possa vir a legislar-se nesse sentido, mas não existem elementos ao nível da interpretação da lei que nos permitam chegar a esse resultado interpretativo.

Não se questiona que existem casos em que por a exceção dilatória poder ser suprida, se admite a substituição da petição inicial – como na ilegalidade de cumulação de pedidos ou na falta de indicação dos contrainteressados –, mas é de recusar, à face do direito constituído, que o critério para aferir o suprimento das exceções dilatórias assente na possibilidade de a petição inicial ser substituída, por o direito positivo não o dizer.

Donde, não se extrair qualquer conteúdo normativo relevante do disposto no n.º 8 do artigo 87.º do CPTA para a resolução da questão controvertida, referente à possibilidade de suprimento da exceção de ilegitimidade passiva singular.

Pronuncia-se ainda a citada doutrina quanto às “situações passíveis de suprimento ou correção”, como sendo as previstas “nas alíneas e) (ilegitimidade do demandado e falta da identificação dos contrainteressados), f) (ilegalidade da coligação de réus) e j) (ilegalidade da cumulação de pretensões) do n.º 1 do artigo 89.º.” e também quanto às exceções dilatórias insupríveis, como sendo as “de inimpugnabilidade do ato impugnado (quando se não verifique um mero erro na sua identificação), de caducidade do direito de ação e de litispendência ou de caso julgado (cfr. artigo 89.º, n.º 1, alíneas i), k) e l), por se tratar, em qualquer dos casos, de situações que não consentem a renovação da instância.”, e ainda a nulidade do processo, a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, designadamente, por ineptidão da petição inicial – cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, obra cit., pp. 661-662.

Porém, no caso da ineptidão da petição inicial, configurado como de exceção dilatória insuprível, admite-se a possibilidade de apresentação de nova petição inicial, sem que se consinta a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento ou de correção pelo juiz.

Nestes termos, a qualificação ou não da exceção dilatória como suprível ou insuprível não depende da possibilidade de existir ou não a substituição da petição inicial ou a renovação da instância, pois há-de antes depender da gravidade das repercussões que essa irregularidade ou deficiência assuma na instância, no sentido de viabilizar ou não a continuidade da instância constituída em pelo menos alguns dos seus termos.

Nestes termos, não se vislumbra existir normativo legal no CPTA, que seja diferente do regime que se encontra consagrado no CPC, em que se possa fundamentar o entendimento doutrinário que se pronuncia favoravelmente à possibilidade de sanação do pressuposto processual de ilegitimidade passiva singular.

9. Acompanhando a doutrina processual administrativa, alguma jurisprudência mais recente já julgou a questão da ilegitimidade passiva singular como passível de suprimento.

Neste sentido, o Acórdão do STA, de 19/05/2016, processo n.º 01080/15, segundo o qual:

I - O artigo 10º nº 2 do CPTA ao atribuir personalidade judiciária implícita aos ministérios, pelo facto de determinar que são as entidades a demandar, não está a retirar qualquer personalidade judiciária ao Estado mas apenas a retirar-lhe a legitimidade para ser demandado. II - O Estado, enquanto tal, tem personalidade jurídica, e por inerência personalidade judiciária, apenas carecendo de legitimidade enquanto réu no âmbito de litígios relativos a atos ou omissões praticados pelos respectivos órgãos dos seus ministérios, isto é, face à posição que ocupa na concreta relação processual. III - Como resulta dos arts 88º n.º 2, e 89º n.º 1, alínea d) do CPTA, é admissível o suprimento da ilegitimidade passiva singular, nomeadamente da ilegitimidade do demandado.”.

Porém, embora se afirme expressamente a possibilidade de suprimento da ilegitimidade passiva singular, nomeadamente da ilegitimidade do demandado, parece-nos que não é inteiramente transponível o caso em que tal julgamento ocorreu para o dos presentes autos, sem prejuízo da afirmação perentória que é feita no citado aresto do STA da possibilidade de suprimento da exceção de ilegitimidade passiva singular.

Noutro caso, também não inteiramente coincidente com o anterior, mas em que o STA afirmou a insanabilidade do pressuposto processual da falta de personalidade judiciária dos Ministérios, cfr. Acórdão do STA, de 04/02/2016, processo n.º 01300/14, nos termos do qual:

I - Os Ministérios não possuem personalidade judiciária para os termos de uma acção administrativa comum para efectivação de responsabilidade civil extracontratual. II - A falta desse pressuposto processual, sendo insanável, implica a absolvição do R. da instância.”.

No sentido do suprimento da exceção de ilegitimidade passiva singular também já o decidiram os Tribunais Centrais Administrativos.

Veja-se o Acórdão do TCAN, em 25/05/2012, no processo n.º 01505/09.3BEBRG:

III. Por força do disposto no art. 88.º do CPTA mostra-se imposto ao julgador, em sede do dever de conhecer obrigatoriamente de «todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo» e em decorrência do princípio da cooperação processual (arts. 08.º CPTA e 265.º CPC), a existência dum dever de providenciar pela prévia correção dos articulados e do suprimento das exceções dilatórias. IV. Admite-se no referido preceito não apenas a correção oficiosa de deficiências ou irregularidades de caráter formal de que as peças processuais eventualmente padeçam mas também o suprimento de exceções dilatórias e de irregularidades dos articulados ainda que com anulação de atos processuais caso não possam ser aproveitados, no que configura regime de regularização mais amplo que aquele que se mostrava previsto na LPTA (cfr. art. 40.º). V. Para além das enunciadas exemplificativamente no art. 89.º, n.º 3 CPTA contam-se, nomeadamente, entre as situações passíveis de suprimento ou correção a ilegitimidade passiva do demandado, a coligação ilegal, a falta identificação dos contrainteressados em preterição de litisconsórcio necessário passivo e a cumulação ilegal pretensões.”.

No mesmo sentido, o TCAN decidiu em 27/01/2017, no processo n.º 01063/13.4BEBRG-A.

No caso deste TCAS, veja-se no mesmo sentido, o Acórdão de 07/04/2016, processo n.º 12887/16, no âmbito de uma ação de contencioso pré-contratual.

10. Embora não se retire expressamente da fundamentação aduzida pela doutrina para justificar o entendimento de admissibilidade do suprimento da exceção de ilegitimidade passiva singular a invocação do princípio de acesso à justiça, a citada jurisprudência do STA e dos Tribunais Centrais Administrativos invocam na sua fundamentação, quer a aplicação ao caso do princípio de promoção do acesso à justiça ou pro actione, previsto no artigo 7.º do CPTA, que visa fazer prevalecer o conhecimento do mérito sobre os obstáculos formais, quer o princípio da cooperação.

Nesse sentido, extrai-se do referido Acórdão do STA, de 19/05/2016, processo n.º 01080/15), o seguinte discurso fundamentador:

(…) no caso dos autos, entendemos não haver impedimento ao convite à correção e aperfeiçoamento da petição nos termos do art. 88º do CPTA e de acordo com o princípio in dubio pro actione expresso no artigo 7.° do CPTA donde se retira que em caso de dúvida a interpretação jurídica deve favorecer a emissão de pronúncia de mérito, em nome da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.°, n.ºs 4 e 5, da CRP). Ou seja, por força do art. 88.º do CPTA, impunha-se ao julgador, em sede do dever de conhecer obrigatoriamente de «todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo», e do princípio da cooperação processual [arts. 08.º CPTA e 265.º CPC/07 - atuais arts. 06.º e 411.º do CPC/2013], a existência dum dever de providenciar pela prévia correção dos articulados e do suprimento das exceções dilatórias.”.

No Acórdão do TCAN, de 25/05/2012, processo n.º 01505/09.3BEBRG, supra mencionado, extrai-se:

É que por força do que no quadro do art. 88.º do CPTA se determina e impõe ao julgador, em sede do dever de conhecer obrigatoriamente de «todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo», do mesmo ressalta, em decorrência do princípio da cooperação processual (arts. 08.º CPTA e 265.º CPC), a existência dum dever de providenciar pela prévia correção dos articulados e do suprimento das exceções dilatórias.”.

O princípio da promoção do acesso à justiça administrativa, previsto no artigo 7.º do CPTA, constitui um corolário do princípio da tutela jurisdicional efetiva, “no sentido de que a efetivação da tutela jurisdicional exige a eliminação de obstáculos infundados e desproporcionados ao acesso à justiça” – Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, in Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, Almedina, 2002, pp. 76.

Como assume a citada doutrina, o princípio da promoção do acesso à justiça administrativa tem algumas concretizações no CPTA, ao permitir a apresentação de uma nova petição inicial, considerando-se esta apresentada na data do primeiro registo de entrada para o efeito de não comprometer o respeito do prazo de apresentação em juízo.

11. Porém, tendo o legislador do CPTA introduzido situações de sanação ope legis, à semelhança do que se verifica no CPC, em relação a várias exceções dilatórias, não é possível extrair de qualquer disposição legal, de qualquer dos Códigos, a possibilidade de suprimento da exceção de ilegitimidade passiva singular, como a do caso vertente, em que foi demandado um instituto público, que é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de personalidade jurídica e judiciária, quando devia ter sido demandado um Ministério, no âmbito do qual se integra o órgão autor do ato impugnado.

A exceção de ilegitimidade passiva singular que ora se coloca nos autos embora se traduza na falta de um pressuposto processual, como supra se deixou expendido, traduz-se numa questão de posição das partes em relação à lide, no sentido de assegurar que estão na causa os verdadeiros sujeitos da relação material controvertida, em face do direito substantivo aplicável.

Neste sentido, considerando o antes exposto acerca do conceito de legitimidade passiva interessa que seja demandado a parte que se possa pronunciar sobre o mérito da causa.

Por isso, não se confunde com a questão processual relativa à indicação como entidade demandada do respetivo órgão, quando o deva ser a pessoa coletiva de direito público a que pertence esse órgão, já resolvida na lei no disposto no n.º 4 do artigo 10.º do CPTA, nem está em causa nos autos uma errada identificação do autor do ato impugnado, no âmbito da pessoa coletiva pública que deva ser demandada.

No caso dos autos, há um verdadeiro erro na indicação da entidade demandada, propondo a Autora a ação contra a pessoa errada, o que se traduz numa questão que não assume relevância puramente adjetiva, mas também com relevo substantivo, sobre quem deve ser demandado na lide por ser o outro sujeito da relação jurídica material.

Não se vislumbra existir qualquer diferenciação normativa entre os regimes previstos no CPC e no CPTA no tocante ao dever de gestão processual ou ao poder-dever de o juiz providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias que sejam supríveis, nem tão pouco existir uma qualquer especialidade de regime do CPTA que legitime uma diferenciação quanto ao julgamento da questão do suprimento da exceção de ilegitimidade passiva singular.

A reforma introduzida ao CPTA em 2015 teve o claro e assumido intuito de se aproximar do regime do CPC aprovado em 2013, com o qual “se impõe harmonizar o CPTA” (cfr. ponto 1 do Preâmbulo do D.L. n.º 214-G/2015, de 02/10), afirmando-se que a nova forma da ação administrativa única “é submetida ao regime que, até aqui, correspondia à ação administrativa especial, mas com as profundas alterações que decorrem da sua harmonização com o novo regime do CPC” (cfr. ponto 2 do Preâmbulo do D.L. n.º 214-G/2015, de 02/10), assim como “É no regime da nova «ação administrativa» que mais claramente se refletem as implicações no CPTA da recente reforma do CPC. O novo regime da «ação administrativa» introduz, assim, diversas inovações decorrentes do novo regime do CPC…” (cfr. ponto 3 do Preâmbulo do D.L. n.º 214-G/2015, de 02/10).

Em reforço deste propósito e para além do que se estabelece no artigo 1.º do CPTA, o disposto no n.º 9 do artigo 87.º do CPTA prevê que em tudo o que não esteja expressamente regulado neste artigo, se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto no CPC em matéria de despacho pré-saneador e de gestão inicial do processo.

Por outro lado, quer no CPC, quer no CPTA existe unanimidade de entendimentos quanto a existirem exceções dilatórias supríveis e insupríveis, nem todas podendo dar lugar ao seu suprimento.

Acresce ter sido revogado o disposto no anterior n.º 3 do artigo 88.º do CPTA, que previa que no caso de existir o suprimento de exceções dilatórias ou o aperfeiçoamento dos articulados “são anulados os actos do processo entretanto praticados que não possam ser aproveitados...”, não se mantendo em vigor no CPTA norma de conteúdo idêntico.

No demais, decorridos cerca de quinze anos de vigência do ETAF e do CPTA, de 2002, a realidade do contencioso administrativo não é mais aquela que vigorava ao tempo da vigência da LPTA e que merecia a grande e alargada crítica da doutrina, atento o tão elevado número de processos que terminavam sem um julgamento do mérito da causa, por excessivo e desrazoável formalismo, justificando o princípio do acesso à justiça, plasmado no artigo 7.º do CPTA, de favorecimento das pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas – cfr. Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, obra cit., nota 70.

Atenta a especialização e o grande desenvolvimento conferidos na atualidade ao direito e ao processo administrativo, impõe-se a invocação de um outro princípio geral do processo administrativo, da auto-responsabilidade das partes, que exige a intervenção das partes e impõe a sua responsabilização na defesa dos seus interesses no processo – cfr. José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa. Lições, 2016, 15.ª ed., Almedina, pp. 440.

12. Assim, considerando que:

a. não existe disposição legal expressa, seja no CPTA, seja no CPC, que possibilite o suprimento da exceção dilatória de ilegitimidade passiva singular;

b. o caso dos autos não configura qualquer das situações a que o legislador previu a sanação ope legis;

c. não decorre da lei a regra legal ou o princípio jurídico de suprimento de todas as exceções dilatórias, mas apenas o suprimento das exceções que sejam supríveis;

d. os artigos 6.º e 590.º do CPC, respeitantes ao dever de gestão processual a cargo do juiz, prevêm que o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais que sejam suscetíveis de sanação, prevendo-se regime idêntico nos artigos 7.º-A e no n.º 2 do artigo 87.º, do CPTA

e. o disposto no n.º 9 do artigo 87.º do CPTA prevê que em tudo o que não esteja expressamente regulado neste artigo, se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto no CPC em matéria de despacho pré-saneador e de gestão inicial do processo;

f. o critério para o suprimento da exceção dilatória deve assentar na possibilidade de existir a renovação da instância, por aproveitamento de alguns dos seus elementos essenciais, objetivos (quanto ao pedido ou à causa de pedir) ou subjetivos (quanto aos sujeitos), ou ainda quanto a outros elementos de que depende a admissibilidade e o prosseguimento da causa, mas sem que haja lugar à substituição de todos os elementos da instância, por nenhum dos atos processuais poder ser aproveitado;

g. o n.º 8 do artigo 87.º do CPTA admite a apresentação de nova petição, quando tenha sido decretada a absolvição da instância, sem prévia emissão de despacho pré-saneador, nos casos em que possa haver lugar ao suprimento de exceções dilatórias ou de irregularidades, sem que se possa extrair do citado preceito a regra da admissibilidade de suprimento da exceção dilatória sempre que seja possível a substituição da petição inicial.

h. o princípio geral da promoção do acesso à justiça, previsto no artigo 7.º ou o princípio da cooperação, previsto no artigo 8.º, assim como o dever de gestão processual, previsto no artigo 7.º-A, concretizado no artigo 87.º no respeitante às imposições que decorrem do proferimento do despacho pré-saneador, não consentem só por si, o suprimento da exceção de ilegitimidade passiva singular concretamente verificada no processo;

i. no presente caso nenhum dos atos processuais praticados no processo se pode manter, por dever haver lugar à apresentação de uma nova petição inicial, corrigida quanto à entidade demandada, dever haver lugar a nova citação, por a citação realizada não produzir os seus efeitos e haver a apresentação de uma nova contestação por parte do titular da relação material controvertida, que tem interesse em se defender, nada subsistindo no processo que possa ser aproveitado, manteria a decisão do Tribunal a quo, com a fundamentação ora aduzida, no sentido de a exceção de ilegitimidade passiva singular, com a configuração do caso concreto, constituir uma exceção dilatória insuprível, sem possibilidade de suprimento ou de correção, seja por iniciativa do autor, seja através de convite ao aperfeiçoamento, determinando a absolvição da entidade demandada da instância, pois implicaria uma modificação subjetiva da instância, operada pela substituição da parte demandada por uma outra que ocuparia o seu lugar, o que não é processualmente admissível, sem que no caso possa existir o aproveitamento de qualquer ato processual praticado na instância, por dever haver lugar à apresentação de uma nova petição inicial, de um novo ato de citação e de uma nova contestação, apresentada por um sujeito diferente.

(Ana Celeste Carvalho)