Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:353/17.1BESNT
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:01/31/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:REGIME DE ACESSO À INFORMAÇÃO ADMINISTRATIVA E AMBIENTAL E DE REUTILIZAÇÃO DOS DOCUMENTOS ADMINISTRATIVOS
ELEMENTOS DA SAÚDE
CUSTAS PROCESSUAIS
Sumário:I - Estando em causa elementos da saúde e do sigiloso processo clínico do pai do requerente, bem como o segredo médico, o artigo 7º/4 da Lei nº 26/2016 exige um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido que fundamente o acesso (a vontade de acesso).

II - Aquele segredo e aquele sigilo visam apenas proteger o doente e não o médico ou o serviço de saúde. Pelo que a obtenção por terceiro da informação sobre a saúde alheia (dados pessoais alheios) pode nem sequer ser colidente, in concreto, com tais segredo e sigilo; nem com outros direitos do doente. Tudo depende do fim em causa e demais circunstâncias do caso concreto.

III – No caso presente, conclui-se que a informação pretendida pelo requerente sobre o seu pai ((I) «registos médicos», (II) «registos de enfermagem», (III) «data e hora de registo de entrada do Senhor Dr. João Tavares, nas instalações da Requerida, no dia 25/08/16, e (IV) data em que a intervenção cirúrgica do Requerido teve início e fim» e (V) «cópia das fotografias que foram enviadas pela Requerida, ao Senhor Dr. …, bem como (VI) indicação da data e pessoa que as obteve, e (VII) comprovativo do dia, hora e meio (e-mail, telemóvel ou fax) em que as mesmas foram enviadas ao profissional indicado»), se destina a o requerente, como filho de alguém doente e incapacitado (em geral), poder ajuizar e acionar ou não acionar as eventuais responsabilidades civil, disciplinar ou criminal do caso. Independentemente do M.P., da O.M. ou de outrem: é um direito/dever do requerente denunciar crimes públicos e ilícitos disciplinares (“a favor” de seu pai) – um interesse com um peso e afetação elevados; é um direito/dever do requerente denunciar crimes públicos e ilícitos disciplinares (“a favor” de seu pai) – um interesse com um peso e afetação elevados; e é ainda um direito dele o de intentar ações de responsabilidade civil por causa do ocorrido com o seu pai e dos danos que ele, filho, tenha sofrido (sem prejuízo do que será uma ação como representante ou tutor de seu pai) – um interesse e afetação com um peso moderado ou médio.

IV - Há, pois, um interesse compósito direto (imediato, atual), pessoal (próprio, seu), legítimo (não ilícito) e constitucionalmente protegido - previsto nos artigos 22º e 268º/2/4 na CRP - que fundamenta o acesso (a vontade de acesso), e que não afronta relevantemente o direito previsto no artigo 26º/1 da CRP; antes pelo contrário.

V - Tal interesse compósito visa aqui salvaguardar outros direitos fundamentais, com mais peso concreto do que o previsto no artigo 26º/1, quais sejam (i) o direito fundamental de responsabilizar civilmente terceiros por danos próprios sofridos (artigos 483º ss do CC) e (ii) o direito de dar notícia para procedimentos disciplinares ou criminais em defesa ou a favor de seu pai. E, assim, a afetação do artigo 26º/1 é baixa.

VI - O mesmo é de dizer quanto ao sigilo do processo clínico do pai do requerente e ao segredo médico, obrigação deontológica. Atentos os seus fins.

VII – Para efeitos de isenção de custas processusais, cumprir o artigo 268º/2 da CRP e a Lei nº 26/2016 não faz parte dos fins estatutários de ninguém ou das atribuições legais de qualquer entidade.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

BERNARDO ……., residente na Praceta ………………, n.º 15, 16.º-B, em ............., intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra o processo de intimação previsto nos artigos 104º ss do CPTA contra

SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA, UNIDADE DE SAÚDE MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO.

A pretensão formulada foi a seguinte:

- a intimação da Entidade Requerida a proceder à reprodução e ao envio ao Requerente, para o seu endereço eletrónico, dos seguintes documentos: (I) «[r]registos médicos», (II) «[r]registos de enfermagem», (III) «data e hora de registo de entrada do Senhor Dr. ………………., nas instalações da Requerida, no dia 25/08/16, e (IV) data em que a intervenção cirúrgica do Requerido teve início e fim» e (V) «cópia das fotografias que foram enviadas pela Requerida, ao Senhor Dr. ………, bem como (VI) indicação da data e pessoa que as obteve, e (VII) comprovativo do dia, hora e meio (e-mail, telemóvel ou fax) em que as mesmas foram enviadas ao profissional indicado»;

- Condenação da Entidade Requerida no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

Por sentença de 17-10-2017, o referido tribunal veio a prolatar a decisão ora recorrida:

“intima-se a Entidade Requerida a, no prazo de quinze dias, proceder à reprodução e ao envio ao Requerente, por mensagem de correio eletrónico: (i) Da informação relativa à data e hora de registo de entrada do Dr. ……………, nas instalações da Entidade Requerida, no dia 25 de agosto de 2016, data em que a intervenção cirúrgica de extração de uma unha ao pai do Requerente teve início e fim, e indicação da data e pessoa que obteve as fotografias enviadas ao Dr. ………….., e comprovativo do dia, hora e meio (e-mail, telemóvel ou fax) em que as mesmas foram enviadas ao profissional indicado; (ii) Dos registos médicos, registos de enfermagem, e fotografias que foram enviadas pela Entidade Requerida ao Dr. ……….., todos relacionados com o procedimento médico realizado no dia 25 de agosto de 2016, que conduziu à extração de uma unha ao pai do Requerente, com intermediação médica. Custas pela Entidade Requerida.”

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Inconformado com tal decisão, a REQUERIDA interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

«Texto no original»

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O magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

Temos omnipresente que: a) a democracia não é “apenas” um governo consentido pelo povo, em que este tem pouco ou difícil acesso à informação sobre as atividades públicas; b) o poder político democrático não deve ser submetido ao poder económico e ao poder financeiro, nacionais ou internacionais; c) a CRP não permite uma visão jurídico-material funcionalista do Direito, como é o caso da teoria neoliberal e eficientista norte-americana da chamada “análise económica do Direito”, iniciada em 1960 com o teorema de R. H. Coase. A CRP, que é concretizada especialmente pelo Direito administrativo, compreende, na verdade, uma visão estrutural, como a de Kelsen ou a de Bobbio (cf. N. BOBBIO, Dalla Strutura alla Funzioni: Nuovi Studi di Teoria del Diritto, Ed. Laterza, Roma-Bari, 2007, pp. 48-70) e até uma perspetiva sistémica como a de Luhmann (cf. N. LUHMANN, “The Individuality of the Individual: Historical Meanings and Contemporary Problems”, in Essay on Self-Reference, Columbia University Press, N . Y., 1990, pp. 113 ss; “Quod Omnes Tangit: Remarks on Jürgen Habermas` Legal Theory”, in Michael Rosenfeld e Andrew Arato (orgs.), Habermas on Law and Democracy: Critical Exchanges, University of California Press, Berkeley, 1998, p. 10; HANS-GEORG MOELLER, The Radical Luhmann, Columbia University Press, N. Y., 2012, pp. 5, 19 ss, 56 ss e 74-75; A. CASTANHEIRA NEVES, “O Funcionalismo Jurídico. Caracterização Fundamental e Consideração Crítica no Contexto Actual do Sentido da Juridicidade”, in Digesta, vol. 3º, Coimbra Ed., Coimbra, 2008, pp. 223 ss). Luhmann vê – bem, em nosso entender - a Constituição como um acoplamento estrutural entre Política e Direito, em que este é um instrumento de si próprio. Porém, isto não invalida que o Direito europeu continental tem a ver com a pessoa humana e as suas dignidades individual e social, como o comprovam os primeiros 23 artigos da nossa lei fundamental (maxime os artigos 2º, 13º, 18º e 20º), bem como os artigos 80º, 81º, 103º, 104º, 204º e 266º a 268º.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito(1) que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 15ª ed., pp. 411 ss; artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA). Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido muito amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos para o efeito.

As questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 - FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

1. Eduardo …………………….. é pai do Requerente – Admitido por acordo;

2. Na «Nota de Alta» elaborada pelos serviços da Entidade Requerida, datada de 17 de novembro de 2016, refere-se que o pai do Requerente teve um diagnóstico de traumatismo crânio- encefálico grave, ocorrido em junho de 2014, «com sequelas no quadro neuromotor de tetrapésia de predomínio esquerdo, alterações cognitivo comportamentais, do discurso e da deglutição», tendo o mesmo sido internado em estabelecimento da Entidade Requerida durante o qual, entre o período de 25 de julho de 2015 e 17 de novembro de 2016, foi registado como intercorrência «[a]presentou evolução motora e funcional condicionada pela reduzida colaboração (por vezes com recusa de participação nos tratamentos) e alterações cognitivo-comportamentais sequelares» - Documento n.º 9 junto ao requerimento inicial;

3. Desde o referido traumatismo crânio-encefálico, as decisões relativas à saúde de Eduardo ……………. são tomadas pela sua mulher Sandra ……………………. e pelo Requerente - Admitido por acordo;

4. No dia 25 de agosto de 2016 foi extraída pelo Dr. …………. uma unha ao pai do Requerente em estabelecimento da Entidade Requerida - Documento n.º 6 junto ao requerimento inicial e admitido por acordo;

5. Por mensagem de correio eletrónico, enviada em 22 de setembro de 2016 à Diretora Clinica da Entidade Requerida, o Requerente e Sandra ……………. , através de mandatária judicial, solicitaram o envio, por correio eletrónico, dos registos médicos e de enfermagem incluindo fotografias, atinente ao episódio clínico que culminou na intervenção cirúrgica - Documento n.º 1 junto ao requerimento inicial;

6. Em 30 de setembro de 2016, o Requerente apresentou na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, em conjunto com Sandra ………………., indicando serem ambos residentes na «………….., n.º 15, 16.º - B, ……… …….», «queixa contra a Unidade Saúde …………..», por esta não ter enviado, como solicitado, os registos médicos e de enfermagem (incluindo fotografias) do seu pai Eduardo ……….., pretendendo que lhes seja enviado, em formato eletrónico, os seguintes elementos, relativos a uma intervenção cirúrgica de extração de uma unha: «[r]registos médicos»; «[r]registos de enfermagem»; «[d]ata e hora de registo do médico que intervencionou o paciente»; e “[f]otografias que foram enviadas pela reclamada ao médico (…)» - Documento n.º 1 junto ao requerimento inicial;

7. Em 17 de janeiro de 2017 a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos emitiu o Parecer n.º 23/2017, sobre a queixa de Sandra ……………….. e Bernardo ……….. contra a Unidade de Saúde Maria ………….., no qual se conclui o seguinte: «(…) deve a entidade requerida facultar o acesso aos documentos estritamente necessários à realização do interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido, com intermediação médica.» - Documento n.º 2 junto ao requerimento inicial;

8. O parecer n.º 23/2017 da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos foi remetido a Sandra ………. e ao Requerente, por carta registada em 20 de janeiro de 2017 - Documento junto aos autos pelo Requerente em 10 de agosto de 2017;

9. O parecer n.º 23/2017 da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos foi remetido à Entidade Requerida por carta registada em 20 de janeiro de 2017 - Documento junto aos autos pelo Requerente em 10 de agosto de 2017;

10. A Entidade Requerida através de ofício com a referência n.º 25/CDG/2017, datado de 30 de janeiro de 2017, dirigido a Sandra ………………………, comunicou, na «sequência da receção do Parecer/Relatório n.º 23/2017, da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), aprovado em sessão de 17 de janeiro de 2017, referente à queixa apresentada (…), após indeferimento de pedido de reprodução da documentação constante do processo clinico do Sr. Eduardo ……………….., utente internado na Unidade de Cuidados Continuados Integrados Maria …………..» que considera que «a validade da referida decisão está irremediavelmente viciada por deficiências graves da fundamentação que lhe serve de suporte», «que o aludido parecer não faz nenhuma menção à análise sobre a natureza e legitimidade do interesse concreto que preside ao acesso à documentação, requisito que se revelava indispensável para a aplicação do n.º 4 do artigo 7.º, da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto», e que «a argumentação expendida no parecer não permite afastar o cumprimento dos deveres impostos pela legislação específica respeitantes aos dados de saúde, cuja aplicação prevalece sobre a mencionada Lei n.º 26/2006, de 22 de agosto» e sublinhando o «facto de já ter dispensado, por intermédio de médico, todas as informações pertinentes relativas ao estado de saúde do utente» reafirmou a «impossibilidade de procederem à reprodução e envio de registos clínicos do utente nomeado, por estarem sujeitas ao dever legal, e deontológico, de protegerem a confidencialidade dos dados de saúde dos utentes, e de impedir o acesso indevido de terceiros a essa informação, em conformidade com o disposto no regime de proteção de dados pessoais, previsto na Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, e no regime de informação de saúde, previsto na Lei n.º 12/25, de 26 de janeiro» – Documento n.º 3 junto ao requerimento inicial;

11. No dia 6 de fevereiro de 2017, o Requerente enviou, por fax, documento escrito dirigido à Entidade Requerida, no qual solicitou o envio, por e-mail, dos seguintes elementos: «[r]registos médicos»; «[r]registos de enfermagem»; «[d]ata e hora de registo de entrada do Senhor Dr. …………, nesta Unidade de Saúde, no dia 25/08/16, e data em que a operação cirúrgica do meu pai teve início e fim»; e «[c]ópia das fotografias que foram enviadas por esta Unidade de Saúde, ao Senhor Dr. …………….., bem como a indicação da pessoa que as obteve, e comprovativo do dia, hora e meio (e-mail, telemóvel ou fax) em que as mesmas foram enviadas ao profissional indicado» - Documento n.º 4 junto ao requerimento inicial;

12. No dia 16 de fevereiro de 2017, o Requerente recebeu a resposta da Entidade Requerida, através de ofício com a referência 40/CGG/2017, datado de 13 de fevereiro de 217, na qual a mesma informa que «a pretensão objeto do requerimento apresentado e a decisão final tomada sobre o assunto já foi respondida através do ofício enviado à Senhora sua Mãe, D. Sandra …………………., cuja queixa deu origem ao processo que correu termos na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, nos termos do nosso Ofício com a ref.ª 25/CDG/2017, datado de 30 de janeiro, o qual se anexa para os devidos efeitos» - Documento n.º 5 junto ao requerimento inicial e admitido por acordo);

13. O requerimento inicial do presente processo de intimação foi enviado, por correio eletrónico, ao Tribunal em 27 de fevereiro de 2017.

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II.2 - APRECIAÇÃO DO RECURSO

Tendo presentes as conclusões da alegação do recurso, cumpre-nos apreciar o seguinte contra a decisão jurisdicional recorrida:

- Violação do artigo 7º da Lei 26/2016 (regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, transpondo a Diretiva 2003/4/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro, e a Diretiva 2003/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de novembro);

- Violação do artigo 4º/1-f) do RCP.

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Passemos, assim, à análise do mérito do recurso.

1 – Sobre a violação do artigo 7º/4 da Lei nº 26/2016

1.1.

O quadro jurídico específico em que se moveu a decisão recorrida e em que se move e deve mover o recurso é o que passamos a expor.

Da Lei 26/2016:

- O acesso e a reutilização da informação administrativa são assegurados de acordo com os demais princípios da atividade administrativa, designadamente os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da colaboração com os particulares (artigo 2º/1);

- Todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo (artigo 5º/1);

- Um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos:

a) Se estiver munido de autorização escrita do titular dos dados que seja explícita e específica quanto à sua finalidade e quanto ao tipo de dados a que quer aceder;

b) Se demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação (artigo 6º/5);

- 1- O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento ou nos termos da lei, é exercido por intermédio de médico se o titular da informação o solicitar, com respeito pelo disposto na Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro. 2 - Na impossibilidade de apuramento da vontade do titular quanto ao acesso, o mesmo é sempre realizado com intermediação de médico. 3 - No caso de acesso por terceiros mediante consentimento do titular dos dados, deve ser comunicada apenas a informação expressamente abrangida pelo instrumento de consentimento. 4 - Nos demais casos de acesso por terceiros, só pode ser transmitida a informação estritamente necessária à realização do interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido que fundamenta o acesso (artigo 7º);

- Os documentos nominativos comunicados a terceiros não podem ser utilizados ou reproduzidos de forma incompatível com a autorização concedida, com o fundamento do acesso, com a finalidade determinante da recolha ou com o instrumento de legalização, sob pena de responsabilidade por perdas e danos e responsabilidade criminal, nos termos legais (artigo 8º/2).

Da Lei da Proteção de Dados Pessoais:

- O direito de acesso à informação relativa a dados da saúde, incluindo os dados genéticos, é exercido por intermédio de médico escolhido pelo titular dos dados (artigo 11º/5).

Relevam ainda os importantes artigos (i) 17º/1 do CPA (1 - Todas as pessoas têm o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, mesmo quando nenhum procedimento que lhes diga diretamente respeito esteja em curso, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal, ao sigilo fiscal e à privacidade das pessoas) e (ii) 26º/1 (direito à intimidade da vida privada) e (iii) 268º/2 (princípio do arquivo aberto) da CRP.

1.2.

Comecemos por sublinhar que não consta dos articulados e da sentença a concreta incapacidade (legalmente declarada) do pai do requerente. O que quer dizer que não faz parte da factualidade provada elemento relevante para efeitos do previsto nos artigos 67º, 80º, 138º ss e 152º ss do CC.

Mas, o que está em discussão neste recurso é a violação do artigo 7º/4 da Lei 26/2016.

E, segundo nos parece (bem), em conjugação com o artigo 6º/5 cit.

Assim, estando em causa elementos da saúde e do sigiloso processo clínico do pai do requerente, bem como o segredo médico, entende a recorrente que o filho ora requerente não tem o interesse exigido no cit. artigo 7º/4: um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido que fundamente o acesso (a vontade de acesso).

Desde já cumpre sublinhar que aquele segredo e aquele sigilo visam apenas proteger o doente e não o médico ou o serviço de saúde. Pelo que a obtenção por terceiro da informação sobre a saúde alheia (dados pessoais alheios) pode nem sequer ser colidente, in concreto, com tais segredo e sigilo; nem com outros direitos do doente. Tudo depende do fim em causa e demais circunstâncias do caso concreto.

Ora, aqui está claro que a informação pretendida pelo requerente sobre o seu pai ((I) «registos médicos», (II) «r]registos de enfermagem», (III) «data e hora de registo de entrada do Senhor Dr. ……………., nas instalações da Requerida, no dia 25/08/16, e (IV) data em que a intervenção cirúrgica do Requerido teve início e fim» e (V) «cópia das fotografias que foram enviadas pela Requerida, ao Senhor Dr. ………, bem como (VI) indicação da data e pessoa que as obteve, e (VII) comprovativo do dia, hora e meio (e-mail, telemóvel ou fax) em que as mesmas foram enviadas ao profissional indicado»), se destina a o requerente, como filho de alguém doente e incapacitado (em geral), poder ajuizar e acionar ou não acionar as eventuais responsabilidades civil, disciplinar ou criminal do caso. Independentemente do MP, da O.M. ou de outrem.

É um direito/dever do requerente denunciar crimes públicos e ilícitos disciplinares (“a favor” de seu pai) – um interesse com um peso e afetação elevados (valor 4 na fórmula de R. ALEXY; cf. “Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade”, in revista O Direito, Ano 146º, IV, 2014, e “A construção dos direitos fundamentais”, com “Nota Introdutória” e “comentários”, in revista Direito & Política, nº 6, 2014).

E é ainda um direito dele o de intentar ações de responsabilidade civil por causa do ocorrido com o seu pai e dos danos que ele, filho, tenha sofrido (sem prejuízo do que será uma ação como representante ou tutor de seu pai) – um interesse e afetação com um peso moderado ou médio (valor 2 na fórmula de ALEXY).

Há, pois, um interesse compósito direto (imediato, atual), pessoal (próprio, seu), legítimo (não ilícito) e constitucionalmente protegido - previsto nos artigos 22º e 268º/2/4 na CRP - que fundamenta o acesso (a vontade de acesso), e que não afronta relevantemente o direito previsto no artigo 26º/1 da CRP (que, aqui, tem um peso e afetação leve, valor de 1, na fórmula de ALEXY), antes pelo contrário.

Tal interesse compósito visa aqui salvaguardar outros direitos fundamentais, com mais peso concreto do que o previsto no artigo 26º/1, quais sejam (i) o direito fundamental de responsabilizar civilmente terceiros por danos próprios sofridos (artigos 483º ss do CC) e (ii) o direito de dar notícia para procedimentos disciplinares ou criminais em defesa ou a favor de seu pai. E, assim, a afetação do artigo 26º/1 é baixa.

O mesmo é de dizer quanto ao sigilo do processo clínico do pai do requerente e ao segredo médico, obrigação deontológica. Atentos os seus fins, já referidos.

Embora, como é habitual, a “ponderação” feita pelo TAC se tenha traduzido numa mera e breve afirmação conclusiva, e não num expresso e racional sopesamento, a verdade é que, a final, o TAC concluiu bem. Pelo que atrás dissemos.

Portanto, a recorrente não tem razão nesta 1ª questão.

2 – Sobre a violação do artigo 4º/1-f) do RCP

A recorrente, perdendo a ação, foi condenada nas custas processuais, como resulta do artigo 527º do CPC.

Porém, considera estar isenta de custas, ao abrigo do artigo 4º/1-f) do RCP: “Estão isentos de custas as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.

Nesse contexto, afirma que o objeto desta ação (instaurada por outrem…) é instrumental em relação às atribuições ou fins estatutários (da SCML).

Mas não tem razão. Este tipo de processo, regulado nos artigos 104º ss do CPTA e concretizador do artigo 268º/2 da CRP, nada tem a ver com os fins estatutários prosseguidos pela requerida na área da saúde ou noutra.

Cumprir o artigo 268º/2 da CRP e a Lei nº 26/2016 não faz parte dos fins estatutários de ninguém, das atribuições legais de qualquer entidade.

É um dever legal e constitucional. Não cabe, assim, na previsão do artigo 4º/1/f) cit.

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III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 31-01-2018

Paulo Pereira Gouveia - relator

Catarina Jarmela

Conceição Silvestre

(1)Tendo sempre presente que o Direito é uma ciência social especialmente condicionada pela linguagem.