Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:04536/11
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:06/21/2011
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL.
MATÉRIA DE FACTO. MATÉRIA DE DIREITO.
CRITÉRIO JURÍDICO PARA DESTRINÇAR SE ESTAMOS PERANTE UMA QUESTÃO DE DIREITO OU UMA QUESTÃO DE FACTO.
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE 1ª. INSTÂNCIA RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO. ÓNUS DO RECORRENTE.
O FORNECIMENTO DE GÁS É CONSIDERADO UM SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL.
A DEFINIÇÃO DOS BENS DO DOMÍNIO PÚBLICO E O SEU REGIME INSEREM-SE NA RESERVA RELATIVA DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA A.R.
NOÇÃO DE TAXA. A TAXA SITUA-SE APENAS NO DOMÍNIO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DIVISÍVEIS.
A TAXA PODE TER POR FUNDAMENTO, ALÉM DO MAIS, A UTILIZAÇÃO DE UM BEM DO DOMÍNIO PÚBLICO.
Sumário:1. Nos termos do artº.280, nº.1, C. P. P. Tributário, das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo. A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina, por previsão explícita do artº.16, nº.1, do C. P. P. Tributário, a incompetência absoluta do tribunal, ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.
2. A competência do tribunal afere-se face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, ou seja, face ao “quid disputatum” e não em função do “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do autor, irrelevando qualquer tipo de indagação acerca do mérito do mesmo.
3. O recurso não versa exclusivamente matéria de direito, se nas suas conclusões se questionar matéria factual, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à factualidade provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer, ainda, porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos.
4. São factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os reais, como os simplesmente hipotéticos. São ainda de equiparar aos factos os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido e que sejam de uso corrente (v.g.”pagar”; “vender”; “arrendar”). Existe matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factualidade cuja existência, ou não existência, não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica. Por sua vez, existe matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate unicamente de fixar a interpretação duma simples palavra constante de uma norma legal concreta, seja de direito substancial, seja de direito processual.
5. O critério jurídico para destrinçar se estamos perante uma questão de direito ou uma questão de facto, passa por saber se o recorrente faz apelo, nos fundamentos do recurso substanciados nas conclusões, apenas a normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida supostamente violados na sua determinação, interpretação ou aplicação, ou se, por outro lado, também apela à consideração de quaisquer factos materiais ou ocorrências da vida real (fenómenos da natureza ou manifestações concretas da vida mesmo que do foro espiritual ou volitivo), independentemente da sua pertinência, merecimento ou acerto para a solução do recurso.
6. Quanto à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da adoptada pela decisão recorrida (cfr.artº.685-B, nº.1, do C.P.Civil, “ex vi” do artº.281, do C.P.P.Tributário).
7. O fornecimento de gás é considerado um serviço público essencial, o qual se encontra sujeito a especiais regras de protecção dos utentes do mesmo serviço (cfr.artº.1, nº.2, al.c), da Lei 23/96, de 26/7, com as alterações introduzidas pela Lei 12/2008, de 26/2).
8. A definição dos bens do domínio público e o seu regime inserem-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e já se inseriam nessa reserva à face da redacção da Constituição vigente em 1991, saída da revisão constitucional de 1989 (cfr.artº.168, nº.1, al.z), da C.R.Portuguesa). Actualmente tal regime de reserva relativa encontra-se consagrado no artº.165, nº.1, al.v), da C. R. Portuguesa. Este regime de reserva da A. R. abrange a definição, não apenas do domínio público do Estado, mas também do de outras entidades públicas susceptíveis de serem titulares dele, como sejam as regiões autónomas ou as autarquias (cfr.artº.84, da C.R.Portuguesa).
9. A tese da recorrente (a de que o dec.lei 33/91, de 16/1, que aprovou as bases de concessão, em regime de serviço público, e construção das respectivas infra-estruturas, de redes de distribuição de gás natural ou o contrato de concessão terem alterado o regime dos bens do domínio público municipal) depara com um obstáculo intransponível que é a invalidade constitucional de quaisquer hipotéticas alterações que tivessem sido introduzidas por esse diploma. Assim é, porque essas eventuais alterações só poderiam ser efectuadas pelo Governo ao abrigo de autorização legislativa, o que não se verifica no caso concreto, porquanto o citado dec.lei 33/91, de 16/1, foi emitido ao abrigo da competência legislativa própria do Governo (inconstitucionalidade orgânica).
10. Não pode também, com base naquele diploma, concluir-se que a Câmara Municipal de Lisboa invadiu as atribuições do Governo, ao estabelecer taxas pela ocupação do subsolo do domínio público municipal por empresas que comercializam gás natural, pelo que não ocorre, consequentemente, a nulidade invocada pela recorrente, prevista no artº.133, nº.2, al.b), do C.P.A.
11. A taxa situa-se apenas no domínio dos serviços públicos divisíveis (v.g.propinas da instrução pública; custas da justiça; portagens pagas nas vias de comunicação).
12. A taxa pode definir-se como uma prestação coactiva, devida a entidades públicas, com vista à compensação de prestações efectivamente provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos. Em contraste com o imposto de características unilaterais, a taxa caracteriza-se pela sua natureza cumutativa ou bilateral, devendo o seu valor concreto ser fixado de acordo com o princípio da equivalência jurídica. A natureza do facto constitutivo que baseia o aparecimento da taxa pode consistir na prestação de uma actividade pública, na utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares.
13. Como se refere no artº.4, nº.2, da L. G. Tributária, e já anteriormente se entendia, as taxas podem ter por fundamento, além do mais, a utilização de um bem do domínio público.
14. A satisfação de um interesse público pela actividade de uma empresa privada, não é obstáculo à aplicação da taxação prevista para autorizações de uso privativo de bens do domínio público, sendo mesmo esse tipo de situações, no qual existe, cumulativamente, interesse público e privado, o campo de aplicação natural das taxas pela utilização de bens do domínio público. É este o caso dos autos, não visualizando o Tribunal “ad quem” que o tributo objecto dos presentes autos viole o dito princípio da equivalência jurídica, ou tenha por finalidade a tributação do lucro da sociedade recorrente.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
“LISBOAGÁS GDL - SOCIEDADE DISTRIBUIDORA DE GÁS NATURAL DE LISBOA, S.A.”, com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pela Mma. Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa, exarada a fls.393 a 404 do presente processo, através da qual julgou totalmente improcedente uma impugnação visando acto de liquidação de taxas de ocupação de via pública, referentes ao ano de 2005, efectuado pela C. M. de Lisboa e no valor de € 1.319.426,32.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.418 a 429 dos autos) formulando as seguintes Conclusões:
1-Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa no âmbito do processo identificado em epígrafe, a qual julgou improcedente a impugnação dos actos de liquidação pela Câmara Municipal de Lisboa (C.M.L.) de taxas pela ocupação do subsolo com condutas de gás natural, relativas ao ano de 2005, no valor de € 1,319.426,32;
2-A recorrente, concessionária do serviço público essencial da rede de distribuição de gás natural, entende que o tributo liquidado pela ocupação do domínio público municipal com as suas infra-estruturas não lhe é exigível nem devido, por se tratar de um imposto dissimulado na nossa ordem jurídica;
3-Ao contrário daquilo que sustenta o Tribunal “a quo”, nem sequer estamos perante uma verdadeira taxa, uma vez que lhe falta o indispensável nexo sinalagmático ou bilateralidade, em frontal violação do princípio da equivalência;
4-Nunca se demonstrou (até mesmo porque nunca existiu) existir qualquer prestação concreta e individualizada dirigida à recorrente pela C.M.L. como contrapartida do pagamento daquela taxa;
5-Nunca se provou que a ocupação do subsolo com as infra-estruturas da recorrente é geradora de custos para a autarquia, até mesmo porque estes são integralmente suportados pela própria concessionária, por força do contrato de concessão;
6-E, a existir algum benefício ou vantagem patrimonial para a recorrente, em consequência da utilização do domínio público, tal não teria, de “per si”, a virtualidade de afirmar a existência da bilateralidade, o que só seria possível se a esse benefício correspondesse alguma actividade ou custo para a autarquia;
7-Esses benefícios, aliás, nunca foram quantificados pela autarquia e parecem confundir-se com os lucros auferidos pela recorrente no exercício da concessão, o que não se admite;
8-Se se admitir essa confusão de conceitos, aceita-se a tributação do lucro das sociedades através de um imposto dissimulado sob a capa de taxa, em clara e inadmissível violação da reserva de lei formal imposta pela Constituição;
9-É bom recordar que a capacidade contributiva, de acordo com a Lei Geral Tributária, é característica exclusiva dos impostos e não das taxas;
10-Na realidade, sendo os bens públicos utilizados na sua função própria de satisfação de necessidades colectivas, sem que se possa individualizar quem e em que medida pode particularmente usufruir das utilidades dessa ocupação, não existe uma utilização individualizada dos mesmos que possa legitimar a cobrança de uma taxa pela autarquia;
11-A insusceptibilidade de tributação da utilização do domínio público resulta também da sua própria natureza, uma vez que nesse âmbito predominam os princípios da inalienabilidade, imprescritibilidade, da impenhorabilidade e da incomercialibilidade, de modo a assegurar a afectação desses bens à satisfação das necessidades em causa;
12-Sendo os bens que integram o domínio público utilizados na sua função primária de satisfação de um interesse essencial da colectividade, essa utilização deverá pautar-se pelas regras da liberdade e da gratuidade;
13-Importa ainda realçar que, com a celebração do contrato de concessão, o Estado transferiu para a concessionária - ora recorrente - a prerrogativa de utilização dos bens do domínio público na medida do necessário à instalação das infra-estruturas indispensáveis à prossecução do serviço concessionado, privando assim a autarquia dos poderes de administração e disposição sobre essa parcela dos bens;
14-O acto de liquidação de tais taxas é, assim, nulo por violação do artº.133, nº.2, al.b), do Código de Procedimento Administrativo, uma vez que, sendo praticado por um órgão municipal, acaba por invadir a esfera de responsabilidade e de atribuições do Estado-concedente, por envolver a administração de um bem dominial cujo uso passou a ficar afecto, por lei, ao próprio Estado, e sobre o qual apenas o Estado poderá dispor;
15-Em face de todo o exposto, a liquidação de tal tributo é inadmissível, pelo que deve a sentença recorrida ser substituída por outra que anule o acto de liquidação da taxa controvertida;
16-Termina, pugnando por que se conceda provimento ao recurso e, em consequência, seja anulada a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que anule o acto de liquidação da taxa pela ocupação do subsolo, assim se fazendo JUSTIÇA!
X
Contra-alegou o recorrido (cfr.fls.435 a 468 dos autos), o qual pugna pela confirmação do julgado, sustentando nas Conclusões o seguinte:
1-O presente recurso tem por objecto a douta sentença proferida em 16 de Novembro de 2010, a qual julgou improcedente a impugnação judicial interposta por “Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.” contra o acto de liquidação da taxa de ocupação de via pública - subsolo - pela Câmara Municipal de Lisboa, no ano de 2005, no montante de € 1.319.426,32;
2-A recorrente delimita como objecto do presente recurso a discussão relativa à natureza jurídica do tributo em apreço nos presentes autos e a alegada nulidade do acto de liquidação, por violação do artº.133, nº.2, al.b), do Código de Procedimento Administrativo;
3-A recorrente interpôs o presente recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, por considerar que não foram provados determinados factos que considera indispensáveis para determinar a existência de sinalagma que caracterizaria o tributo sub judice” como taxa;
4-A recorrente não indica factos ou circunstâncias que não hajam sido valorados em concreto nos presentes autos ou que tenham sido indevidamente valorados;
5-A recorrente não se reporta, em concreto, à prova documental produzida nos autos, na qual se baseou a convicção do Tribunal e que constitui a matéria de facto assente;
6-A recorrente não tece quaisquer considerações sobre questões ou diligências de prova;
7-A recorrente limita-se a questionar a posição assumida pela Jurisprudência mais recente sobre a questão da natureza jurídica do tributo em apreço, remetendo para uma alegada ausência de prova, de carácter puramente genérico, que não resulta, em absoluto, dos presentes autos;
8-O nº.1, do artº.685-B, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo judicial tributário por força da al.e), do artº.2, do C.P.P.T., sanciona com a rejeição o recurso interposto sobre matéria de facto sem indicação dos concretos pontos de facto e concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida;
9-Impõe-se a rejeição do presente recurso nos termos do artº.685-B, nº.1, do C.P.C., aplicável ao processo judicial tributário por força da al.e), do artº.2, do C.P.P.T.;
10-A recorrente pretende, mais uma vez, discutir o conceito de sinalagma, desenvolvendo uma mera actuação em matéria de interpretação e aplicação das normas jurídicas, em termos puramente abstractos, no campo dos conceitos de direito, para concluir pela inexistência da contraprestação da Administração, e, em consequência, pela natureza de imposto do tributo em apreço nos presentes autos;
11-Versando o presente recurso exclusivamente sobre matéria de direito, este deveria ter sido interposto para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do nº.1, do artº. 280, do C.P.P.T., conjugado com a al.b), do artº.26, e al.a), do artº.38, ambos do E.T.A.F., sob pena de violação das regras de competência em razão da hierarquia;
12-A interposição do recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul viola as regras de competência em razão da hierarquia e determina a incompetência absoluta deste Tribunal, nos termos do nº.1, do artº.16, do C.P.P.T., o que se vem arguir na presente sede;
13-A recorrida considera que a douta sentença objecto do recurso não merece censura, dado que a liquidação do tributo em questão, porque implica a utilização do domínio público municipal em proveito próprio, por parte da concessionária, configura uma verdadeira taxa;
14-É indiscutível que o elemento distintivo entre taxa e imposto é a existência, ou não, de sinalagma - a Doutrina e a Jurisprudência são unânimes quanto a este ponto e reconduzem o fundamento da exigibilidade da taxa, ou seja, o pressuposto de facto da obrigação legal em que a taxa se traduz a três modalidades típicas bem definidas: (1) a actividade administrativa de prestação de um serviço, (2) a utilização do domínio público e (3) a remoção de um limite imposto à livre actividade dos particulares - cfr.também o nº.2, do artº.4, da L.G.T.;
15-O subsolo viário municipal usufrui da mesma natureza da superfície da via pública - bem do domínio público;
16-Se, na generalidade dos casos, as coisas públicas se destinam ao uso comum dos particulares, por vezes, o uso privativo do domínio público é consentido a pessoas determinadas, com base num título jurídico individual como sucede com a recorrente, que do mesmo retira uma especial vantagem no exercício da actividade que prossegue;
17-Impõe-se, nesse caso, que a regra da gratuitidade da utilização comum do domínio público ceda perante a regra da onerosidade. É justo que quem retira uma especial vantagem do uso do domínio público pague por esse uso;
18-Paralelamente, com as utilidades colectivas proporcionadas pela existência de uma rede de gás natural, que a recorrente, enquanto concessionária, assegura, no cumprimento das obrigações assumidas no âmbito do contrato de concessão celebrado com o Estado, é esta mesma concessionária quem beneficia directamente da ocupação do domínio público municipal (cfr.entre outros, ac.648/06, de 8/11/2006, do S.T.A.);
19-A recorrente dispôs-se a desenvolver uma actividade económica lucrativa, e para isso reuniu e organizou meios que lhe permitiram obter urna concessão de serviço público, sendo da prestação desse serviço que se propõe conseguir os seus ganhos;
20-O tributo exigido a propósito da ocupação e utilização do subsolo tem contrapartida na disponibilidade dessas ocupação e utilização em benefício da recorrente, para satisfação das suas necessidades individuais de empresa dedicada à distribuição e venda de gás;
21-O tributo em apreço consubstancia uma verdadeira taxa, mesmo quando o sujeito passivo da obrigação tributária reveste a qualidade de concessionária de serviço público, porque está em causa a utilização individualizada do subsolo onde as infra-estruturas foram colocadas;
22-Mantendo a impugnante a utilização do subsolo com condutas, não será possível utilizar o mesmo espaço para outras finalidades;
23-O tributo em apreço configura uma verdadeira taxa, cuja criação/exigibilidade não estava, por natureza, sujeita ao princípio de reserva de lei formal, consagrado no nº.2, do artº.103, e na al.i), do artº.165, da C.R.Portuguesa;
24-A liquidação da taxa devida pela ocupação da via pública com tubagens no subsolo, relativa ao ano de 2005 encontra a respectiva base legal:
a) No nº.4, do artº.238, e no artº.241, da C.R.Portuguesa;
b) Na al.c), do artº.16, e na al.c), do artº.19, da L.F.L. aprovada pela Lei 42/98, de 6/8;
c) Nas als.e) e h), do nº.2, do artº.53, da Lei 169/99, de 18/9;
d) Nas als.a) e b), do nº.3, do artº.22, da T.T.O.R.M., em vigor para o ano a que respeita o tributo;
25-Os actos de liquidação em apreço limitaram-se, pois, a aplicar a lei vigente à data da ocorrência dos factos tributários, não padecendo, assim, de qualquer vício, pelo que a sentença recorrida não merece censura;
26-Os poderes conferidos à recorrente por força da lei e do contrato de concessão para prosseguir uma atribuição do Estado-concedente não restringiram os poderes da C.M.L. quanto à faculdade de tributar a ocupação do subsolo ocupado com as infra-estruturas;
27-O alcance das normas reguladoras da concessão no que toca à dominialidade das parcelas de subsolo utilizadas pela concessionária passa por saber se um decreto-lei, emanado pelo Governo no uso de competências próprias, será susceptível de alterar o regime jurídico dos bens do domínio público municipal, determinando mutações dominiais das parcelas de terreno/subsolo necessárias à implantação das infra-estruturas de rede e restringindo, entre outros, os poderes tributários constitucionalmente conferidos às autarquias locais ou se, pelo contrário, a utilização do subsolo para instalação das ditas infra-estruturas, não só não afecta a titularidade do mesmo domínio público, como ainda enquadra este uso numa das actividades da administração que a habilitam a cobrar a taxa em apreço nos presentes autos;
28-A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (vd.douto ac. nº.603/07) respondeu negativamente, quer à alegada transferência dominial das parcelas de terreno necessárias à instalação das infra-estruturas relativas ao objecto do contrato de concessão, quer à alegada restrição dos poderes tributários das autarquias locais, com fundamento na invalidade inconstitucional de tal posição, por violação da reserva relativa da Assembleia da Republica;
29-Não se pode, com base nos direitos atribuídos à concessionária do serviço público de distribuição de gás natural pelo Governo no dec.lei 33/91, ou no contrato de concessão, concluir que foram por esses diplomas restringidos os poderes da Câmara Municipal de Lisboa de cobrar taxas pela ocupação do subsolo do domínio público municipal;
30-Com base nestes diplomas não se pode concluir que a Câmara Municipal de Lisboa invadiu as atribuições do Governo, ao estabelecer taxas pela ocupação do subsolo do domínio público municipal por empresas que comercializam gás natural;
31-Pelo que não se verifica a nulidade invocada pela recorrente, prevista no artº.133, nº.2, al.b), do C.P.A.;
32-Também neste ponto a douta sentença recorrida está isenta de qualquer reparo, devendo manter-se na ordem jurídica, por inexistência de vícios;
33-Termina, pugnando pela manutenção da douta sentença recorrida, para que assim se faça a já costumada JUSTIÇA.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer (cfr.fls.478 a 480 dos autos), no qual termina pugnando por que se negue provimento ao recurso e se mantenha a sentença recorrida na ordem jurídica.
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Corridos os vistos legais (cfr.fls.482 do processo), vem o processo à conferência para decisão.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.395 e 396 dos autos):
1-A impugnante é concessionária, em regime exclusivo, de serviço público da rede de distribuição regional de gás natural de Lisboa, nos termos da lei de Bases II e III de exploração de redes de distribuição regional de gás natural anexas ao dec.lei 33/91, de 16/1;
2-Ao abrigo da concessão, a impugnante obrigou-se a construir todas as infra-estruturas necessárias à implantação da rede de distribuição regional de gás natural;
3-A Câmara Municipal de Lisboa notificou a impugnante da factura nº.520000035403 para proceder ao pagamento das taxas de ocupação da via pública referentes ao ano de 2005, no montante total de € 1.319.426,32;
4-Na referida notificação consta a designação, local/matrícula, quantidade efectiva, quantidade calculada, valor unitário, e as taxas respectivas aplicáveis a cada uma das designações (cfr.documento junto a fls.87 e 88 dos presentes autos);
5-Não existe protocolo firmado entre a impugnante e a C.M.L. prevendo o regime de utilização do domínio público municipal;
6-A impugnante está sujeita à intervenção disciplinadora da C.M.L. e solicita a respectiva licença antes das intervenções que efectua no âmbito do contrato de concessão.
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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “…Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados …”.
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se na prova documental junta aos autos e no processo administrativo em apenso…”.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida, em síntese, julgou totalmente improcedente a impugnação que originou o presente processo, mais julgando válida e legal a liquidação de taxas de ocupação de via pública, referentes ao ano de 2005, efectuada pela C. M. de Lisboa e objecto destes autos.
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Deve, antes de mais, resolver-se a questão da competência do Tribunal, por força do disposto no artº.13, do C. P. T. Administrativos, aplicável “ex vi” artº.2, al.c), do C. P. P. Tributário.
Nos termos do artº.280, nº.1, C. P. P. Tributário, das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina, por previsão explícita do artº.16, nº.1, do C. P. P. Tributário, a incompetência absoluta do tribunal, ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.
Como decorre do artº.685-C, nº.5, do C. P. Civil (aplicável “ex vi” do artº.2, al.e), do C.P.P.T.), o despacho que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Superior, pelo que nada obsta a que se aprecie e decida a questão prévia suscitada pela recorrida C.M.L. junto deste Tribunal e, igualmente, de conhecimento oficioso, que se consubstancia na incompetência do T.C.A. “ad quem” em razão da hierarquia.
A competência do tribunal deve aferir-se pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, em antítese com aquilo que será mais tarde o “quid decisum”. Por outras palavras, a competência do tribunal afere-se face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, ou seja, face ao “quid disputatum” e não ao “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do Autor, irrelevando qualquer tipo de indagação acerca do mérito do mesmo (cfr.Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág.91; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 5ª. edição, 2006, pág.213).
Nos termos do artº.26, al.b), do E.T.A.F., atribui-se competência à Secção do Contencioso Tributário do S.T.A. para conhecer dos recursos interpostos das decisões dos Tribunais Tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito.
Por sua vez, o artº.38, al.a), do E.T.A.F., atribui competência à Secção de Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo para conhecer dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, ressalvando-se o disposto no citado artº.26, al.b), do mesmo diploma.
Da concatenação das aludidas normas do E.T.A.F. se deve concluir que para o conhecimento dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários de 1ª. Instância é competente o S.T.A. quando o recurso tiver por fundamento exclusivamente matéria de direito e, pelo contrário, é competente a secção de contencioso tributário de um dos Tribunais Centrais Administrativos se o fundamento não for exclusivamente de direito.
Na delimitação da competência do S.T.A. em relação à dos Tribunais Centrais Administrativos, a efectuar com base nos fundamentos do recurso, deve entender-se que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito sempre que nas conclusões das respectivas alegações, as quais fixam o objecto do recurso (cfr.artº.684, nº.3, do C.P.Civil), o recorrente pede a alteração da matéria fáctica fixada na decisão recorrida ou invoca, como fundamento da sua pretensão, factos que não têm suporte na decisão recorrida, independentemente da atendibilidade ou relevo desses factos para o julgamento da causa. Por outras palavras, o recurso não versa exclusivamente matéria de direito, se nas suas conclusões se questionar matéria factual, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à factualidade provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer, ainda, porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos factos provados (cfr.ac.S.T.A.-2ª. Secção, 29/9/2010, rec.446/10; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 5ª. edição, 2006, pág.213 e seg.).
São factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os reais, como os simplesmente hipotéticos. São ainda de equiparar aos factos os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido e que sejam de uso corrente (v.g.”pagar”; “vender”; “arrendar”). Existe matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factualidade cuja existência, ou não existência, não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica. Por sua vez, existe matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate unicamente de fixar a interpretação duma simples palavra constante de uma norma legal concreta, seja de direito substancial, seja de direito processual (cfr.Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, III, Coimbra Editora, 1985, pág.206 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.406 e seg.; Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Almedina, 1982, pág.268 e seg.; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.264 e seg.).
O critério jurídico para destrinçar se estamos perante uma questão de direito ou uma questão de facto, passa por saber se o recorrente faz apelo, nos fundamentos do recurso substanciados nas conclusões, apenas a normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida supostamente violados na sua determinação, interpretação ou aplicação, ou se, por outro lado, também apela à consideração de quaisquer factos materiais ou ocorrências da vida real (fenómenos da natureza ou manifestações concretas da vida mesmo que do foro espiritual ou volitivo), independentemente da sua pertinência, merecimento ou acerto para a solução do recurso. Nessa óptica, o que é verdadeiramente determinante é o efeito que o recorrente pretenda retirar de tais asserções cujo conhecimento envolva a elaboração de um dado juízo probatório que não se resolva por meio de uma simples constatação sobre se existiu ofensa de uma disposição legal expressa que implique uma dada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de certo meio de prova, caso em que a competência já não caberá ao Tribunal de revista (cfr.artº.12, nº.5, do E.T.A.F.), mas ao Tribunal Central Administrativo por força do artº.38, al.a), do E.T.A.F., o mesmo se devendo referir sempre que, em fase de recurso, for pedida a apreciação da necessidade de realização de diligências de prova ou da sua determinação.
Ora, a identificação dos fundamentos do recurso colhe-se nas conclusões das alegações, conforme se alude supra, porque é nelas que o recorrente tem de condensar as causas de pedir que tenham susceptibilidade jurídica para, segundo o seu prisma, justificar a censura da decisão recorrida.
No caso “sub judice”, conforme se retira das conclusões do recurso explanadas supra, a sociedade apelante questiona o carácter sinalagmático do tributo objecto do presente processo ao alegar que não se encontra provada a existência de qualquer prestação concreta e individualizada dirigida à recorrente pela C.M.L. como contrapartida do pagamento daquela taxa, tal como nunca se provou que a ocupação do subsolo com as infra-estruturas da recorrente é geradora de custos para a autarquia, até mesmo porque estes são integralmente suportados pela própria concessionária, por força do contrato de concessão.
Ora, em tais conclusões a recorrente apela à consideração de factos materiais ou ocorrências da vida real, os quais estão para além da mera interpretação de normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida, supostamente, violados na sua determinação. Concluindo, os fundamentos do presente recurso não versam exclusivamente matéria de direito, pelo que a competência para o seu conhecimento pertence a este Tribunal, por força do artº.38, al.a), do E.T.A.F., e não ao S.T.A.-2ª.Secção, atento o disposto nos artºs.12, nº.5, e 26, al.b), do E.T.A.F.
Sem necessidade de mais amplas considerações, julga-se improcedente a excepção de incompetência absoluta deste Tribunal (em razão da hierarquia), aduzida pela recorrida C.M.L.
X
Em primeiro lugar, aduz o recorrente que não se encontra provada a existência de qualquer prestação concreta e individualizada dirigida à recorrente pela C.M.L., como contrapartida do pagamento da taxa objecto do presente recurso, tal como nunca se provou que a ocupação do subsolo com as infra-estruturas da recorrente é geradora de custos para a autarquia, até mesmo porque estes são integralmente suportados pela própria concessionária, por força do contrato de concessão (cfr.conclusões 4 e 5 do recurso).
Segundo entendemos, o apelante tenta assacar à decisão recorrida o vício de erro de julgamento da matéria de facto ao questionar a factualidade relativa ao carácter sinalagmático do tributo objecto do presente processo. No entanto, quanto à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida (cfr.artº.685-B, nº.1, do C.P.Civil, “ex vi” do artº.281, do C.P.P.Tributário; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; ac.T.C.A. Sul, 17/5/2011, proc.4745/11).
“In casu”, conforme salienta a entidade recorrida, o recorrente não avança com qualquer argumento que ponha em causa a matéria de facto constante da sentença, pelo que não podem deixar de estar votadas ao insucesso as conclusões do recurso sob análise, desde logo, devido a manifesta falta de cumprimento do ónus mencionado supra.
Sem necessidade de mais amplas considerações, julga-se infundado este esteio do recurso.
O recorrente discorda do decidido sustentando, igualmente e como supra se alude, que com a celebração do contrato de concessão, o Estado transferiu para a concessionária - ora recorrente - a prerrogativa de utilização dos bens do domínio público na medida do necessário à instalação das infra-estruturas indispensáveis à prossecução do serviço concessionado, privando assim a autarquia dos poderes de administração e disposição sobre essa parcela dos bens. O acto de liquidação de tais taxas é, assim, nulo por violação do artº.133, nº.2, al.b), do Código de Procedimento Administrativo, uma vez que, sendo praticado por um órgão municipal, acaba por invadir a esfera de responsabilidade e de atribuições do Estado-concedente, por envolver a administração de um bem dominial cujo uso passou a ficar afecto, por lei, ao próprio Estado, e sobre o qual apenas o Estado poderá dispor (cfr.conclusões 10 a 14 do recurso), com base em tal alegação pretendendo consubstanciar, segundo entendemos, erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão recorrida comporta tal pecha.
Antes de mais, dir-se-á que é hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr.artº.9, do C. Civil; artº.11, da L.G.Tributária; José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Editorial Verbo, 4ª. edição, 1987, pág.335 e seg.; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, pág.181 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de C.T.Fiscal, nº.174, 1996, pág.363 e seg.).
O fornecimento de gás é considerado um serviço público essencial, o qual se encontra sujeito a especiais regras de protecção dos utentes do mesmo serviço (cfr.artº.1, nº.2, al.c), da Lei 23/96, de 26/7, com as alterações introduzidas pela Lei 12/2008, de 26/2).
A definição dos bens do domínio público e o seu regime inserem-se na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e já se inseriam nessa reserva à face da redacção da Constituição vigente em 1991, saída da revisão constitucional de 1989 (cfr.artº.168, nº.1, al.z), da C.R.Portuguesa). Actualmente tal regime de reserva relativa encontra-se consagrado no artº.165, nº.1, al.v), da C. R. Portuguesa. Este regime de reserva da A. R. abrange a definição, não apenas do domínio público do Estado, mas também do de outras entidades públicas susceptíveis de serem titulares dele, como sejam as regiões autónomas ou as autarquias (cfr.artº.84, da C.R.Portuguesa; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 2º. Volume, Coimbra Editora, 2010, pág.334; ac.S.T.A.-2ª. Secção, 16/1/2008, rec.603/07).
Atento o referido, a tese da recorrente (a de que o dec.lei 33/91, de 16/1, que aprovou as bases de concessão, em regime de serviço público, e construção das respectivas infra-estruturas, de redes de distribuição de gás natural ou o contrato de concessão terem alterado o regime dos bens do domínio público municipal) depara com um obstáculo intransponível que é a invalidade constitucional de quaisquer hipotéticas alterações que tivessem sido introduzidas por esse diploma. Assim é, porque essas eventuais alterações só poderiam ser efectuadas pelo Governo ao abrigo de autorização legislativa, o que não se verifica no caso concreto, porquanto o citado dec.lei 33/91, de 16/1, foi emitido ao abrigo da competência legislativa própria do Governo. A mesma inconstitucionalidade orgânica afectaria os diplomas que, relativamente à introdução do gás natural no país, o antecederam, designadamente os dec.lei 374/89, de 25/10, 284/90 e 285/90, ambos de 18/9, pois nenhum deles se baseou em autorização legislativa. O mesmo sucede com o dec.lei 8/2000, de 8/2, que alterou aquele dec.lei 33/91, de 16/1. Por isso, se se pudesse encontrar no relatado dec.lei 33/91, de 16/1, ou no contrato de concessão que o mesmo consagra, uma hipotética alteração, total ou parcial, da inclusão do subsolo das estradas municipais no domínio público municipal ou alteração do seu estatuto jurídico, esses diplomas seriam, nessa parte, organicamente inconstitucionais. Esta inconstitucionalidade orgânica, conduzindo à invalidade das hipotéticas normas que tivessem alterado a definição ou o regime do domínio público municipal, torna dispensável apreciar outra questão que se poderia equacionar, a de inconstitucionalidade material, consubstanciada na possibilidade de leis ordinárias alterarem a definição do conteúdo do domínio público municipal relativamente aos bens expressamente identificados no artº.84, nº.1, da C. R. Portuguesa, na redacção de 1989, entre os quais se incluem as estradas (cfr.artº.84, nº.1, al.d), da C.R.Portuguesa). Assim, não se pode, com base nos direitos atribuídos à concessionária do serviço público de distribuição de gás natural pelo Governo no mesmo dec.lei 33/91, de 16/1, ou no contrato de concessão, concluir que foram por esses diplomas restringidos os poderes da Câmara Municipal de Lisboa de cobrar taxas pela ocupação do subsolo do domínio público municipal. Consequentemente, não pode também, com base naqueles diplomas, concluir-se que a Câmara Municipal de Lisboa invadiu as atribuições do Governo, ao estabelecer taxas pela ocupação do subsolo do domínio público municipal por empresas que comercializam gás natural, pelo que não ocorre, consequentemente, a nulidade invocada pela recorrente, prevista no artº.133, nº.2, al.b), do C.P.A. (cfr.ac.S.T.A.-2ª. Secção, 8/11/2006, rec.648/06; ac.S.T.A.-2ª. Secção, 16/1/2008, rec.603/07).
Por último, sempre se dirá que por força do princípio da generalidade e universalidade dos tributos, onde se incluem as taxas (artº.5, nº.2, da L.G.Tributária), estes a todos são aplicáveis, incluindo a ora recorrente. Sendo que, no caso concreto, a legitimidade da C.M.L. para liquidar as taxas objecto do presente processo se baseia nos artºs.238, nº.4, e 241, da C. R. Portuguesa, e no artº.19, al.c), da Lei das Finanças Locais (L.F.L.) aprovada pela Lei 42/98, de 6/8 (cfr.actualmente, ver igualmente o artº.8, do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, aprovado pela Lei 53-E/2006, de 29/12; artº.15, da L.F.L. aprovada pela Lei 2/2007, de 15/1).
Concluindo, julga-se improcedente também este alicerce do recurso.
Como fundamento do presente salvatério alega, ainda, o apelante que, ao contrário daquilo que sustenta o Tribunal “a quo”, nem sequer estamos perante uma verdadeira taxa, uma vez que lhe falta o indispensável nexo sinalagmático ou bilateralidade, em frontal violação do princípio da equivalência. A existir algum benefício ou vantagem patrimonial para a recorrente, em consequência da utilização do domínio público, tal não teria, de “per si”, a virtualidade de afirmar a existência da bilateralidade, o que só seria possível se a esse benefício correspondesse alguma actividade ou custo para a autarquia. Esses benefícios, aliás, nunca foram quantificados pela autarquia e parecem confundir-se com os lucros auferidos pela recorrente no exercício da concessão, o que não se admite. Se se admitir essa confusão de conceitos, aceita-se a tributação do lucro das sociedades através de um imposto dissimulado sob a capa de taxa, em clara e inadmissível violação da reserva de lei formal imposta pela Constituição (cfr.conclusões 3 e 6 a 9 do recurso), com base em tal alegação pretendendo consubstanciar, segundo entendemos, erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso padece de tal vício.
A taxa deve visualizar-se como uma receita pública estabelecida por lei, quer como retribuição de serviços prestados individualmente aos particulares no exercício de uma actividade pública, quer como contrapartida da utilização de bens do domínio público, quer, ainda, como contrapartida da remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares. A taxa situa-se apenas no domínio dos serviços públicos divisíveis. Na verdade, existem actividades públicas ditas indivisíveis, dado que o benefício para os particulares das mesmas resultante tem carácter genérico (v.g.defesa nacional; actividade legislativa; actividade diplomática). Porém, existem muitas outras actividades e serviços públicos de que os particulares podem extrair vantagens individualmente consideradas, pelo que, nesses casos, há a possibilidade de realizar a respectiva cobertura financeira, total ou parcialmente, mediante a criação de taxas (v.g.propinas da instrução pública; custas da justiça; portagens pagas nas vias de comunicação). Atento o referido, o que caracteriza definitivamente a taxa em face do imposto, consiste no carácter sinalagmático ou bilateral daquela e unilateral ou não sinalagmático deste. A taxa não se basta com a existência de uma contrapartida jurídica de carácter genérico, sendo necessário que seja satisfeita uma contraprestação individual pelo devedor para que exista (cfr.artº.4, nºs.1 e 2, da L.G.Tributária; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 19/1/94, Acórdãos Doutrinais, nº.396, pág.1412 e seg.; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 2/5/96, Acórdãos Doutrinais, nº.420, pág.1420 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Editora Rei dos Livros, 1996, I, pág.74 a 77; Soares Martínez, Direito Fiscal, 8ª. edição, Livraria Almedina, 1996, pág.35 a 37; J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª. edição, 2007, pág.30 e seg.; Diogo Leite de Campos e outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Vislis, 3ª. Edição, 2003, pág.58 e 59).
Actualmente, a taxa pode definir-se como uma prestação coactiva, devida a entidades públicas, com vista à compensação de prestações efectivamente provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos. Em contraste com o imposto de características unilaterais, a taxa caracteriza-se pela sua natureza cumutativa ou bilateral, devendo o seu valor concreto ser fixado de acordo com o princípio da equivalência jurídica. A natureza do facto constitutivo que baseia o aparecimento da taxa pode consistir na prestação de uma actividade pública, na utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares (cfr.artº.4, nºs.1 e 2, da L.G.Tributária; artºs.3 e 4, do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, aprovado pela Lei 53-E/2006, de 29/12; artº.15, nº.2, da L.F.L. aprovada pela Lei 2/2007, de 15/1; Sérgio Vasques, Regime das Taxas Locais, Introdução e Comentário, Cadernos do I.D.E.F.F., nº.8, 2009, pág.83 e seg.; J. L. Saldanha Sanches, ob.cit., pág.30 e 31).
Recorde-se, também, que a distinção entre imposto e taxa assume especial relevo perante os princípios gerais de direito tributário material, designadamente face ao princípio da legalidade, concebido como reserva absoluta de lei formal, isto é, lei da Assembleia da República (cfr.artº.103, nº.2, da Constituição da República, na redacção introduzida pela Lei Constitucional 1/97, de 20/9), princípio este que, segundo a doutrina, abrange somente o imposto mas não já as taxas que podem ser criadas por decreto-lei do Governo, sem prévia autorização legislativa (cfr.Nuno Sá Gomes, ob.cit., pág.76; Soares Martínez, ob.cit., pág.37; J. L. Saldanha Sanches, ob.cit., pág.31).
No caso “sub judice”, será que nos encontramos perante uma verdadeira taxa ou antes perante um imposto?
A nomenclatura empregue pelo legislador nem sempre corresponde à realidade sobre que versa, pelo que só através da análise dos elementos de um determinado tributo se deve proceder à sua qualificação como taxa ou imposto.
O desenvolvimento tecnológico nas mais diversas áreas - mas principalmente nos sectores da energia e das telecomunicações - tornou o solo e subsolo das vias públicas num espaço privilegiado de realização de finalidades administrativas. Este segmento do domínio público tem hoje um “valor económico próprio”, propiciador da realização das mais diferentes utilidades. Trata-se de um espaço cuja principal função - que naturalmente pauta e baliza a sua valia económica - não é já a de garantir o regular funcionamento da circulação viária sobrejacente. Admite-se, sem custo e sem rebuço, que, no aproveitamento do subsolo, terá sempre de considerar-se a realização do interesse cardial do aproveitamento do solo: a circulação rodoviária. Mas, do mesmo passo e no mesmo momento, tem de afirmar-se peremptoriamente que a concepção que veja no aproveitamento do subsolo uma pura funcionalidade negativa - a não perturbação das potencialidades de aproveitamento da superfície - representa um anacronismo jurídico-administrativo na actualidade.
Especificamente quanto ao subsolo, ele próprio, constitui um canal de “circulação” de um outro tráfego, a circulação das redes de infra-estruturas. Podem estar aí as redes de satisfação de necessidades básicas (abastecimento de água para consumo doméstico, saneamento), as redes de distribuição de energia (electricidade, gás, combustíveis), as redes de implantação de telecomunicações (telefones, televisão por cabo), estruturas de transportes (metropolitano) ou até estruturas de regulação do tráfego viário urbano (parques de estacionamento subterrâneo, passagens de peões, túneis para desnivelamento de cruzamentos, etc.). Em face destes exemplos, julgamos que não sobejam quaisquer dúvidas sobre a autonomia do valor do aproveitamento do subsolo na actualidade e nos centros urbanos.
Esta concepção hodierna - se assim lhe podemos chamar - do domínio público do subsolo foi, aliás, expressamente assumida pela Lei das Finanças Locais 42/98, de 6/8 -, cuja vigência se iniciou em 1 de Janeiro de 1999 e que tem aplicação ao caso “sub judice” (cfr.artº.12, do C.Civil). Com efeito, no artº.19, al.c), em que se estabelecem as áreas ou matérias em que os municípios podem cobrar taxas, prescreve-se explicitamente:
“…”
“taxas por ocupação do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal e aproveitamento dos bens de utilidade pública”.
Do texto do preceito sob exame decorre, com uma clareza meridiana, a “autonomização económica” (ou do “valor económico do aproveitamento”) do subsolo em face do solo ou da superfície. E isto, nomeadamente, se confrontarmos esta formulação com a redacção do preceito homólogo da legislação anterior, a Lei nº.1/87, de 6/1, cuja al.c), do artº.11, estabelecia:
“…”
“taxas por ocupação do domínio público municipal e aproveitamento dos bens”.
A relação sinalagmática, típica das taxas, entre o benefício recebido e a quantia paga não implica uma equivalência económica rigorosa entre ambos, mas não pode ocorrer uma desproporção que, pela sua dimensão, demonstre com clareza que não existe entre aquele benefício e a quantia paga a correspectividade ínsita numa relação sinalagmática.
Nomeadamente, o que está em causa, em primeiro lugar, para determinar se o tributo tem natureza de taxa, é, no caso concreto, se a ocupação do subsolo consubstancia uma utilização individualizada desse bem, no interesse próprio da recorrente, seja ou não exclusivo.
A colocação de tubagens no subsolo consubstancia uma utilização individualizada deste, uma vez que, mantendo a impugnante essa utilização, não será possível utilizar o mesmo espaço para outras finalidades, ficando, assim, limitadas as possibilidades de utilização desse subsolo para outras actividades de interesse público e para outras concessões do seu uso pela autarquia, com cobrança das respectivas taxas.
Por outro lado, o facto de a recorrente ser concessionária de um serviço público não afasta a qualificação do tributo como taxa, pois, a par da satisfação do interesse público, a sua actividade proporciona-lhe a satisfação dos seus interesses como empresa comercial privada, naturalmente vocacionada para obtenção de lucros. E relembre-se que, no caso, tanto o contrato de concessão como a lei aplicável apenas consagram a não sujeição ao licenciamento municipal dos projectos necessários à implantação das infra-estruturas que visem a instalação e a distribuição da rede de gás natural, que não também o pagamento das taxas devidas pela utilização do solo ou subsolo público municipal (cfr.artº.15, al.c), do dec.lei 374/89, de 25/10; base XVII, do anexo I, do dec.lei 33/91, de 16/1).
Como se refere no artº.4, nº.2, da L. G. Tributária, e já anteriormente se entendia, as taxas podem ter por fundamento, além do mais, a utilização de um bem do domínio público, conforme se alude supra.
Relativamente aos bens classificados pela Constituição como integrando o domínio público, as autorizações de uso privativo do domínio público através de licenças ou concessões, não podem, sem violar a mesma Constituição, deixar de ser efectuadas em situações em que, concomitantemente com o interesse do particular, há também um interesse público, mesmo que não seja o prevalente. Por isso, a satisfação de um interesse público pela actividade de uma empresa privada, não é obstáculo à aplicação da taxação prevista para autorizações de uso privativo de bens do domínio público, sendo mesmo esse tipo de situações, no qual existe, cumulativamente, interesse público e privado, o campo de aplicação natural das taxas pela utilização de bens do domínio público. É este o caso dos autos, não visualizando o Tribunal “ad quem” que o tributo objecto dos presentes autos viole o dito princípio da equivalência jurídica, ou tenha por finalidade a tributação do lucro da sociedade recorrente.
Por último, sempre se referirá que a última jurisprudência do Tribunal Constitucional e do S.T.A.-2ª.Secção, é uniforme no sentido de concluir que os tributos liquidados visando a ocupação de via pública e, mais especificamente, o subsolo, revestem a natureza de taxas (cfr.ac.Tribunal Constitucional 365/2003, de 14/7/2003; ac.Tribunal Constitucional 366/2003, de 14/7/2003; ac.Tribunal Constitucional 396/2006, de 28/6/2006; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª. Secção, 20/1/2010, rec.731/09; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª. Secção, 17/11/2010, rec.174/10).
Sem necessidade de mais amplas ponderações, considera-se improcedente também este fundamento do recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida a qual não padece dos vícios que lhe são assacados pelo recorrente, ao que se procederá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA que, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
X
Condena-se o recorrente em custas.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 21 de Junho de 2011

(Joaquim Condesso - Relator)

(Eugénio Sequeira - 1º. Adjunto)

(Aníbal Ferraz - 2º. Adjunto)