Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2019/17.3BELSB
Secção:CA-2º. JUÍZO
Data do Acordão:04/05/2018
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:ASILO, MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA, FALTA DE FACTOS SOBRE O RECEIO DE PERSEGUIÇÃO, PRINCÍPIO DA DÚVIDA
Sumário:I. O n.º 1 do art.º 3º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, transpondo para a ordem jurídica interna as Diretivas n.ºs 2004/83/CE, do Conselho, de 29/04, e 2005/85/CE, do Conselho, de 01/12, tal como no 1º parágrafo da Secção A, do artigo 1.º da Convenção de Genebra, referente ao estatuto dos refugiados, prevê quanto aos requisitos para a concessão do direito de asilo que o requerente:
(i)seja estrangeiro ou apátrida;
(ii) seja objeto de perseguição em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana e
(iii) se sinta gravemente ameaçado em consequência da atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da residência habitual pelos motivos referidos no ponto anterior.
II.Não se extraindo das declarações do requerente, que tenha sido objeto de perseguição ou de ameaça, seja por parte dos seus familiares, seja pela polícia, em consequência de denúncia da sua mãe pela vontade de realizar mutilação genital feminina, não foram alegados factos que permitam fundar o pedido de asilo, à luz do n.º 2 do artigo 3º da Lei n.º 27/2008.
III. Não se mostrando alicerçado do ponto de vista factual que o requerente possua o fundado receio de ser perseguido em virtude da raça, da religião, da nacionalidade, de opiniões políticas ou de integração em certo grupo social e que não possa ou não queira voltar, em virtude desse receio, ao Estado da sua nacionalidade ou residência, não estão reunidos os requisitos para a concessão de asilo ou de proteção subsidiária, segundo os artigos 3.º e 7.º da Lei n.º 27/2008, mesmo à luz de um juízo de verosimilhança ou segundo um princípio de benefício da dúvida.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

O Ministério X, devidamente identificado nos autos de ação de impugnação instaurada por R., inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida em 20/11/2007, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que julgou a ação procedente, condenando a entidade demandada na prática do ato de concessão de asilo devido, com a consequente anulação do ato de indeferimento impugnado.


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Formula o Recorrente, nas respetivas alegações as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“1.ª O ora Recorrente não pode deste modo concordar com a douta sentença, a qual procedeu num incorreto enquadramento e interpretação dos factos.

2.ª Contrariamente ao que a mesma fez, os fundamentos em que se alicerçou conduzem precisamente à posição inversa.

3.ª Aliás, os esforços envidados no sentido de esclarecer o melhor possível do merecimento do pedido em causa, ao invés do concluído pelo tribunal a quo, vieram reforçar a irrepreensibilidade da decisão adotada pelo recorrente - Não acato do desiderato em causa.

4.ª O ora recorrente mantém assim tudo quanto verteu para o processo em causa, onde logra provar que a decisão do Réu respeitou integralmente os princípios, normas e trâmites legalmente previstos.

5.ª Enfim, a douta sentença ao considerar sob a égide do instituto da proteção internacional a factualidade aduzida pelo recorrido, extravasou o âmbito da mesma.

6.ª Ainda que assim não fosse, igualmente se poderia afirmar, que o pedido subjacente à decisão de recusa de entrada em território nacional do Recorrido tem por objetivo ludibriar as autoridades nacionais para, na ausência de fundamento legal e factual, para que o mesmo possa usufruir de um estatuto a que não tem direito.

7.ª Na verdade, ostensivo se mostra que o Autor não preenche qualquer dos requisitos, quer do art. 3.º da Lei 27/2008, de 30 de Junho, quer do art.7.º do mesmo diploma legal.”.

Pede a procedência do recurso e a revogação da sentença recorrida com todas as legais consequências.


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O Recorrido, notificado, não contra-alegou o recurso.

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O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento, por o pedido de asilo ser infundado, não satisfazendo nenhum dos critérios definidos pela Convenção de Genebra e Protocolo de Nova Iorque, com vista ao reconhecimento do estatuto de Refugiado.

Sustenta que o Requerente não concretizou nem comprovou quaisquer medidas individuais persecutórias de que tenha sido alvo.

Conclui que a sentença recorrida encerra de erro de direito ou de julgamento, assim como da sua subsunção do direito aos factos provados, nomeadamente com ofensa e erro de interpretação e aplicabilidade das disposições legais que ali vêm apontadas.


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O processo vai, sem vistos, dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente, indo à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento, na interpretação dos factos e do direito, quanto à demonstração dos requisitos previstos no artigo 3.º ou do artigo 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, por não ser concretizado o alegado receio de perseguição que justifique a necessidade de proteção de asilo ou de protecção subsidiária.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O acórdão recorrido considerou assentes os seguintes factos:

“a) O autor aparenta ser e apresenta-se de nacionalidade da Gambiana, nascido a X, na localidade de Y (cfr. fls. 1 e 9 do Processo Administrativo (PA));

b) A 14/06/2017, o autor apresentou pedido de protecção internacional ao Estado Português (cfr. fls. 23 do PA);

c) A 21/06/2017, o autor prestou declarações no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nas quais pode ler-se o seguinte (cfr. fls. 29 a 33 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):

Pergunta (P). Que Língua(s) fala?

Resposta (R). Inglês e mandika e um pouco de Wolof.

P. Em que língua pretende efectuar esta entrevista?

R. Em inglês e mandika.

P. Tem advogado?

R. Não.

P. Refere ser nacional da Gâmbia. Tem algum documento que comprove a sua nacionalidade e/ou identidade?

R. Tenho o passaporte que está com a polícia no aeroporto. P: Qual é o seu estado civil? Tem filhos?

R. Sou solteiro. Não tenho filhos.

P. Qual é a sua escolaridade?

R.Tenho o ensino secundário, terminei em 2013

P. Professa alguma religião?

R. Sou muçulmano

P. Pertence a algum grupo étnico?

R. M

P. Em que local residia na Gâmbia? Desde quando e até quando residiu nessa morada? Com quem morava?

R. Em Y nasci, cresci e vivi em Y até Março de 2017. Mudei-me depois para Y., um local entre Senegal e Gâmbia. Vivia em Y com a minha mãe e irmãos (4 irmãos e três irmãs). Em Y. vivi sozinho.

P. Qual é a sua profissão? Até quando trabalhou? Qual o local de trabalho?

R. Controlador de material e logística num armazém em Fajara. Comecei em finais de Novembro de 2016 e fiquei até Março de 2017.

P. Tem familiares a residir atualmente na Gâmbia? Em que local? Tem contacto com eles?

R. Sim, a minha mãe e irmãos. Eles continuam a viver em Y. Não mantenho contacto com a minha família porque tenho um problema com eles.

P. É, ou alguma vez foi, membro de alguma organização política, religiosa, militar, étnica ou social, na Gâmbia?

R. Não.

P. Tem ou teve algum problema com as autoridades policiais, judiciais do seu país?

R. Tenho um problema com o departamento de polícia. Eu não tenho carta de condução e não sou bom condutor, e tive que conduzir o carro do meu primo porque estava a fugir da minha família. Tive um acidente, em Março de 2017, e a minha família informou a polícia que eu estava a conduzir aquele carro.

P. Por que motivo é que deixou o país de onde é nacional?

R. No ano passado a excisão foi banida da Gâmbia, mas a minha mãe praticava essa mutilação genital feminina in Y na nossa sociedade, eles faziam isso anualmente. Quando a minha mãe quis praticar essa mutilação na minha irmã, M.., de 8 anos eu discordei e fui reportar a polícia. A minha mãe utilizava o sangue retirado dessas operações em rituais e vinham pessoas de todo o lado para esses rituais para os ajudar a nível profissional, para serem promovidos.

P. E depois?

R. O polícia, O., não seio nome completo dele, era o chefe do departamento de polícia, e também ia frequentemente ter com a minha mãe para obter ajuda e usavam o tal sangue nos rituais. Quando fui falar com ele da intenção da minha mãe não sabia que ele participava nesses rituais e falei com ele porque pensei que ele ia fazer o seu trabalho. Eu não queria que a minha mãe fizesse isso a minha irmã pois gosto muito dela e somos muito chegados. Esse polícia foi contar o que eu tinha reportado à minha mãe. Depois o polícia disse a minha mãe que se ele não fizesse nada, talvez eu fosse reportar aos superiores dele

P. E depois?

R. O meu primo L. disse que se eu não fugisse dali, talvez a policia e a minha mãe seriam capazes de me matar,

P. E então?

R. O meu primo levou-me de mota e tivemos um acidente e fomos para F.. Isto foi em Março de 2017.

P. Quando foi queixar-se a polícia das intenções da sua mãe? R. Em início de Março.

P.A sua mãe praticou a mutilação genital na sua irmã? R. Sim. P. Quando?

R. Quando eu fugi, não me lembro.

P. Como sabe então que a sua irmã foi mutilada?

R. Porque um amigo (B.) do local onde vivia me disse por telefone. Falei com o B. dois dias depois de ter fugido.

P. Tiveram um acidente de mota, mas houve consequências desse acidente de mota para si? Teve problemas com a polícia devido ao acidente?

R. Batemos num restaurante mas a polícia estava a procura de quem tinha feito aquilo.

P. Como sabe que a polícia estava a procura de si?

R. Porque o meu primo disse que a polícia estava a minha procura porque ele tinha dito que era eu que estava a conduzir a mota.

P. Então a polícia estava a sua procura por causa desse acidente?

R. Eu estava a ser procurado por causa do acidente. A minha mãe também disse a polícia que eu é que tinha causado o acidente.

P. Então não estava a sua procura por causa do assunto da sua mãe, daquilo que reportou sobre a mutilação genital feminina? Foi só por causa do acidente?

R. Sim porque o assunto sobre a mutilação ficou só entre mim, O. e a minha mãe, eles esconderam o facto de eu ter reportado aquilo a polícia.

P. Então fugiu do seu país porque motivo?

R. Inicialmente foi por causa da minha família mas depois foi por causa do acidente.

P. Como é que você sabe que o O. contou o que reportou a sua mãe?

R. O meu primo disse,

P. Mas você disse que o assunto ficou só entre si, O. e a sua mãe.

R. Mas o meu primo estava comigo quando reportei a polícia. Eu quando conversei com o O. o meu primo não estava lá mas sabia do assunto.

P. Mas como é que o seu primo sabia que O. foi queixar à sua mãe?

R. O meu primo foi cumprimentar a minha mãe e viu ele a contar à minha mãe que eu tinha ido fazer queixa dela.

P. Quando é que ele foi cumprimentar a sua mãe?

R. Não sei mas foi numa noite do mês de Março de 2017.

P. Quantos dias se passaram entre a sua queixa a O. e a sua fuga do país de mota? R. Talvez dois ou três dias.

P. Durante esses dois ou três dias ficou na sua casa? R. Sim, mas não estava bem com eles.

P.O que quer dizer com "Não estava bem com eles"?

R. Após verem a minha resistência ao que faziam eles não me tratavam bem. Eu disse que aquilo não aconteceria enquanto eu estivesse ali e então eles não me davam comida e não me deixavam tirar água para tomar banho em casa, eu tinha que ir buscar água fora de casa para tomar banho. A maioria do tempo estava fechado no meu quarto.

P. Podia ter ido queixar a outro superior de O.?

R. Eu não acredito neles. Todos os outros poderiam também fazer o mesmo que O. fez

P. Não poderia ter ido pedir ajuda a qualquer NGO ou outro tipo de organização?

R. Eu não sei se essas organizações existem, eu só via na televisão a campanha de sensibilização e na internet.

P. Tem provas dos factos que me contou?

R: Desde que deixei a Gâmbia não voltei a minha terra.

P. E receia voltar então a que país ou países? O que poderia acontecer se regressasse? Porque aconteceria isso?

R. À Gâmbia, eu poderia ser preso por causa do acidente e poderia ser morto pela minha mãe e resto da família, o meu irmão Al, que apoia a minha mãe,

P. Ponderou mudar-se para outra zona do país, para fugir a esses problemas? Porque não? R. Não tenho família noutros locais e a Gâmbia é um país pequeno.

P. Quando é que saiu do seu país?

R. Fui para Y. de carro, desde o dia do acidente, em Março, até ao dia 09.06.2017 altura em que fui para Dacar de carro e ali fiquei 4 ou 5 dias. Sai de Dacar no dia 14.06.2017.

P. Qual era o seu destino final? Mas tinha uma autorização de residência espanhola?

R. Eu tinha o visto para a Ucrânia mas como não era um país seguro e não tem direitos escolhi Portugal por ser seguro e respeitar os direitos Humanos. A Ucrânia tem um mau registo em relação aos direitos humanos.

P. Porque é que não solicitou protecção internacional no Senegal?

R. Porque a Gâmbia fica quase dentro do Senegal, são próximos e eu não me iria sentir seguro ali. Também queria ficar o mais longe possível do meu país.

P. Quem conhece em Portugal?

R. Ninguém.

P. E nos outros países, tem familiares? R. Nos Estados Unidos, Primos e tios.

P. Anteriormente já tinha viajado ou residido em qualquer outro país?

R. Não, fiquei toda a minha vida na Gâmbia.

P. Já pediu protecção internacional, asilo anteriormente?

R. Não.

P. Algum dos membros da família é reconhecido como refugiado em algum país?

R. Não.

P. Alguma vez cumpriu pena de prisão?

R. Não.

P. Alguma vez foi condenado por um crime?

R. Não.

P. Deseja acrescentar alguma coisa?

R. Não.

P. Em Portugal, é-lhe concedido apoio durante todo o procedimento de asilo por uma ONG designada Conselho Português para os Refugiados (CPR). No final do procedimento, é necessária a sua autorização para a informar o CPR da decisão que venha a ser tomada no seu caso. Autoriza?

R. Sim.

E mais não disse, nem lhe foi perguntado, lido o presente auto em Inglês e M que compreende e na qual se expressa, o achou conforme, ratifica e vai assinar juntamente comigo e com o intérprete aqui presente, pelas 16h37horas, hora a que findou este acto.

d) No processo de protecção internacional n.º 545/17, relativamente ao pedido do aqui autor, foi elaborada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a informação n.º 743/GAR/17, na qual pode ler-se, entre o mais, o seguinte (cfr. fls. 37 a 45 do PA), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):

[…]

7. Da apreciação da admissibilidade do pedido

Em resumo, o requerente, de etnia M, solteiro, muçulmano, com o ensino secundário completo e, ser controlador de material de logística num armazém em Fajara, ser residente em Y - Gâmbia, até Março de 2017, altura em que segundo declara, ter-se-á mudado para Y. - Gâmbia. Declara ter deixado a Gâmbia 09/06/2017, altura em que, segundo declara, fora de automóvel para Dakar - Senegal.

Declara ter saído do seu país a Gâmbia, referindo então ter problemas com as autoridades na Gâmbia, mediante em Março de 2017, em data que não sabe precisar, teria tido um acidente de automóvel, sem que para o efeito estivesse habilitado com a carta de condução. Declara também que o faz porque a sua mãe pratica a excisão feminina e, segundo declara pretendia faze-lo à sua irmã de 8 anos a M.. e, que teria reportado à Polícia tal facto.

Refere porém que, o chefe da Polícia o O., teria sido inteirado da queixa, mas que este último também fazia parte dos rituais de excisão e, que teria ido contar a ocorrência à mãe do ora requerente; ao que agora ambos, em conluio, o quereriam matar. Todavia, não apresenta qualquer meio probatório que sustente as suas alegações.

Declara que não ficou no Senegal nem terá pedido protecção internacional naquele país porque, supostamente, correria risco de poder vir a ser detido e entregue às autoridades da Gâmbia; porquanto não se sentia seguro ali e, desta forma, existiria o risco de ele vir a ser detido. Receia então voltar a Gâmbia, por temer ser morto por membros da sua família.

Em análise prévia dos factos sub judice, sublinhe-se que das declarações do requerente se evidencia um relato vago e pouco detalhado, realizado sem o detalhe expectável, quando associado à vivência de facto da natureza dos descritos. O requerente relatou a sua experiência de forma muito genérica, relato esse pautado por contradições e factos incongruentes, oferecendo ao examinado um cenário totalmente desprovido de credibilidade.

Em suma, a demanda de protecção internacional do ora requerente, não é motivado por nenhuma das razões mencionadas e, que se possam enquadrar na definição de refugiado.

Compulsada a base de dados Interpol (INSYST), também é possível aferir que não pende nada referente ao ora requerente, ao invés daquilo que declara de que a Polícia da Gâmbia agora o procurar.

Por último, aquando terá saído do seu país em Maio de 2017 e, segundo declara, terá ido para o Senegal, onde esteve cerca de cinco dias e, não sentiu necessidade de solicitar protecção internacional naquele país, ao invés, fá-lo a ora a Portugal.

Analisando as declarações da requerente e antes de qualquer outra consideração, saliente -se que se evidencia um relato vago e pouco detalhado, realizado sem o detalhe expectável, quando associado à vivência de facto da natureza dos descritos, oferecendo ao examinador um cenário totalmente desprovido de credibilidade

Ora, as declarações prestadas pelo requerente e constantes no ponto 6, n.º 3, da presente informação não configuram elementos objectivos suficientes, por forma a enquadrar a situação do requerente no regime do direito de asilo previsto no artigo 3.º da Lei 27/2008, de 30.6, alterada pela Lei 26/14, de 05.05.

Com efeito o requerente não carreou para os autos nenhuma factualidade que, uma vez provada, fosse susceptível de subsunção na previsão dos normativos que gerem a matéria de asilo. No caso concreto, não se confirma a existência de fundamentos susceptíveis de conferir objectividade ao receio de perseguição alegado, nem tão pouco preenche a previsão do artigo 18.n.º 3, da Lei acima citada. O pedido tem que ancorar-se em factos concretos e objectivos que sejam subsumíveis a qualquer dos pressupostos em que a lei faz depender a concessão do asilo, designadamente em factos que justifiquem o fundado receio de perseguição. O requerente não alegou factos concretos de natureza credível, para lhe poder ser aplicável o disposto no artigo 3.º, nem se verificando o necessário nexo de causalidade para lhe ser concedido o benefício da dúvida.

Em conclusão o requerente não concretiza quaisquer medidas individuais de natureza persecutória de que tenha sido vítima em consequência de actividade por ele exercida em favor da democracia, da libertação social e nacional da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana. Também não é por si invocada qualquer receio de perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade opiniões políticas ou integração em determinado grupo social, nem foi exercida qualquer actividade individual susceptível de provocar um fundado receio de perseguição, na acepção do art.º 3.º, da Lei n.º 27/2008 de 30.06.

Perante o exposto, entende-se que o requerente não apresentou quaisquer factos concretos donde se possa inferir que o requerente tenha sido alvo de ameaças ou perseguições, nos termos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art.º 3.º da Lei 27/2008 de 30.06, pelo que consideramos o pedido de asilo infundado, por se enquadra nas alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 27/08 de 30.06, com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014, de 05.05 pelo facto de não ser subsumível às disposições do regime previsto no artigo 3.º da Lei citada.

8. Da Autorização de Residência por Protecção Subsidiária

O artigo 7.º da Lei n.º27/2007, de 30.06, com as alterações introduzidas pelas 26/2014 de 05.05, atribui aos estrangeiros que não se enquadrem no âmbito de aplicação do direito de asilo previsto no artigo 3º, a possibilidade de obterem uma autorização de residência por protecção subsidiária, quando estão impedidos ou se sentem impossibilitados de regressar ao seu país de origem ou de residência habitual, devido a situações de sistemática violação dos direitos humanos ou por se encontrarem em risco de sofrer ofensa grave.

Face ao alegado no ponto 7 da presente informação, também aqui em sede de análise da autorização de residência por protecção subsidiária, não é de admitir que o requerente, atento o seu caso individual, sinta algum constrangimento na sua esfera pessoal pelas razões que possam levar à concessão de protecção, prevista no regime subsidiário na Lei de Asilo.

Das declarações do requerente não se pode concluir ou inferir que aquele esteve ou possa estar exposto a uma violação grave e sistemática dos seus direitos fundamentais ou se encontrar em risco de sofrer ofensa grave, que torne a sua vida intolerável no país de origem,

Em conclusão, a protecção internacional visa substituir a protecção do pais dr, e no caso em apreço, o requerente não invoca nenhuma razão fundamentada que o impossibilite de regressar por ali se verificar alguma das circunstâncias previstas no regime de protecção subsidiária prevista no artigo 7º da Lei 27/2008, de 30.06 alterada pela Lei 24/2006, de 05.05.

Pelo exposto, afigura-se que o presente caso não é elegível para a protecção subsidiária, por incorrer na alínea c) e e) do n.º 1 do artigo 19 da Lei n.º 27/08, de 30.06, alterada pela Lei 26/14 de 05.05.

9. Proposta

Face aos factos atrás expostos, consideramos o pedido de protecção internacional infundado, por se enquadrar nas alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 19º da Lei n.º 27/08 de 30.06, com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014, de 05.05 pelo facto de não ser subsumível às disposições do regime previsto no artigo 3º da Lei citada.

Tendo em conta o exposto no ponto 8 da presente informação, consideramos que o caso não é subsumível ao estatuto de protecção subsidiária, e por isso infundado, por se enquadrar nas alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 19º da Lei n.º 27/08 de 30.06, com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014, de 05.05”.

e) A 26/06/2017, a Directora Nacional do SEF, proferiu relativamente ao pedido de asilo formulado pelo autor a seguinte decisão (cfr. fls. 36 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):

De acordo com o disposto na alínea c) e e) do n.º 1, do artigo 19.º e n.º 4 do artigo 24.º, ambos da Lei n.º 27/08, de 30 de Junho, alterada pela Lei n.º 26/2014, de 05 de Maio, com base na informação n.º 743/GAR/2017, do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de protecção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como R., nacional da Gâmbia, infundado.

Com base na mesma informação e nos termos das disposições legais acima citadas, considero o pedido de autorização de residência por protecção subsidiária apresentado pelo cidadão acima identificado, infundado.

Notifique-se o interessado nos termos do n.º 5 do art.º 24.º da Lei n.º 27/08, de 30 de Junho, alterada pela Lei n.º 26/2014, de 05 de Maio.”;

f) A 26/06/2017, o autor foi notificado da decisão a que se reporta a alínea anterior do probatório (cfr. fls. 47 do PA);

g) A 25/08/2017, o autor, por intermédio do Conselho Português para os Refugiados requereu a concessão de apoio judiciário ao Instituto da Segurança Social (cfr. fls. 51 do PA);

h) A 12/09/2017, deu entrada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a presente intimação (cfr. fls. 1 dos autos, da numeração SITAF);

i) A 13/11/2017, o autor prestou depoimento de parte (cfr. gravação digital, que se encontra registado no sistema SITAF de 00:01:00 a 01:01:29 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).


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Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa.

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Quanto à motivação do probatório, cumpre referir que a convicção que permitiu dar como provados os factos acima descritos, assentou nos documentos juntos autos, nos documentos constantes do processo administrativo, conforme se indica em cada alínea do probatório, bem como no depoimento de parte que serviu para esclarecer o tribunal quanto à verdadeira motivação do pedido de protecção internacional que o autor formulou junto do Estado Português, inexistindo outras provas que possibilitem, com maiores certezas, fixarem os factos alegados, circunstâncias estas que são apanágio deste tipo de processos de concessão de asilo.

De referir que o autor prestou um depoimento consistente e credível, respondendo prontamente, com clareza e especificadamente, às questões que foram formuladas na inquirição quanto a matéria em causa, em nada divergindo das declarações já prestadas junto da entidade demandada.

A postura e o comportamento do autor durante a prestação do depoimento de parte, designadamente a comoção manifestada, aquando das questões formuladas acerca da mutilação genital feminina da sua irmã, permitiram o convencimento pleno do tribunal da credibilidade das suas declarações, mormente quanto ao receio de perseguição por parte dos seus familiares, bem como das autoridades daquele país, exteriorizado através do medo e temor por referência à perseguição de que alegou ter sido alvo em Março de 2017.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional.

1. Erro de julgamento, na interpretação dos factos e do direito, quanto à demonstração dos requisitos previstos no artigo 3.º ou do artigo 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, por não ser concretizado o alegado receio de perseguição que justifique a necessidade de proteção de asilo ou de protecção subsidiária

Sustenta o Recorrente como fundamento do presente recurso que a sentença recorrida fez errada apreciação dos factos e uma errada interpretação do direito, quanto à verificação dos pressupostos legais para a concessão de asilo e de proteção subsidiária, previstos no artigo 3.º ou do artigo 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, não sendo concretizado o alegado receio de perseguição.

Defende que o Requerente não preenche qualquer dos requisitos legais para beneficiar de proteção internacional.

Vejamos.

Tendo presente o discurso fundamentador da sentença recorrida, com relevo, dela resulta quanto ao fundamento do presente recurso, o seguinte, que ora se transcreve:

Das declarações prestadas pelo autor junto do SEF, bem como do depoimento de parte prestado em tribunal - que no essencial e para o que aqui interessa, em nada divergem - extraem-se, com elevado grau de credibilidade, quatro acontecimentos relevantes para a presente apreciação:

- o primeiro, facto público e notório, noticiado globalmente, da abolição da mutilação genital feminina, levada a cabo pelo presidente daquele país, Yahya Jammeh, em 2015;

- o segundo, a natural oposição de um filho que, confrontado pela sua mãe com a intenção de levar a cabo mutilação genital feminina à sua irmã M.., com quem o aqui autor mantinha laços muito próximos, procede à sua denúncia num departamento policial, considerando a abolição estatal daquela prática;

- terceiro, um possível conluio existente entre o chefe da polícia (Sr. O.), e a sua mãe, que por sua própria mão executava aquelas práticas e rituais e nas quais o chefe da polícia também participava;

- quarto, um possível e real perigo de perseguição, não só dos seus familiares bem, como de elementos da polícia.

E sendo este o ponto partida factual em apreciação, cumpre referir que, não obstante a Gâmbia ter abolido, por vontade presidencial, tal prática de mutilação genital feminina, em bom rigor, verifica-se que ainda em 2016 existia um elevado número de tal prática junto comunidades que compõe o tecido social da Gâmbia e que “de acordo com os dados agora divulgados, as raparigas até aos 14 anos representam 44 milhões das que foram excisadas, registando-se a maior prevalência de MGF nessa faixa etária na Gâmbia com 56 por cento, Mauritânia com 54 por cento e Indonésia onde cerca de metade de todas as raparigas até aos 11 anos foram submetidas à prática” (sublinhado nosso e cfr. relatório da UNICEF de 2016, disponível em https://www.unicef.pt/18/site_pr_unicef- mgf_e_uma_preocupacao_a_escala_global_2016-2-4.pdf)

E na verdade, ainda que dos órgãos estatais superiores, nos diversos países onde tal prática tem vindo a ser abolida, surjam sinais contrários à realização de tal prática (com panfletos informativos sobre os malefícios de tal prática, informação junto das escolas e demais meios de comunicação), a mutilação genital feminina que, pela sua natureza, tem raiz ancestral e é de cariz ritualístico, ainda tem a permissão e conivência consciente das autoridades estatais, designadamente nas polícias e demais autoridades e demora muito tempo a implementar-se no seio das populações e famílias que a praticam (neste sentido e a título de exemplo da Guiné-Bissao, cfr. http://www.dw.com/pt- 002/campanha-forma-autoridades-no-combate-%C3%A0-mutila%C3%A7%C3%A3o-genital-feminina-na- guin%C3%A9-bissau/a-19527154).

Como bem se explica no relatório da UNICEF, de 2013 “Female Genital Mutilation/Cutting: A statistical overview and exploration of the dynamics of change” pág. 15, “Existe uma obrigação social de conformismo em relação à prática e a crença genera lizada de que se as famílias não o fizerem estão sujeitas a pagar um preço que inclui a exclusão social, criticismo, ridicularização, estigma ou a incapacidade de encontrar potenciais maridos para as filhas (tradução livre, e original em relatório disponível em http://data.unicef.org/resources/female-genital-mutilationcutting-statistical-overview- exploration-dynamics-change”.

E aqui chegados, o que se verifica - considerando as declarações do autor - é a existência um acto de repulsa e contrariedade do aqui autor, perante a circunstância de facto, da intenção da sua mãe levar a cabo tal prática de mutilação genital na sua irmã, de 8 anos, com a sequente denúncia de tal intenção junto das autoridades.

Contudo, torna-se necessário compreender que tal acto, naquele país, assume especial relevo e gravidade, atentas as concretas circunstâncias da família do autor, designadamente o facto de sua mãe ser a própria a praticar tais actos de mutilação, bem como o facto de a família pertencer a uma classe média, mas que se vislumbra ter, naquele meio, alguma relevância social na práticas de tais rituais de excisão.

Por outro lado, e não sendo possível ao Tribunal determinar com certeza, as reais circunstâncias em que o chefe da polícia contactou com a mãe do aqui autor e bem assim, determinou ou não, uma perseguição ao aqui autor – considerando a inexistência de relatos objectivos nesse sentido, conforme bem alega o SEF - é com a certeza bastante que se conclui que tal acto de oposição à prática da excisão à sua irmã, determinou uma alteração substancial no quotidiano do autor e que o levou a uma fuga da sua casa morada de família, ainda que com a ajuda do seu primo, sendo o acidente de carro que relatou um mero dano colateral dessa fuga, não só da família, bem como de eventuais agentes de autoridade envolvidos na perseguição, o que se admite ter acontecido com elevada probabilidade.

De salientar que este depoimento cândido sobre o acidente que o autor prestou, reforça ainda mais a convicção do tribunal, no que toca a veracidade de todo o relato efectuado pelo autor sobre o sucedido, na medida em que, por inocência ou desconhecimento, traz aos autos um facto que eventualmente lhe seria prejudicial na análise do processo de protecção internacional que formulou.

E aqui chegados perante todo o quadro factual aqui espelhado, chegamos à conclusão que efectivamente existe um fundado receio de perseguição do autor que teme, maxime pela sua própria vida, considerando o acto de oposição no seio familiar que manifestou, contra a mutilação da sua irmã de 8 anos, com todas as ocorrências colaterais que se seguiram, sendo razoável considerar que efectivamente tal perseguição pode vir a ocorrer, mais sendo aceitável considerar que as autoridades daquele país não se encontram em condições de travar tal perseguição ou sequer que exista qualquer tipo de protecção eficaz do autor logo que chegasse à Gâmbia, até pela instabilidade política e social que se vive ainda, após a crise política ocorrida em Janeiro de 2017 (neste sentido cfr. http://www.acnur.org/portugues/noticias/noticia/cerca -de-45000- pessoas-deixaram-a-gambia-em-meio-a-incerteza-politica-no-pais);

Ora, conforme determina o supra transcrito artigo 3.º, n.º2 da Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio “[t]êm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, considerando-se “Motivos da perseguição”, os que fundamentam o receio fundado de o requerente ser perseguido (cfr. artigo 2.) que devem ser apreciados tendo em conta as noções de “Religião”, que abrange, designadamente, o facto de se ter convicções teístas, não teístas e ateias, a participação ou a abstenção de participação em cerimónias de culto privadas ou públicas, quer a título individual, quer em conjunto com outras pessoas, noutros atos religiosos ou expressões de convicções, ou formas de comportamento pessoal ou comunitário fundadas em credos religiosos ou por estes impostas ” (sublinhados nossos);

Por sua vez, nos termos do artigo 5.º, prevê-se que “os atos de perseguição susceptíveis de fundamentar o direito de asilo devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais, ou traduzir-se num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais” designadamente a falta de protecção dos agentes do estado em relação a tais actos.

E subsumindo os factos supra transcritos ao direito, resulta claro ao Tribunal que o autor encontra agasalho nos pressupostos previstos na lei do asilo, designadamente na parte relativa à oposição e afronta do autor a uma prática ritualística/religiosa, ainda que de forma individual e isolada, com contornos estritamente familiares, sem qualquer exteriorização pública, mas que teve como consequência uma perseguição levada a cabo por esses mesmos familiares – designadamente irmão, mãe e demais familiares – não existindo por partes das autoridades daquele país uma protecção adequada e eficaz perante tal perseguição, sendo eventualmente até aqueles agentes estatais co-autores de tal perseguição, que poderão afectar e resultar numa grave afectação de direitos fundamentais do autor ou fazer perigar a própria vida do mesmo.

Nestes termos, sem necessidade de mais considerações, verifica-se que estão reunidos os pressupostos legais para que o pedido de protecção internacional formulado pelo Autor seja deferido nos termos previstos no artigo 3.º, n.º 2, conjugado com as definições previstas no artigo 2.º e artigo 5.º, todos da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho.”.

Explanada a análise e valoração dos factos, assim como a respectiva interpretação do direito efectuadas pelo Tribunal a quo, importa considerar se os factos que se dão como provados em juízo, permitem sustentar o julgamento ora recorrido.

O Tribunal a quo destaca quatro acontecimentos relevantes, donde faz assentar a verificação dos pressupostos para a concessão do asilo do requerente.

Porém, se a matéria de facto assente dita a verificação dos três primeiros acontecimentos enunciados na sentença recorrida, nada resulta nos autos, quer quanto à demonstração, mediante prova da veracidade desse facto, quer quanto a ser possível extrair um juízo de verosimilhança ou de elevada probabilidade ou ainda, segundo a aplicação de um princípio de benefício da dúvida, quanto à verificação do quarto acontecimento, respeitante a um possível e real perigo de perseguição do requerente, não só dos seus familiares, como dos elementos da polícia.

Da matéria factual que resulta da selecção da matéria de facto, alicerçada nas declarações prestadas pelo requerente, quer no âmbito do procedimento de asilo, quer no âmbito do presente processo judicial, não se extrai qualquer relato relativo a qualquer ato de perseguição, seja por parte de algum familiar, seja por algum elemento policial.

O requerente de asilo e de protecção subsidiária limita-se a dizer que após ter contado à polícia que a sua mãe pretendia realizar a mutilação genital à sua irmã menor de idade, o seu “primo L. disse que se eu não fugisse dali, talvez a polícia e a minha mãe seriam capazes de me matar”, o que levou o requerente a ir de mota com o seu primo para F., onde acabou por ter um acidente de viação.

Mais relatou o requerente de asilo que foi em consequência do acidente que passou a ser procurado pela polícia, pois “o assunto da mutilação ficou só entre mim, O. (o polícia) e a minha mãe, eles esconderam o facto de eu ter reportado aquilo a polícia”.

Sobre porque motivo o requerente saiu do seu país, a resposta dada foi a de que “inicialmente foi por causa da minha família mas depois foi por causa do acidente”.

Ainda é possível extrair do relato do requerente que após ter feito queixa da sua mãe à polícia ficou “dois ou três dias” em sua casa, mas “não estava bem com eles”, referindo-se aos seus familiares.

Posteriormente, questionado se receia voltar ao seu país, o requerente afirmou recear ser morto pela sua mãe e resto da família, por o seu irmão Al apoiar a sua mãe, assim como recear ser preso pela polícia, por causa do acidente.

Em face das declarações prestadas pelo requerente de asilo e de protecção subsidiária não existe um único relato sobre a ameaça contra a sua vida ou integridade física, quer por qualquer membro da sua família, quer por qualquer elemento da polícia ou qualquer outro.

Em nenhum momento o requerente foi ameaçado ou sofreu o risco de sofrer na sua autodeterminação individual e religiosa, não sendo apresentado qualquer relato de perseguição ou de um medo real de regressar ao país de origem, a Gâmbia.

Mesmo após denunciar a sua mãe pela intenção de realizar a mutilação genital feminina na pessoa da sua irmã, o requerente permaneceu dois ou três dias em casa, com os restantes familiares com que residia, sem relatar qualquer mau trato, ofensa ou risco para a sua vida ou integridade física, alegando apenas “não estar bem” com os elementos da sua família

Resulta mesmo das declarações do requerente que o mesmo apenas fugiu devido ao que o seu primo lhe disse sobre o receio que podia passar a enfrentar, sendo seguro dizer que o requerente antes desse conselho do seu primo não havia sentido qualquer receio, dizendo apenas que não estava bem com os seus familiares.

Uma desavença ou discordância familiares não podem servir de fundamento para a obtenção do estatuto de refugiado, nem para a concessão de asilo ou de protecção subsidiária.

Do mesmo modo que a intervenção do requerente num acidente de viação e o eventual apuramento da sua responsabilidade por parte das autoridades policiais, não constituem fundamentos para integrar os requisitos de asilo e de proteção subsidiária, sendo esse o único receio alegado em relação às autoridades policiais.

Acresce que resulta expressamente da sentença recorrida que o relato factual do requerente, prestado na fase de instrução da ação, coincide com o que foi prestado perante a entidade demandada, donde se extrai da sentença que o requerente não revelou ao Tribunal a quo outros factos donde se possa fundar o receio de perseguição ou contra a sua vida.

Assim, não obstante o princípio da imediação da prova e se reconhecer ao Tribunal a quo uma posição privilegiada para a valoração da prova, no presente caso, como referido, não se põe em crise a veracidade dos factos relatados pelo requerente, mas antes que os mesmos permitam caracterizar o risco de perseguição.

Para além disso, o Tribunal não levou ao probatório quaisquer factos que tenham resultado provados em consequência da actividade instrutória desenvolvida, tendo-se limitado a remeter para o depoimento prestado pelo requerente, que se encontra gravado, mas sem dele extrair quaisquer factos.

Por isso, é com base no julgamento de facto que consta da sentença recorrida e contra o qual nenhuma das partes se insurge, que tem de ser alicerçado o julgamento de direito.

Por todos estes motivos, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo não é possível concluir quanto à existência de um risco de perseguição ou quanto à ameaça da vida ou integridade física do requerente, por as declarações do próprio requerente, prestadas junto da Entidade Demandada e mantidas perante o Tribunal a quo, sem que perante este tenham sido aduzidos novos elementos factuais, assim não permitirem concluir, à luz de critérios de verosimilhança ou segundo um princípio da dúvida, sem se exigir um critério de certeza.

Integrando a fundamentação da sentença recorrida que o depoimento do requerente confirma o relato antes prestado junto da Entidade Demandada, em face do seu exato teor não é possível retirar qualquer ato de perseguição ou sequer o receio fundado de perseguição.

Por este motivo, assiste razão ao Recorrente, assim como ao digno Magistrado do Ministério Público, ao defenderem uma errada apreciação dos factos por parte do Tribunal a quo.

Mesmo considerando o princípio da mitigação do ónus probatório e o princípio da dúvida não são apresentados quaisquer factos que permitam sustentar o risco de perseguição ou de ameaça.

Assim, em rigor, nem sequer se está perante um relato pouco consistente ou pouco verosímil, mas antes uma situação de ausência de factos ou de indícios que revelem a verificação do requisito da ameaça para a vida ou integridade física ou o risco de perseguição.

É sabido que compete ao requerente do direito de asilo o ónus de alegar e demonstrar, de forma direta ou indireta, o seu fundamentado receio de vir a ser perseguido por qualquer dos motivos enunciados na lei, convencendo as entidades competentes de que foi ou está, individualmente, sujeito a perseguições ou ameaças no país de que é nacional ou residente habitual, com o enquadramento aí especificado, o que no caso não ocorre.

Embora considerando a natureza pública dos direitos que se pretendem salvaguardar através da concessão do asilo e do facto de, na maioria dos casos, ser difícil ou impossível a prova dos factos alegados, este ónus é mitigado pela concessão do benefício da dúvida, atendendo às especiais circunstâncias em que o pedido é formulado e desde que a versão dos factos alegada pelo requerente seja credível, coerente e consistente, o que falha no presente caso.

Admitindo-se que o requerente possa sentir algum receio ou insegurança subjetiva de que algum mal lhe possa acontecer, caso regresse ao seu país de origem, tal não é suficiente para efeitos de concessão da proteção de asilo ou de proteção subsidiária, de autorização de residência por razões humanitárias.

Não existe nenhuma ameaça pessoal concretizada de facto, seja por parte de familiares, quer pela polícia, que permita sustentar o receito pessoal de morte ou de perseguição.

O julgamento a que procedeu o Tribunal a quo afigura-se, por isso, incorreto, quer em face do teor das declarações do requerente do pedido de asilo, quer nos termos em que vem a juízo, não se sendo de subsumir as circunstâncias de facto apuradas à tutela do direito de asilo, por não se encontrar concretizada qualquer situação de perseguição ou de ameaça de perseguição da pessoa do requerente do ponto de vista objetivo.

O requerente não produziu declarações que permitam extrair que vá ser perseguido caso regresse ao seu país de origem e, nem ainda, que esteja impossibilitado de a ele regressar, para a mesma localidade ou para localidade diferente em relação à que vivia antes de sair do país.

Assim, não é possível extrair das próprias declarações do interessado qualquer ato ou situação individual e pessoal concretizado de perseguição em que a sua vida tenha sido efetivamente ameaçada.

Pelo que, em consequência da citada errada valoração dos factos apurados, não se pode manter o julgamento de direito da sentença recorrida.

A interpretação e aplicação do direito aos factos apurados, com especial relevo para o teor das declarações prestadas pelo requerente, nos exatos termos exarados da sentença, traduz um julgamento que não permite dar por verificados os requisitos legais para a concessão de asilo ou de protecção subsidiária.

O direito europeu, na Diretiva Qualificação, prevê as condições de elegibilidade do estatuto de refugiado e de concessão do direito de asilo, assim como da concessão do estatuto de proteção subsidiária, transpostas para a Lei n.º 27/2008, de 30/06 (Lei do asilo), na redação aplicável.

No quadro do direito internacional, decorrentes da Convenção de Genebra, de 28/07/1951, e do Protocolo de 31/01/1967, relativos ao estatuto dos refugiados, o direito europeu de asilo encontra concretização legislativa nacional na Lei n.º 27/2008, de 30/06, alterada pela Lei n.º 26/2014, de 05/05, que a republicou, a qual transpondo para a ordem jurídica interna cinco directivas comunitárias, estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo e protecção subsidiária e ainda os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de autorização de residência por protecção subsidiária.

Em conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado português com o disposto no artigo 18.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e na Directiva n.º 2004/83/CE, do Conselho, de 29/04, o legislador nacional veio ampliar os casos de concessão do direito de asilo, estabelecendo, no artigo 3.º o seguinte:

1 - É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de actividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.

2 - Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.

(…)

4 - Para efeitos do n.º 2, é irrelevante que o requerente possua efectivamente a característica associada à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou político que induz a perseguição, desde que tal característica lhe seja atribuída pelo agente da perseguição”.

Quanto ao que se consideram ser os “Motivos da perseguição”, fundamentando o receio fundado de o requerente ser perseguido (cfr. artigo 2.º), esses motivos devem ser apreciados tendo em conta a noção de “religião”, que abrange, as convicções teístas, não teístas e ateias, a participação ou a abstenção de participação em cerimónias de culto privadas ou públicas, quer a título individual, quer em conjunto com outras pessoas, noutros atos religiosos ou expressões de convicções, ou formas de comportamento pessoal ou comunitário fundadas em credos religiosos ou por estes impostas.

Nos termos do artigo 5.º da Lei de Asilo, prevê-se que:

1 - Para efeitos do artigo 3.º, os atos de perseguição susceptíveis de fundamentar o direito de asilo devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais, ou traduzir -se num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais.

2 - Os atos de perseguição referidos no número anterior podem, nomeadamente, assumiras seguintes formas:

a) Atos de violência física ou mental, inclusive de natureza sexual;

b) Medidas legais, administrativas, policiais ou judiciais, quando forem discriminatórias ou aplicadas de forma discriminatória;

c) Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias; ( ... )

4 - Para efeitos do reconhecimento do direito de asilo tem de existir um nexo entre os motivos da perseguição e os atos de perseguição referidos no n.º 1 ou a falta de proteção em relação a tais atos.”.

Mesmo que seja adoptado um conceito amplo quanto aos agentes de perseguição, seguindo o artigo 6.º da Lei de Asilo, podendo ser tanto as entidades públicas e oficiais, partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território e ainda os agentes não estatais, se ficar provado que os agentes estatais são incapazes ou não querem proporcionar proteção contra a perseguição, não assegurando o acesso a proteção efectiva, o certo é que perante os contornos fácticos da situação sub judice, não se pode concluir pela presença de qualquer agente de perseguição, seja público ou privado.

Tal como decidido no Acórdão deste TCAS n.º 10920/14, de 20/03/2014: “Prevê o nº 1, do artº 3º da Lei nº 27/2008, de 30/06, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou protecção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de protecção subsidiária, transpondo para a ordem jurídica interna as Directivas n.ºs 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de Abril, e 2005/85/CE, do Conselho, de 1 de Dezembro, tal como no 1º parágrafo da Secção A, do artº 1º da Convenção de Genebra, referente ao estatuto dos refugiados, os requisitos para a concessão do direito de asilo, a saber, que o requerente: (i) seja estrangeiro ou apátrida; (ii) seja objecto de perseguição em consequência de actividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana e (iii) se sinta gravemente ameaçado em consequência da actividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da residência habitual pelos motivos referidos no ponto anterior.

Tais requisitos não se verificam no caso concreto, nos termos em que o revelam a matéria de facto dada por assente, baseada nas declarações do requerente.

Do mesmo modo quanto ao decidido em relação à concessão da protecção subsidiária conferida pela autorização de residência por razões humanitárias, nos termos do disposto no artº 7º da Lei nº 27/08, de 20/08.

(…) Por outro lado, embora se possa extrair das declarações do requerente a existência de um sentimento de insegurança, não se pode extrair que exista o risco sério de o Autor vir a sofrer ofensa grave, tanto mais que alegou nunca ter tido problemas quer com as autoridades, que com ninguém.

Tal como entendeu a sentença recorrida, não se afigura que tenha ficado indiciada a possibilidade de que no caso de o Autor regressar ao seu país de origem (…) ocorra ameaça grave contra a sua vida, pelo que, não estão reunidos os pressupostos que permitam o deferimento, seja da pretensão de asilo, seja perante o disposto no artº 7º da Lei nº 27/2008.

O receio que o Autor caracteriza, integra apenas o elemento subjectivo, não invocando quaisquer factos que de uma forma objectiva revelem o intento persecutório, que afectem o requerente de asilo (…)

Das declarações do ora Recorrente, requerente do pedido de asilo, não resulta que o mesmo seja objecto de perseguição, nem se apresenta suficientemente caracterizada uma ameaça à sua integridade física ou à sua própria vida.

(…) O relato dos factos não apresenta concretização factual suficiente para revelar que a ameaça sentida pelo Requerente seja objectiva ou tão pouco que o mesmo se sinta gravemente ameaçado de perseguição.”.

Assim, conclui-se pela procedência do fundamento do recurso, quanto ao erro de julgamento de facto e de direito que se mostra assacado contra a sentença recorrida, a qual não se pode manter na ordem jurídica, pois em face da matéria de facto assente e do seu enquadramento nos normativos de direito aplicáveis, não se verificarem os pressupostos legais para poder ser deferido, quer o pedido de asilo, quer o de proteção subsidiária apresentados pelo requerente.


*

Termos em que será de conceder provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, por provados os seus fundamentos.

***


Sumariando, nos termos do nº 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. O n.º 1 do art.º 3º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, transpondo para a ordem jurídica interna as Diretivas n.ºs 2004/83/CE, do Conselho, de 29/04, e 2005/85/CE, do Conselho, de 01/12, tal como no 1º parágrafo da Secção A, do artigo 1.º da Convenção de Genebra, referente ao estatuto dos refugiados, prevê quanto aos requisitos para a concessão do direito de asilo que o requerente:

(i) seja estrangeiro ou apátrida;

(ii) seja objeto de perseguição em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana e

(iii) se sinta gravemente ameaçado em consequência da atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da residência habitual pelos motivos referidos no ponto anterior.

II. Não se extraindo das declarações do requerente, que tenha sido objeto de perseguição ou de ameaça, seja por parte dos seus familiares, seja pela polícia, em consequência de denúncia da sua mãe pela vontade de realizar mutilação genital feminina, não foram alegados factos que permitam fundar o pedido de asilo, à luz do n.º 2 do artigo 3º da Lei n.º 27/2008.

III. Não se mostrando alicerçado do ponto de vista factual que o requerente possua o fundado receio de ser perseguido em virtude da raça, da religião, da nacionalidade, de opiniões políticas ou de integração em certo grupo social e que não possa ou não queira voltar, em virtude desse receio, ao Estado da sua nacionalidade ou residência, não estão reunidos os requisitos para a concessão de asilo ou de proteção subsidiária, segundo os artigos 3.º e 7.º da Lei n.º 27/2008, mesmo à luz de um juízo de verosimilhança ou segundo um princípio de benefício da dúvida.


*

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, por provados os seus respetivos fundamentos, em revogar a sentença recorrida por erro de julgamento na valoração dos factos e na aplicação do direito e, em julgar improcedente, o pedido de asilo ou de protecção subsidiária, por falta dos seus respectivos pressupostos legais.

Sem custas – art.º 84º da Lei nº 27/2008, de 30/06.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)


(Pedro Marques) (Declaração de voto)

(Helena Canelas)


Declaração de voto:

Votei vencido por duas ordens de razões:

1.ª- O recurso interposto, composto por 7 conclusões e que aliás não identifica sequer as normas jurídicas violadas pela sentença recorrida, limita-se a reproduzir o alegado na contestação apresentada, não imputando à sentença vícios que lhe sejam próprios e que revelem o apenas genérica e conclusivamente alegado erro de julgamento. Em boa verdade, o recurso jurisdicional apresentado tanto serve para o presente processo, como para qualquer outro nesta matéria. Nessa medida é ineficaz.

2.ª- Substancialmente, a entender-se, como está subjacente na tese que obteve vencimento, que se permite descortinar a imputação de erro de julgamento na aplicação do regime jurídico de referência da protecção internacional, perante a matéria de facto que vem provada – e que não é sujeita a qualquer impugnação – a conclusão alcançada pelo tribunal a quo é acertada. Deverá valorizar-se o depoimento do requerente no tribunal a quo até porque neste se está numa posição privilegiada em termos de recolha dos elementos e sua posterior ponderação (princípio da imediação da prova). Veja-se o que se escreveu na sentença recorrida e que, salvo o devido respeito, não é minimamente abalado: “De salientar que este depoimento cândido sobre o acidente que o autor prestou, reforça ainda mais a convicção do tribunal, no que toca a veracidade de todo o relato efectuado pelo autor sobre o sucedido, na medida em que, por inocência ou desconhecimento, traz aos autos um facto que eventualmente lhe seria prejudicial na análise do processo de protecção internacional que formulou. // E aqui chegados perante todo o quadro factual aqui espelhado, chegamos à conclusão que efectivamente existe um fundado receio de perseguição do autor que teme, maxime pela sua própria vida, considerando o acto de oposição no seio familiar que manifestou, contra a mutilação da sua irmã de 8 anos, com todas as ocorrências colaterais que se seguiram, sendo razoável considerar que efectivamente tal perseguição pode vir a ocorrer, mais sendo aceitável considerar que as autoridades daquele país não se encontram em condições de travar tal perseguição ou sequer que exista qualquer tipo de protecção eficaz do autor logo que chegasse à Gâmbia, até pela instabilidade política e social que se vive ainda, após a crise política ocorrida em Janeiro de 2017 (neste sentido cfr. http://www.acnur.org/portugues/noticias/noticia/cerca -de-45000- pessoas-deixaram-a-gambia-em-meio-a-incerteza-politica-no-pais).

A alegação de que existe perigo para a vida do requerente de asilo - o que vem expressamente alegado - será sustentada em regras sociais e culturais no país de origem, aceitando-se que nestas situações os familiares que denunciam práticas enraizadas mas actualmente proibidas (na lei) por parte de outros membros da família possam estar sujeitos a perseguição e atentados contra a sua vida.

Por outro lado, mesmo a entender-se que não se está perante um caso de asilo, sempre sobra a protecção subsidiária que, pelo menos esta, se justificará. Do meu ponto de vista, a situação descrita nos autos responde positivamente à ponderação a efectuar para efeitos do regime de protecção subsidiária previsto no art. 7.º do regime jurídico aprovado pela Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho (na redacção dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio), o qual admite a atribuição de autorização de residência por razões humanitárias aos requerentes que se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer por sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por se verificar o risco dos interessados sofrerem ofensa grave (a ofensa grave, na norma exemplificativamente enumerada, pode consistir em: pena de morte ou execução; tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu país de origem; ameaça grave contra a vida ou integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos).

A decisão administrativa impugnada consubstancia um entendimento desproporcionado, por excessivamente restritivo, do princípio do benefício da dúvida e ofende o princípio do non-refoulement consagrado no art. 33.º da Convenção de Genebra de 1951, conjugado com o preceito do art. 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Pelo que, em conclusão, teria negado provimento ao recurso e mantido a sentença recorrida.