Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1205/17.0BELRA
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/06/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL ATIVA
INTERESSE IMEDIATO E EFETIVO
Sumário:I – A legitimidade processual ativa nas ações administrativas de impugnação de ato administrativo está prevista no artigo 55º, nº 1, al. a), do CPTA.

II - A utilidade a retirar do sucesso da ação tem de advir diretamente ou imediatamente da invalidação do ato administrativo, o que só ocorre quando o interesse do autor é atual, imediato e efetivo, e não quando for reflexo ou mediato em relação ao efeito próprio do ato administrativo
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

PEDRO …………………….., intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Leiria processo cautelar contra

INSTITUTO DA MOBILIDADE E DOS TRANSPORTES, IP.

A pretensão formulada foi a seguinte:

- Suspensão de eficácia de um ato administrativo, proferido pelo Presidente do Conselho Diretivo do IMT, IP, em 13/ 10/2016, dirigido diretamente à sua entidade patronal I……………….., SA, entidade gestora do Centro de Inspeção Técnica de Veículos (CITV) da Marinha Grande (cód. 184), ato esse que foi notificado ao Presidente do Conselho de Administração da sociedade visada, Sr. Fernando ………………., através do ofício IMT, IP, Referência n.º ………….., de 13/ 10/2016.

Por decisão cautelar de 10 de agosto do corrente ano de 2017, o referido tribunal veio a prolatar a decisão ora recorrida, declarando o requerente parte ilegítima.

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Inconformado com tal decisão, o REQUERENTE interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A Decisão ora recorrida ao julgar procedente a exceção de ilegitimidade do ora recorrente, procedeu a uma interpretação dos artigos 9º, nº1, e 55 nº1, alínea a) CPTA, com o sentido de impedir o acesso à justiça administrativa de trabalhadores que decidam impugnar contenciosamente atos administrativos que ordenem o encerramento dos seus locais de trabalho;

Porém, tal sentido não é admissível constitucionalmente por violar os artigos 58º, nº1 e 59º, nº1, da CRP, pelo que também não é admissível a manutenção na ordem jurídica da Decisão ora recorrida;

Com efeito, o direito ao trabalho constitucionalmente consagrado enquanto direito fundamental assume-se como um direito a exercer uma atividade profissional e como um direito a não ser privado do posto de trabalho – direito à segurança no trabalho;

Ora, o ato administrativo suspendendo, ao ordenar o encerramento do local de trabalho do Recorrente – Centro de Inspeção Automóvel de Marinha Grande, vai atingir o seu direito à segurança no emprego, pois, conforme decorre dos artigos 343º, alínea b) e 346º, nº3, do Código de Trabalho, a impossibilidade de o empregador receber o trabalhador ou o encerramento total e definitivo da empresa determinam a caducidade do contrato de trabalho;

Assim, porque nos presentes Autos está precisamente evitar que a execução do ato suspendendo extinga o posto de trabalho do Recorrente, tem este legitimidade para, nos termos dos artigos 58º, nº1 e 59º, nº1, da CRP, impugnar contenciosamente o ato administrativo que tem este efeito extintivo;

Deste modo, ao Decisão Recorrida devia ter admitido a providência requerida, visto o Recorrente, enquanto trabalhador, ter legitimidade para impugnar contenciosamente um ato administrativo que atinja o seu posto de trabalho, extinguindo-o;

Por outro lado, a Decisão Recorrida falece de razão ao ter decidido que o ato suspendendo não tem repercussão na esfera jurídica do Recorrente, mas apenas na esfera jurídica da sua entidade patronal;

É que o Recorrente, muito embora não seja parte na relação jurídica administrativa existente entre a sua entidade patronal e o IMT, é, no entanto, parte de uma relação material em que, de um lado, está um trabalhador e a defesa do seu posto de trabalho/ direito à segurança no emprego e, do outro lado, uma entidade administrativa que ordenou, via ato administrativo, o encerramento do seu local de trabalho, extinguindo o seu posto de trabalho;

Por isso, o Recorrente vai obter utilidade numa sentença de anulação contenciosa do ato ora suspendendo, pois, se isso acontecer, retira daí um benefício para a sua esfera jurídica, ou seja, a manutenção do seu local de trabalho, do seu posto de trabalho e do seu contrato individual de trabalho;

10º Daí que, a Decisão recorrida, independentemente da interpretação que fez dos artigos 9º, nº1 e 55º, nº1, alínea a), do CPTA ser desconforme à Constituição, tenha feito uma interpretação errada destes preceitos do CPTA, pois o que está aí em causa é a consagração da legitimidade enquanto forma de os particulares poderem obter utilidade com a anulação contenciosa de atos administrativos que ofendam a sua esfera jurídica;

11º Assim sendo, a Decisão Recorrida, ao considerar não ter o ora recorrente legitimidade para impugnar contenciosamente o ato suspendendo, violou os artigos 9º nº1, e 55º, nº1, alínea a), do CPTA.

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O REQUERIDO contra-alegou, concluindo assim:

I. O Requerente, ora Recorrente, vem através da presente Providência Cautelar, requerer a suspensão de eficácia do administrativo emitido pelo Conselho Diretivo do IMT, IP, dirigido à sua entidade patronal I………………, SA, entidade gestora do Centro de Inspeção Técnica de Veículos da Marinha Grande (cód. 184), através da notificação dirigida ao Presidente do Conselho de Administração daquela entidade, Sr. Fernando …………., "vide", ofício IMT, IP, Referência n.º …………….., datado de 13/10/2016.

II. Está, pois, aqui em causa um ato administrativo dirigido à entidade gestora I……………., SA, de cessação do exercício da atividade inspetiva no Centro de Inspeção da Marinha Grande (cód.184), sendo que o Recorrente possui tão só a qualidade de trabalhador (inspetor de veículos) naquele Centro.

III. Ora, o Requerente, ora Recorrente, na qualidade de trabalhador da entidade gestora visada, não possui qualquer interesse direto e pessoal para intentar o pedido de suspensão de eficácia do referido ato administrativo, dado que o mesmo é dirigido direta e exclusivamente á sua entidade patronal, e dado que o mesmo decorre ainda de vicissitudes próprias (caducidade "op legis") do contrato de gestão do Centro (cód. 184), contrato esse celebrado com a referida entidade gestora, nos termos do disposto no artigo 3.0 e 34.º da Lei n.º 11/2011, de 26/04, com a redação dada pelo DL n.º 26/ 2013 de 19/02.

IV. Ao contrário do que vem alegado, a cessação de atividade inspetiva no Centro de Inspeções da entidade visada da Marinha Grande (cód. 184), decorre da mesma não se ter adequado em tempo aos requisitos a que estava obrigada, nos termos da Portaria n.0 221 /2012, de 20/07, alterada pela Portaria n.º 378- E72013, de 31/12, pelo que tal ato administrativo não tem efeito direto na esfera jurídica dos trabalhadores do suprarreferido Centro de Inspeção.

V. Do exposto resulta manifesto que o ato em causa não projeta os seus efeitos na esfera jurídica de direitos e interesses legalmente protegidos do Recorrente, enquanto trabalhador da entidade gestora visada, mas apenas na esfera da referida entidade patronal, razão por que é clara a sua ilegitimidade processual para intentar contra Entidade Demandada a presente Providência (cfr. artºs 9.º, 55.º, n.0 1, alínea a), 112.º, n.º 1, e 2, alínea a) do CPTA).

VI. Em conformidade com os argumentos expostos já se expressaram, inequivocamente, e em caso absolutamente idêntico ao aqui discutido, o Acórdão do TCA Norte, de 14 /07 /2017, Proc.º 935 /17. lBEBRG, e o Acórdão do STA. de 28/03/2017, Recurso de Revista 970/17-11 (cfr. does. 01 e 02, que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos).

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O magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 15ª ed., pp. 411 ss; artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA).

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos.

As questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida - estão identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 - FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

No r. i., o requerente alega em síntese que:

- é trabalhador da empresa “I………….. — Centro …………………, SA”, desde 01/11/2013, exercendo funções de Inspetor de Automóveis, no Centro de Inspeção Automóvel da Marinha Grande, auferindo atualmente um salário mensal de € 927,32;

- através da presente providência (rectius, processo) cautelar, visa lutar pela manutenção do seu posto de trabalho, que se encontra em grave perigo, já que a sua entidade patronal lhe esclareceu que, caso se concretize o encerramento do Centro de lnspeções da Marinha Grande não lhe poderá assegurar o pagamento do seu salário, tendo de promover o despedimento dos trabalhadores a ele adstritos, como é o caso do Requerente;

- Mais sustenta a ilegalidade do ato que determinou o encerramento do Centro de Inspeções da Marinha Grande;

- e alega que não possui quaisquer outros meios de subsistência para além do rendimento do seu trabalho, não tendo família que o possa auxiliar numa situação de desemprego.

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II.2 - APRECIAÇÃO DO RECURSO

Tendo presentes as alegações, cumpre-nos apreciar o seguinte contra a decisão recorrida:

- Erro de julgamento de direito quanto à legitimidade processual ativa individual do ora recorrente e requerente.

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Passemos, assim, à análise do mérito do recurso.

No CPTA e em sede de ação administrativa cujo pedido seja impugnatório de ato administrativo – como o caso presente – tem legitimidade processual ativa individual, que é uma condição para se obter uma pronúncia judicial sobre o mérito da causa, quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, como resulta do artigo 55º/1-a) do CPTA, o que é confirmado pela ressalva feita no início do artigo 9º/1 do CPTA.

Ou seja, ao contrário do que entende o recorrente, as coisas não se passam exatamente como no artigo 30º/3 do CPC e na 2ª parte do artigo 9º/1 cit.

A “legitimatio ad causam” depende de uma relação – natural e logicamente efetiva ou direta - com o ato impugnado (cf. GUIDO CORSO, Manuale di Diritto Amministrativo, Sexta edizione, G. Giappichelli Editore, Torino, 2013, p. 523).

O interesse do autor – a alegar, meramente - é direto quando a procedência do pedido lhe trouxer uma vantagem imediata, ou seja, aqui, quando a anulação do ato administrativo suspendendo se repercutir, de forma direta e imediata, na esfera jurídica do interessado ora autor e recorrente.

Assim, a utilidade a retirar do sucesso da ação tem de advir diretamente ou imediatamente da invalidação do ato administrativo, o que só ocorre quando o interesse do autor é atual, imediato e efetivo, e não quando for reflexo ou mediato em relação ao efeito próprio do ato administrativo.

Cf. assim:

-Ac. deste TCA-S de 08-03-2012, p. nº 05812/10;

-Ac. deste TCAS de 05-05-2011, p. nº 07237/11;

-Ac. deste TCA-S de 28-10-2009, p. nº 05512/09;

-Ac. do STA de 28-09-2017, p. nº 0970/17;

-Ac. do STA de 10-11-2004, p. nº 01576/03;

-Ac. do STA de 18-05-2000, p. nº 045894;

-MÁRIO AROSO/C. CADILHA, Comentário…, 4ª ed., 2017, pp. 374-375;

-MÁRIO AROSO, Manual…, 2ª ed., 2016, pp. 219-221, embora nas pp. seguintes o autor faça uma excessiva aproximação ao pressuposto processual do interesse em agir.

O ato administrativo (que este TCA-S define como a decisão administrativa de autoridade constitutiva, com efeitos numa situação externa, individual e concreta) aqui em causa decidiu a cessação do exercício da atividade do Centro de Inspeção Automóvel da Marinha Grande, em virtude da caducidade do contrato de gestão celebrado entre o Instituto e essa entidade gestora, com referência à Lei nº 11/2011 alterada pelo DL nº 26/2013 (regime jurídico de acesso e de permanência na atividade de inspeção técnica de veículos a motor e seus reboques e o regime de funcionamento dos centros de inspeção) e à Portaria nº 221/2012 (que estabelece os requisitos técnicos a que devem obedecer os centros de inspeção técnica de veículos ).

O autor diz que é trabalhador em tal Centro. E, por isso, intenta este processo.

É verdade que o artigo 343º/b) do C.T. prevê que o contrato de trabalho caduca nos termos gerais por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber; e que o artigo 346º/3 do C.T. prevê que o encerramento total e definitivo de empresa determina a caducidade do contrato de trabalho, devendo seguir-se o procedimento previsto nos artigos 360.º e seguintes, com as necessárias adaptações.

Porém, “a caducidade do contrato de trabalho prevista no 346.º, n.º 3, do Código do Trabalho só ocorre se o encerramento da empresa for total (e não apenas parcial) e definitivo (e não apenas temporário). E, uma vez que só o empregador poderá saber se o encerramento é permanente ou provisório, é necessário que o exteriorize ou manifeste de algum modo, comunicando-o aos trabalhadores” (Ac. do TRL de 28-06-2017, p. nº 7078/14.2T8SNT.L1-4).

Mas, seja como for, no caso presente, é claro que o interesse pessoal do autor é reflexo ou indireto em relação ao administrativo suspendendo, cujo destinatário é o Centro de Inspeção Automóvel da Marinha Grande.

Com efeito, mesmo que o ato suspendendo venha a ser anulado no processo principal, o autor só não manterá o posto de trabalho, o seu emprego, por causa de uma outra relação jurídica (= nexo de correspondência recíproca entre direitos e vinculações, encabeçados em pessoas diferentes; cf. CASTRO MENDES, T.G.D.C., I, 1978, p. 138), a laboral existente entre ele e a empresa destinatária do ato administrativo em causa; relação jurídica essa que é totalmente independente das situações jurídicas (= situações de vida com relevância jurídica; cf. J. OLIVEIRA ASCENSÃO, As Relações Jurídicas Reais, ed. Morais, Lisboa, 1962; A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, I, pp. 863 ss) versadas no ato suspendendo.

A ocorrer a perda do emprego do autor (emprego que não é igual a posto de trabalho concreto), será, portanto, de um modo reflexo ou indireto. Um efeito mediato deste ato administrativo.

E será um efeito não inevitável, não necessário: o autor até poderá manter o seu trabalho noutro estabelecimento da mesma empresa, por exemplo.

A “relação jurídica material” aflorada no r.i. e neste recurso, como se não houvesse a ressalva do início do artigo 9º/1 do CPTA, é, assim, uma construção artificial, porque é negada pelos demais factos invocados pelo autor.

É que esses factos (apontados aos cits. artigos do C.T.) evidenciam que nenhuma relação jurídica pode existir entre estas partes a propósito deste ato administrativo, pois que as situações jurídicas (ou posições jurídicas ativas e passivas; cf. P. PAIS DE VASCONCELOS, T.G.D.C., 6ª ed., 2010, pp. 241 ss; PAULO OTERO, Manual de D. Adm., I, 2014, pp. 226-252) evidenciadas pelo ato administrativo não incluem a esfera jurídica do autor. Incluem, ou melhor, implicam, sim, o autor em termos de interesse pessoal, pois que a anulação do ato administrativo lhe poderá trazer, quase certamente, uma utilidade ou benefício pessoal.

Mas isto, o benefício pessoal eventual, ocorrerá apenas de um modo que é reflexo e indireto, não imediato e não necessário.

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III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 06-12-2017


Paulo H. Pereira Gouveia, relator

Catarina Jarmela

Conceição Silvestre