Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12747/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/24/2016
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:REVOGAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO; AUDIÊNCIA DOS INTERESSADOS
Sumário:i) A audiência dos interessados prevista no artigo 121.º do Código de Procedimento Administrativo, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro (anteriormente no art. 100.º), constitui juntamente com o princípio da participação, consagrado actualmente no artigo 12.º do mesmo diploma (anteriormente o art. 8.º), a concretização do modelo de administração participada, expresso nos n.ºs 1 e 5 do artigo 267.º da Constituição, que impõe à Administração Pública a participação dos particulares na formação das decisões que lhe digam respeito.

ii) A preterição da formalidade que constitui o facto de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode degradar-se em formalidade não essencial, e assim destituída de efeito invalidante, se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente. Ónus esse de alegação e de prova que recai sobre a Administração.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

Maria de ………………., intentou no TAF de Ponta Delgada, contra o Município de Vila Franca do Campo, acção administrativa especial, pedindo a anulação da deliberação da Câmara Municipal de 23.11.2009, que revogou o despacho de 21.09.2009, proferido ao abrigo do art. 46.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que havia determinado a sua passagem do escalão remuneratório 5 para o 15. Mais peticionou a condenação da Entidade Demandada no pagamento da remuneração correspondente àquela posição remuneratória, com efeitos a 1.01.2010.

No TAF de Ponta Delgada, o colectivo de juízes julgou a acção parcialmente procedente e anulou o acto impugnado por vício de forma decorrente da preterição da audiência prévia e absolveu o Município do demais peticionado.

Não se conformando com tal decisão, o Município de Vila Franca do Campo, ora Recorrente, interpôs recurso jurisdicional para este TCAS, no qual formula as seguintes conclusões:

1. A R. decidiu, por deliberação, em reunião ordinária realizada no dia 23 de novembro de 2009, revogar o despacho, de 21 de setembro de 2009, elaborado pelo Presidente da Câmara cessante, cujo conteúdo determinava, entre outros, a alteração do posicionamento remuneratório da posição 5 para a 15 da A., sem que esta tivesse sido ouvida em sede de audiência de interessados, nos termos do artigo 100º do CPA.

2. O ato impugnado é proferido no âmbito de um procedimento revogatório - em que se revoga um despacho proferido pelo anterior Presidente da CMVF - sem que houvesse precedência de uma instrução autónoma (tal como é referido na sentença recorrida), o que significa que estamos perante um "procedimento secundário" que, por sua vez, não obriga à realização de audiência dos interessados.

3. Esta é também a única interpretação coincidente com a lei: o próprio artigo 100º do CPA supracitado inicia precisamente com a expressão "concluída a instrução (...) os interessados têm o direito de ser ouvidos". É, portanto, claro que a obrigatoriedade da audiência de interessados só existe para os procedimentos em que tenha havido uma instrução autónoma precedente, ou seja, no caso dos processos decisórios primários.

4. Assim, por estarmos perante um procedimento revogatório, que, por sua vez, constitui um processo decisório secundário, não há qualquer obrigatoriedade de audiência de interessados, nos termos da lei, pelo que a sua preterição não pode dar origem à nulidade do ato administrativo decorrente daquele procedimento.

5. Por outro lado, não pode ser esquecido o facto de que este procedimento revogatório levado a cabo pelo R. se motivou pela existência de um ato ilegal.

6. Ora, dispõe o art. 136º do CPA que os atos administrativos anuláveis podem ser revogados nos termos do disposto no art. 141º também do CPA, ou seja, no prazo para a impugnação contenciosa dos mesmos. Esta faculdade, mais do que um poder, trata­ se de um poder-dever, face ao princípio da legalidade a que está sujeita toda a atividade administrativa .

7. Assim, estando a ilegalidade intrínseca ao próprio ato administrativo e concedendo a lei a possibilidade - que, como já supramencionado , assume mais a forma de um poder-dever da administração - de revogar todos os atos administrativos anuláveis, não haveria nada que a A. pudesse alegar que alterasse o curso dessa ilegalidade.

8. O direito de audiência prévia pode, em certos casos, degradar-se em formalidade não essencial, quando a intervenção do interessado se tornou inútil porque, independentemente da sua intervenção e dos elementos que pudesse juntar , a decisão da Administração, porque sujeita ao princípio da vinculação, só pudesse ser aquela que foi tomada.

9. Por conseguinte, em qualquer caso, sempre qualquer eventual violação do direito de audiência prévia se teria degradado em mera irregularidade sem capacidade invalidante do ato impugnado, atentos os poderes vinculados detidos pelo R.

Termos em que e por tudo o mais que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada parcialmente a sentença recorrida na parte em que decide anular o acto administrativo impugnado por vício de forma decorrente da preterição da audiência de interessados.

A Recorrida, Maria …………………, contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.



Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, notificada nos termos do disposto nos artigos 146.º e 147.º do CPTA, nada disse.


Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar:

- Se o Tribunal a quo errou ao ter anulado o acto impugnado com fundamento na preterição da audiência dos interessados; e, concomitantemente, se

- Se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao não ter concluído pela existência de uma situação de degradação da formalidade da audiência prévia em não essencial.



II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 663.º, n.º 6, do CPC ex vi dos art.s 1.º e 140.º do CPTA.



II.2. De direito

No recurso interposto, começa o Recorrente por questionar o acerto da decisão recorrida quanto à necessidade de realização da audiência prévia, considerando que se está perante um procedimento revogatório. Alega que o acto impugnado foi proferido no âmbito de um procedimento revogatório, pelo qual foi revogado um despacho proferido pelo anterior Presidente da Câmara, sem que houvesse precedência de uma instrução autónoma, o que significa que se está perante um procedimento secundário que não obriga à realização de audiência dos interessados (conclusão 2. do recurso).

Mas não lhe assiste razão.

A audiência dos interessados prevista no artigo 121.º do Código de Procedimento Administrativo, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro (anteriormente no art. 100.º), embora não tendo como tal assento constitucional e não constituindo a sua inobservância, por si só, a ofensa a um direito fundamental, (1) causal de nulidade nos termos da al. d) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA (anteriormente o art. 133.º, n.º 2, al. a)), constitui juntamente com o princípio da participação consagrado actualmente no artigo 12.º do mesmo diploma (anteriormente o art. 8.º), a concretização do modelo de administração participada expresso nos n.ºs 1 e 5 do artigo 267.º da CRP, que impõe à Administração Pública a participação dos particulares, na formação das suas decisões que lhe digam respeito.

O princípio da participação surge na referência do preceituado no referido artigo 267.º, n.º 5, da Constituição, ao qual preside também uma dimensão de maior transparência nos procedimentos de actuação e nas decisões das entidades públicas, procurando constituir um obstáculo a formas autoritárias do exercício da acção administrativa na medida em que assume a necessidade de associar os particulares ao concreto exercício do poder administrativo.

O Código do Procedimento Administrativo não distingue a aplicação deste instituto relativamente aos tipos ou modalidades de procedimento, pelo que se aplicará a todos os procedimentos administrativos, mesmo que regulados em legislação especial. Como refere Mário Esteves de Oliveira, à audiência prévia é atribuído o papel de pilar do Estado de Direito e da concepção político constitucional sobre as relações entre a Administração e os particulares (2).Na sequência do que se dizendo, o direito de audiência prévia deve ser considerado na linha do modelo de administração participada e corresponde às exigências da participação, quer numa vertente de colaboração (com a Administração), quer ainda numa vertente legitimadora (da decisão administrativa).

Com efeito, a circunstância de estarmos perante um acto revogatório em nada contende com a necessidade de realização da audiência prévia, pois que a mesma não se destina somente aos procedimentos de iniciativa da Administração. Não interessa se estamos ou não perante um procedimento de revogação de um acto administrativo, seja a revogação propriamente dita ou a revogação anulatória; o que releva é o facto de a Administração praticar um acto que contende com direitos conferidos, sem que previamente à sua prolação seja conferido aos interessados a oportunidade de emitirem pronúncia sobre o respectivo projecto de decisão.

Veja-se o que se disse em situação similar no ac. deste TCAS de 22.06.2006, proc. n.º 7027/03: “No caso em apreço, o procedimento administrativo tendente à revogação do acto de 29 de Março de 2001 constitutivo de direitos foi oficiosamente iniciado, o que é legalmente admitido (artigo 54º do Código do Procedimento Administrativo). Mas, também é certo que deveria ter sido assegurada a participação do recorrente por imposição do artigo 8º do Código do Procedimento Administrativo.

Tanto mais que o art. 144.º do CPA, na redacção aplicável aos factos, consagrava um princípio de paralelismo adaptado das formalidades do procedimento revogatório e do acto revogado, Dispõe esse artigo que “são de observar na revogação dos actos administrativos as formalidades exigidas para a prática do acto revogado, salvo nos casos em que a lei dispuser de forma diferente”.

Para além de que as situações de inexistência ou dispensa de audiência dos interessados encontra-se prevista para as situações tipificadas no artigo 103.º do CPA (na redacção aplicável), o que, manifestamente, não é o caso (nem tal vem sequer alegado).

Assim, teremos que concluir que bem andou o Tribunal a quo ao afirmar:

Esta audiência justifica-se, em suma, para salvaguardar o exercício do contraditório, de forma ao interessado não ser "apanhado de surpresa" por uma questão que nunca fora chamado a pronunciar-se, e cujo contributo poderá influir na decisão final.

Ora, no caso dos autos, a Autora nunca foi chamada a pronunciar­ se em prazo não inferior a 10 dias, através de notificação, acerca da decisão de revogação do despacho que lhe havia conferido um direito subjetivo.

É certo que se tratou de um ato revogatório (ao abrigo dos arts. 136° nº l, 138º e 141º e ss., todos do CPA) sem precedência de uma instrução autónoma; mas daqui não se pode retirar uma inutilidade teórica ou prática de prévia audição da Autora sobre o sentido da decisão (que, materialmente, veio a consubstanciar um ato desfavorável).

Note-se que a Câmara Municipal também não lançou mão do disposto no art. 103° que, fundamentadamente, permite a declaração de inexistência ou de dispensa da dita audiência (…) no preceito que constitui uma exceção à regra vertida no cit. art. 100° - que a audiência não deve ser dispensada se o interessado não se tiver pronunciado procedimento sobre as questões que importem à decisão.

A jurisprudência tem considerado que a audição dos interessados, no âmbito da sobredita audiência, apenas não se justifica nos casos em que o procedimento se iniciou a requerimento do interessado e se for insuscetível de acrescentar algo de novo e útil à posição anteriormente manifestada (e cuja pretensão a administração foi chamada a pronunciar-se), do que é exemplo o Ac. Tribunal Central Administrativo Sul de 27-0 1-2005 "(...) Se a autoridade decidente indefere a pretensão do interessado, com base apenas no constante do seu requerimento e dos pareceres dos seus serviços internos, como é o caso « sub judice », não é obrigatória a referida audição"; como também se refere a este propósito no Ac. Tribunal Central Administrativo Sul de 17-09-2013 (processo nº 01510/06, relatado por JOAQUIM CONDESSO, integralmente disponível na mesma base de dados), a propósito da Lei Geral Tributária, mas cujas considerações, mutatis mutandis, valem para o caso dos autos, "(...) Nos procedimentos de segundo grau, de que são exemplo as reclamações e os recursos hierárquicos, sempre que não existam factos novos capazes de influenciar a decisão final ( ...) não haverá qualquer obstáculo à dispensa do direito de audiência, por ele ler sido já assegurado na fase do procedimento e não se verificarem alterações da situação factual. Trata-se de casos em que só em termos formais, relativamente a um procedimento parcelar, se pode falar em dispensa do direito de audiência, uma vez que ele foi assegurado e, não havendo alteração da situação de facto, deve considerar-se já exercido (...)"; também o Ac. Tribunal Central Administrativo Sul de 13-11-2014 (processo nº 08021114, relatado por JORGE CORTÊS, integralmente disponível na mesma base de dados), decidiu que "(...) acresce a desnecessidade de uma diligência que nada acrescentaria à posição já assumida pelo interessado no requerimento, no âmbito do qual foi delimitado o âmbito material de decisão e o âmbito probatório da mesma, sem que à administração tributária caiba outra função que não seja a de acolher ou rejeitar, de forma .fundamentada, as razões e as provas aduzidas pelo interessado no requerimento ( ...)".

No caso, porém, não estamos perante uma mera decisão acerca de uma pretensão apresentada pelo interessado - em que esgrimiu, ou devia ter esgrimido, todos os fundamentos subjacentes ao seu anseio, cabendo à Administração acolhê-la ou não - mas sim perante uma decisão "surpresa" que amputou o direito que fora reconhecido à Autora pelo despacho revogado.

(…)

Não acompanhamos, assim, as considerações ora aduzidas pelo Réu a este respeito (sendo até temerária a afirmação no artigo 11.º da contestação de que nada podia ter sido alegado pela Autora nessa sede que pudesse alterar o curso da ilegalidade que reconhece ao ato revogado).

Consideramos ao invés, que se mostrava imperiosa a audiência dos interessados”.

Configurada a audiência como um momento prévio à decisão final do procedimento – que na situação dos autos é um procedimento revogatório –, e não se estando perante situação legalmente prevista da sua exclusão, devem os particulares interessados, no caso a ora Recorrente, ser ouvidos sobre o projecto de decisão; o que assumidamente não ocorreu. Razões que determinam a improcedência das conclusões 2. a 7. do recurso.

Vejamos agora a questão da invocada degradação da audiência prévia em formalidade não essencial, como tal não invalidante do acto impugnado (conclusões 8. e 9. do recurso).

Neste capítulo, sumariou-se no acórdão do STA de 22.01.2014, proc. n.º 441/13:

III- Destinando-se a audiência dos interessados a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que seja manifesto que esta só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto e que, por isso se impunha, o seu aproveitamento pela aplicação do princípio geral do aproveitamento do acto administrativo.

IV - Todavia, a possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do acto exige sempre um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela audição da requerente”.

E escreveu-se, mais recentemente, no acórdão do STA de 25.06.2015, proc. n.º 1391/14, em posição que secundamos integralmente, o seguinte:

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a acolher o princípio do aproveitamento do acto – princípio que não tem suporte directo em disposição legal alguma, mas que assenta no entendimento de que não se justifica a anulação de um acto administrativo que foi praticado no exercício de poderes vinculados e está de acordo com os pressupostos fixados na lei –, nos termos do qual se admite que a falta de audiência dos interessados, quando obrigatória, possa não conduzir à anulação do acto final do procedimento (in casu a liquidação adicional de IS), anulação que é a sua consequência, de acordo com o previsto no n.º 1 do art. 163.º do Código do Procedimento Administrativo («São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção».). Essa omissão nem sempre conduzirá à anulação, «designadamente não a justificando nos casos em que se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final, ou acabou por ter oportunidade de pronunciar-se, em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau» (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotação 15 ao art. 60.º, págs. 515 e segs.).

«Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se podem degradar em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las. Consequentemente, e tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur. O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso» (Cfr. o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 441/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 7 de Outubro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32410.pdf), págs. 13 a 20, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/212bcafe7f4d180f80257c6f004ea9c0?OpenDocument.).

Como também ficou dito no acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Fevereiro de 2007, proferido no processo n.º 1071/06 (Publicado no Apêndice ao Diário da República de 14 de Fevereiro de 2008 (https://dre.pt/application/dir/pdfgratisac/2007/32210.pdf), págs. 386 a 392, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3d268a41bfe236798025728f0050532e?OpenDocument.), «[à] luz de tal princípio [do aproveitamento do acto], deverá entender-se que não se justifica a anulação, apesar da preterição do direito de audição, nos casos em que se apure no processo contencioso que, se a audiência tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem de se pronunciar sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final sobre as quais não tivesse já tido oportunidade de se pronunciar. Mas, apenas nessas situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto pode ser efectuada aplicação daquele princípio»”.

Ou seja, regressando ao caso concreto, impor-se-ia aplicar o princípio do aproveitamento do acto, no caso da intervenção da ora Recorrida no procedimento em causa, concretamente na fase da audiência prévia, se essa intervenção procedimental fosse de todo insusceptível de influenciar em sentido inverso a decisão final proferida, designadamente por estamos no domínio da actividade administrativa estritamente vinculada (como parece pretender o Recorrente).

Mas não é isso que sucede.

Na verdade, desde logo o que resulta da matéria que vem provada e tendo presente a disciplina jurídica em que se baseou o acto em causa – art. 46.º da Lei n.º 12-A/2009, de 27 de Fevereiro (entretanto revogado pela Lei n.º 35/2014, de 25 de Junho) –, é que a matéria objecto do acto prende-se com a admissibilidade da alteração do posicionamento remuneratório, por “opção gestionária”, isto é, por conveniência/oportunidade. Aliás, é assumido na comunicação efectuada do acto revogatório à ora Recorrida que “tal decisão prendeu-se com aspectos de várias ordens, alguns de ordem Jurídica/legal outros de ordem política” (sic) (cfr. o documento 2 junto com a p.i. e levado ao probatório em 3. dos factos provados). Donde, resultar afinal confesso que o procedimento revogatório ora sindicado também foi motivado por razões que extravasam o âmbito da ordem estritamente jurídica. E, desse modo, não se poderá concluir que se estivesse perante uma actuação administrativa vinculada.

É nesta sequência que ganha acuidade o alegado pela Recorrida nas suas contra-alegações:

5. A alteração do posicionamento remuneratório por opção gestionária está prevista na lei e foi tomada com respeito pela mesma lei. Tanto basta para se não achar estar o recorrente obrigado a revogar esse acto gestionário.

6. Aliás, tudo quanto era necessário fazer, em termos procedimentais, para a produção do despacho revogado, foi-o e consta do processo.

7. Mas ainda que faltasse algum passo administrativo - o que se não admite, a solução nunca seria a de revogar o despacho mas praticar os actos em falta.

8. Veja-se, nesse sentido, o Ac. TCAN de 22/06/2006:

«Já quanto à primeira razão se poderá dizer que o facto de determinado acto administrativo se poder configurar como eivado de um qualquer vício que possa acarretar a sua anulação isso não implica necessariamente que venha a ser praticado, como única solução possível, um acto de revogação de tal acto ilegal.

Dispõe o art. 141 n. º 1 do CPA, para o qual remete o art. 135º do mesmo Código, que os actos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade. e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida, sendo certo no entanto que na revogação são de observar as formalidades exigidas para a prática do acto revogado, cfr. art. 144.

Já vimos que o incumprimento da lei que determinou a revogação de anterior acto administrativo reside no facto de não terem sido cumpridos determinados procedimentos quer no que toca ao recorrente quer no que toca ao recorrido, procedimentos quer no que toca ao recorrente quer no que toca ao recorrido, ou seja, a ilegalidade resulta de actuações omissivas de ambos; e assim sendo poderiam ter sido cumpridos, ainda que posteriormente, os formalismos legalmente exigidos de modo a que não fosse indispensável a revogação do acto.

Conclui-se, assim, no que a esta razão respeita, que o acto revogatório e aqui impugnado não se tratou da prática de um acto vinculado, isto é, que se tratasse do único acto possível a praticar de modo a repor a legalidade do acto anteriormente praticado.»

9. Se a administração resolver não praticar os actos em falta e optar pela revogação, então é porque lhe subjaz um juízo de discordância por inoportunidade ou inconveniência.

É certo que o Recorrente alega que “(…) não pode ser esquecido o facto de que este procedimento revogatório levado a cabo pelo R. se motivou pela existência de um ato ilegal. De facto, o despacho revogado padece de vários vícios materiais de lei e de procedimento que determinam a sua anulabilidade, estando todos eles descriminados na certidão de acta da reunião ordinária pública do dia 23 de novembro de 2009, e que são, entre outros, o não cumprimento dos pressupostos a que se refere o art. 46º, nº 1, da Lei 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que estabelece o Regime de Vínculos, Carreiras e Remunerações da Função Pública.” Porém, certo é que chamado a contestar a acção, o ora Recorrente pouco havia adiantado a este propósito, chegando mesmo a pretender uma inversão do ónus alegatório e de prova ao esgrimir o argumento de que “o acto revogado era ilegal, nem tão-pouco na impugnação a autora logrou demonstrar o contrário”. Salvo o devido respeito, estando em causa uma revogação de um acto administrativo com invocação da sua invalidade (formal e substancial), certamente não seria ao destinatário do acto constitutivo do direito que caberia demonstrar que tal acto era ilegal… Esse era – rectius é – um ónus que recai sobre quem invoca o direito que fundamenta a aludida revogação e que tomou a iniciativa procedimental secundária.

Por outro lado, verifica-se que o ora Recorrente não juntou a pertinente documentação, de sustentação do por si alegado. E notificado para alegações sucessivas pré-sentenciais, nada mais disse ou juntou aos autos. E se o ora Recorrente pretendia sustentar a sanação da falta no procedimento, por ocorrência da degradação da formalidade da audiência prévia em formalidade não essencial, então caber-lhe-ia demonstrar minimamente a irrelevância da intervenção procedimental da ora Recorrida, o que não fez – ónus alegatório que sobre si recaía de acordo com regras gerais do direito adjectivo.

Ou seja, embora a violação do disposto no art. 100.º do CPA (actualmente o art. 121.º), possa, em certos casos, ficar sanada, quando a preterição de tal formalidade legal se degrada em preterição de formalidade não essencial, do supra exposto terá que se concluir que tal degradação não ocorreu no caso vertente.

Nenhum outro vício vindo imputado à decisão recorrida, nada mais importa apreciar, restando, na improcedência das conclusões de recurso, julgar o mesmo improcedente na sua totalidade. Nesta medida, terá, consequentemente, que confirmar-se a sentença recorrida.



III. Conclusões

Sumariando:

i) A audiência dos interessados prevista no artigo 121.º do Código de Procedimento Administrativo, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro (anteriormente no art. 100.º), constitui juntamente com o princípio da participação, consagrado actualmente no artigo 12.º do mesmo diploma (anteriormente o art. 8.º), a concretização do modelo de administração participada, expresso nos n.ºs 1 e 5 do artigo 267.º da Constituição, que impõe à Administração Pública a participação dos particulares na formação das decisões que lhe digam respeito.

ii) A preterição da formalidade que constitui o facto de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode degradar-se em formalidade não essencial, e assim destituída de efeito invalidante, se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente. Ónus esse de alegação e de prova que recai sobre a Administração.




IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2016



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Pedro Marchão Marques


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Maria Helena Canelas


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António Vasconcelos


(1) Para além da abundante jurisprudência sobre esta temática, permitimo-nos evidenciar na Doutrina PEDRO MACHETE, quando afirma que a densidade da norma actualmente contida no artigo 267º, n.º 5 da Constituição, deixa ao legislador uma liberdade de conformação que é incompatível com a caracterização de direito fundamental de natureza análoga (cfr. A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Lisboa, 1995, p. 388-389)
(2) Cfr. Mário Esteves de Oliveira/Pedro Costa Gonçalves/Pacheco Amorim, Código do Procedimento Administrativo Anotado, Coimbra, 1997, p. 452.