Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:486/13.3BEALM
Secção:CA
Data do Acordão:05/10/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:VENDA ANULADA
INDEMNIZAÇÃO
DANOS
LIQUIDAÇÃO
Sumário:I - O dano é aferido a partir da ilicitude objetiva, de um juízo de inobservância do direito objetivo, por violação de um direito subjetivo alheio ou de normas de proteção de interesses alheios, sem que haja causa de justificação, isto é, atende-se às soluções preconizadas pelo Direito para a ordem jurídica, tomadas em abstrato (aqui, i.a., os artigos 1302º e 1305º do CC).
II – A medida da indemnização é a do dano efetivamente imputado ao sujeito lesante, que aqui corresponde ao valor real do imóvel que pertencia aos autores e que o Estado vendeu ilegalmente.
III - A articulação entre os artigos 566º/3 do CC e 609º/2 do CPC só pode ser feita ao abrigo do artigo 9º do CC, do princípio da tutela jurisdicional efetiva, do princípio dispositivo atenuado pelo princípio inquisitório e do princípio da economia de meios processuais.
IV - Ante um pedido determinado numa ação em que os factos referentes à liquidação/determinação da obrigação de indemnizar não se provaram, há lugar à aplicação do artigo 609º/2 do CPC e não do artigo 566º/3 do CC.
V - O juiz utiliza o artigo 566º/3 do CC apenas no caso de não ser possível provar factos para fixar a indemnização concreta.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO
A… E M…, melhor identificados nos autos, intentaram no Tribunal Administrativo de Círculo de ALMADA acção administrativa comum contra
ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público.
O pedido formulado foi o seguinte:
«Condenação do réu a pagar-lhes a quantia de €78.577.56, sendo €58.577.46 relativos a danos patrimoniais e €20.000.00 relativos a danos morais, acrescida de juros legais, desde a data da citação até integral pagamento».
Por sentença de 28-04-2017, o referido tribunal veio a prolatar decisão, onde decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar o Estado Português a pagar aos autores uma indemnização no valor de €22.869.00 [vinte e dois mil oitocentos e sessenta e nove euros], acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
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Inconformado com tal decisão, o RÉU interpôs recurso de apelação. Em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões:
A - A douta sentença recorrida não aplicou acertadamente o Direito aos factos provados, não ponderando devidamente o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, designadamente no que respeita ao dano, ao concluir pela responsabilização da Administração Fiscal/Estado Português.
B - O Estado Português, ao entregar aos autores a totalidade do valor adquirido, de que os autores deram quitação, não ficou para si com valor algum. Ora, em sede de indemnização por danos patrimoniais, apenas se pode fixar o valor dos prejuízos que se encontrem efetivamente comprovados e que correspondam à efetiva diminuição do património.
C - Cabendo aos autores alegar e provar todos os factos consubstanciadores dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, enquanto constitutivos do direito que assim pretendem fazer valer na ação, nos termos do artigo 342° do Código Civil.
D - O valor de mercado distingue-se do valor patrimonial tributário, uma vez que entra em linha de conta com toda um apanágio de diversos elementos desde a álea, a divisão da fração, localização, ano de construção, área, qualidade de acabamentos, estado da edificação, espaços exteriores ou comuns, certificado energético, luminosidade, entre outros possíveis fatores.
E - O recurso ao valor patrimonial tributário (VPT) para fundamentar o "quantum" dos danos patrimoniais assentou num juízo de equidade, que a lei não consagra, nem admite.
F - Trata-se de um valor que apenas releva para efeitos tributários e que não pode, sem mais, ser utilizado para efeitos de determinar o montante dos eventuais danos patrimoniais sofridos pelos autores.
G - Tendo a douta sentença recorrida considerado que não é possível averiguar o valor de mercado do imóvel, não pode utilizar o valor patrimonial tributário do imóvel para quantificar o dano sofrido pelos autores decorrente da sua venda.
H - O valor do prejuízo dos autores corresponde à vantagem patrimonial que o Estado obteve com a venda judicial do imóvel, pelo que o "dano indemnizável" não pode ir para além do que foi o preço de venda do imóvel e que, como se disse, já se encontra restituído na sua totalidade.
I - Todavia, mesmo que assim não fosse, nunca se poderia recorrer ao VPT para fixar o valor de mercado do imóvel, uma vez que fornecem os autos melhores elementos para alcançar tal desiderato.
J - Na verdade, resulta da matéria de facto provada que o imóvel foi vendido a um particular, em 21 de setembro de 2009, pelo preço de € 74.000,00 (alínea f) dos factos provados). E, tendo tal venda sido realizada por montante inferior em € 4.550,00 ao valor patrimonial tributário, tal significa que este, no caso presente, nunca poderá servir de critério aferidor do hipotético valor de mercado.
K - A douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 342º, 483º, 562º, 563º e 566º nº 3 todas estas disposições do Código Civil, os artigos 22.º e 271º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 2º e 3º da Lei nº 67/2007, de 31.12.
L - Deve, assim, ser revogada e substituída por outra que absolva o Estado Português da totalidade do pedido.
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Contra-alegaram os autores, tendo a sua alegação sido desentranhada em consequência do despacho de fls. 254.
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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.
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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.
Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.
As questões a resolver nestes recursos são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. FACTOS PROVADOS
O tribunal “a quo” deu como provada a seguinte matéria de facto
a) Em 03/09/1996, os autores compraram a fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao 3.º andar direito, do prédio urbano sito na R…, n. º25, F…, descrita na Conservatória do Registo Predial da Amora sob o n. º…-I e inscrita na respectiva matriz sob o artigo … [documentos de fls. 11 a 13 e 77-78 do processo de execução fiscal apenso].
b) Em agosto de 2009, os autores eram os proprietários da fracção autónoma identificada em a) [documento de fls. 11 a 13 do processo de execução fiscal apenso].
c) Em 11/08/2009, na sequência de venda no processo de execução fiscal instaurado contra os autores por dívidas do imposto municipal sobre imóveis, foi registada a aquisição da fracção identificada em a) pela sociedade Limite Fiel, Unipessoal, Lda. [documento de fls. 15 e 16 dos autos].
d) A venda no processo de execução fiscal foi efectuada pelo preço de €55.681.00 [acordo].
e) No final de agosto de 2009, os autores pagaram o imposto municipal sobre imóveis em dívida e respectivos juros e acrescido, no valor global de €2.543.72 [documentos de fls. 144 a 151 do processo de execução fiscal apenso].
f) Em 21/09/2009, a sociedade L…, Unipessoal, Lda. vendeu a fracção identificada em a) a um particular, pelo preço de €74.000.00 [documentos de fls. 15 a 24 dos autos].
g) Na mesma data, o adquirente da fracção procedeu ao registo da aquisição [documento de fls. 15 e 16 dos autos].
h) Em 30/09/2009, os autores pagaram a quantia de €157.10, relativa ao imposto municipal sobre imóveis [documento de fls. 152 do processo de execução fiscal apenso].
i) O valor patrimonial tributário da fracção identificada em a), avaliada em 21/09/2008, era de €78.550.00 [acordo e documento de fls. 3 e 4 do processo de execução fiscal apenso].
j) Os autores não foram citados no processo de execução fiscal em que teve lugar a venda da fracção identificada em a) [acordo e sentença proferida no Processo n.º92/10.4BEALM, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada – documento de fls. 26 a 33 dos autos].
k) Em 13/10/2009, os autores pediram, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, a anulação da venda da fracção identificada em a), tendo o processo corrido termos sob o n.º92/10.4BEALM [documento de fls. 26 a 33 dos autos].
l) Na sentença proferida no Processo n.º92/10.4BEALM, não ficou provada a realização das citações dos autores [documento de fls. 26 a 33 dos autos].
m) Na mesma sentença, foi anulada a venda em execução fiscal da fracção identificada em a) [documento de fls. 26 a 33 dos autos].
n) Na fundamentação da sentença, consta, designadamente, o seguinte: “Assim sendo, e atenta a verificação de nulidade insanável no processo de execução fiscal, decorrente da falta de citação (cfr. artigo 165º n. º1 alínea do CPPT), determina-se a anulação dos actos subsequentes daquela dependentes (cfr. n. º2 do mesmo artigo), procedendo o pedido de anulação da venda formulado pelos requerentes (artigo 909º n. º1 alínea b) do CPC ex vi artigo 257º n. º1 alínea c) do CPPT).
Da anulação da venda decorreria a restituição do imóvel ao executado, se este assim o pretendesse. Contudo, tal entrega só seria possível, desde logo, se o imóvel ainda estivesse na esfera patrimonial do adquirente L…, Lda. (cf. alínea U) supra). O que, de acordo com a informação prestada a fls. 32 e 67 dos autos, já não se verifica.” [documento de fls. 26 a 33 dos autos].
o) Em meados de dezembro de 2012, o Serviço de Finanças de Almada 2 devolveu aos autores, a seu pedido, a quantia de €55.681.00, correspondente ao valor da venda do imóvel [acordo].
p) Os autores gastaram, em julho de 1997, com a aquisição de mobília a quantia de €4.717.64 [documentos de fls. 36 e 37 dos autos].
q) A quantia exequenda, relativa a dívidas do imposto municipal sobre imóveis, no processo de execução fiscal em que foi vendida a fracção autónoma identificada em a) ascendia a €1.059.97 [documento de fls. 10 a 14 dos autos].
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II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional), ter omnipresentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade da administração pública, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas, que têm todas a mesma dignidade; (iii) certeza e segurança jurídicas; e (iv) tutela jurisdicional efetiva dos direitos das pessoas.
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O recurso demanda que se resolva o seguinte:
- Erro de direito do TAC, ao se socorrer do VPT do imóvel que o Estado fez os AA perderem para fixar o valor da indemnização devida pelo Estado lesante aos lesados.
Para o Estado recorrente, o valor da indemnização (pela perda do imóvel dos autores) deveria ser o da venda que o Estado fez com o imóvel dos autores – 55.681,00 Euros - (depois revendido a outrem por 74.000,00 Euros) e não o valor patrimonial tributário (VPT) de 78.550,00 Euros, a que o TAC atendeu.
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Vejamos.
A)
O cerne do recurso refere-se ao (i) dano (aferido a partir da ilicitude objetiva, é a supressão ou diminuição de uma qualquer vantagem ou situação favorável protegida pelo Direito) e (ii) correspondente indemnização aos autores por parte do Estado lesante.
Com efeito, aqui, o Estado (A.T.) (i) agiu de modo ilícito (execução fiscal com violação insuprível - in concreto - de formalidades essenciais; penhora e venda – depois anulada - de um bem imóvel no valor patrimonial tributário de 78.550,00 Euros por causa de uma dívida fiscal de 1.059 Euros) e (ii) suprimiu definitivamente o direito (subjetivo) de propriedade dos autores sobre o imóvel penhorado (cf. artigos 1302º e 1305º do CC).
As partes não discutem a existência de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual delitual ou subjetiva do Estado no caso em apreço (cf. os artigos 483º do CC e 3º, 7º/1, 9º e 10º/1/2/3 do RRCEEP): facto voluntário do lesante, ilicitude (juízo de inobservância do direito objetivo, por violação de um direito subjetivo alheio ou de normas de proteção de interesses alheios, sem que haja causa de justificação), culpa (juízo de censura formulado pelo Direito relativamente à conduta ilícita do agente do facto danoso, base da imputação delitual ou aquiliana), dano (aferido a partir da ilicitude objetiva, é a supressão ou diminuição de uma qualquer vantagem ou situação favorável protegida pelo Direito) e nexo de causalidade (causalidade normativa entre o facto humano e o dano, resultante essencialmente de o facto ir contra o escopo da norma jurídica violada, sem prejuízo de o facto ter de ser uma condição adequada do dano em termos de normalidade social).
B)
O dano é aferido a partir da ilicitude objetiva, de um juízo de inobservância do direito objetivo, por violação de um direito subjetivo alheio ou de normas de proteção de interesses alheios, sem que haja causa de justificação, isto é, atende-se às soluções preconizadas pelo Direito para a ordem jurídica, tomadas em abstrato (aqui, i.a., os artigos 1302º e 1305º do CC).
Pode falar-se em dano real quanto ao prejuízo correspondente às efetivas vantagens que foram desviadas do seu destinatário jurídico; e em dano de cálculo como a expressão monetária do dano real.
C)
Como resulta dos artigos 483º/1, 487º, 562º, 564º e 566º do CC e do artigo 3º/1 do RRCEEP, quem causa a outrem um dano deve “tornar esse outrem sem dano”, torná-lo indemne (isto é, sem dano). É o dever de indemnizar.
No caso presente, trata-se de uma imputação delitual, pecuniária e com escopo compensatório, atento o disposto nos artigos 291º/1 [“A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio”] e 566º/1 do CC [“A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”].
Como se retira dos artigos 562º e 566º/2 do CC, a medida da indemnização é a do dano efetivamente imputado ao sujeito lesante, que aqui corresponde ao valor real do imóvel que era dos AA e que a A.T. vendeu ilegalmente.
D)
Aqui, a discórdia é apenas quanto ao valor do dano patrimonial sofrido (perda do direito de propriedade daquele concreto imóvel) e ao valor da consequente indemnização ou à medida concreta do dano patrimonial cit. e da sua indemnização: o valor de mercado (não apurado nos autos) ou o cit. VPT (referente ao IMI)?
Para o Estado recorrente, o valor da indemnização (pela perda do imóvel dos autores) deveria ser o da venda que o Estado fez com o imóvel dos autores – 55.681,00 Euros - (depois revendido a outrem por 74.000,00 Euros) e não o valor patrimonial tributário (VPT) de 78.550,00 Euros, a que o TAC atendeu.
Ora, desde logo se vê a fragilidade do argumento do recorrente:
1º - Porquê o valor da 1ª venda (55.681,00) e não o da 2ª venda feita poucos dias depois pelo particular comprador (74.000,00)? Se o Estado tivesse vendido o bem por metade daquele preço, seria esse o valor do dano sofrido pelos autores? Tudo durante o verão de 2009. Claro que não.
2º - E não valerá nada o VPT, na ausência de um valor real de mercado (que é o valor do imóvel, o valor do dano, a medida concreta da indemnização a atribuir; sem violar, claro está, o artigo 609º/1 do CC)?
O TAC, certamente conhecendo o artigo 566º/2 do CC [“Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”] e o artigo 609º/2 do CPC [“Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”], parece se ter socorrido do nº 3 de tal artigo do CC [“Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”]. E assim utilizou como critério o cit. VPT.
Vejamos se o TAC decidiu bem este concreto aspeto da fixação da indemnização.
Ora, nesta ação de condenação, os factos provados conduzem claramente à condenação do réu. Mas não permitem concretizar claramente a prestação indemnizatória devida.
Em abstrato, tal ocorrerá em duas situações estudadas no Direito das Obrigações:
1) dedução de um pedido genérico não liquidado no processo;
2) pedido determinado, mas os factos referentes à liquidação/determinação da obrigação de indemnizar não se provaram, como aqui ocorre.
Neste 2º caso, a tese maioritária é a de que há lugar à aplicação do cit. artigo 609º/2 do CPC (cf. assim: Ac. do STJ de 29-01-1998, in BMJ 449, p. 445; A. DOS REIS, CPCA, I, p. 615, e V, p. 71; LOPES DO REGO, O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, 2013, I, p. 790-791).
Portanto, temos, por um lado, o cit. artigo 609º/2 do CPC e, por outro lado, o cit. artigo 566º/3 do CC. Como articulá-los?
Note-se que parece que o TAC terá recorrido à equidade (sem explícita justificação), escolhendo nesse âmbito o critério do VPT. A utilização da equidade (autorizada por lei, claro está), porém, exige especial cautela e especial justificação por parte do juiz.
Mas, continuemos.
A articulação entre os artigos 566º/3 do CC (implicitamente utilizado pelo TAC) e 609º/2 do CPC só pode ser feita ao abrigo do artigo 9º do CC, do princípio da tutela jurisdicional efetiva, do princípio dispositivo atenuado pelo princípio inquisitório e do princípio da economia de meios processuais.
Assim, colocam-se duas hipóteses.
Recorre-se apenas à equidade como previsto no artigo 566º/3 do CC (o que terá feito o TAC), e não ao artigo 609º/2 do CPC, no caso (1ª) de não ser possível provar factos para fixar a indemnização concreta em incidente de liquidação; ou então (2ª) quando não houver prova dos factos já ocorridos e referentes à liquidação.
É correta a primeira solução (cf. assim: Ac. do STJ de 06-07-1978, in BMJ 279, p. 19; Ac. do STJ de 22-01-1980, in BMJ 293, p. 327, anotado favoravelmente por VAZ SERRA in RLJ 113, pp. 326-328). É a solução que melhor justifica e harmoniza a existência dos dois preceitos legais.
Portanto, o juiz deve utilizar o artigo 566º/3 do CC apenas no caso de não ser possível provar factos - para fixar a indemnização concreta - em incidente de liquidação, mas não pode utilizar o artigo 566º/3 do CC quando não houver prova de factos já ocorridos referentes à liquidação do dano/indemnização.
Se for possível provar factos para fixar a indemnização concreta em incidente de liquidação (isto é, não há prova de factos já ocorridos e referentes à liquidação do dano/indemnização), o juiz deve utilizar o cit. artigo 609º/2 do CPC (cf. J LEBRE DE FREITAS/IS.ALEX., CPCA, 2º, 3ª ed., pp. 715-717).
É, pois, esta a solução para o caso em apreço.
Trata-se, apenas, de apurar o valor real do imóvel, o valor de mercado, que não é nenhum dos três acima referidos (nem o VPT, nem os valores díspares das vendas feitas com poucos dias de intervalo entre si), tendo sempre presente o artigo 566º/1/2 do CC.
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III. DECISÃO
Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em,
-Concedendo parcial provimento ao recurso,
-Revogar a decisão recorrida na parte em que fixa o valor do dano e da indemnização como sendo igual ao VPT,
- Julgar a ação procedente e, em consequência, condenar o Estado Português a pagar aos autores uma indemnização (tendo presentes os artigos 562º, 563º e 566º/1/2 do CC), pela perda do direito de propriedade sobre o cit. imóvel, no valor real ou de mercado do imóvel que se apurar em incidente de liquidação (artigos 358º/2 e 359º ss do CPC), acrescido de juros de mora à taxa legal, calculados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Sem custas no recurso.
Custas da ação a cargo do réu.
Lisboa, 10-05-2018

(Paulo Pereira Gouveia - relator)


(Catarina Jarmela)


(Conceição Silvestre)