Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2416/12.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/28/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO EXPRESSA DOS ATOS ADMINISTRATIVOS,
AVALIAÇÃO
Sumário:I – A fundamentação expressa dos atos administrativos é uma janela de acesso dos tribunais à racionalidade e coerência do trajeto procedimental da decisão administrativa.

II - A motivação (isto é, a exteriorização dos motivos) de uma decisão de administração pública não pode assentar apenas: (i) em números ou pontuações (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-10-2004, Processo nº 043240), (ii) em meras conclusões adjetivantes ou (iii) em meras opiniões.

III - Se pudesse assentar apenas em meras pontuações, adjetivações, conclusões ou opiniões, não estaríamos perante verdadeiros motivos. E seria impossível fiscalizar o cumprimento dos respetivos limites legais (cf. artigos 266º e 268º/3 da CRP e artigos 3º ss do CPA) e das respetivas autovinculações lícitas.

IV - Portanto, sem um discurso justificativo racional (não tautológico) da decisão administrativa (isto é, explicativo dos “quid” que conduziram ao elemento racional e decisório do ato administrativo), (i) não há verdadeira fundamentação e (ii) a fiscalização de toda e qualquer decisão administrativa fica impedida ou reduzida a uma formalidade vazia. Assim se poderia defraudar o Estado democrático de Direito e os seus princípios jurídico-administrativos fundamentais, maxime, o da tutela jurisdicional efetiva e o da juridicidade administrativa.

V - Se as fundamentações parcelares do voto de cada jurado se reduzem à atribuição de percentagens (de valores, de pontuações) em relação a cada parâmetro de avaliação, sem mais nada, há um desrespeito pelo dever de fundamentação dos atos administrativos, o que é fonte de anulabilidade da decisão administrativa.

VI - É que, assim procedendo, o júri impede a apreensão pelo destinatário do que foi o seu raciocínio motivador (do itinerário cognoscitivo e ou valorativo seguido pela entidade administrativa).
VII - Assim procedendo, o júri também impede qualquer heterocontrolo da avaliação que estava vinculado a fazer, nomeadamente para fiscalização do desvio de poder, ou de um erro manifesto de apreciação, ou mesmo de arbítrio.
Votação:
UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

I – RELATÓRIO

M ......., residente na Rua ….., 2… – 3º, 1….Lisboa, interpôs no TAC de Lisboa a presente ação administrativa contra Universidade..., sita no…, Rua..., ……1….., …… Lisboa.

A pretensão formulada foi a seguinte:

- Anulação da deliberação de 21 de maio de 2012 do júri do concurso para provimento de um lugar de professor associado na área científica de Gestão, grupo disciplinar de Gestão Estratégica e de Projetos e

- Anulação do despacho Reitoral de 22 de maio de 2012, de homologação da mesma deliberação.

Após a discussão da causa, o TAC decidiu absolver o réu dos pedidos.

*

Inconformada com tal decisão, a autora interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) De acordo com o artigo 46º, nº 2 do ECDU o número de membros do júri do concurso não pode ser inferior a 5, o que significa que tal número de elementos se tem que observar em cada uma das suas reuniões, sob pena de aquela exigência legal não ter qualquer utilidade;

2) Ora, quer na reunião de 3.04.12, quer na reunião de 21.05.12 não estavam presentes 5 membros do júri do concurso; E,

3) Na reunião de 21.05.12 foi tomada a decisão que se repercutiu diretamente na decisão impugnada, ou seja, a exclusão da recorrente do concurso em causa;

4) A sentença recorrida mal interpretou e aplicou as normas legais pois considerou não ser necessária a presença de todos os elementos do júri do concurso nas reuniões, não levando em linha de conta, também, o disposto no artigo 15º do D.L. nº 204/98, aplicável a este concurso por força do artigo 5º do mesmo diploma;

5) Verifica-se, ainda, a ausência do relatório justificativo a que alude o artigo 48º, nº 2 do ECDU, o que se traduz na preterição de uma formalidade essencial que o júri do concurso que, contrariamente ao considerado, na sentença recorrida, não se degradou em formalidade não essencial.

6) Com efeito, o direito de participação da recorrente na decisão final que lhe dizia respeito é um direito constitucional (artigo 268º, nº 1da CRP) que não pode ser recusado.

7) De acordo com o disposto o artigo 38º do ECDU, os concursos para professores associados destinam-se a "averiguar o mérito de obra científica dos candidatos, a sua capacidade de investigação e o valor da sua atividade pedagógica já desenvolvida".

8) Ora, nos parâmetros de avaliação não se inclui qualquer parâmetro relativo à capacidade de investigação.

9) Apenas em sede de outras atividades relevantes se alude a atividades de investigação, mas atribuindo-lhes um peso diminuto no cômputo total.

10) Não considerando violado o artigo 38º do ECDU, verifica-se que a sentença recorrida mal interpretou e aplicou este preceito legal.

11) O artigo 52º, nº 1, do ECDU ao exigir que os votos individuais sejam fundamentados impõe que o júri do concurso indique o motivo que o levou a adotar aquele resultado e não outro percurso intelectual que seguiu até à decisão final. É uma exigência que decorre, também, dos artigos 124º e 125º do CPA e é corolário do artigo 268º, nº 3 da CRP. Assim não considerando a sentença mal interpretou e aplicou estes preceitos legais.

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O recorrido contra-alegou, concluindo assim:


(Texto no Original)

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cf. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, artigos 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do Contencioso Administrativo (cf. artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA).

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido muito amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos para o efeito.

Assim, as questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

(Texto no Original)


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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Considerada a factualidade dada por assente, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso.

Tendo presente que o sistema jurídico relativo à atividade de administração pública, isto é, à atividade orientada primacialmente para os interesses públicos e o bem comum como definido pela lei fundamental e pela legislação infraconstitucional; tendo presente que a atividade de administração pública tem como características (i) ser uma atividade de conformação social ativa, (ii) através de medidas concretas que, (iii) orientadas pelo interesse geral e (iv) suportadas por dinheiros públicos, (v) se destinam à regulação de casos individuais e à materialização de determinados projetos de interesse geral nos termos da lei, ou seja, tendo presente que o Direito administrativo é um meio de servir o fim prático de um governo efetivo desejado pelos cidadãos; concluímos que o princípio fundamental democrático, o princípio fundamental do juiz à lei e o princípio geral da prossecução do interesse geral ou bem comum são as principais diretrizes do método jurídico que se retira, i.a., das regras constantes dos artigos 9º a 11º do CC para, do modo menos subjetivo possível, se atribuir os corretos significados jurídicos aos enunciados linguísticos que constituem as fontes de Direito administrativo. Dessa forma metodologicamente correta poderá o tribunal fazer valer o princípio fundamental da juridicidade administrativa (primazia da lei sobre todos os atos de administração pública; a lei como o pressuposto de toda a atividade de administração pública; vinculação particularmente intensa da atividade administrativa à legislação oriunda da reserva de lei parlamentar; bem comum e interesse público como razão de ser e único fim da atividade de administração pública; princípio geral da limitação da discricionariedade administrativa; ausência de presunção de legalidade da atividade administrativa; princípio fundamental da tutela jurisdicional plena e efetiva), no quadro de um Estado de Direito em que o poder legislativo assenta na legitimidade democrática e em que os poderes do Estado estão racionalmente divididos.

Passemos à análise do recurso.

São as seguintes AS QUESTÕES A RESOLVER contra a decisão recorrida:

- erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do artigo 46º/2 do ECDU (vogais do júri em número inferior a 5);

- erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do artigo 48º/2 do ECDU (preterição de formalidade essencial);

- erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do dever de fundamentação consagrado nos artigos 52º/1 do ECDU, 124º e 125º do CPA/91 e 268º/3 da CRP;

- erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do artigo 38º do ECDU (errada apreciação do C.V., com omissão da avaliação da capacidade de investigação).

*

1 – Do erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do artigo 46º/2 do ECDU (vogais do júri em número inferior a 5)

De acordo com o artigo 46º/2 do ECDU, no número de membros do júri, que não pode ser inferior a cinco, não se contando, para o efeito, o presidente, estarão, quando possível, pelo menos, dois professores de outras Universidades.

A decisão administrativa em crise foi tomada pelo presidente do júri e 3 dos 5 vogais desse júri.

Como desde logo se vê, o artigo 46º/2 trata da composição do júri. Não do seu funcionamento e quórum.

O que está em causa nesta alegação da autora-recorrente é o quórum. Pelo que vale aqui o artigo 22º/1 do CPA/91: “os órgãos colegiais só podem, regra geral, deliberar quando esteja presente a maioria do número legal dos seus membros com direito a voto”.

E, portanto, conclui-se que o artigo 46º/2 do ECDU e o artigo 22º/1 do CPA/91 foram respeitados.

2 – Do erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do artigo 48º/2 do ECDU (preterição de formalidade essencial)

De acordo com o artigo 48º/2 do ECDU (cuja epígrafe é “primeira reunião do júri”), sempre que um candidato for excluído, o júri elaborará um relatório justificativo, que será assinado por todos os seus membros e de cujo teor se dará conhecimento ao candidato excluído.

Ficou provado que o júri só elaborou tal relatório após a audiência prévia exigida no artigo 100º do CPA/91; fê-lo apenas na deliberação final do júri.

Isto significa que, quanto ao núcleo da deliberação, o júri violou, materialmente, o direito de audiência prévia previsto nos artigos 100º e 101º do CPA/91.

É uma causa de anulabilidade (artigo 135º do CPA).

O TAC considerou não haver ilegalidade, falando em degradação em formalidade não essencial, pelo motivo pelo qual acabámos de considerar haver ilegalidade.

Mal o fez o TAC. É que tal motivo invocado pelo TAC nada tem a ver com o instituto da degradação de formalidade essencial em não essencial, hoje expressamente consagrado no artigo 163º/5-b) do CPA/2015: o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida foi alcançado por outra via.

Ora, é notório que nada permite fundar a aplicação aqui do instituto da degradação de formalidade essencial em não essencial. O relatório justificativo só foi abordado após a audiência prévia, não tendo assim a A. podido perceber o sentido provável da decisão final.

Pelo que a recorrente tem razão neste ponto.

3 – Do erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do dever de fundamentação consagrado nos artigos 52º/1 do ECDU, 124º e 125º do CPA/91 e 268º/3 da CRP

3.1.

O entendimento da Mmª juiza a quo foi simples: como haveria aqui discricionariedade técnica, o ato administrativo é insindicável pelos tribunais.

Nada mais errado.

A “discricionariedade da atividade de administração pública” em sentido amplo pode ser definida assim: [1] espaço jurídico de avaliação ou de decisão próprio da função administrativa, [2] decorrente de uma indeterminação conceitual ou estrutural da lei, [3] sujeito a uma fiscalização mais ou menos atenuada pelo juiz administrativo sem reexame, [4] que engloba apenas (i) as faculdades de ação concedidas pela lei, (ii) a apreciação na aplicação de “conceitos imprecisos de tipo” da lei ou de conceitos tipológicos (segundo W. SCHMIDT; exemplos: jurista de reconhecido mérito, filme de qualidade, adequada integração na paisagem, estética da povoação) e ainda (iii) os deveres de avaliação ou ponderação previstos na lei (correspondem às “valorações próprias do exercício da função administrativa”, a que se referem os artigos 71º/2 e 95º/5 do CPTA) (1)

Nada tem a ver com o arbítrio ou com o princípio da liberdade (dos particulares), pois a função administrativa tem o seu guia na prossecução do interesse público.

Por isso, pode e deve falar-se em “discricionariedade juridicamente vinculada” (cf. assim HARTMUT MAURER, “Derecho Administrativo - Parte General”, Marcial Pons, Madrid, 2011, p. 171, trad. da 17ª ed., de 2009, do original alemão).

Assim, a “discricionariedade da atividade de administração pública” em sentido amplo, sempre baseada na lei, ou margem de livre decisão administrativa, corresponde apenas a casos

(1) em que a previsão da norma jurídica, que outorga a competência administrativa concreta a exercitar, contém conceitos tipológicos a concretizar ou atribui deveres de apreciação, de avaliação ou de ponderação (“discricionariedade cognitiva”, margem de livre apreciação) e ou

(2) em que a estatuição dessa norma permite optar por diferentes alternativas (“discricionariedade de atuação-decisão ou de atuação-escolha”, isto é, referente à consequência jurídica; é a “discricionariedade volitiva”, a verdadeira discricionariedade, segundo GUIDO CORSO, “Diritto Amministrativo”, Sesta edizione, G. Giappichelli Editore, Torino, 2013, p. 198).

Não cabem, não podem caber por imperativo constitucional, na insindicabilidade do exercício da função administrativa a interpretação-aplicação da quase totalidade dos conceitos indeterminados contidos nas normas legais, designadamente

(1º) a interpretação-aplicação de conceitos técnico-jurídicos,

(2º) nem a interpretação-aplicação de conceitos classificatórios em geral que possam ser precisados através: (i) de regras de experiência comum, (ii) de considerações baseadas nos chamados “usos da terra”, ou (iii) de conhecimentos técnico-científicos e ou suscetíveis de prova pericial como prevista na legislação probatória – cf. artigos 388º e 389º do Código Civil e artigos 467º ss do Código de Processo Civil (cf. assim PAULO OTERO, “Legalidade e Administração Pública…”, Almedina, 2003, pp. 767-768; MARCELO REBELO DE SOUSA/A.S.M., “Direito Administrativo Geral”, I, § 9 – margem nº 12 e margens nº 21 a 24; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “T.G.D.A.”, 3ª ed., pp. 54 e 303-304; HARTMUT MAURER, “Derecho Administrativo - Parte General”, trad., 2011, p. 188). Ali não há liberdade administrativa de avaliação-ponderação ou liberdade administrativa de escolha de uma consequência normativa.

Também não existe liberdade administrativa (3º) quanto à recolha da prova necessária para se decidir, nem (4º) quanto à valoração da prova (cf. assim MARCELO REBELO DE SOUSA/A.S.M., “Direito Administrativo Geral”, I, § 9 – margem nº 12 e nº 24).

O mesmo se deve entender, como decorre do referido, quanto à chamada “discricionariedade técnica”; como refere GUIDO CORSO, trata-se de um falso problema (in “Diritto Amministrativo”, Sesta edizione, G. Giappichelli Editore, Torino, 2013, p. 205). O facto de um juízo feito pela Administração assentar numa ciência não jurídica, longe de legitimar uma reserva de administração, constitui o melhor argumento para a sua fiscalização jurisdicional, precisamente à luz da ciência ou técnica não jurídicas em causa, através da prova pericial, quando tal ciência ou técnica não fixarem uma só interpretação ou solução. À semelhança do que ocorre normalmente no contencioso cível.

Ora, a fiscalização jurisdicional da validade de qualquer atividade de administração pública, incluindo o caso da discricionariedade administrativa em sentido estrito e o caso margem de livre apreciação administrativa (nos “atos administrativos predominantemente discricionários” ou “atos administrativos de apreciação ou ponderação”), é feita [sob a égide (i) do princípio constitucional da legalidade de administração e, ainda, sob a égide dos princípios constitucionais (ii) da separação de poderes e (iii) da tutela jurisdicional efetiva], através da aplicação pelo juiz dos seguintes principais filtros, limites internos da margem de livre decisão administrativa, ou (cf. VIEIRA DE ANDRADE, “Lições de Direito Administrativo”, 2ª ed., 2011, p. 50) “testes de juridicidade”:

1º - A incompetência legal (cf. princípio da legalidade da A.P. e consequente princípio da competência);

2º - O desrespeito pelo fim ou objetivo da concreta lei aplicada (desvio de poder); note-se que na “discricionariedade em sentido amplo” se serve a justiça do caso concreto para prosseguir o interesse público (cf. assim HARTMUT MAURER, “Derecho Administrativo - Parte General”, Marcial Pons, Madrid, 2011, p. 170);

3º – A falta de fundamentação de facto e de direito da decisão administrativa, (i) com justificação expressa, clara, coerente e suficiente nos aspetos vinculados da atividade administrativa e ou (ii) com motivação expressa, clara, coerente e suficiente nos aspetos legalmente não vinculados da atividade administrativa;

4º - O desacerto ou erro nos pressupostos de facto da concreta atividade administrativa, tendo o juiz a possibilidade de prova pericial nos termos gerais previstos na lei processual civil e na lei processual administrativa (quer seja atividade administrativa predominantemente vinculada à lei, quer seja atividade administrativa predominantemente não vinculada);

5º - O desacerto ou erro nos pressupostos de direito da concreta atividade administrativa;

6º – O erro manifesto na concretização de alguns conceitos indeterminados, designadamente subjetivos, o erro claro e seguro nos juízos de apreciação de aptidões pessoais, o erro claro e seguro nos juízos de prognose, o erro claro e seguro nos juízos estratégicos, o erro claro e seguro nos juízos com consequências políticas ou nos juízos estruturais de caráter organizativo (envolvem conceitos não classificatórios, pois os classificatórios são determináveis); é o controlo de razoabilidade do erro notório na motivação-explicação ou na “explicitação das considerações discricionárias” (na chamada discricionariedade cognitiva – cf. assim HARTMUT MAURER, “Derecho Administrativo - Parte General”, 2011, p. 272 e pp. 165-188), devendo recorrer-se a prova pericial, quando tal se justifique, isto é, nos termos gerais previstos na lei;

7º - O desrespeito pelos direitos-liberdades-e-garantias; e

8º - O desrespeito pelos seguintes princípios gerais da atividade administrativa:

(i) prossecução do interesse da coletividade e do bem comum,

(ii) proibição de diferenciação entre os iguais e obrigação de diferenciação entre os diferentes (isto é, princípio ou máxima metódica da igualdade de tratamento),

(iii) adequação da medida adotada ao fim de interesse público prosseguido (isto é, princípio ou máxima metódica da proporcionalidade na vertente da adequação ou idoneidade),

(iv) proibição do excesso na escolha e aplicação dessa medida (isto é, princípio ou máxima metódica da proporcionalidade na vertente da necessidade),

(v) ponderação expressa e equilibrada dos elementos conducentes à escolha feita (isto é, princípio ou máxima metódica da proporcionalidade em sentido estrito ou do equilíbrio),

(vi) imparcialidade subjetiva ou negativa (isto é, ausência de impedimentos ou fatores de suspeição),

(vii) imparcialidade objetiva ou positiva (isto é, ponderação de todos os interesses em presença),

(viii) proteção da confiança legítima,

(ix) fundamentação expressa, racional, clara, coerente e suficiente das decisões administrativas lesivas dos direitos e interesses dos cidadãos e

(x) conformidade material das condutas com os objetivos da ordem jurídica;

9º – O erro na concreta subsunção que toda a decisão administrativa concreta comporta.

Tais filtros e limites são, afinal, aspetos vinculativos do chamado “poder discricionário” ou da margem de livre decisão administrativa.

3.2.

Abordemos agora a conexa questão da fundamentação.

A fundamentação expressa dos atos administrativos é um imperativo constitucional (artigo 268º/3 da Constituição; cf. GOMES CANOTILHO/V.M., “Constituição da República Portuguesa Anotada”, II, 4ª ed., no comentário ao artigo 268º; PAULO OTERO, “D. do Procedimento Adm.”, I, 2016, pág. 579).

Há, na fundamentação imposta pelo nº 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, (i) um propósito argumentativo da coerência do discurso justificativo e (ii) um propósito garantístico da sua controlabilidade; por isso, não são admissíveis justificações obscuras ou tautológicas por parte do decisor administrativo.

Por isso, exige-se lógica e transparência na fundamentação, numa exigência de obediência à verdade material.

Trata-se, portanto, de uma garantia constitucional fundamental, de tipo procedimental, consagrada expressamente no cit. nº 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, e não de uma mera formalidade sem substância. É uma formalidade essencial e imposta pela lei fundamental. Garante valores essenciais numa democracia que prossiga a tutela jurisdicional efetiva:

-Transparência,

-Rigor,

-Verdade,

-Autocontrolo e

-Heterocontrolo pleno (cf. assim o Ponto B do Acórdão do TJCE de 20-03-1959, Nold c. Alta Autoridade, Processo nº 18/57, in RJC, págs. 114-115).

Ora, decorre dos artigos 152º a 154º do atual CPA que toda a fundamentação deve ser uma declaração (em regra) escrita e, sob pena de anulabilidade (artigo 163º/1 do CPA), com exteriorização clara, coerente e suficiente (2) das razões de facto e das razões de direito da decisão administrativa; ou uma declaração de concordância com os (claros, coerentes e suficientes) fundamentos de facto e de direito de anteriores pareceres, informações ou propostas.

Como é da natureza humana, da razão humana, a fundamentação de toda e qualquer decisão, fundamentação maior ou menor conforme o caso concreto, simples ou complexa consoante o caso concreto, implica sempre, naturalmente, um discurso justificativo assente em raciocínios fundamentadores e explicativos. E, por isso, tais raciocínios fundamentadores e explicativos, que existem em toda a atividade humana intelectiva, devem ser exteriorizados em todos os tipos de atos administrativos potencialmente lesivos. Muito à semelhança do que conduziu, para a função jurisdicional, à seguinte disposição legal do CPC: “Na fundamentação (…) declara quais os factos (…), analisando criticamente as provas (…)” (cf. artigo 607º/4).

Sem motivos expressos, sem prévia ou simultânea explicação racional ou coerente, não haveria decisão administrativa fiscalizável, o que seria incompatível com o Estado democrático de Direito.

E, por isso, não basta para uma tutela jurisdicional que se quer efetiva que, por exemplo, os júris que classificam ou avaliam candidatos ou concorrentes em procedimentos concorrenciais para nomeação ou contratação de pessoas, enunciem apenas os “elementos, fatores, parâmetros ou critérios na base dos quais o júri procedeu à ponderação determinante do resultado concreto a que chegou” (Ac. do STA de 31.10.91, Processo nº 026846), sem referir qual foi a ponderação racional concretamente feita. A CRP exige à fundamentação da decisão administrativa que torne acessível, ao detentor do direito ou do interesse legalmente protegido afetado, os raciocínios inerentes à valoração (o iter com os motivos) por que se chegou a determinada conclusão (cf. Ac. do STA-Pleno de 26-10-2017, p. nº 038/14).

Com efeito, é precisamente a ponderação (sobre os elementos, fatores, parâmetros ou critérios) o que está em causa na chamada discricionariedade administrativa, a qual, na respetiva motivação, tem de respeitar regras lógicas de racionalidade e as normas jurídicas decorrentes dos artigos 266º e 268º/3 da CRP e 3º ss do CPA.

E só é possível ao tribunal fiscalizar essa ponderação se os raciocínios em que ela consistiu forem exteriorizados. Sem isso não há verdadeira fundamentação de um ato administrativo não estritamente vinculado à lei; quando muito, haverá um simulacro daquilo que é exigido pela CRP e pelo CPA em sede de fundamentação. E este simulacro, (i) encoberto pela óbvia “relatividade” do dever de fundamentação “in concreto” e (ii) misturado com uma errada aplicação do princípio da separação e interdependência dos poderes, serve, não raras vezes, para defraudar o exigido ao juiz pelo princípio fundamental da tutela jurisdicional plena e efetiva.

Como escreve HARTMUT MAURER, in “Allgemeines Verwaltungsrecht”, 9ª ed., Munique, 1994, pág. 224, a fundamentação é uma “janela” de acesso dos tribunais à racionalidade e coerência do trajeto procedimental da decisão administrativa (cit. por PAULO OTERO, in “D. do Procedimento Administrativo”, I, 2016, pág. 577).

Assim, a motivação (isto é, a exteriorização dos motivos) de uma decisão de administração pública não pode assentar apenas:

(i) em números ou pontuações (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-10-2004, Processo nº 043240),

(ii) em meras conclusões adjetivantes (cf., i.a., o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16-06-2016, Processo nº 12565/15 (3) ou

(iii) em meras opiniões (cf., i.a., o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16-06-2016, Processo nº 12565/15).

Se pudesse assentar apenas em meras pontuações, adjetivações, conclusões ou opiniões, não estaríamos perante verdadeiros motivos. E seria impossível fiscalizar o cumprimento dos respetivos limites legais (cf. artigos 266º e 268º/3 da CRP e artigos 3º ss do CPA) e das respetivas autovinculações lícitas.

Portanto, sem um discurso justificativo racional (não tautológico) da decisão administrativa (isto é, explicativo dos “quid” que conduziram ao elemento racional e decisório do ato administrativo), (i) não haverá verdadeira fundamentação e (ii) a fiscalização de toda e qualquer decisão administrativa fica impedida ou reduzida a uma formalidade vazia. E assim se poderá defraudar o Estado democrático de Direito e os seus princípios jurídico-administrativos fundamentais, maxime, o da tutela jurisdicional efetiva e o da juridicidade administrativa.

Assim, um ato administrativo, predominantemente vinculado (onde se deve falar em “fundamentação-justificação” (4)) ou predominantemente discricionário (5) (onde se deve falar em “fundamentação-motivação” (6)), só estará devidamente fundamentado se um destinatário normal:

(1º) puder ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões, dos motivos e dos argumentos que a sustentam, permitindo-lhe apreender o itinerário cognoscitivo e ou valorativo seguido pela entidade administrativa;

(2º) para, depois, esse destinatário normal poder optar, conscientemente, entre concordar com a decisão e sua autoexplicação ou, então, promover a tutela jurisdicional efetiva (um direito fundamental), isto é, acionar os meios legais de heterocontrolo, para efeitos de fiscalização da juridicidade, em sede de (i) exigências legais relativas ao sujeito administrativo, (ii) exigências legais relativas ao quid do ato, (iii) exigências legais relativas ao procedimento administrativo, (iv) pressupostos de facto da decisão, (v) pressupostos racionais e de direito da decisão e ou (vi) motivos da concreta atuação administrativa.

3.3.

Ora, no caso presente, como consta do probatório e do p.a., as fundamentações de cada voto de cada jurado reduzem-se à atribuição de percentagens (de valores, de pontuações) em relação a cada parâmetro de avaliação. Sem mais. Sem motivos, portanto.

O que quer dizer que se trata de uma fundamentação muito insuficiente, logo equivalente a falta de fundamentação (artigo 125º/2 do CPA/91). E, por se tratar de desrespeito pelo artigo 268º/3 da CRP e pelo artigo 124º/1 do CPA/1991, é causa de anulabilidade do ato administrativo respetivo.

Em síntese:

- a “fundamentação” (compósita) dada pelo júri do concurso, adotada pela entidade demandada no ato administrativo final, não explica minimamente as pontuações atribuídas, sendo antes um conjunto de “avaliações” puramente conclusivas;

- sendo a “fundamentação” puramente conclusiva, fica impedida qualquer compreensão e defesa pelo destinatário, bem como qualquer controlo externo de qualquer erro grosseiro eventual;

- foi, assim, violado o dever de a Administração Pública fundamentar (isto é, de expor os motivos de) todas as suas decisões com eficácia externa, dever este previsto nos artigos 268º/3 da CRP, 124º e 125º do então CPA/91 e do artigo 52º/1 do ECDU.

É fonte de anulabilidade (artigo 135º do CPA).

Pelo que a recorrente tem razão neste ponto.

4 – Do erro de julgamento relativamente à violação pela E.D. do artigo 38º do ECDU (errada apreciação do C.V., com omissão da avaliação da capacidade de investigação)

Atendendo ao vício exposto em 3, fica prejudicado o conhecimento deste vício de fundo, de violação de lei.

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença e anular o ato administrativo impugnado.

Custas a cargo da E.D. em ambos os tribunais.

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 28-06-2018


Paulo H. Pereira Gouveia – Relator

Catarina Jarmela

Conceição Silvestre


(1) A oportunidade da decisão administrativa refere-se à utilidade da concreta atuação administrativa para a melhor prossecução do interesse público legalmente definido. A conveniência da decisão refere-se à utilidade da concreta atuação administrativa para a prossecução do interesse público legalmente definido, à luz dos demais interesses públicos envolvidos. É isso o mérito da atividade administrativa, que o juiz não pode julgar, por oposição à legalidade dessa atividade que o juiz tem o dever de fiscalizar.

(2) Até porque uma insuficiência relativamente aos “factos que possam condicionar a atividade administrativa” origina a violação do princípio da imparcialidade na sua vertente positiva (dever de atender, expressa e racionalmente, a todos e a cada um dos pressupostos de facto pertinentes e apenas a estes). Afinal, está sempre em causa uma decisão justa.

(3) II - A garantia constitucional da fundamentação do ato administrativo, como concretizada no Código do Procedimento Administrativo, exige que a decisão administrativa exteriorize sempre, tanto (i) na justificação (ii) como na motivação, (iii) os respetivos discursos justificativos, ou seja, os raciocínios fundamentadores (iv) da conclusão ou de cada uma das conclusões em que assenta (iv) a decisão administrativa. III - A evidência de a fundamentação variar em qualidade e quantidade, consoante os casos concretos, não exclui o dever constitucional de exteriorização do processo decisório (necessariamente racional), isto é, dos raciocínios fundamentadores de cada uma das conclusões em que assenta a decisão contida no ato administrativo. V - Violam o “dever constitucional e legal de fundamentar os atos administrativos de um modo expresso, racional, coerente, suficiente e claro” todas as decisões administrativas que se limitem a exteriorizar como seus fundamentos (i) adjetivos qualificativos, (ii) avaliações numéricas e ou (iii) opiniões, já que se tratam de meras conclusões e não de discursos justificativos, isto é, de raciocínios fundamentadores de conclusões. VI – Só se pode contrapor a rara e inexigível figura da “fundamentação da fundamentação” quando a fundamentação apresentada pela decisão administrativa em causa não se limitar a exteriorizar apenas (i) conclusões, (ii) adjetivos qualificativos ou (iii) atribuição de valores numéricos.

(4) Justificar, aqui, é demonstrar que se atuou como manda a lei vinculante.

(5) Ou, o que é o mesmo, com margem de livre decisão administrativa.
Deve relembrar-se que a discricionariedade administrativa é um poder-dever jurídico que a lei confere por causa da melhor prossecução do interesse coletivo.
Na discricionariedade inclui-se ainda a chamada discricionariedade técnica, a antes chamada liberdade probatória e a antes chamada justiça burocrática. E ainda os casos de concretização-valoração objetiva de conceitos indeterminados.
Os motivos principalmente determinantes da discricionariedade administrativa podem ser simplesmente administrativos, mas também podem ser técnicos, económicos, financeiros ou ambientais.

(6) Motivar é expor os motivos concretos.