Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:03139/09
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:01/29/2013
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:MECENATO - FUNDAÇÃO - DOTAÇÃO INICIAL
Sumário:¾ O reconhecimento dos benefícios fiscais concedidos pelo Estatuto do Mecenato, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 74/99, de 16 de Março, na redacção da Lei n.º 160/99, de 14 de Setembro, aos instituidores de fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural, relativamente à sua dotação inicial, não é automático, dependendo de ser requerido e só pode ser concedido as normas estatutárias da fundação, no caso da sua extinção, expressamente preverem a reversão dos seus bens a favor do Estado ou das entidades referidas no art.º 10.º do CIRC (actual art.º 9.º).
¾ Não cumprem tal requisito os estatutos de uma fundação que apenas prevêem que em caso de extinção o destino dos respectivos bens, “depende de autorização prévia da autoridade competente para o reconhecimento, dada sob proposta do conselho de administração, deliberada com o voto favorável de um mínimo de dois terços dos respectivos membros em reunião expressamente convocada para o efeito”.
¾ Mormente se o conselho de administração é nomeado pelo instituidor e donatário.
¾ Sendo o reconhecimento do benefício da competência conjunta de dois membros do Governo, a discordância quanto ao sentido da decisão permite que cada um deles profira, em separado, um acto administrativo em consonância com a posição jurídica que, respectivamente, cada um assumiu.
¾ Não padece por isso de incompetência material o despacho do SEAF que indeferiu o pedido de reconhecimento do benefício fiscal ao donatário da dotação inicial da autora, quando a proposta do Ministério da Cultura era de sentido oposto.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

a) - As partes e o objecto da acção

Fundação EDP, com os demais sinais nos autos, veio intentar acção administrativa especial contra os Ministérios das Finanças e da Administração Pública (actualmente Ministério das Finanças), e o Ministério da Cultura (actual Secretaria de Estado da Cultura, integrada na Presidência do Conselho de Ministros) pedindo a anulação do despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF) de 14-01-2009, que lhe indeferiu o pedido de reconhecimento do benefício fiscal relativo aos donativos atribuídos a título de dotação inicial pelo mecenas fundador e a condenação do Ministério das Finanças e do Ministério da tutela da cultura a reconhecerem o beneficio fiscal aos donativos efectuados com a dotação inicial da Autora, caso se venha a admitir que o beneficio fiscal em causa era condicionado.

Alega, em resumo, que o despacho impugnado padece de erro nos pressupostos de facto, na medida em que considerou que em caso de extinção os bens atribuídos a título de dotação inicial pelo mecenas fundador não revertiam para o Estado ou outras entidades, e erro nos pressupostos de direito, visto que não era exigível à data dos factos o reconhecimento do referido benefício fiscal, sendo este outrossim de aplicação automática. Alega ainda que o autor do acto era incompetente para a sua prática.

Contestaram ambos os réus, arguindo o Ministério da Cultura a sua ilegitimidade, por não ser parte na relação material controvertida relativa ao despacho do SEAF e no mais propendendo para a improcedência da acção.

Quanto ao Ministérios das Finanças e da Administração Pública contestou arguindo a ilegitimidade da autora, por o acto impugnado não produzir na sua esfera jurídica efeitos lesivos, já que a consideração como custo ou perda de exercício na sua totalidade dos donativos concedidos à entidade beneficiária (a autora) se repercute na esfera jurídica da EDP, Energias de Portugal, S.A., a entidade que concedeu os donativos, não existindo qualquer prejuízo para a autora, nem jurídico, nem financeiro, nem patrimonial, nem moral, nem obtém qualquer vantagem da eventual anulação do acto.

A autora replicou pugnando pela improcedência das excepções, mas requereu a intervenção provocada da EDP – Energias de Portugal, S.A.

Em despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade activa da autora e passiva do Ministério da Cultura, não tendo sido admitida a intervenção provocada da EDP – Energias de Portugal, S.A..

Esse despacho transitou em julgado.

Em alegações a autora formulou as seguintes conclusões:
a. Encontram-se verificados todos os pressupostos processuais e não existem motivos que obstem ao conhecimento do pedido.
b. Tendo o Ministério da Cultura sido extinto em resultado da recente tomada de posse do XIX Governo Constitucional e integrando-se, actualmente, o Secretário de Estado da Cultura e a respectiva Secretaria, na Presidência do Conselho de Ministros, e considerando-se procedente a acção administrativa especial em apreço, deverão ser o Ministério das Finanças e o Ministério que agora detém a tutela da cultura os condenados à execução da decisão emitida.
c. Dos documentos anexos aos Autos e do comportamento das partes, nomeadamente do declarado no artigo 3.° da contestação do Réu Ministério das Finanças, a fls. 103 dos Autos, e do plasmado na contestação do Réu Ministério da Cultura nos artigos 9.º e seguintes, a fls. 80 e seguintes dos Autos, resultam provados com clareza os factos alegados na p.i. e ainda os seguintes:
d. Que, na informação de Serviço n.° 06/07, de 1 de Março, do Ministério da Cultura, que mereceu despacho de concordância da Senhora Secretária-Geral, de 8 de Junho de 2007, e foi submetida à consideração da então Ministra da Cultura, propugna-se pelo deferimento do pedido da Autora - cfr. doc. n.° 2 em anexo à contestação do Réu Ministério da Cultura, a fls. 93 a 96 dos Autos.
e. Que, esta informação, juntamente com uma proposta de despacho conjunto, já assinada pela então Ministra da Cultura, que deferia o pedido de reconhecimento de benefício fiscal efectuado pela Autora foram remetidos ao Ministério das Finanças - cfr. doc. n.° 2 em anexo à contestação do Réu Ministério da Cultura, a fls. 93 a 96 dos Autos.
f. Posteriormente à apresentação da p.i. ocorreram vários factos que mesmo assumindo uma natureza instrumental e tendo carácter público, mostram-se relevantes para a resolução da questão sub judice - os quais, até, já tinham mesmo sido anunciados pelo Réu Ministério da Cultura no artigo 16.° da sua contestação, constante a fls. 82 dos Autos; vejamos:
g. Pelos Exmos. Srs. Ministro da Cultura e Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, através do Despacho Conjunto n.° 21982/2009 datado de 1 de Setembro e publicado no Diário da República, II Série, n.° 192, de 2 de Outubro de 2009, foram reconhecidos os donativos concedidos em 2005 e 2006 à Fundação EDP para a realização do projecto «Actividades Culturais - 2005/2006», podendo estes usufruir dos benefícios consagrados no Estatuto do Mecenato - cfr. cópia que se junta como doc. n.° 1 em anexo às presentes alegações.
h. Pela Presidência do Conselho de Ministros, foi a Fundação EDP declarada como pessoa colectiva de utilidade pública, nos termos do Decreto-Lei n.° 460/77, de 7 de Novembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 391/2007, de 13 de Dezembro, através de Despacho do Exmo. Sr. Primeiro-Ministro publicado em Diário da República, 2.ª Série - n.° 243, em 17 de Dezembro de 2009 - cfr. cópia que se junta como doc. n.° 2 em anexo às presentes alegações.
i. Já em 2011, a Subdirectora-Geral dos Impostos, mediante o despacho n.° 6959/2011, reconheceu a isenção da Autora de IRC para os efeitos do artigo 10.°, n.° 2 do Código do IRC - cfr doc. n.° 3 em anexo às presentes alegações.
j. A Ministra da Cultura declarou, no âmbito do EBF, o interesse cultural dos donativos concedidos durante os exercícios de 2011 a 2013 à Autora, para a realização do projecto «Apoio e Desenvolvimento de Actividades Culturais, Educativas e Cientificas - 2011/2013» - cfr. doc. n.° 4 em anexo às presentes alegações.

Prossigamos então.
k. De acordo com o n.° 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março (com redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 160/99, de 14 de Setembro, aplicável à data dos factos), os benefícios fiscais associados aos donativos previstos no diploma dependem do prévio reconhecimento a efectuar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela.
l. No entanto, aquele mesmo preceito - i.e., n.° 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março - exceptua da necessidade de reconhecimento dois tipos de donativos; a saber: os referidos no artigo 1.º do Estatuto do Mecenato; e, os concedidos às pessoas colectivas dotadas de estatuto de utilidade pública às quais tenha sido reconhecida a isenção de IRC nos termos do artigo 9.° (actualmente artigo 10.°) do Código do IRC.
m. Ao caso sub judice é directa e imediatamente aplicável uma das alíneas incluídas no dito artigo 1.º do Estatuto do Mecenato, mais precisamente, a alínea d) do n.° 1 do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato, a qual considera como custos ou perdas do exercício, na sua totalidade, os donativos concedidos às fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural, como é o caso da ora Autora, quanto à sua dotação inicial.
n. Está em causa está um incentivo de natureza estática que visa «incentivar ou estimular determinadas actividades, estabelecendo, para o efeito, uma relação dentre as vantagens atribuídas e as actividades estimuladas em termos de causa efeito» (cit.) pelo que, ao contrário dos benefícios dinâmicos, não necessita a Administração, de acordo com a doutrina, de uma margem de livre decisão.
o. Apesar da limpidez dos argumentos supra plasmados, a Administração fiscal, perante a redacção menos feliz do n.° 2 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato (aprovado pelo Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, e com redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 160/99, de 14 de Setembro), indeferiu - mas erradamente - o requerimento apresentado pela ora Autora com base num entendimento segundo o qual:
p. Ainda que fosse admissível a interpretação levada a cabo pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no sentido de que o n.° 2 do artigo 1.º Estatuto do Mecenato é aplicável in casu - o que não se concede -, a Administração fiscal teria, mesmo assim, falhado na sua aplicação, pois os estatutos da ora Autora garantem que, em caso de extinção, é dado aos seus bens o destino previsto no artigo 1.º, n.° 2 do Estatuto do Mecenato, pelo que, em qualquer caso, o beneficio deveria ter sido atribuído.
q. Tendo em conta os despachos juntos como docs. n.°5 2, 3 e 4 em anexo, a Autora preenche, igualmente, todos os requisitos da segunda excepção à necessidade de reconhecimento dos benefícios fiscais previstos no Estatuto do Mecenato, tal como esta se encontra ínsita no n.° 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, a qual determina que «os benefícios fiscais previstos no presente diploma, com excepção dos respeitantes a donativos concedidos às pessoas colectivas dotadas de estatuto de utilidade púbica às quais tenha sido reconhecida a isenção de IRC nos termos do artigo 9.° do respectivo Código [actualmente artigo 10.º], depende de reconhecimento» (cit.).
r. Os donativos concedidos relativamente à dotação inicial da ora Autora devem ser considerados como custos ou perdas do exercício, na sua totalidade, sem qualquer necessidade de reconhecimento, nos termos da primeira parte do n.° 1 do artigo 5.° do EBF, quer porque o preceito que os prevê se encontra expressamente excluído da necessidade de o requerer, quer porque os seus estatutos cumprem, na verdade, os requisitos exigidos pelo n.° 2 do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato, pelo que nenhuma objecção existe para que o beneficio seja aplicado de forma automática.
s. Apesar de o ponto axial de divergência aqui em causa se relacionar com a interpretação do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato, mais especificamente na natureza jurídica da relação entre os seus n.° 1 e n.° 2 e na conexão daquele artigo com o n.° 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, a contestação do Réu Ministério das Finanças demonstra uma enorme confusão, pois estamos a falar de dois artigos diferentes.
t. A «construção» argumentativa feita na dita contestação que passa por defender que tendo, alegadamente, a Lei n.° 74/99 (que, uma vez mais, presumimos ser a Lei 160/99) alterado o mesmo artigo 1.° do Estatuto do Mecenato em dois artigos diferentes pretendeu fazê-lo em «duas fases» mostra-se despropositada e manifestamente desprovida de base legal e, como tal, devem ser consideradas inócuas as consequências que pretende o Réu daí retirar.
u. A Lei n.° 160/99, de 14 de Setembro, não altera duas vezes, em artigos diferentes, o mesmo artigo 1.° do Estatuto do Mecenato. O artigo 1.º da Lei n.° 160/99, de 14 de Setembro, altera não o artigo 1.º do Estatuto do Mecenato, mas sim o artigo 1.º do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março; ao passo que o artigo 2.° da aludida Lei, altera o artigo 1.° do Estatuto do Mecenato.
v. A articulação do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, com o artigo 1.º do Estatuto do Mecenato e neste, a relação entre o seu n.° 1 e n.° 2, devem ser concretizadas nos termos descritos pela Autora na sua p.i.
w. Em primeiro lugar, é necessário destacar o facto de o n.° 2 do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato ressalvar expressamente os efeitos do n.° 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, o que, só por si, indica não ser intenção do legislador restringir a excepção ao princípio do reconhecimento dos benefícios fiscais ali consagrada, excepção essa que abrange os donativos para a dotação inicial da ora Autora.
x. Em segundo lugar, referindo-se uma das normas apenas a «donativos» (n.° 2 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato) enquanto a outra se refere concretamente aos donativos para a dotação inicial das fundações [alínea d) n.° 1 do artigo 1.º também do Estatuto do Mecenato], torna-se evidente que o objecto desta última norma é mais restrito e específico do que o da primeira, devendo, por conseguinte, delimitar a sua aplicação.
y. A regra contida na alínea d) do n.° 1 do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato, prevê situação em que, pelas suas características particulares, i.e., por estar em causa não um qualquer donativo, mas a dotação inicial de uma fundação de iniciativa privada, se justifica a adaptação dos pressupostos sobre a necessidade de reconhecimento ministerial contidos no n.° 2 do dito artigo.
z. A alínea d) do n.° 1 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato não versa apenas sobre uma matéria mais restrita do que a abrangida pelo n.° 2 (o que, naturalmente, não implica necessariamente um tratamento jurídico oposto de uma face a outra), aquela assume carácter excepcional, quando lida em conjugação com o n.° 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, e com a primeira parte do dito n.° 2.
aa. O n.° 2 do Estatuto do Mecenato confirma que a sua aplicação deve somente ser feita «sem prejuízo do disposto» no aludido no n.° 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março.
bb. A aplicação das normas em apreço não pode, em caso algum, ter-se como cumulativa, posto que, a alínea d) do n.° 1 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato comporta uma situação especial em relação ao n.° 2 do mesmo artigo do Estatuto (especial por se aplicar apenas a dotações iniciais), e este mesmo n.° 2 confirma de forma expressa («sem prejuízo do disposto») a excepção prevista no n.° 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março.
cc. A exigência de que à alínea d) do n.° 1 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato se aplicam as exigências do n.° 2 do mesmo artigo, nomeadamente, quanto à necessidade do respectivo reconhecimento, implicaria uma restrição inadmissível da norma ínsita no n.° 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, feita, como vimos sem qualquer base legal.
dd. A redacção da norma do n.° 9 do artigo 62.° do EBF em vigor (i.e., a norma que substituiu o disposto no n.° 2 do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato aprovado pelo Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março) pode ler-se que «[e]stão sujeitos a reconhecimento [...] os donativos concedidos para a dotação inicial de fundações de iniciativa exclusivamente privada, desde que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural [...]» (cit.); ora, presumindo que o legislador soube expressar o seu pensamento em termos adequados - cfr. n.° 3 do artigo 9.° do Código Civil -, há que interpretar a nova redacção atribuída àquele preceito no sentido de passar a abranger uma realidade que até aí não estava contemplada, pois não era essa intenção do legislador até esse momento, sob pena de esta alteração da redacção se ter de considerar desprovida de sentido.
ee. A correcta interpretação que resulta da leitura dos n.°s 1 e 2 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato conjugada com a leitura do n.° 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, e alterado pela Lei n.° 160/99, de 14 de Setembro, é aquela que conclui que o benefício relativo aos donativos para a dotação inicial da ora Autora assumem carácter automático, ao passo que os donativos efectuados no decurso da sua actividade se encontram sujeitos a reconhecimento.
ff. Sem prescindir, ainda que a interpretação prosseguida no despacho em crise fosse de considerar procedente - o que se admite por mera hipótese de raciocínio - no que respeita à aplicação do n.° 2 do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato aos donativos para a dotação inicial da ora Autora, sempre não seria de concordar com o indeferimento sub judice.
gg. A ratio da exigência prevista no n.° 2 do artigo 1.° do Estatuto do Mecenato, quanto aos estatutos das fundações, prende-se com a intenção do legislador em obstar a que a criação de fundações de iniciativa exclusivamente privada seja instrumentalizada para se tomar um meio de obter benefícios fiscais por parte dos donatários, para quem os bens acabarão por reverter novamente com a extinção da entidade, ao invés de servir propósitos com dignidade social, cultural ou outros de idêntica relevância (propósitos seguidos pela Autora, como reconhecem o Ministério da Cultura e a Câmara Municipal de Lisboa).
hh. Foi precisamente para acautelar o fim prosseguido por aquela norma que a ora Autora previu no artigo 19.° dos respectivos estatutos que a extinção da Fundação e o «destino dos respectivos bens dependem de autorização prévia da autoridade competente para o reconhecimento, dada sob proposta do Conselho de Administração [...1» - cfr. doc. n.° 3 junto em anexo à p.i. (cit.).
ii. A previsão do n.° 2 do artigo 1.º do regime criado pelo Decreto-Lei n.° 74/99, de 16 de Março, apenas exige que seja possível retirar da redacção dos estatutos das fundações um dos efeitos pretendidos pela norma em causa, i.e., reversão para o Estado ou cedência dos bens às entidades referidas no artigo 10.° do Código do IRC, e não que a previsão constante dos ditos estatutos seja redigida de acordo com a fórmula standard aí referida.
jj. O Réu Ministério da Cultura já sufragou este entendimento na Informação n.° 06/07, constante a fls. 93 e seguintes dos Autos.
kk. O artigo 19.° dos Estatutos da Autora não se limita a reproduzir as exigências da Lei Civil, posto que a Lei Civil não estabelece - de todo em todo - que o destino dos bens de uma fundação, em caso de extinção, depende de autorização prévia do Ministro da Presidência.
ll. Rege no Direito Fiscal português um princípio de prevalência da substância sobre a forma, consagrado, nomeadamente, como cânone de interpretação e aplicação das normas tributárias - cfr. artigo 11.º n.° 3 da Lei Geral Tributária.
mm. Tendo em conta que a ratio da norma ínsita no n.° 2 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato se relaciona com a protecção do interesse do Estado em evitar a instrumentalização das fundações e tal se encontra totalmente acautelado pela exigência ínsita no artigo 19.° dos Estatutos da Autora; então não se deve, com base em razões meramente formais, i.e., a não redacção do dito artigo dos Estatutos mediante o emprego das exactas palavras inscritas no n.° 2 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato, impedir o reconhecimento do benefício em causa.
nn. No despacho n.° 21982/2009, de 1 de Setembro, o Ministro da Cultura e o SEAF reconheceram que os donativos concedidos à Autora nos exercícios de 2005 e 2006 podem usufruir dos benefícios previstos no Estatuto do Mecenato, tendo deste modo considerado que a Autora preenchia todas as exigências para o efeito, entre as quais se deverá encontrar a relativa ao destino dos bens ora em crise - cfr. doc. n.° 1 em anexo.
oo. Como está bom de ver, e apesar de o indeferimento em crise se referir o ano de 2004, a dotação inicial em causa foi efectuada não em 2004, mas sim em 2005, o que implica que o dito indeferimento esteja em contradição clara com o despacho conjunto n.° 21982/2009, de 1 de Setembro, razão mais do que suficiente para que aquele seja anulado.
pp. Nem se diga que o mencionado despacho conjunto diz apenas respeito aos donativos excluindo a dotação inicial, posto que, isso levaria a uma esquizofrénica situação, em que, com uma mão, o Estado podia não reconhecer donativos concedidos para a dotação inicial e, com a outra mão, podia reconhecer os demais donativos, sem qualquer justificação aparente.
qq. Carece de fundamento, o despacho de indeferimento em crise, devendo o mesmo, em consequência, ser anulado e, se se entender que o benefício é de natureza condicionada, ser substituído por um acto que reconheça o benefício fiscal à ora Autora. - de acordo com a jurisprudência superior, e.g., Acórdão do TCA Sul (2.° Juízo) em 8 de Julho de 2008, proferido no processo n.° 2296/08.
rr. O acto de indeferimento deve se entender inválido por padecer do vício de incompetência, considerando que, apesar de o n.° 2 do artigo 1.° do Estatuto de Mecenato prever que o despacho deve ser proferido pelo Ministro das Finanças e pelo Ministro da tutela, o despacho em crise foi praticado somente pelo SEAF.
ss. Como ensina a jurisprudência versada sobre esta matéria: «[e]nferma de incompetência por falta de competência [...1, sendo por isso anulável [...], o despacho de um Ministro que decide por despacho singular matéria que a lei manda apreciar por despacho conjunto desse e doutro Ministro» - cfr. acórdão do STA, de 29 de Março de 2001, proferido no processo n.° 046870 (cit. realce nosso).
tt. Raciocínio que se deve aplicar quer a decisão plasmada no despacho venha a ser no sentido do deferimento ou indeferimento da pretensão do particular. Razão pela qual é forçoso concluir que o acto de indeferimento é inválido, por violação do disposto nos artigos 1.°, n.° 2 do Estatuto do Mecenato e, consequentemente anulável, nos termos do artigo 135.° do CPA, por manifesta falta de competência do SEAF.

Terminou reiterando o pedido formulado na petição inicial.

Apenas o Secretário de Estado da Cultura, invocando ter sucedido ao Ministério da Cultura, apresentou contra-alegações.


*

b) – Questões essenciais a decidir
¾ Saber se os benefícios fiscais concedidos pelo Estatuto do Mecenato aos donativos iniciais concedidos a fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural dependem de reconhecimento;
¾ Se a falta de previsão estatutária expressa quanto ao destino dos bens a favor do Estado ou outras entidades em caso de extinção da fundação impede esse reconhecimento;
¾ Se, no caso concreto, os estatutos da autora prevêem essa reversão;
¾ Se em situações de competência conjunta, a discordância quanto ao sentido da decisão permite o exercício de competência singular, separada.
¾ Se circunstâncias posteriores a um acto administrativo podem relevar para aferir da sua legalidade.

*

2 – Fundamentação

a) - De facto
1) A Autora é uma fundação de direito privado sem fins lucrativos, instituída por escritura pública, em 13 de Dezembro de 2004, e cujo único instituidor a “EDP - Energias de Portugal, S.A."
2) A autora iniciou a sua actividade em 1 de Maio de 2005;
3) Através da Portaria n.° 1068/2005, de 24 de Outubro a Fundação EDP obteve reconhecimento administrativo, por parte do Subsecretário de Estado da Administração Interna;
4) A autora tem por fins gerais a promoção e o desenvolvimento e o apoio a iniciativas de natureza social, científica, tecnológica, educativa, ambiental, desportiva e de defesa do património e por fins especiais promover o estudo, a conservação e a divulgação do património cultural, científico e tecnológico relacionado com a energia eléctrica, existente em Portugal.
5) Consta da escritura pública referida em 1), que para assegurar os fins descritos a "EDP- Energias de Portugal, S.A.”, atribuiu à Fundação, como dotação inicial, os prédios urbanos designados por Museu da Electricidade e respectivos anexos, situados em Lisboa, e melhor identificados na citada escritura, cujo valor patrimonial tributário perfaz a quantia de € 22.351.847,00 (vinte e dois milhões, trezentos e cinquenta e um mil, oitocentos e quarenta e sete euros).
6) Com a escritura referida em 1) foi elaborado um documento complementar, relativo aos Estatutos da autora, fotocopiados a fls. 36 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido, tendo o representante da EDP declarado que dispensava a sua leitura “por conhecer o respectivo conteúdo perfeitamente”
7) A cláusula 9.ª de tais estatutos prevê que o Conselho de Administração da autora é nomeado trienalmente pelo Conselho de Administração da EDP.
8) A cláusula 19.ª tem esta redacção: “A modificação dos estatutos, assim como a transformação ou extinção da Fundação e destino dos respectivos bens, dependem de autorização prévia da autoridade competente para o reconhecimento, dada sob proposta do conselho de administração, deliberada com o voto favorável de um mínimo de dois terços dos respectivos membros em reunião expressamente convocada para o efeito”.
9) A Autora solicitou o reconhecimento expresso do beneficio fiscal respeitante à dotação inicial antes referida.
10) Pelo Ministério da Cultura foi remetido, ao Ministro de Estado e das Finanças, uma proposta de despacho conjunto, assinado digitalmente pela Ministra da Cultura em 28-11-2007, e com espaço em branco para a assinatura do Ministro de Estado e das Finanças, do seguinte teor:

DESPACHO CONJUNTO

Nos termos da alínea d) do número 1 e do número 9 do artigo 56°-D do Capítulo X do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, reconhece-se que os donativos concedidos em 2004 para o Património Inicial da Fundação EDP, NIPC 506997286, que prossegue fins de natureza predominantemente cultural, podem usufruir dos benefícios fiscais ali previstos, desde que o respectivo mecenas não tenha, no final do ano ou do período de tributação em que o donativo é atribuído, qualquer dívida de imposto sobre o rendimento, a despesa ou o património e de contribuições relativas à Segurança Social, ou, tendo-a, sendo exigível, a mesma tenha sido objecto de reclamação, impugnação ou oposição e prestada garantia idónea, quando devida, e sem prejuízo do disposto no artigo 86° do Código do IRC, se ao caso aplicável.

Lisboa, de de 2007
11) Essa proposta de despacho conjunto deu entrada no gabinete do Ministro das Finanças 30-11-2007 e posteriormente foi enviado à DSIRC em 07-12-2007.
12) Após a recepção da proposta de despacho conjunto a DSIRC elaborou a informação n.° 1768/2008, de 21 de Maio de 2008, constante de fls. não numeradas do PI, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, referindo além do mais que a lei aplicável era o Estatuto do Mecenato em vigor à data em que os donativos foram concedidos e que não prevendo os estatutos da Autora que no caso da sua extinção os respectivos bens “revertam para o Estado ou, em alternativa, sejam cedidos às entidades abrangidas pelo artigo 10.º do Código do IRC" o pedido devia ser indeferido.
13) Essa informação, bem como o projecto de decisão, foi notificada à autora para efeitos de audiência prévia, que se pronunciou nos termos constantes do documento de fls. 61 e ss. dos autos, e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
14) Pelo ofício n.º 2014, de 04-02-2009, a autora foi notificada do despacho de indeferimento do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de 14-01-2009.
15) O referido ofício tem este teor:
“Assunto: MECENATO CULTURAL (DOTAÇÃO INICIAL DA FUNDAÇÃO) - PEDIDO DE RECONHECIMENTO DOS BENEFÍCIOS FISCAIS - NOTIFICAÇÃO DE PROJECTO DE DECISÃO
Exm.°s. Srs.
Relativamente ao requerimento e assunto referenciado em epígrafe, comunica-se que por despacho de 2009-01-14, do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, foi indeferido o Vosso pedido de reconhecimento dos benefícios fiscais aos donativos atribuídos, em 2004, para a dotação inicial da Fundação EDP, com fundamento, em síntese, no seguinte:
Na alínea c) do n.° 1 do artigo 1.º do Estatuto do Mecenato (EM), enquadram-se todas as fundações aí enumeradas, independentemente do valor da participação em causa, estando, contudo, sujeitos a reconhecimento, nos termos do n.° 2 do mesmo artigo, os donativos concedidos às fundações cuja participação do Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias Locais seja inferior a 50%.
Quanto à alínea d) do n.° 1 do artigo 1.º do EM, consideram-se aí enquadráveis apenas as fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural e que, simultaneamente, cumpram o pressuposto do n.° 2 do mesmo artigo, ou seja, os respectivos estatutos prevejam que, no caso de extinção, os bens revertam para o Estado ou para as entidades abrangidas pelo artigo 10.° do Código do IRC (CIRC).
Com efeito, uma vez que o n.° 2 do artigo 1.° do EM estabelece que os donativos concedidos a fundações cujos bens revertam para o Estado ou para as entidades do artigo 10.° do CIRC estão sujeitos a reconhecimento, foi objectivo do legislador apenas contemplar na alínea d) do n.° 1 do artigo 1.º do Estatuto essas fundações, excluindo da mesma alínea as fundações de iniciativa exclusivamente privada cujos bens revertam para quaisquer outras entidades que não o Estado ou as entidades do artigo 10.° do CIRC.
Atente-se que, se na alínea d) do n.° 1 do artigo 1.º do EM se enquadrassem todas as fundações de iniciativa exclusivamente privada, independentemente de qual fosse o destino dos seus bens no caso de extinção, face ao n.° 2 do mesmo artigo, aquelas cujos bens revertessem para o Estado ou para as entidades do artigo 10.° do CIRC estariam sujeitas a reconhecimento, enquanto as fundações que não cumprissem tal pressuposto estariam isentas desse reconhecimento. Ora, esta situação estaria a privilegiar fundações de iniciativa exclusivamente privada cujos bens revertessem para entidades privadas de utilidade particular, em relação a fundações cujos bens revertessem para o Estado ou para as entidades abrangidas pelo artigo 10.° do CIRC, as quais surgem para prosseguir interesses colectivos que poderiam estar cometidos à Administração Pública.
Este entendimento não fere o espírito da lei, além de que não se retira da redacção do artigo 1.º do EM outra interpretação útil e coerente da Lei.
Acresce que este entendimento é reforçado com a alínea d) do n.° 1 do artigo 62.° do Capítulo X (que corresponde à alínea d) do n.° 1 do artigo 1.º do EM), aditado ao Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) aquando da revogação do EM, e em vigor desde 01-01-2007, de acordo com a qual são considerados custos ou perdas do exercício, na sua totalidade, os donativos concedidos às "Fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural, relativamente à sua dotação inicial, nas condições previstas no n.° 9.". Ora, nos termos do n.° 9 do mesmo artigo "Estão sujeitos a reconhecimento, a efectuar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela, os donativos concedidos para a dotação inicial de fundações de iniciativa exclusivamente privada desde que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural e os respectivos estatutos prevejam que, no caso de extinção, os bens revertam para o Estado ou, em alternativa, sejam cedidos às entidades abrangidas pelo artigo 10.° do Código do IRC.".
Por fim, informa-se ainda que a introdução da alínea d) no n.° 1 do artigo 1.º do EM visou estender o regime desse artigo aos donativos concedidos para a dotação inicial das fundações aí previstas, uma vez que estes não se enquadram em nenhum dos restantes artigos do Estatuto, porquanto nos restantes artigos enquadram-se apenas os donativos aí previstos concedidos para o desenvolvimento de acções/actividades das entidades já existentes, o que não é o caso dos donativos concedidos para as dotações iniciais já que esses se destinam, primeiramente, à criação de uma entidade ainda inexistente.
Face ao exposto, a Fundação EDP não cumpre o pressuposto necessário ao seu enquadramento na alínea d) do n.° 1 e n.° 2 do artigo 1.° do EM, pelo que os seus mecenas não podem usufruir do benefício fiscal aí previsto, quanto à dotação inicial.
Esta decisão poderá ser atacada nos termos do artigo 66.° e seguintes do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), através da interposição de acção administrativa especial - condenação à prática de acto devido, no prazo de três meses a contar da presente notificação.
Com os melhores cumprimentos,
A Directora de Serviços
Maria Helena Martins”


*

b) De Direito

Está em causa a recusa de reconhecimento de benefícios fiscais à mecenas instituidora da autora em relação à dotação inicial que atribuiu a esta aquando da sua constituição. Essa recusa decorre, essencialmente, da circunstância dos estatutos da autora não preverem que no caso da sua extinção os respectivos bens revertam para o Estado ou para as entidades referidas no art.º 9.º do Código do IRC (CIRC).

A autora ataca o acto que recusou o reconhecimento – o despacho do SEAF de 14-01-2009 – com base em três argumentos:
¾ Em primeiro lugar, à data em que a dotação inicial foi atribuída, a lei dispensava o pedido de reconhecimento, pelo que a aplicação dos benefícios era automática;
¾ Em segundo lugar não corresponde à realidade que os seus estatutos não prevejam a reversão dos bens a favor do Estado ou outras entidades em caso de extinção.
¾ E por último, o SEAF é materialmente incompetente para a prática do acto em causa.

A primeira questão que importa resolver é a que diz respeito à definição da lei aplicável.

Como decorre do probatório a autora foi constituída em 2004, tendo sido dotada de bens pela entidade instituidora na mesma altura.

De harmonia com o comando constitucional ínsito ao art.º 103.º, n.º 2, da CRP, vigora no direito fiscal a proibição da retroactividade da lei fiscal no que concerne aos elementos essenciais do imposto, princípio que é reafirmado no art.º 12.º, n.º 1, da LGT. O que significa, como claramente decorre deste preceito, que o facto tributário que não seja de formação sucessiva é disciplinado pelas normas vigentes na data em que se verifica ou ocorre, segundo o princípio tempus regit factum.

Por outro lado as vantagens fiscais concedida aos instituidores de fundações pela Lei do Mecenato (Decreto-Lei n.º 74/99 de 16 de Março), têm, claramente, natureza de benefício fiscal, como aliás decorre do art.º 2.º, n.º 1 e 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF). Ora, por regra as normas relativas aos benefícios fiscais comungam do mesmo princípio acima referido, nos termos do art.º 10.º do EBF (actual art.º 11.º), ou seja, tais benefícios são regidos pela lei do momento em que ocorre o facto que origina o direito ao benefício.

Por conseguinte, não obstante o acto em causa ter sido praticado em momento em que a Lei do Mecenato tinha deixado de vigorar, por ter sido substituída pelo quadro jurídico fornecido pelo Capítulo X, «Benefícios fiscais relativos ao mecenato», do EBF, não há dúvida que atendendo à data em que a autora foi constituída e ocorreu a dotação inicial que a seu favor a EDP instituiu, a lei aplicável é a referida Lei do Mecenato, com as alterações introduzidas pelas Leis n.os 160/99, de 14 de Setembro, 176-A/99, de 30 de Dezembro, 3-B/2000, de 4 de Abril, 30-C/2000, de 29 de Dezembro, 30-G/2000, de 29 de Dezembro e 109-B/2001, de 27 de Dezembro e rectificado nos termos da Declaração de Rectificação n.º 7/2001, publicada na I-A, n.º 60, de 12 de Março de 2001, pela Lei n.º 107-B/2003, de 31 de Dezembro e pela Lei n.º 26/2004, de 8 de Julho, o que de resto é confirmado pelo art.º 11.º, actual art.º 12.º, do EBF.

Postas as coisas nestes termos importa averiguar se, como argumenta a autora, o benefício fiscal em causa não exigia o seu reconhecimento prévio.

O art.º 1.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 74/99 de 16 de Março, na redacção vigente à data dos factos, dispunha:

Os benefícios fiscais previstos no presente diploma, com excepção dos referidos no artigo 1.º do Estatuto e dos respeitantes aos donativos concedidos às pessoas colectivas dotadas de estatuto de utilidade pública às quais tenha sido reconhecida a isenção de IRC nos termos do artigo 9.º do respectivo Código, dependem de reconhecimento, a efectuar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela(1) (redacção dada pelo art.º 1.º da Lei n.º 160/99, de 14 de Setembro).

O n.º 4 acrescentava:

A excepção efectuada no número anterior não prejudica o reconhecimento do benefício, nas situações previstas no n.º 2 do artigo 2.º e nos n.os 2 e 3 do artigo 3.º do Estatuto

O art.º 1.º, n.º 1, al. d), do Estatuto do Mecenato (EM), aprovado pelo referido Decreto-Lei, estabelecia que “são considerados custos ou perdas do exercício, na sua totalidade, os donativos concedidos às Fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural, relativamente à sua dotação inicial”.

O n.º 2 dispunha:

Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1.º do presente diploma, estão sujeitos a reconhecimento, a efectuar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela, os donativos concedidos a fundações em que a participação do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais seja inferior a 50% do seu património inicial e, bem assim, às fundações de iniciativa exclusivamente privada desde que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural e os respectivos estatutos prevejam que, no caso de extinção, os bens revertam para o Estado ou, em alternativa, sejam concedidos às entidades abrangidas pelo artigo 9.º do Código do IRC (redacção do art.º 2.º da Lei n.º 160/99, de 14 de Setembro)(2).

A interpretação a extrair destas duas normas motiva a discordância entre a A. e o R. Ministério das Finanças.

Na redacção inicial do Decreto-Lei n.º 74/99 tudo era claro: a excepção contida no n.º 3 do art.º 3.º do diploma aprovador do EM remetia apenas para os donativos concedidos ao Estado e demais pessoas colectivas públicas referidas no art.º 1.º, n.º 1, do EM. Ou seja, em relação a tais donativos o reconhecimento não era necessário. Porém, o n.º 2 do art.º 1.º do Estatuto consagrava (a contrario) uma “excepção à excepção”: apenas estavam dispensados de reconhecimento os donativos concedidos a fundações em que o Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais participassem no património inicial em montante superior a 50%.

Mas essa redacção foi alterada pela Lei n.º 160/99, nos termos em que se deixaram expressos.

Pois bem. Se a redacção dada por este diploma ao n.º 3 do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 74/99 fosse no sentido de que a excepção nele prevista se reportava ao reconhecimento de todas as situações contidas no n.º 1 do art.º 1.º do Estatuto, então não faria sentido que logo no n.º 4 o legislador tivesse consagrado que “a excepção efectuada no número anterior não prejudica o reconhecimento do benefício, …”, inculcando a ideia de que afinal o benefício teria de ser reconhecido mesmo na situação de excepção…

Por isso a ratio do n.º 2 do art.º 1.º do Estatuto aponta num outro sentido, que ressalta com clareza da utilização de um dos elementos da hermenêutica jurídica, o elemento histórico.

Se bem se atentar ao n.º 1 do art.º 1.º do EM apenas foi acrescentada (pela Lei n.º 169/99) uma alínea d), respeitante à situação das “fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural, relativamente à sua dotação inicial”.

Ora, no n.º 2 também só foi acrescentado pelo mesmo diploma um segmento que se refere, precisamente, a essa alínea. Isto é, na parte em que refere: “sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1.º do presente diploma, estão sujeitos a reconhecimento, a efectuar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela, os donativos concedidos a fundações em que a participação do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais seja inferior a 50% do seu património inicial”, a redacção da Lei n.º 160/99 manteve-se idêntica à original, ou seja, à redacção que à norma tinha sido dada pelo Decreto-Lei n.º 74/99. Na segunda parte a Lei n.º 160/99 inovou, alargando o reconhecimento “às fundações de iniciativa exclusivamente privada desde que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural e os respectivos estatutos prevejam que, no caso de extinção, os bens revertam para o Estado ou, em alternativa, sejam cedidos às entidades abrangidas pelo artigo 9.º do Código do IRC”.

Assim, se a primeira parte consagrava – como já se salientou - uma excepção à excepção prevista na redacção inicial, então, sob pena se introduzir uma antinomia na própria norma que a torna imprestável do ponto de vista jurídico, tem de aceitar-se que o (segundo) segmento introduzido no n.º 2 do art.º 1.º do Estatuto pela Lei n.º 160/99 consagra a obrigatoriedade do reconhecimento embora este seja condicionado quanto aos seus pressupostos. Além de que uma interpretação no sentido propugnado pela autora levaria a uma consequência inaceitável: os donatários em fundações em que o Estado participasse numa percentagem inferior a 50% estariam obrigados ao reconhecimento. Se a percentagem de participação do Estado fosse nula (0%) não!
Ora, nos termos do art.º 9.º, n.º 3, do CC, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. E a solução interpretativa a que se chegou é, claramente, a que é mais equilibrada face a todos os interesses potencialmente abrangidos por este quadro jurídico: os do Estado, os da autora e sua donatária, mas também as demais fundações e respectivos donatários, sobretudo aqueles a quem é aplicável o 1.º segmento do n.º 2 do art.º 1.º do EM e que de resto encontra no texto da lei aquele “mínimo de correspondência verbal” a que alude o n.º 2 do citado art.º 9.º do CC, não obstante a infeliz redacção da Lei n.º 160/99.

Afigura-se-nos que com este sentido interpretativo se resolve a aparente conflitualidade entre o n.º 3 do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 74/99 e o n.º 2 do art.º 1.º do Estatuto do Mecenato, adequando o sentido da interpretação à letra da lei e em obediência aos parâmetros estabelecidos no art.º 9.º (actual art.º 10.º) do EBF, e os princípios proclamados no art.º 9.º do Código Civil.

Por conseguinte e ao contrário do que defende a autora, o reconhecimento do benefício não era automático, antes dependia de ser requerido e reconhecido por um despacho conjunto, como de resto aquela intuiu ao formular o pedido que desembocou no acto impugnado.

Entrando agora na segunda questão, impõe-se averiguar se os estatutos da autora consagram uma cláusula de reversão dos seus bens a favor do Estado ou de outras entidades referidas no citado n.º 2 do Estatuto do Mecenato, em caso de extinção.

A referida cláusula (19.ª), consta do Capítulo IV dos Estatutos da autora, denominado disposições finais. Tem esta redacção: “A modificação dos estatutos, assim como a transformação ou extinção da Fundação e destino dos respectivos bens, dependem de autorização prévia da autoridade competente para o reconhecimento, dada sob proposta do conselho de administração, deliberada com o voto favorável de um mínimo de dois terços dos respectivos membros em reunião expressamente convocada para o efeito”.

Pretender ver nesta cláusula a consagração de uma reversão dos bens da Fundação a favor do Estado, em caso de extinção, é salvo o devido respeito, fazer uma leitura manifestamente forçada e exagerada do seu texto.

As fundações, nas palavras de MANUEL DE ANDRADE, constituem “um complexo patrimonial afecto por indivíduo – o fundador – a um certo escopo, tipicamente um escopo altruístico”(3).

De harmonia com o disposto no artigos 186.º, n.º 2, e 187.º, do CC, no acto de instituição ou nos estatutos o instituidor providencia não só pela sede, organização e funcionamento da fundação, mas regula também os termos da sua transformação ou extinção, fixando o destino dos respectivos bens. Aliás, de harmonia com o n.º 3 do art.º 187.º, a elaboração dos estatutos, na sua falta, há-de fazer-se de acordo com a vontade real ou presumível do fundador.

No caso em apreço no acto de instituição o representante do fundador (EDP) expressamente declarou que a Fundação se regeria pelos Estatutos constante do documento complementar à escritura, “cujo conteúdo conhece perfeitamente, pelo que dispensa a sua leitura”.

Quer isto dizer que foi o próprio fundador que elaborou os Estatutos, fixando assim as directrizes de funcionamento da Fundação, os quais só podem ser alterados pela autoridade competente para o reconhecimento, sob proposta da respectiva administração, contanto que não haja alteração essencial do fim da instituição e se não contrarie a vontade do fundador (art.º 189.º do CC).

Na tarefa interpretativa de um qualquer negócio jurídico, o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica nem se limita a fixar o sentido factual que o interessado quis subjectivamente dar à sua declaração negocial, fixa também o sentido normativo dessa declaração.

Há por isso que partir dos diversos elementos de interpretação que se possam extrair do caso concreto para, gradualmente, esclarecer o objecto negocial e determinar o sentido que deve prevalecer. Desses elementos destacam-se a vontade manifestada e ou declarada (em certos casos, formalmente), o comportamento anterior e posterior à declaração, as circunstâncias de tempo e lugar em que a mesma ocorreu, a finalidade visada com o negócio, o tipo deste, etc.. Tendo sempre presente que “as declarações jurídico-negociais não são só situações de facto a cuja presença a lei ligue determinadas consequências jurídicas, mas indicam, segundo o seu próprio conteúdo, que deve ter lugar esta ou aquela consequência jurídica”(4).

As fundações, como sucede no caso presente, resultam de um acto constitutivo e de estatutos produto da vontade de um sujeito, traduzida num acto unilateral não recipiendo, já que este não tem um destinatário concreto(5) e que por isso deve ser interpretado de harmonia com o regime das declarações negociais sem declaratário.

Se a fundação for instituída por declaração testamentária prevalece na interpretação da mesma o disposto no art.º 2187.º do CC, norma que pese embora seja especial não se nos afigura ter natureza excepcional, e que por isso pode servir como regra interpretativa para negócios de natureza semelhante. O que não significa, porém, que o disposto nos artigos 236.º e ss. não possa ser atendido para efeitos interpretativos no caso em apreço, pois como acentua LUÍS CARVALHO FERNANDES(6) “o regime de interpretação consagrado no artigo 2187.º não significa que as regras comuns dos artigos 236.º e 237.º e as particulares do artigo 238.º não sejam atendíveis [mesmo] na determinação do sentido do testamento”.

Aliás, segundo MENEZES CORDEIRO, “as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos aplicam-se a declarações recipiendas. Mas - embora com adaptações – elas funcionam também em manifestações de vontade normativa que não tenham um destinatário: de certo modo, releva, então toda a comunidade jurídica”(7), ou seja, elas são aplicáveis às declarações não recipiendas, isto é, aquelas que não têm um destinatário específico como sucede in casu. Esta é também a posição de FERREIRA DE ALMEIDA, que a tal propósito escreve o seguinte:

“Duas respostas parecem possíveis: que o art. 236.º apenas se aplica às declarações recipiendas, isto é, com um declaratário que seja um destinatário-receptor necessário; ou que o art. 236.º emprega o termo declaratário com um sentido amplo que abrange também as declarações não-recipiendas. Tudo indica que a solução deve ser a segunda: porque estranho seria que um preceito de vocação geral excluísse todo o importante conjunto das declarações não-recipiendas, sendo certo que em relação a uma delas (a declaração testamentária) estabeleceu um regime especial”(8).

Portanto, tendo em conta os contornos do caso presente, dir-se-á que, sem nos intrometermos em querelas doutrinárias, é possível interpretar a declaração do instituidor (EDP) quer à luz do art.º 2187.º do CC, quer de harmonia com os artigos 236.º e seguintes do mesmo diploma.

O art.º 2187.º do CC, sob a epígrafe interpretação dos testamentos, tem esta redacção:

1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

2. E admitida prova complementar, mas não surtira qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

Olhando para Estatutos da Autora é patente que a entidade instituidora pretendeu manter na sua esfera de influência e de domínio a fundação, não obstante lhe outorgar o gozo de autonomia financeira (cláusula 5.ª); fê-lo através da cláusula que estabelece que o seu Conselho de Administração é designado pelo próprio Conselho de Administração da EDP, consagrando assim o domínio (indirecto) desta sobre aquela. Neste contexto, não é aceitável que se veja na cláusula 19.ª a consagração da reversão dos bens da Fundação a favor do Estado, porque em tal caso prevalecerão, necessariamente, os interesses da entidade instituidora.

A resultado idêntico se chega por aplicação dos critérios estabelecidos nos artigos 236.º e seguintes do CC.

Nos termos do art.º 236º, n.º 1, do CC, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”. Mas, acrescenta o n.º 2, “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”. Este artigo consagra a chamada teoria da impressão do destinatário, condicionada pela restrição defendida por Ferrer Correia com base na teoria de Larenz(9).

O sentido normativo da declaração e a sua finalidade prática - pressupondo sempre um mínimo de correspondência com o texto formal - será, pois, aquele que um declaratário normal, dispondo de diligência e capacidade médias, colocado na posição do real declaratário, inferiria de todos os elementos intrínsecos e extrínsecos à mesma.

Ora, segundo este padrão interpretativo e tendo em conta o clausulado anteriormente invocado, um destinatário normal não pode deixar de concluir que na cláusula 19.ª dos estatutos da autora não há qualquer previsão de reversão dos seus bens a favor do Estado em caso de extinção.

Com efeito, embora o destino dos bens dependa da autorização prévia da autoridade competente para o reconhecimento, como esse destino é proposto pelo Conselho de Administração (que como vimos é nomeado pelo CA da EDP) nada impede que seja proposto um outro qualquer destino dos bens que não a reversão a favor do Estado. Questão diferente será, nesse caso, saber é aceite ou não a extinção.

Acresce que, sendo a dotação inicial da autora um negócio gratuito, segundo o art.º 237.º do CC, em caso de dúvida sempre teria de prevalecer o sentido menos gravoso para disponente, ou seja, para o donatário (EDP).

Por conseguinte, tem de concluir-se que, sem margem para ambiguidades, a referida cláusula não consagra qualquer reversão dos bens a favor do Estado ou das entidades referidas no art.º 1.º, n.º 2, do Estatuto do Mecenato.

Importa agora apreciar a questão da alegada incompetência material do SEAF.

O argumento é de que este governante não podia ter decidido pois o reconhecimento depende de despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da Cultura.

O pedido de reconhecimento de benefícios em situações de mecenato pode conduzir a uma de três hipóteses:

O reconhecimento do benefício, a ser concretizado por despacho conjunto; o mesmo tipo de acto se ambos os Ministérios envolvidos o recusarem. E uma terceira hipótese, em que é impossível o despacho conjunto, por não existir coincidência de vontades quanto ao sentido da decisão.

No caso sub judice é esta última hipótese que se coloca. Enquanto a Ministra da Cultura propendia para o reconhecimento, tendo enviado até uma proposta de despacho conjunto com decisão em tal sentido ao Ministério das Finanças, este perfilhou entendimento contrário. Nesta situação seria impensável proferir um acto expresso, ou seja, um despacho conjunto, que ao mesmo tempo deferisse e negasse a pretensão, por ser juridicamente inexistente, ou no mínimo nulo (cfr. art.º 133.º, n.º 2, al. c), do CPA).

Consequentemente, nesta última hipótese não há possibilidade jurídica de se formar acto administrativo conjunto, devendo cada um dos órgãos exercer em separado e singularmente a sua parte da competência agregada.

Foi exactamente o que se passou no caso vertente, pois a proposta que a Ministra da Cultura enviou ao Ministério das Finanças contém não só a decisão favorável como a assinatura da autora do acto, constituindo por isso um acto administrativo perfeito, nos termos dos artigos 122.º e 123.º do C.P.A.

Donde, ser juridicamente admissível que o Ministério das Finanças, através do SEAF, emitisse também a sua pronúncia sobre a pretensão da autora, em sentido oposto àquele que fora adoptado pela Ministra da Cultura.

O acto impugnado não está, por isso, viciado de incompetência em razão da matéria, não sendo assim aplicável a doutrina de Mário Esteves de Oliveira(10), citado pela autora. Não existiu qualquer invasão dos “poderes conferidos a outro órgão administrativo em função da natureza dos assuntos”(11).

Para terminar resta dizer que os argumentos da autora, esgrimidos nas alegações, segundo os quais e em momento posterior lhe foram reconhecidos benefícios fiscais em razão das actividades que desenvolve, lhe foi reconhecida utilidade pública e isenção de IRC, é irrelevante para aferir a ilegalidade do acto impugnado, pois como é consabido na dogmática administrativa, o acto vale por si, pelos fundamentos nele exarados, pelo quadro legal invocado e pela factualidade que lhe está subjacente, e não por quaisquer circunstâncias, factuais ou legais, que lhe se sejam exógenas, designadamente situadas no futuro.

Sintetizando, para concluir:
¾ O reconhecimento dos benefícios fiscais concedidos pelo Estatuto do Mecenato, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 74/99, de 16 de Março, na redacção da Lei n.º 160/99, de 14 de Setembro, aos instituidores de fundações de iniciativa exclusivamente privada que prossigam fins de natureza predominantemente social ou cultural, relativamente à sua dotação inicial, não é automático, dependendo de ser requerido e só pode ser concedido as normas estatutárias da fundação, no caso da sua extinção, expressamente preverem a reversão dos seus bens a favor do Estado ou das entidades referidas no art.º 10.º do CIRC (actual art.º 9.º).
¾ Não cumprem tal requisito os estatutos de uma fundação que apenas prevêem que em caso de extinção o destino dos respectivos bens, “depende de autorização prévia da autoridade competente para o reconhecimento, dada sob proposta do conselho de administração, deliberada com o voto favorável de um mínimo de dois terços dos respectivos membros em reunião expressamente convocada para o efeito”.
¾ Mormente se o conselho de administração é nomeado pelo instituidor e donatário.
¾ Sendo o reconhecimento do benefício da competência conjunta de dois membros do Governo, a discordância quanto ao sentido da decisão permite que cada um deles profira, em separado, um acto administrativo em consonância com a posição jurídica que, respectivamente, cada um assumiu.
¾ Não padece por isso de incompetência material o despacho do SEAF que indeferiu o pedido de reconhecimento do benefício fiscal ao donatário da dotação inicial da autora, quando a proposta do Ministério da Cultura era de sentido oposto.

Concluindo: o acto sob censura não padece dos vícios que lhe são apontados, pelo que a acção tem fatalmente de improceder.


*

3 - Dispositivo:

Em face de todo o exposto acordam em julgar a presente acção totalmente improcedente, absolvendo os réus do pedido.

Custas pela autora.

D.n.

Lisboa, 2013-01-29

(Benjamim Barbosa, Relator)

(Jorge Cortês)

(Eugénio Sequeira)


1- A redacção inicial era a seguinte: “Os benefícios fiscais previstos no presente diploma, com excepção dos referidos no artigo 1.º do Estatuto, dependem de reconhecimento, a efectuar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela."
2- A redacção inicial deste número era a seguinte:
"Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1.º do presente diploma, estão sujeitos a reconhecimento, a efectuar por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela, os donativos concedidos a fundações em que a participação do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais seja inferior a 50% do seu património."
3- Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1974, p. 55.
4- Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, 421
5- A autoridade que realiza o reconhecimento da fundação (art. 185.º, n.º 2, do CC) não é a destinatária da declaração do instituidor, porquanto apenas reconhece, com a força do acto público que pratica, um requisito da existência da fundação.
6-“Interpretação do testamento”, in Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles (90 anos), Coimbra, Almedina, 2007, p. 720.

7- Tratado de Direito civil português, Tomo I, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, pp. 766-767; em sentido idêntico, Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, Coimbra, Almedina, 1995, p.. 218.
8- Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, vol. I, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 190 e ss..

9- Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 1985, p. 205

10-Direito Administrativo, I, Lisboa, Almedina, 1980, p. 239
Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, Coimbra, 11- Almedina, 2002, p. 388.