Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08652/15
Secção:CT
Data do Acordão:01/11/2018
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO DA AT
ÓNUS DA PROVA
Sumário:I. A AT não cumpre com o princípio do inquisitório (art. 58.º da LGT) quando no âmbito de uma acção de inspecção não procede a qualquer diligência para apurar a veracidade de facturas obtidas a partir da contabilidade de terceiro, e que não constavam da contabilidade do contribuinte, quanto este, ouvido nesse procedimento, nega as ter emitido, invocando a sua falsidade;
II. Neste circunstancialismo e à míngua de qualquer outro elemento junto no âmbito da acção de inspecção importa concluir que a AT não demonstrou os pressupostos da tributação conforme se lhe impunha, não cumprindo com o ónus da prova nos termos do art. 74.º da LGT.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública, com os demais sinais nos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação apresentada por A..., contra a liquidação adicional de IVA referente ao exercício fiscal do ano 1996, com o n° ..., bem como as liquidações de juros compensatórios relativas aos períodos de 9606, 9607, 9608, 9610 e 9611, com os n°s. ..., ..., ..., ... e ..., respectivamente, no montante total de Esc. 19.252.955$00 (€ 96.033,33).

A Recorrente, Fazenda Pública, apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES:
I - Pelo elenco de fundamentos acima descritos, infere-se que a douta sentença, ora recorrida, julgou procedente a impugnação à margem referenciada com as consequências aí sufragadas, por ter considerado que a Fazenda não tinha provado os pressupostos legais que permitissem concluir que as facturas emitidas por A... eram falsas.

II - Neste âmbito, o thema decidendum, assenta em saber se a Administração Tributária provou os pressupostos legais de que as facturas eram falsas.
III - A Fazenda Pública considera que a Administração provou os pressupostos legais de que as facturas eram falsas, tendo sido corroborado pelo Acórdão da 2.ª Vara Criminal do Porto, pelo que deve a douta sentença do Tribunal ad quo ser revogada.
IV - Assim, a Fazenda chamou à colação o Ac. do TCAN que sobre os indícios recolhidos pela Administração Tributária consagra que "(...) Como tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal Central Administrativo Norte, quando a administração tributária desconsidera as facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (LGT), competindo à administração tributária, fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indicias sérios de que a operação constante da factura não corresponde à realidade."- vide Ac. do TCAN de 14/03/2012, proferido no proc. n.º 03636/04-Viseu.
V - E, "Feita esta prova, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção - cfr. Acórdãos do TCA Norte de 24-01-2008, processo n.º 01834/04 Viseu, de 24-01-2008, processo n.º 2887/04 Viseu, de 27-01-2011, processo n.º 455/05.7BEPNF e de 18-03-2011, processo n.º 456/05BEPNF.
De notar que a administração tributária não precisa de demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência daquele juízo (Acórdão do STA de 27-10-2004, processo n.º 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operaç6es referidas nas facturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade - artigo 75.º da LGT." - vide Ac. do TCAN de 14/03/2012, proferido no proc. n.º 03636/04-Viseu


VI - E que provas são as que a Administração detém?
VIl - Na Direcção de Finanças do Porto, no procedimento de inspecção efectuado a Z..., joalheiro, constam facturas relativas aos exercícios de 1996 e 1997, emitidas por A....

VIII - No processo de Inquérito n.º 804/99.5TDLSB, do DCIAP de Lisboa consta que "(...) Efectivamente analisadas as cópias das facturas em causa, verifica-se que, as mesmas são processadas em computador, não têm qualquer assinatura ou carimbo, pelo que negando o A... a sua emissão, evidente que é excessivo concluir que as mesmas evidenciam uma actividade desenvolvida em Portugal pelo mesmo,( ...) Na verdade atentas as características das facturas em causa, as mesmas poderiam ser emitidas por qualquer pessoa, desde que tivesse interesse em fazê-lo e conhecesse alguns dos dados profissionais do N...".
IX - No proc. n.º 6041/97.6TDPRT, que correu termos na 2.ª Vara Criminal do Porto, ficou provado e para corroborar o Inquérito, mencionado no ponto anterior, que "(...) 200 - O Z... (...) 208 - Assim, com esse objectivo substituiu na sua contabilidade as facturas que possuía e lhe foram emitidas pelo J..., por facturas que o C... lhe entregou pertencentes a H..., A... e P..., Lda, sendo certo que as mesmas não correspondem a quaisquer transacções reais com estas entidades. (...) 210 - Também as facturas contabilizadas no Z... emitidas por A..., tem data de emissão de 1996 e 1997, quando efectivamente este cessou a actividade em 28/02/95, e nunca comercializou ouro."- vide fls 344 e 345 da certidão de fls. 296 a 1169
X - E, quanto aos factos provados no Acórdão, e mencionado em 7) "(...) baseou-se essencialmente no seguinte: 1 - análise do relatório de perícia (...), em que foram analisadas as entidades a seguir mencionadas (...), Z... (...) Parte significativa das compras e vendas de ouro fino e prata fina documentadas pretendem documentar um circuito de transacções que não têm qualquer aderência ao movimento real. As compras documentadas em que figuram como fornecedores A...(...), não correspondem a transacções efectivas. (...) De acordo com os elementos disponíveis, o seu modo de actuação terá sido o seguinte: adquiriu ouro a duas empresas sediadas em Espanha (...) e pequenas quantidades no mercado interno (...); todo o ouro adquirido foi transmitido no mercado interno com ou sem factura. Desde 1995 a Novembro de 1997, documentou compras com facturas fictícias (... e N...) para compensar aquisições de ouro não documentadas". (bold e sublinhado nosso) - vide fls. 409, 414 e 415 da certidão de fls. 296 a 1169
XI - Por outro lado, nas declarações prestadas em fase de inquérito, Z... "(...) reconheceu ter substituído na sua contabilidade as facturas emitidas por (...) e A...;" - vide fls.436 da certidão de fls. 269 a 1169
XII - Mas, Z... foi condenado por ser receptor de facturação falsa e, entre as facturas recepcionadas constam as de A....
XIII - E, tal como consta do Inquérito do DCIAP de Lisboa, as facturas em nome de A... consubstanciam uma actividade empresarial.
XIV - Perante tais factos, a Administração Tributária só poderá concluir que se está perante facturação falsa, facturas emitidas em nome de A... que serviram para diminuir custos de Z... e sua empresa, tal como consta do Acórdão da 2.ª Vara Criminal do Porto.
XV - Assim, os indícios recolhidos pela Administração Tributária cumprem os requisitos formais e materiais de que aquelas facturas eram falsas.
XVI - No Ac. do TCAN de 28/02/2013 estipulou-se que "(...) não é imperioso que a Administração efectue uma prova directa da simulação. Como em muitos outros casos, haverá que recorrer à prova indirecta, a "factos indiciantes, dos quais se procuram extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova" - cfr. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o acórdão do TCAN, de 26/04/12 (processo n° 00964/06.0 BEPRT).
Ou seja, a Administração Tributária não tem que demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo (Acórdão do STA de 27/10/04, Processo 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas facturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade - artigo 75° da LGT.
Os indícios são definidos por João de Castro Mendes como aqueles factos que "permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos, em virtude de leis naturais conhecidas pelos homens e que funcionam como máximas de experiência" - citado por José Luís Saldanha Sanches, A Quantificação da Obrigação Tributária, 2 edição, pág. 311.
Nesta tarefa, poderá a Administração Tributária lançar mão de elementos obtidos com recurso à fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, para obter os referidos indícios, pelo que tais indicadores de falsidade das facturas não têm necessariamente que advir de elementos do próprio contribuinte fiscalizado." (bold e sublinhado nosso) - vide Ac.do TCAN de 28/02/2013, proferido no proc. n.º00383/08.4BEBRG
XVII - Mas, A..., em sede de impugnação, na prova testemunhal bem como em auto de declarações refuta que tenha emitido aquelas por não se encontrar a laborar em Portugal e porque tinha a actividade cessada.

XVIII - Com respeito à prova testemunhal, "M..." declarou que era fornecedor de A... de electrodomésticos, sendo as facturas emitidas para um domicílio de Lisboa, no Martim Moniz. A partir de 1992, as facturas passaram a ser enviadas para Angola, para exportação no transitário de nome L... Lda. Não sabe quando A... cessou em Portugal a sua actividade. Quanto à sociedade E..., admite que as facturas fossem emitidas em nome dessa sociedade mas teria de confirmar com o seu contabilista. Quanto ao negócio do ouro, afirmou que nunca se meteria na venda de ouro ou pedras preciosas porque sempre se mostrou muito pouco interessado no negócio de diamantes que em Angola é quase público. Relativamente às facturas serem processados por computador disse que A... vendia na carrinha por todos o país e porque não sabe trabalhar com um computador e ainda hoje não tem terminal. - vide fls. 213 e ss do Vol. I
XIX - Quanto à prova testemunhal de "A...", declarou que era fornecedor de A... de electrodomésticos, não sabendo onde ficava o estabelecimento porque era o N... que se deslocava e que este era mais um vendedor do que comerciante. Ainda chegou a fornecer electrodomésticos para N... exportar para Angola. Pelo que conhece de N... não era pessoa que se envolvesse com o negócio do ouro, não teve conhecimento que tenha comercializado tal metal. Quanto às facturas processados por computador nunca as viu e pensa que N... não tinha computador nem tinha conhecimento de informática. -vide fls. 241 e 242 do Vol. II
XX - A prova testemunhal de "J...", amigo de infância de N... teve influência no negócio dos electrodomésticos, tendo incentivado o negócio em N... que de início começou por ser na rua e em feiras, e posteriormente é que se dedicou à revenda de electrodomésticos. Nunca lhe disse que vendia ouro e sendo os seus irmãos os amigos de N..., estes não negociavam em ouro. Quanto às facturas processadas por computador, disse que N... não tinha computador, nas revendas emitia as facturas à mão. -vide fls. 242 e 243 do Vol. II
XXI - Em súmula da prova testemunhal pode-se dizer que vendia electrodomésticos quer em Portugal quer em Angola; tinham conhecimento que não tinha computador e quanto ao negócio do ouro pensavam que não se meteria nesse negócio.
XXII - Mas será suficiente a prova testemunhal para refutar que as facturas não eram falsas? Pois desta não se conseguiu extrair quem foi o emitente das facturas, mas tão só que ele não se meteria nesse negócio, ou seja, opinavam em vez de afirmarem peremptoriamente, mas como poderiam saber se N... estava em Angola e eles em Portugal? Como explicam aquelas facturas, com dados tão certos como o nome, a sede e o número de contribuinte se não era o próprio N... o emitente? Terá alguém tido acesso aos seus dados? Será que Z... das ... teve acesso aos dados de A...?
XXIII - Ora, do depoimento das testemunhas inquiridas não lograram convencer a Fazenda, no sentido da prova positiva da factualidade alegada pelo impugnante, N..., nomeadamente de que as facturas e os serviços titulados nas mesmas não foram prestados pelo emitente das mesmas.

XXIV - Ora, recaindo o ónus da prova em N... e na prova testemunhal, esta não permite que se conclua quem foi o emitente das facturas ou que o N... não foi o emitente, tendo o depoimento das testemunhas sido vagos e pouco circunstanciados a respeito das facturas, pelo que se impunha às testemunhas, de forma pormenorizada e concreta dessem nota de que N... não tinha sido o emitente e o porquê, o que não aconteceu.
XXV - Quanto à prova testemunhal, no Ac. do TCAN estipulou-se que "(...) Trata-se de uma situação em que haverá que avaliar a prova com particular prudência, uma vez que é sobejamente conhecida a "praga” avassaladora de "facturas falsas" que assolou o comércio, bem como a experiência nos dá conta da particular fragilidade da prova testemunhal neste domínio, onde se cruzam interesses diversos, onde muitos lucram à custa do erário público [cfr. acórdãos deste TCAN de 12/10/2006 (Processo 0300/02) e de 15/02/13 (Processo 489/06.4BEBRG)]." - vide Ac. do TCAN de 28/02/2013, proferido no proc. n.º 00383/08.4BEBRG
XXVI - Mas, a Fazenda conseguiu provar por informação cruzada, ou seja, através de uma acção inspectiva a Z... das ... que este detinha em seu poder as facturas emitidas em nome de A..., para os anos de 1996 e 1997, o que reforça ainda mais a falsidade das mesmas, pelo que sendo falsas não correspondem a nenhuma transacção real, pelo que o art.º 19.º do CIVA foi violado.
XXVII - Neste desiderato, a Administração Tributária fundamentou formalmente e materialmente os indícios de que as facturas emitidas eram falsas, sendo corroborado pelo Acórdão da 2.ª Vara Criminal do Porto, pelo que a Administração provou a verificação dos pressupostos legais que permitem concluir que as facturas são falsas, sendo reforçado pela informação cruzada, pelo que a Administração Tributária provou a verificação dos pressupostos legais que permitem concluir que as facturas são falsas, Devendo a douta sentença do Tribunal ad quo ser revogada.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente, com as devidas consequências legais.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA»


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O Recorrido, apresentou contra-alegações, e formulou as seguintes conclusões:

«Conclusões:
I. A sentença recorrida deve ser mantida, improcedendo o recurso na totalidade.
II. Discute-se, nos presentes autos a legalidade da liquidação adicional de IVA referente ao ano de 1996, com o n.º ..., bem como as liquidações de juros compensatórios relativas aos períodos 9606, 9607, 9608, 9610 e 9611, respectivamente com os n.ºs ..., ..., ..., 0..., ... e 00097577.
III. Tais liquidações tiveram como fundamento o relatório de acção inspectiva junto aos autos, o qual, por sua vez, teve origem no facto de numa acção inspectiva levada a cabo no Porto, a um contribuinte de nome Z..., terem sido detectadas facturas alegadamente emitidas pelo Impugnante.
IV. Tais facturas são falsas, tendo sido qualificadas pelos Serviços de Fiscalização como fictícias.
V. Pretende agora a Fazenda Nacional, por via do presente recurso, que com base na circunstância de terem sido demonstrados indícios de falsidade das facturas, o ónus da prova relativamente à veracidade das mesmas recaia sobre o Impugnante, ora recorrido.
VI. Ora o recorrido não pretende, de forma alguma, demonstrar que as facturas são verdadeiras! Nunca o afirmou e antes pugnou por explicar que as facturas não são verdadeiras em nenhum dos seus elementos.
VII. As facturas não são da sua autoria e não reflectem qualquer transacção comercial por si realizada.
VIII. O recorrido apresentou os meios de prova possíveis e que estavam ao seu alcance: juntou aos autos os modelos de facturas que utilizava enquanto empresário em nome individual, apresentou testemunhas que que comprovaram que não emitia facturas por computador e que nem para tal tinha os conhecimentos necessários, assim como afirmaram que o recorrido jamais se relacionou com o comércio do ouro e das pedras preciosas.
IX. Demonstrou, não só pelas declarações fiscais que oportunamente entregou, como pelas testemunhas que arrolou que cessou efectivamente a actividade enquanto empresário em nome individual, passando a desenvolvê-la através de sociedade que constituiu com um irmão. Provou, ainda, que esta sociedade foi, também ela dissolvida e que a sua actividade se passou a centrar em Angola, através de uma sociedade designada "Armazéns ..., Lda."
X. Não obstante, a Fazenda Nacional pretende que o impugnante demonstre a veracidade (?) das facturas ou a identidade de quem as emitiu ou, ainda, que comprove que não foi ele quem emitiu as facturas (facto negativo), ou seja, que produza uma verdadeira prova diabólica!
XI. A impugnação deduzida teve como fundamento a inexistência de facto tributário, precisamente porque as facturas que sustentaram a actuação da AT são falsas e não traduzem, no que ao impugnante respeita, qualquer facto tributário.
XII. A Administração Fiscal basta-se (sempre se bastou) com a circunstância das facturas conterem a identificação do recorrido para considerar que este as emitiu, sem utilizar quaisquer outros meios de prova que sustentem esta afirmação.
XIII. Certo é que cabia à AT fazer a prova de que estavam reunidos os pressupostos legais que determinam a obrigação de liquidar o imposto.
XIV. Acresce que, no entender do recorrido a prova que por si foi produzida é apta a demonstrar que não exerceu qualquer actividade em Portugal no período em causa.
XV. Assim, a Mm.ª Juíza a quo tinha todos os elementos para considerar como provado que as ditas facturas não haviam sido emitidas pelo recorrido. Não obstante, entendeu como mais adequado fazer uso do estabelecido no n.º 1 do artigo 100.º do CPPT, aplicando-o correctamente e em consonância com a jurisprudência e doutrina.
XVI. A norma referida destrói claramente qualquer presunção a favor da AF (in dublo pro Fisco), e estabelece uma verdadeira repartição do ónus da prova (que se coloca apenas em relação a questões de facto), de acordo com os princípios da legalidade e da igualdade, e em termos de que a incerteza sobre a realidade dos factos tributários reverte, em regra, contra a AF, não devendo ela efectuar a liquidação se não existirem indícios consistentes da existência daqueles, isto é, se o conhecimento desses factos for baseado em meras aparências desacompanhadas da expressão factual de verdadeiros elementos probatórios.
XVII. Esta regra consubstancia, como assinala a boa doutrina, "uma aplicação no processo de impugnação judicial da regra geral sobre o ónus da prova no procedimento tributário enunciada no artigo 74°, n° 1 da LGT, em que se estabelece que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque" - nestes termos, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Volume I, 2006, pág. 719.
XVIII. O referido artigo 74°, n° 1 da LGT, preceitua que "o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”
XIX. Assim, na situação presente, era sobre a Administração Tributária que, em sede de procedimento tributário, primeiro, e de processo judicial, depois, recaía o ónus de provar a existência dos factos tributários, o que não fez.
XX. Como a jurisprudência vem assinalando de modo repetido, é à administração tributária “que cabe o ónus de provar a existência dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, isto é, compete-lhe provar que se verificam os factos que integram o fundamento previsto na lei para que seja ela a liquidar o imposto que o contribuinte deixou de liquidar, demonstrando a existência e conteúdo do facto tributário. (...) Daí que a incerteza sobre a realidade dos factos tributários reverta, em regra, contra a administração tributária, que deve abster-se de efectuar a liquidação se não existirem elementos concretos e consistentes reveladores da existência dos factos tributários, não sendo suficiente a afirmação do seu convencimento sobre a existência do facto tributário com apoio em meras suspeitas ou aparências desacompanhadas da expressão factual de verdadeiros elementos de prova.
XXI. A sentença recorrida acolheu, precisamente, este entendimento, pelo que não merece censura e deve ser mantida.
XXII. Facto é que a Exm.ª Representante da Fazenda Nacional deduziu o presente recurso sem para tanto ter qualquer fundamento, com o único intuito de protelar o trânsito em julgado da douta sentença recorrida, mantendo e agravando o enorme prejuízo que o recorrido tem face a toda a situação em que, sem saber como, se viu envolvido.
XXIII. No recurso são invocados fundamentos desrazoáveis e destituídos de qualquer sentido.
XXIV. Não é aceitável que um licenciado em direito que analise o processo e a sentença venha dizer que o impugnante teria que provar a veracidade das facturas, por sobre si impender tal ónus quando, desde o primeiro momento, o recorrido vem afirmando que as facturas são falsas, como acima já ficou bastamente explicado.
XXV. Na situação em apreço a Exm.ª Representante da Fazenda Nacional ignorou a causa de pedir e o pedido formulado na impugnação, o teor da prova que foi produzida e, por maioria de razão, a douta sentença proferida, actuando por isso dolosamente.
XXVI. A actuação da Fazenda Nacional consiste num uso manifestamente reprovável do presente recurso, visando protelar, sem qualquer fundamento, o trânsito em julgado da decisão.
XXVII. Os argumentos invocados no recurso são tao absurdos que seguramente a sua actuação é divergente da habitualmente adoptada em situações idênticas.
XXVIII. A actuação da Exm.ª Representante da Fazenda Nacional é violadora dos princípios da boa-fé e da igualdade nos termos que ressaltam do n° 1 do artigo 104° da LGT, aplicável ao processo tributário.
XXIX. Assim, deve ser aplicada à AT uma sanção pecuniária de valor não inferior a 2 UC, o que se requer.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida.
Deve, ainda, a AT ser condenada como litigante de má-fé, por se mostrarem reunidos os pressupostos estabelecidos no n.º 1 do artigo 104.º da LGT, numa sanção pecuniária não inferior a 2 UC.
Assim decidindo farão V. Exas a costumada Justiça!»


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Foram os autos a vista do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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A questão invocada pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em aferir se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de facto e de direito porquanto a Administração Tributária provou os pressupostos da sua actuação, sendo que a prova testemunhal produzida não é suficiente para se concluir que o Impugnante não foi o emitente das facturas.

Cumpre ainda conhecer do pedido formulado pela Recorrida nas suas contra-alegações de condenação da Fazenda Pública como litigante de má-fé, por ter violado o princípio da boa-fé e da igualdade nos termos do art. 104.º, n.º 1 da LGT [conclusões XXII a XXIX].

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

«de facto

Com relevância para a decisão da causa consideram-se assentes os seguintes factos:

A) - A Direcção de Finanças do Porto efectuou uma inspecção tributária ao contribuinte "Z..." (Joalheiro), NIPC ..., de cujo processo extraiu cópias de facturas que remeteu à Direcção de Finanças de Lisboa, facturas essas relativas aos anos de 1996 e 1997, emitidas em nome do aqui impugnante, Centro Comercial da ..., loja 213, 1100 Lisboa, Contribuinte ..., e relativas a vendas de ouro, conforme documentos de fls. 188 a 197, que se dão por reproduzidos.
B) A fim de se proceder à análise da situação tributária do Impugnante, foram emitidas Ordens de Serviço n°s 89635 e 89636 de 10-12-98, para efeitos inspecção em sede de lRS e IVA, tendo a acção sido iniciada em 10-12-1998 e, na sequência da qual, foram efectuadas correcções técnicas em sede de IVA e de IRS por recurso a métodos indiciários, conforme Relatório, Parecer e Despacho e respectivos anexos anexos, de fls. 41 a 78, que se dão por reproduzidos.
C) Do relatório da inspecção referido na alínea anterior consta o seguinte:
«B - A acção inspectiva incide sobre IVA e IRS, relativamente aos anos 1996 e 1997.
Nos anos de 1996 e 1997, o Ar. A... não entregou as declarações de rendimentos - IRS. Contudo, a Direcção de Finanças do Porto em procedimento de inspecção efectuado ao sujeito passivo "... (Joalheiro) - NIPC: ..., extraiu cópias de facturas dos anos de 1996 e 1997, em nome de "A..." - Centro Comercial da ..., Lj. 213-1100 Lisboa, NIF: ..., conforme anexo n°. 8.

C - O sujeito passivo exerceu a actividade como empresário em nome individual até 28/2/95, tendo declarado a sua cessação nesta data.

Em 2/2/95 é declarado o início da actividade da firma "E... Importação e Exportação, Lda", contribuinte nº. ..., da qual é sócio. Esta firma exerceu actividade comercial no ano de 1995 na mesma morada onde o Sr. A... exerceu a actividade de empresário - Cat."C"- Centro Comercial da ..., loja 213, - 1100- Lisboa.

A partir do ano de 1995 a "E... (...), cedeu o estabelecimento ao empresário em nome individual, Cat "C" - N..., NIPC: ..., sendo este, que actualmente está na morada indicada.

Ill - Motivos e exposição dos factos que implicam o recurso a métodos indirectos

A Direcção de Finanças do Porto em procedimento de inspecção efectuado ao sujeito passivo "Z... (Joalheiro) - NIPC: ..., extraiu as facturas adiante referenciadas, tendo-nos enviado cópia das mesmas, relativas aos anos de 1996 e 1997, em nome de "A..." - Centro Comercial da ..., LJ. 213-1100 Lisboa, - ..., referentes a vendas de ouro.

A 11/12/98 deslocámo-nos à morada identificada no cadastro como pertencendo ao Sr. A... e verificámos que esta não corresponde à sua morada, mas sim de um familiar, que nos facultou a morada correcta.

A 16/12/98 notificámos o Sr. A... na residência atrás identificada, para no dia 4/1/99 pelas 10 horas apresentar todos os elementos de escrita relativos aos anos de 1996 e 1997, bem como prestar outros esclarecimentos considerados indispensáveis.

Assim, a 4/1/99 perante a não apresentação dos elementos de escrita, alegando não possuir qualquer actividade comercial em Portugal, mas sim em Angola, ouvimos o referido senhor em auto de declarações, o qual se junta em Anexo n°. 2, com 4 folhas.

Tendo o Sr. A... sido questionado sobre as facturas n°. 79/96, 85/96,88/96,90/96,91/96,93/96, 124/97 e 132/97, respondeu desconhecer.

Quanto à não entrega de Declaração de Rendimentos dos anos de 1996 e 1997, disse não obter rendimentos em Portugal, mas sim da firma da qual é sócio - "Armazém ..., Lda. - Av. …, n°. 172 - Luanda - República da Angola.

É de referir, que este sujeito passivo possui agregado familiar em Portugal, possuindo residência própria (moradia), que adquiriu no ano de 1994 com recurso ao crédito bancário.

Assim, nos termos do n°. 6, do art°. 19° da L.G.T., iremos proceder à actualização do domicílio fiscal do sujeito passivo em análise para a morada atrás identificada.

Nos termos do artº., 2°, n°.1 alínea c) do CIVA é exigido imposto aos sujeitos passivos que mencionem indevidamente IVA em quaisquer facturas ou documentos equivalentes, pelo que têm de cumprir o disposto no n°.2 do art°. 26° do CIVA.

Dado que o sujeito passivo não apresentou quaisquer declarações nos períodos em análise, tanto de IVA como de IR e não tendo apresentado a escrita na data em que para tal foi notificado, recorre-se à aplicação de "Métodos Indirectos", conforme disposto nos art°. 38, alínea a) do CIRS e art°. 52° do CIRC, conjugado com o art.º 37° do CIRS.

IV- Critérios e cálculos dos valores corrigidos com recurso a métodos indirectos.

Como estamos perante facturas que podem eventualmente ser fictícias, por se tratar de operações simuladas, devem considerar-se objecto de tributação em sede de IRS como comissões pagas pelo utilizador - destinatário ao emitente e ou vendedor de facturas falsas, que normalmente ronda os 10% do respectivo montante, conforme ficou provado em processos da mesma natureza concluídos nestes Serviços, assumindo-se como sujeito passivo do imposto o respectivo emitente, portanto, A....

Assim, o critério seguido para o cálculo do rendimento nos anos de 1996 e 1997, consiste na aplicação de uma comissão líquida de 10%, em função dos valores facturados (S/IVA), à semelhança do efectuado em processos que indiciam a existência de facturação fictícia, conforme ordens de serviço N°. 11192/93/94 de 29/2/94 de 29/2/96 - Ocidental. N.º. 71307/08/09 de 5/9/96 - Oriental. Nº. 25348/49/50 de 29/1/98 - Oriental e Nº. 24177/8/9 de 4/12/97-Ocidental.

Embora a numeração das referidas facturas não seja sequencial, consideramos somente os valores das facturas em nosso poder, conforme mapa anexo n°. 1 e anexo n°. 3, com folhas n°. 1/8 a 8/8.


D) Na sequência das correcções efectuadas pela Inspecção tributária foi efectuada a liquidação adicional de IVA referente ao ano de 1996, com o n° ..., bem como as liquidações de juros compensatórios relativas aos períodos de 9606, 9607, 9608, 9609, 9610 e 9611, com os n°s. ..., ..., ..., ..., ... e 00097577, respectivamente, no montante total de Esc. 19.252.955$00 (€ 96.033,33) - cfr. Fls. 11 a 16.
E) Face à emissão das facturas acima identificadas, o impugnante apresentou queixa-crime contra terceiros, a qual deu lugar ao inquérito n° 804/99.5TDLSB, no qual foi também investigado o Impugnante, com base em Auto de Notícia levantado pela Administração Tributária, tendo o inquérito sido arquivado no que respeita ao mesmo, conforme fls. 32 a 34 e 81 a 85.
F) Em 14 de Novembro de 1994 o ora impugnante, juntamente com S... constituiu a sociedade "E... -Importações e Exportações, Lda.", com sede na loja 213 do Centro Comercial da ..., em lisboa e com o objecto social de comércio, nomeadamente importação e exportação de electrodomésticos (cfr. Fls. 17 a 26).
G) Em 19 de Maio de 1999 a sociedade acima identificada foi dissolvida, conforme documento de fls. 27 a 31.
H) Porque a situação da sociedade «E...» estava muito difícil, o impugnante entregou as respectivas instalações ao senhorio e foi para Angola, onde era sócio da sociedade «Armazéns de ...», Lda. e em nome de cuja sociedade o impugnante continuou a fazer compras à testemunha A..., que declarou que, apesar de ser fornecedor do impugnante pelo menos desde 1994, nunca teve conhecimento de que o impugnante tivesse comercializado ouro ou pedras preciosas (cfr. Depoimento de A... a fls.241 e 242).
l) Nos anos de 1994 e 1995, o impugnante não tinha computador e não tinha sequer conhecimentos de informática, escrevendo à mão as facturas relativas a revendas (conforme das testemunhas M..., A... e J... a fls. 213 a 215 e 241 a 243).
J) O impugnante, como empresário em nome individual, comercializava no ramo da «electrónica», isto é, rádios, relógios, candeeiros e, porque as coisas lhe começaram a correr mais ou menos bem, começou a dedicar-se a revendas de electrodomésticos, até porque por volta de 1992 ou 1993 casou, sendo que o seu sogro tinha uma propriedade em Angola, passando a partir de então a andar de Portugal para Angola e vice-versa, continuando contudo com as revendas. Decidiu então abrir uma loja no Centro Comercial da ..., para o que constituiu a «E...», ao mesmo tempo que se ia dedicando à sociedade sita em Angola, os «Armazéns ...», até que por fim fechou a mesma e entregou as chaves ao senhorio (conforme depoimento de J... a fls. 242 e 243).
K) O impugnante falava muito de negócios com J..., comentando um e outro o que se vendia bem e o que se vendia mal e o impugnante nunca comentou que vendesse ouro, para além de que os amigos do impugnante eram sobretudo os irmãos de J... e que estes, quer os amigos comuns de ambos nunca venderam ouro (conforme depoimento de J... a fls. 242 e 243).
L) Das facturas n°s 79, 85, 88, 90, 91 e 93, todas de 1996 e 124 e 127, ambas de 1997, consta o n° de telefone … (conforme documentos de fls. 55 a 62, que se dão por reproduzidos).
M) Do exemplar da factura junta pelo Impugnante aos autos, em seu nome e em nome de «E...» constam os números de telefone … (cfr. Fls. 79 dos autos).
N) No acórdão proferido no âmbito do processo n° 6041/97.6TDLSB, que correu termos na 2ª Vara Criminal do Porto, transitado em 05-05-2008, no qual foi arguido e condenado pelo crime de fraude fiscal «Z...», referido na alínea A) deste probatório pode ler-se no tocante a Factos provados, que «200 - O Z... (...) 208 — Assim, com esse objectivo substituiu na sua contabilidade as facturas que possuía e lhe foram emitidas pelo (...), por facturas que o (...) lhe entregou pertencentes a (...) A... e (...), sendo certo que as mesmas não correspondem a quaisquer transacções reais com estas entidades.(...) 210 — Também as facturas contabilizadas no Z... emitidas por A..., tem data de emissão de 1996 e 1997, quando efectivamente este cessou a actividade em 28/02/95, e nunca comercializou ouro» (cfr. certidão de fls. 296 a 1169, em especial fls. 344, 345).
O) A convicção quanto aos factos provados no acórdão referido na alínea precedente «baseou-se essencialmente no seguinte: 1 - análise do relatório de perícia (...) em que foram analisadas as entidades a seguir mencionadas: (...) Z... (...) "parte significativa das compras e vendas de ouro fino e prata fina documentadas pretendem documentar um circuito de transacções que não tem qualquer aderência ao movimento real. As compras documentadas em que figuram como fornecedores (...) A... (...) não correspondem a transacções efectivas. (...) de acordo com os elementos disponíveis, o seu modo de actuação terá sido o seguinte: adquiriu ouro a duas empresas sediadas em Espanha (...) e pequenas quantidades no mercado interno (...), todo o ouro adquirido foi transmitido no mercado interno com ou sem factura. Desde 1995 a Novembro de 1997, documentou compras com facturas fictícias (e N…) para compensar aquisições de ouro não documentadas. (...)"» - cfr. (cfr. certidão de fls. 296 a 1169, em especial fls. 409, 414 e 415).

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Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão nestes autos.
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A convicção do Tribunal formou-se com base no teor dos documentos e depoimentos acima referidos.»
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Com base na matéria de facto supra transcrita a Meritíssima Juíza do TT de Lisboa julgou procedente a Impugnação judicial, entendendo, em síntese, que a prova produzida nos autos não permite concluir, sem margem para dúvidas, pela existência de factos tributários, e assim sendo, nos termos do art. 100.º do CPPT entendeu que se verifica fundada dúvida quanto a existência do facto tributário.

A Recorrente Fazenda Pública não se conforma com o decidido e invoca erro de julgamento de facto e de direito porquanto a Autoridade Tributária (AT) provou os pressupostos da sua actuação, mais invocando que a prova testemunhal produzida não é suficiente para se concluir que o Impugnante não foi o emitente das facturas.

Porém, não tendo sido impugnada a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância o presente recurso está condenado ao insucesso, como veremos, desde logo porque, ao contrário do que parece entender a Recorrente, da prova produzida não tinha de resultar provado que o Impugnante não foi o emitente das facturas, bastando que dessa prova resulte uma dúvida fundada, tal como entendeu a Meritíssima Juíza de 1.ª instância ao aplicar o art. 100.º do CPPT.

Senão vejamos.

No caso dos autos estamos perante correcções efectuadas pela AT em sede de IVA e que radicam na existência de facturas em nome do Impugnante, e que este nega ter emitido, desde a realização da acção de inspecção. Portanto, cumpre esclarecer, desde logo, que não estamos perante uma situação em que o Impugnante invocou a veracidade das facturas, muito pelo contrário, invocou que aquelas eram falsas porque, apesar de nas mesmas constar o seu nome, alega que não foi o emitente das mesmas.

Portanto, e em suma, estamos perante uma situação em que as liquidações são impugnadas com fundamento em inexistência do facto tributário por o Impugnante não ter emitido as facturas subjacentes às correcções.

Neste contexto, o que importava averiguar no âmbito da presente impugnação judicial é a veracidade das facturas, e com esse propósito foi produzida prova documental e testemunhal, concluindo o tribunal a quo que da prova produzida resultou fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, nos termos do art. 100.º do CPPT.

Importa sublinhar que ao contrário do que parece entender a Recorrente Fazenda Pública, subsumindo a sentença recorrida ao art. 100.º do CPPT, não tem de resultar provado que o Impugnante não emitiu as facturas, pois para aplicação daquele preceito legal basta que da prova produzida resulte uma fundada dúvida sobre a existência do facto tributário.

Dispõe o art. 100.º, n.º 1 do CPPT que “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.”

Portanto, para que se anule o acto impugnado com base naquele preceito legal, tal como fez a Meritíssima Juíza da 1.ª instância, apenas é necessário que da prova produzida resulte uma fundada dúvida sobre a existência ou quantificação do facto tributário.

Mas sobretudo, considerando que estamos perante liquidações que surgem na sequência de uma acção de inspecção importa ter presente que é a AT a quem cabe o ónus da prova dos pressupostos da tributação nos termos do art. 74.º da LGT.

Com efeito, e desde logo, sublinhe-se que já no âmbito da acção de inspecção o Impugnante negou ter qualquer actividade comercial em Portugal no período sob inspecção, e por isso não entregou declaração de rendimentos, afirmando desconhecer as facturas em causa. Repare-se deque essas facturas não se encontravam na contabilidade ou na posse do Impugnante, mas antes foram detectadas no âmbito de uma acção de inspecção a um terceiro, Z..., o que também deve ser devidamente valorado para aferirmos da demonstração da existência de facto tributário que cabia fazer pela AT.

Ora, a verdade é que, apesar de todo este circunstancialismo, a AT não deu cumprimento, como se lhe impunha, ao princípio do inquisitório (art. 58.º da LGT), os serviços de inspecção não procederam a qualquer diligência para atestar da veracidade dessas facturas que estavam em poder de terceiro e que foi desde o primeiro momento colocada em causa pelo Impugnante, e por conseguinte, não se poderá concluir como pretende a Recorrente Fazenda Pública que a AT demostrou os pressupostos da tributação como se lhe impunha nos termos do art. 74.º, n.º 1 da LGT, pois o detectar facturas em poder de terceiros com o nome da Impugnante enquanto emitente, no presente contexto, é pouco, muito pouco para se proceder à correcção.

Tanto mais que, analisados os factos dados como provados na 1.ª instância, e que não foram impugnados, os mesmos reforçam a tese da Impugnante da inexistência de facto tributário, designadamente: o Impugnante apresentou queixa crime contra terceiros face às facturas que foram emitidas, sendo certo que o próprio Impugnante foi investigado sendo arquivado o inquérito relativamente a sua pessoa (alínea E) dos factos provados); não havendo conhecimento de que o Impugnante comercializasse ouro ou pedras preciosas [alínea H), K)]; quando tinha actividade comercializava no ramo da “electrónica” [alínea J)]; o Impugnante na data da emissão das facturas não tinha computador , escrevendo à mão as suas facturas [alínea I)]; os números de telefone constante das facturas não são os que constavam nas facturas da sua empresa à época que ainda tinha actividade [alínea L) e M)]; e por fim, atendendo à matéria de facto da decisão judicial proferida relativamente à pessoa que tinha em seu poder as facturas (Z...) [alínea N) e O)] tais facturas eram efectivamente fictícias, servindo o propósito de documentar aquisições de ouro não documentadas e que foi adquirido em Espanha.

Em suma, entendemos que as liquidações impugnadas não se podem manter porquanto não se encontra demonstrada a existência de facto tributário, conforme se impunha à AT nos termos do art. 74.º da LGT, devendo, por conseguinte, as liquidações impugnadas ser anuladas.

No que diz respeito ao pedido da recorrida de condenação da Fazenda Pública como litigante de má-fé, por ter violado o princípio da boa-fé e da igualdade nos termos do art. 104.º, n.º 1 da LGT [conclusões XXII a XXIX das contra-alegações], entendemos que não se verifica a invocada violação.

Dispõe o art. 104.º da LGT sob a epígrafe “litigância de má-fé”:
“1 - Sem prejuízo da isenção de custas, a administração tributária pode ser condenada numa sanção pecuniária a quantificar de acordo com as regras sobre a litigância de má fé em caso de actuar em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adoptado em situações idênticas.
2 - O sujeito passivo poderá ser condenado em multa por litigância de má fé, nos termos da lei geral.”

Ora, no caso dos autos não se poderá concluir que a Recorrente Fazenda Pública litigou de má-fé nos termos daquele preceito legal porquanto, in casu, não actuou contra o teor de informações vinculativas, nem o seu procedimento divergiu do habitualmente adoptado em situações idênticas conforme a previsão daquele preceito legal. Com efeito, a Fazenda Pública limitou-se a colocar em causa o cumprimento do ónus da prova do Impugnante e erro de julgamento do tribunal a quo não havendo um uso manifestamente reprovável do presente processo como invoca a Recorrida.

Por fim refira-se apenas que não há lugar a condenação em custas da Recorrida conforme acórdão do STA de 25/10/2017, proc. n.º 0720/17, cujo sumário é o seguinte: “I - De acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 527.º do CPC, a decisão que julgue a acção deve condenar em custas a parte que lhes deu causa, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. II - Em processo de impugnação judicial em que foi julgado procedente o pedido de anulação da liquidação formulado pela impugnante, as custas devem ficar a cargo da Fazenda Pública, na totalidade. III - Ainda que a impugnante tenha pedido a condenação da AT como litigante de má-fé e esse pedido tenha sido julgado improcedente, este julgamento é irrelevante para efeito da condenação nas custas da acção, pois em nada contende com a dimensão da tutela jurisdicional pretendida e plenamente alcançada pela impugnante, antes se situando no domínio da avaliação da conduta processual que, quando censurável, é punível com multa e indemnização (cfr. art. 542.º do CPC).”

Sumário

I. A AT não cumpre com o princípio do inquisitório (art. 58.º da LGT) quando no âmbito de uma acção de inspecção não procede a qualquer diligência para apurar a veracidade de facturas obtidas a partir da contabilidade de terceiro, e que não constavam da contabilidade do contribuinte, quanto este, ouvido nesse procedimento, nega as ter emitido, invocando a sua falsidade;
II. Neste circunstancialismo e à míngua de qualquer outro elemento junto no âmbito da acção de inspecção importa concluir que a AT não demonstrou os pressupostos da tributação conforme se lhe impunha, não cumprindo com o ónus da prova nos termos do art. 74.º da LGT.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Sem custas, por a Recorrente Fazenda Pública delas estar isenta (art. 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas dos Processos Tributários, e art. 9.º, do DL n.º 29/98, de 11 de Fevereiro, que aprovou tal Regulamento -. Processo de Impugnação instaurado em 2001).

D.n.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2018.

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Cristina Flora

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Ana Pinhol

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Joaquim Condesso