Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05674/12
Secção:CT-2º JUÍZO
Data do Acordão:04/14/2015
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO EXTERNA E PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO INTERNA.
PRINCÍPIO DA IRREPETIBILIDADE DAS INSPECÇÕES, DA LEGALIDADE, DA JUSTIÇA, DA IGUALDADE, DA PROPORCIONALIDADE E DA JUSTIÇA
Sumário:I – Por força do preceituado no artigo 63.º n.º 4 da Lei Geral Tributária, a Administração Tributária só pode realizar mais de um procedimento externo de fiscalização ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, se o dirigente máximo do serviço emitir decisão fundamentada, baseada na ocorrência de factos novos ou tiver em vista a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária ou o apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.
II – Deve qualificar-se como externo o procedimento quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso [artigo 13.º al. b), 34.º n.º 1 e 56.º n.º 1 e 51.º n.º 2 do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPIT)]
III – Se nos autos se mostra provado que, quanto ao exercício de 2001 e relativamente à Recorrida decorreram dois procedimentos inspectivos, um, a coberto do Despacho 2005 01296, datado de 07/06/2005 e notificado à impugnante em 13/06/2005, destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos e outro, a coberto da Ordem de Serviço n.° 2005 03418, datada de 13/09/2005 e notificado à impugnante em 14/09/2005, do qual resultaram as correcções agora em análise, e que ambos decorreram nas instalações da Impugnante, deve concluir-se que ambos os procedimentos inspectivos são externos e, consequentemente, pela ilegalidade do procedimento do qual emergiu a liquidação realizada.
IV - A essa conclusão não obsta o facto de os objectivos visados serem distintos uma vez que a restrição prevista no n.° 4 do artigo 63.° da Lei Geral Tributária – imposta pela necessidade de impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspecção visa prosseguir - não se encontra estabelecida em função do tipo ou fim do procedimento mas do local onde o mesmo deva ocorrer.
V – Tal como não afecta a validade da mesma conclusão o facto de num dos procedimentos a Administração Fiscal, a final, não emitir Relatório ou dele não notificar o sujeito passivo, não só porque o legislador não erigiu essa circunstância em condição de admissibilidade de repetição do procedimento externo, como a própria legitimidade e admissibilidade dessa circunstancia inviabilizaria os objectivos visados com a restrição referida com a consequente violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da proporcionalidade e da boa-fé a que a Administração fiscal em primeira linha está obrigada a observar.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I – Relatório

A Fazenda Pública, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por “………………………, Lda.” contra o acto de liquidação adicional de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e juros compensatórios, relativo ao exercício de 2001, dela veio interpor o presente recurso.

Nas alegações apresentadas, em que fundamenta a interposição do recurso, conclui nos seguintes termos (registando-se, desde já, o lapso da Recorrente na numeração das conclusões – omissão de conclusão “III-“ a cuja correcção não procedemos oficiosamente por não lhe atribuir qualquer relevo):

«Com o devido respeito pela douta sentença de que se recorre e salvo melhor e mais acertada opinião, entendemos que a mesma deve ser revogada e substituída por outra, onde seja julgada improcedente a presente impugnação, tendo em conta o que sumariamente se conclui:

I - Insuficiência da matéria de facto dada por provada porquanto no douto aresto não consta do probatório alusão a quaisquer "elementos juntos aos autos" que permitam conhecer ou concluir sobre o objectivo do procedimento de consulta, recolha e cruzamento de elementos realizado ao abrigo do Despacho de Inspecção N.°Dl ………………...

II - Os elementos no processo que dão conta do objectivo/sujeito visado na consulta, recolha e cruzamento de elementos, apontam em sentido diverso do assumido na douta sentença, que cingiu a possibilidade do objectivo à Impugnante.

IV - Erro de julgamento ao assumir-se na douta sentença que o procedimento de consulta, recolha e cruzamento de elementos visou a Impugnante, com o fundamento de a data de assinatura da Nota de Diligência respectiva ser posterior à data de elaboração do relatório da inspecção à ……………………..

V - Erro de julgamento acerca da impossibilidade de realização de dois procedimentos externos que visem a mesma entidade quando num deles a AT não tome qualquer posição sobre a situação tributária da entidade visada;

Nestes termos e com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença do Meritíssimo Juiz "a quo", substituindo-se por outra em que seja julgado totalmente improcedente a presente impugnação».

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Não foram apresentadas contra-alegações pela Recorrida.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal Central pugnou, no parecer que emitiu, pela procedência do recurso.

Colhidos os «Vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

II - Objecto do recurso

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remate a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º639°, n°1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635°, n°2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n°3 do mesmo art. 635°), pelo que, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, importa, assim, decidir as seguintes questões:

- A sentença recorrida padece de erro de julgamento (i) por o Tribunal a quo não ter apurado a matéria necessária à decisão da causa no que se reporta ao objectivo de ambos os procedimentos questionados nos autos [que a Meritíssima Juiz concluiu ser idêntico com fundamento em "elementos juntos aos autos" que não identificou, sendo que os existentes nos autos até apontam no sentido de serem distintos esses objectivos] e por ter extraído, mal, do facto de a data de assinatura da Nota de Diligência num desses procedimentos ser posterior à data de elaboração do relatório da inspecção a um terceiro sujeito passivo, a conclusão de que aquele concreto procedimento (de consulta, recolha e cruzamento de elementos) visara a Impugnante (conclusões I, II e IV)?

- Errou o Tribunal a quo ao ter julgado legalmente inadmissível a realização de dois procedimentos externos que visem a mesma entidade, mesmo que num deles a Administração Tributária não tome qualquer posição sobre a situação tributária daquela e ao concluir que a inexistência de despacho autorizador do segundo procedimento inspectivo com fundamento em factos novos afecta a validade da liquidação de imposto (conclusões V e VI)?

III - Fundamentação de Facto

A sentença recorrida deu como assente a factualidade que infra se reproduz:

A) A coberto do despacho nº DI 2005 01296, a impugnante foi alvo de uma ação inspetiva tributária, destinada a consulta, recolha e cruzamento de elementos - fls. 94.

B) A impugnante tomou conhecimento do despacho referido na alínea antecedente em 13/06/2005, data em quo o mesmo foi assinado pela sua contabilista - fls. 94.

C) A nota de diligência respeitante à ação inspetiva referida em A) supra foi assinada pela impugnante em 21/10/2005 - fls. 96.

D) A coberto da ordem de serviço n°………………., a impugnante foi alvo de uma ação de inspeção tributária, no âmbito da qual foi elaborado o relatório de fls. 36 a 48 do p.a., que se dá por integralmente reproduzido.

E) A impugnante foi notificada da ordem de serviço n°……………….. em 14/09/2005 e a Nota de diligência correspondente foi assinada em 21/10/2005 -fls. 77 e 95,

F) O relatório inspetivo referido em A) supra foi notificado à impugnante em 24/11/2005, conforme resulta da nota aposta pela mesma a fls. 78, da qual consta «Recebido em 24/11/05».

G) A sociedade comercial …………………………., Lda, também foi alvo de uma inspeção tributária pela Direção de Finanças de Lisboa, tendo sido produzida a Informação Comunicada à DF de Santarém a coberto do ofício n°052869, de 13/08/2005, de fls. 53 a 99 do p.a., que também se dá por integralmente reproduzida

H) A coberto da Ordem de Serviço ………………….., foi efetuada inspeção tributária à referida ......................................, Lda que incidiu sobre IVA e IRC do ano de 2001, no âmbito da qual, em 23/09/2005, foi elaborado o relatório de fls. 317 a 331, que também se dá aqui por integralmente reproduzido.

I) Em 17/12/2005 foi emitida em nome da impugnante a liquidação adicional de IRC, respeitante aos rendimentos do ano de 2001, com o n°……………., em que se apurou o valor a pagar de 296.254,03€ - fls. 274.

J) Na mesma data, foi emitida a Compensação n°…………………, bem como a Nota d e Compensação n°……………….. - fls. 274 e 275.

K) O documento n°……………….., foi notificado à impugnante a coberto de correio registado em 15/12/2005, sob o nº RY………………., recebido pela impugnante em 16/12/2005 - fls. 275 e 276.

L) O documento n°………………., foi notificado à impugnante a coberto de correio registado em 20-12-2005, sob o nº RY……………….., recebido pela impugnante em 22/12/2005 - fls. 275 e 278.

Mais ficou consignado, a título de «Factos não provados» que «Com interesse para a decisão não se provaram outros factos» e, em sede de «Motivação da decisão de facto» que «A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos referidos em cada uma das alíneas antecedentes».

IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Tendo presentes as questões por nós identificadas no ponto II supra, importa, agora, das mesmas apreciar e decidir, começando, naturalmente, pelo erro de julgamento por insuficiência da matéria de facto e quanto às conclusões de facto que daquele probatório foram extraídas.

Nesse sentido, recorde-se que para a Recorrente o Tribunal a quo andou mal, desde logo por ter sustentado a ilegalidade do procedimento, por violação do artigo 63.º n.º 3 da Lei Geral Tributária (actual n.º 4 da mesma Lei, doravante designada apenas por LGT) na circunstância de facto de que o objectivo de ambos os procedimentos realizados foi o mesmo.

Na verdade, diz a Recorrente, para sustentar essa decisão a Meritíssima Juiz faz referência a uma alegada admissão da Fazenda Pública desse facto e convoca “elementos juntos dos autos”, os quais não estão identificados no probatório, situação que assume maior gravidade por existirem elementos nos autos que apontam precisamente em sentido inverso.

Erro de julgamento que se estende, em seu entender, à própria conclusão de facto de que o procedimento de consulta, recolha e cruzamento de elementos visou a Impugnante e que o Tribunal a quo extraiu do facto de a data de assinatura da Nota de Diligência respectiva ser posterior à data de elaboração do relatório da inspecção à …………………., quando esta factualidade, só por si, não permite concluir nesse sentido.

Vejamos, pois, o que nesta parte se nos oferece dizer, sem primeiro deixarmos de fazer uma precisão que, como veremos, assume toda a diferença na perspectiva de análise do acerto da decisão ou dos erros de que padecerá.

Efectivamente, distintamente do que pretende fazer crer a Recorrente (quiçá por não ter atentado com rigor no percurso fáctico jurídico exposto na decisão), a ilegalidade do procedimento não radicou na sentença recorrida num julgamento de identidade de um mesmo objectivo em ambos os procedimentos inspectivos mas no facto de ter havido dois procedimentos, relativamente ao mesmo sujeito e tributo, ambos realizados nas instalações da Impugnante e que tal circunstancialismo era suficiente para se julgar violado o artigo 63.º n.º 4 da LGT, na interpretação que dele fez o Tribunal a quo.

O que vimos dizendo é facilmente reconhecível da leitura da decisão recorrida, da qual consta, na parte que ora releva, que:

«ii) Vícios do procedimento inspectivo.

(…)

Alega a impugnante que a inspecção tributária encontrava-se, na mesma altura, a fazer inspecções referentes aos anos de 2001 a 2004 e que, o próprio ano de 2001, foi alvo de dois procedimentos externos de inspecção distintos.

(…)

No caso vertente e quanto ao exercício de 2001, de facto, decorreram dois procedimentos inspetivos: um, a coberto do Despacho 2005 01296, datado de 07/06/2005 e notificado à impugnante em 13/06/2005, destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos; outra, a coberto da Ordem de Serviço n.°…………….., datada de 13/09/2005 e notificado à impugnante em 14/09/2005, do qual resultaram as correções agora em análise. E tendo em conta que ambos tiveram lugar nas instalações da impugnante, termos de concluir estarmos perante dois procedimentos externos de inspeção tributária.

Dúvidas não podem suscitar-se, em como ambos os ditos procedimentos visaram a impugnante, como o admite a Fazenda Pública e decorre dos elementos juntos aos autos; mesmo conjecturando-se a hipótese de a consulta, recolha e cruzamento de dados ter em vista outro sujeito passivo – a ……………… - com quem a impugnante mantinha relações comerciais, a verdade é que o relatório final respeitante àquela outra empresa ostenta a data de 23/09/2005, quando a nota de diligência referente ao despacho n.° Dl 2005 01296 (que visava a consulta, recolha e cruzamento de dados) só foi assinada pela impugnante em 21/10/2005. Deste modo, afigura-se improvável que a inspeção determinada por este despacho tivesse por alvo contribuinte distinto da impugnante.

Nem se diga que estamos face a procedimentos de tipos distintos, um orientado para a identificação de eventuais infracções e recolha de elementos para eventuais correções à matéria tributável e, outro, para mera recolha de informações e dados para as situações específicas identificadas nas diversas alíneas do n°4 do Art. 46° do RCPIT. Na verdade, a restrição prevista no n.° 4 do Art. 63.° da LGT, é estabelecida em função, não do tipo ou fim do procedimento, mas sim do local onde o mesmo deva ocorrer: a lei visa impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspeção visa prosseguir.

Em suma, partindo do pressuposto de facto de que decorreram relativamente ao exercício de 2001 dois procedimentos inspectivos, que ambos tiveram lugar nas instalações da Impugnante e que ambos os procedimentos o sujeito passivo visado é o mesmo, a Impugnante, o Tribunal reconheceu a ilegalidade do procedimento por violação, em especial, do artigo 64.º n.º 3 da LGT.

Ora, tais pressupostos de facto mostram-se inequivocamente vertidos no probatório: “A coberto do despacho nº DI 2005 01296, a impugnante foi alvo de uma ação inspetiva tributária, destinada a consulta, recolha e cruzamento de elementos - fls. 94.” (alínea A dos factos apurados); “A coberto da ordem de serviço n°………………., a impugnante foi alvo de uma ação de inspeção tributária, no âmbito da qual foi elaborado o relatório de fls. 36 a 48 do p.a., que se dá por integralmente reproduzido.” (alínea B dos factos assentes), que a recorrente não impugna neste recurso expressamente, apenas se insurgindo, por um lado, quanto à invocação naquele discurso fundador de “elementos juntos aos autos”, expressão que é, de todo, totalmente irrelevante, face aos factos apurados que suportam a decisão.

Aliás, se bem atentarmos nas conclusões de recurso, constatámos que a Recorrente estabelece, diga-se desde já, mal, uma relação entre a invocação daqueles “elementos juntos aos autos” e o objectivo do procedimento, uma vez que aquela referência se mostra feita a propósito do sujeito visado na inspecção.

Relativamente ao objectivo visado com os procedimentos inspectivos, a decisão recorrida, bem ou mal agora não se mostra relevante, é clara quanto à irrelevância que o mesmo assume face ao preceituado nos preceitos que cita (“Nem se diga que estamos face a procedimentos de tipos distintos, um orientado para a identificação de eventuais infracções e recolha de elementos para eventuais correções à matéria tributável e, outro, para mera recolha de informações e dados para as situações específicas identificadas nas diversas alíneas do n°4 do Art. 46° do RCPIT. Na verdade, a restrição prevista no n.° 4 do Art. 63.° da LGT, é estabelecida em função, não do tipo ou fim do procedimento, mas sim do local onde o mesmo deva ocorrer: a lei visa impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspeção visa prosseguir”).

Do que vimos expondo resulta, assim, evidente que, também no que concerne ao alegado erro de julgamento por na sentença a identidade do visado ter sido sustentada na data de assinatura da Nota de Diligências e no facto de esta ser posterior à elaboração do relatório da inspecção ……………….., lhe não assiste razão.

Na verdade, e como resulta claramente do probatório, não foi com base nas referidas “Nota” e “relatório de inspecção da ……………” que o Tribunal deu como comprovado que a Recorrida tinha sido o “sujeito-alvo” de dois procedimentos inspectivos, mas sim com base nos documentos de fls. 94, ordem de serviço n.º ………………. e no relatório elaborado na sequência da inspecção realizada a coberto desta ordem de serviço (cfr. a remissão que é expressamente feita para estes documentos nas alíneas A) e B) em que se assentou a identidade do sujeito “alvo” das duas inspecções ou procedimentos inspectivos).

Daí que seja forçoso concluir que com o que a Recorrente verdadeiramente se não conforma é com a conclusão de facto que a Meritíssima Juiz extrai desses elementos de facto. Porém, a este propósito importa fazer notar, por um lado, que essa conclusão surge apenas como reforço da posição anteriormente assumida, isto é, para a hipótese, que não é o caso, de serem distintos os sujeitos visados (por do probatório resultar ser o mesmo o sujeito passivo visado). Por outro lado, aquela conclusão de facto é absolutamente legítima por ser, face aos factos apurados, a única a retirar: é impossível a hipótese de o alvo do procedimento de consulta e recolha de dados para inspecção ser a …………….. por o Relatório de Inspecção desta ter a data de emissão de 23-9-2005 e a nota de diligência referente ao despacho n.° Dl 2005 01296, isto é, do procedimento que visava a consulta, recolha e cruzamento de dados, e que logicamente só o podiam anteceder, foi assinada posteriormente, mais concretamente, a 21-10-2005 (tudo, conforme também factos apurados e vertidos no probatório nas alíneas E), G) e H), do ponto III supra).

Temos, pois, por seguro, que nesta parte ou com os fundamentos expostos nas conclusões I a IV não é o recurso jurisdicional interposto merecedor de acolhimento.

4.2. Posto isto, enfrentemos, agora, as demais questões colocadas: errou o Tribunal a quo ao ter julgado legalmente inadmissível a realização de dois procedimentos externos que visem a mesma entidade quando num deles a Administração Tributária não tome qualquer posição sobre a situação tributária daquela e ao concluir que a inexistência de despacho autorizador do segundo procedimento inspectivo com fundamento em factos novos afecta a validade da liquidação de imposto (conclusões V e VI)?

A apreciação desta questão impõe, antes de mais, que tracemos o quadro jurídico em que esse conhecimento se deve mover e a nossa decisão necessariamente haverá de assentar.

Nesse sentido, comecemos por relevar a própria definição que o legislador nos dá de procedimento tributário, plasmada no artigo 54° n.º 1 da LGT: «O procedimento tributário compreende toda a sucessão de actos dirigida à declarado de direitos tributário», aí se compreendendo, designadamente, as acções preparatórias ou complementares de informação e fiscalização tributária (al. a) do referido preceito)

Procedimento e exercício de direitos esses que, sem prejuízo do disposto naquela lei (LGT), constará do diploma regulamentar próprio, conforme previsão e remissão efectuado no n.º 6 do mesmo artigo e diploma e que deve ser entendida como sendo feita para o Decreto-Lei n.°413/98, de 31/12.

Nesse diploma surge, desde logo no seu artigo 1.º, os princípios e regras aplicáveis aos actos de inspecção, sendo de salientar, atenta a matéria em discussão nos autos, o princípio da proporcionalidade, nos termos do qual as acções integradas no procedimento de inspecção tributária devem ser adequadas e proporcionais aos objectivos de inspecção tributária (vide, ainda, artigos 5.º e 7.º do mesmo diploma) e no seu artigo 2.º, os objectivos visados com os mesmos procedimentos o procedimento de inspecção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias.

Por sua vez, no n°4 do artigo 63° da LGT, o legislador, para além de reiterar que o procedimento de inspecção e os deveres de colaboração tem se ser os adequados e proporcionais aos objectivos a prosseguir, determina que só pode haver lugar a mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.

Conforme resulta do art. 13º, alínea b) do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPIT), o procedimento pode qualificar-se como externo quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.

O mesmo resulta do disposto no n.°1 do artigo 34.° do RCPIT, nos termos do qual «quando o procedimento de inspeção envolver a verificação de contabilidade, livros de escrituração ou outros elementos relacionados com a actividade da entidade a inspecionar, os atos de inspeção realizam-se nas instalações ou dependências onde estejam ou devam legalmente estar localizados os elementos».

No que tange em especial à recolha de elementos, o artigo 56.° n.°1 do RCPIT expressa que as fotocópias e extractos serão efectuados nas instalações ou dependências onde se encontram os livros.

Acresce que, em conformidade com o artigo 51.º n.° 2 do RCPIT, «o sujeito passivo ou obrigado tributário ou o seu representante deve assinar a ordem de serviço indicando a data da notificação, a qual, para todos os efeitos, determina o início do procedimento externo de inspeção», do qual também se conclui que o procedimento inspetivo destinado à consulta, recolha e cruzamento de informação constitui um procedimento externo.

Por último, importa salientar que o artigo 46.º n.º 7 do RCPIT que «as ações de inspeção que visem a mera consulta, recolha e cruzamento de elementos junto do sujeito passivo, de qualquer área territorial, com quem o sujeito passivo inspecionado mantenha relações económicas são efetuadas mediante entrega, por parte do funcionário da nota de diligência que indica a tarefa executada.». O que significa que, nos procedimentos inspectivos que visam a consulta, recolha e cruzamento de informação, não há lugar à elaboração de relatório dirigido ao contribuinte visado.

Em suma, face ao preceituado no Regulamento a que vimos fazendo referência, o procedimento de inspecção tanto pode ter em vista a averiguação da situação tributária do sujeito passivo e, sendo caso disso, alterar os elementos declarados, como a mera recolha de elementos. Porém, se tais fins implicarem a análise da contabilidade ou elementos desta, o procedimento corre nas instalações de contribuinte inspeccionado ou no local onde tais elementos se devam encontrar, ou seja, em tais situações o procedimento é, necessariamente, externo.

Ora, estando provado nos autos que quanto ao exercício de 2001 e relativamente à Recorrida decorreram dos procedimentos inspectivos, um, a coberto do Despacho 2005 01296, datado de 07/06/2005 e notificado à impugnante em 13/06/2005, destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos; outra, a coberto da Ordem de Serviço n.° …………………, datada de 13/09/2005 e notificado à impugnante em 14/09/2005, do qual resultaram as correcções agora em análise, e que ambos decorreram nas instalações da impugnante, forçoso é concluir que ambos os procedimentos se devem qualificar como externos, não pode senão concluir-se pela ilegalidade do procedimento.

A esta conclusão não obsta, como bem se disse na sentença recorrida, o facto de os objectivos visados serem distintos uma vez que a restrição prevista no n.° 4 do artigo 63.° da LGT, é estabelecida em função, não do tipo ou fim do procedimento, mas sim do local onde o mesmo deva ocorrer: a lei visa impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspecção visa prosseguir.

Note-se, aliás, que para precaver situações limite ou de absoluta necessidade da ocorrência de duas inspecções externas relativamente ao mesmo ano, tributo e sujeito, por terem entretanto surgido novos factos relevantes para o âmbito e objectivo da inspecção/fiscalização, o legislador admitiu como possível que esse novo procedimento ocorra desde que a Administração Tributária emita despacho fundamento descriminando essa situação, isto é, emita um despacho fundamentado em factos novos.

Despacho esse que não foi proferido no caso concreto, pelo menos tal se não mostra comprovado, nem, de resto, se descortina qualquer referência à sua existência nos articulados dos autos, incluindo aqui as alegações de recurso.

E não diga a Recorrente, como o faz neste recurso, e em último recurso, que de todo o modo, mesmo a verificar-se esta ilegalidade, nunca a consequência da mesma deve ser a declaração de ilegalidade do procedimento por num desses procedimentos a Administração Tributária não ter tomado posição “sobre a situação tributária da entidade visada”, situação em que deveria aqui aplicar-se o principio do aproveitamento do acto.

Ou seja, e se bem entendemos nesta parte a conclusão de recurso, a Recorrente, admitindo agora que a entidade visada nos dois procedimentos foi a mesma, in casu, a Impugnante, pretende que a ilegalidade reconhecida seja deteriorada em mera irregularidade alegando que apenas foi proferida decisão num desses procedimentos.

Discordámos deste fundamento por duas ordens de razão.

A primeira, é a de que o princípio do aproveitamento do acto – que, como sabemos, ainda que não tenha expressão legal no nosso ordenamento jurídico mas tem vindo a ser acolhido, hoje pacificamente, na nossa doutrina e jurisprudências enquanto meio de reforçar a eficácia da actividade administrativa na prossecução do interesse público (1) - se aplica apenas às situações em que a actuação da administração é vinculada, o que não é o caso (para além de que se trata de “aproveitar” um acto não obstante o vício que lhe é próprio, no caso do próprio procedimento, e não decorrente de actos/procedimentos terceiros, como é ocorrer na situação de que nos ocupámos).

A segunda é a de que, a adopção desse entendimento não só conduziria a esvaziar de qualquer sentido útil a proibição estabelecida no artigo 64.º n.º 4 da LGT, como também legitimaria que a Administração Fiscal realizasse, sem qualquer fundamento, de forma repetida, relativamente ao mesmo sujeito e quanto aos mesmos tributos, os procedimentos inspectivos que bem entendesse, sem sequer se preocupar neles em observar quaisquer regras, designadamente os prazos processuais que imperativamente se encontram fixados para a prática dos actos que ao longo do procedimento são realizados, por lhe bastar, a final, independentemente da fase do procedimento em que se encontre, alcançar a qualificação de “ilegalidade irrelevante” pela qual aqui pugna, “não tomar posição expressa sobre a situação tributária da visada”.

O que, naturalmente, é inaceitável, quer do ponto de vista dos princípios e valores jurídicos subjacentes ao ordenamento jurídico tributário, em especial dos que regulam o procedimento inspectivo, quer os próprios direitos e garantias que no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na nossa Lei Fundamental são reconhecidos aos contribuintes, recordando-se que, nos termos do artigo 266.º da CRP, toda a actividade da Administração Tributária, embora directamente direccionada para a realização do interesse público (em primeira linha, o da obtenção de receita), deve pautar-se pela subordinação e respeito à Lei e à Constituição, isto é, respeitar os direitos e interesses legítimos dos cidadãos (princípio da legalidade), da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da boa fé que, salvo o devido respeito, a assumpção por este Tribunal pela tese defendida pela Recorrente, violaria.

Donde, por todo o exposto, se impõe concluir pela improcedência integral dos fundamentos aduzidos e, com essa improcedência, verificada a falência do presente recurso.

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso, em manter integralmente na ordem jurídica a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

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Lisboa, 14-4-2015

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[Anabela Russo]

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[Lurdes Toscano]





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[Ana Pinhol]

(1) Neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27-9-00 (processo n.º 41191), 7-11-01 (processo n.º 38983), 12-3-03 (processo n.º 349/03) e 12-4-2012 (processo n.º 896/11), disponíveis na integra em www.dgsi.pt e João Loureiro, “Procedimento Administrativo entre a eficiência e a garantia dos particulares”, Coimbra Editora, pág. 137 e 219 e seguintes.