ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
115/2000.C2.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/10/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR FERNANDES DO VALE

DESCRITORES CONSULADO PORTUGUÊS
EX-COLÓNIA PORTUGUESA
CONTRATO DE DEPÓSITO
REGIME APLICÁVEL
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
PRINCÍPIO NOMINALISTA
DÍVIDA DE VALOR
JUROS DE MORA
ÁREA TEMÁTICA DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
LEGISLAÇÃO NACIONAL
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 287.º, 303.º, 333º, Nº2, 342º, Nº1, 516.º, 550.º, 551.º, 804.º, 805.º, 806.º, N.ºS 1 E 2, 1206.º.
DL Nº 47 344, DE 25.11.66: - ARTIGO 3.º
LEI Nº 3/99, DE 13.01: - ARTIGO 26.º
LEI Nº 52/08, DE 28.08: - ARTIGO 33.º.
REGULAMENTO CONSULAR PORTUGUÊS, APROVADO PELO DECRETO N.º 6462, DE 21-03-1920, PUB. NO DIÁRIO DO GOVERNO Nº 57, DE 21.03.20.
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 12/02/04, PROCESSO N.º 03B4195, WWW.DGSI.PT .


SUMÁRIO I - A guarda e o depósito de dinheiro ou outros valores pelos Consulados, constituindo uma forma de protecção e assistência prestada aos cidadãos nacionais que se encontram no estrangeiro constitui uma actividade que, qua tale, não se mostra abrangida pelo CC. Assim, os depósitos consulares mencionados no Regulamento Consular Português, aprovado pelo Decreto n.º 6462, de 21-03-1920, não estão abrangidos pelo CC, pelo que não foram revogados com o início da vigência deste Código. Aliás, se assim não devesse ser entendido, não faria qualquer sentido que o art. 2.º do DL n.º 381/97, de 30-12, tivesse revogado expressamente aquele Regulamento.

II - Os Consulados Gerais não exerciam, ao assim actuarem, qualquer actividade bancária remunerada, antes visando, exclusiva e predominantemente, a guarda e conservação, em ordem à sua posterior restituição, dos montantes depositados.

III - A restituição dos montantes depositados, tratando-se de obrigação de natureza pecuniária e nada tendo sido estipulado em contrário, por força do princípio nominalista acolhido no art. 550.º do CC, faz-se em moeda que tenha curso legal no país à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda tiver nesse momento. Só haveria lugar à actualização se se tratasse de dívida de valor ou, tratando-se de obrigações pecuniárias, quando a lei o permitir ou haja estipulação em contrário, como decorre do preceituado naquele artigo e no art. 551.º, ambos do CC.

IV - Estando provado que “não foi convencionado o lugar da restituição, nem o respectivo prazo e também não foi estipulado em que moeda deveria ser feita a restituição”, não há lugar ao pagamento de juros de mora, pois, para haver lugar ao pagamento daqueles juros, como resulta do preceituado nos arts. 804.º, 805.º e 806.º, n.ºs 1 e 2, do CC, torna-se imprescindível, desde logo e entre o mais, que o devedor da correspondente prestação pecuniária haja incorrido em mora.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL     Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG instauraram, em 19.04.00, na comarca de Tomar (com distribuição ao 2º Juízo), acção ordinária contra o Estado Português, pedindo que:

      

   a) – Sejam declarados nulos, por falta de observância da forma legalmente imposta, os contratos que os AA. celebraram com o R., bem como as posteriores renúncias aos juros, ou sejam as renúncias anuladas, por usura, ou declaradas nulas, por abuso de direito, ou seja o R. condenado a pagar aos AA. os juros de mora vencidos desde a data da interpelação até à data da devolução dos montantes depositados, os quais se liquidam em Esc. 11 097 390$00, bem como os juros que se vencerem desde esta última data até ao momento do seu efectivo pagamento;

   b) – Seja o R. condenado a restituir aos AA. as quantias pagas a título quer de emolumentos, quer de acréscimos, no caso de proceder o primeiro pedido enunciado na antecedente al. a), que os AA. liquidam no montante de Esc. 60 564.017$00;

   c) – Seja o R. condenado a pagar aos AA. uma indemnização pelos danos morais e patrimoniais emergentes do não cumprimento atempado da obrigação de restituição dos depósitos, em montante a liquidar oportunamente.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram, em resumo e essência:                                      

--- No período, imediatamente, posterior à declaração de independência de Moçambique, os AA. entregaram, nos Consulados de Portugal no Maputo e na Beira, determinadas quantias em escudos moçambicanos, quantias essas que discriminam;

--- O R., abusando da sua necessidade, apesar de interpelado para as devolver, apenas lhes restituiu essas quantias, sem qualquer actualização, muitos anos mais tarde, exigindo-lhes, ainda, para o efeito, que declarassem que renunciavam aos juros;

--- Os contratos em que se traduziram aquelas entregas de quantias, bem como as declarações de renúncia exigidas pelo R. são inválidos.

       O R., representado pelo Mº Pº, contestou, por excepção e por impugnação.

       Por excepção, invocou o pagamento, as renúncias aos juros – que defendeu serem válidas e eficazes –, a prescrição dos hipotéticos juros de mora e a caducidade do direito a arguir a anulabilidade, nos termos do art. 287º do CC, uma vez que os depósitos foram realizados em 1976 e as renúncias foram subscritas em 1995 e 1996, anos em que também foram reembolsados os depósitos, tudo conjugado com o facto de a presente acção ter sido instaurada, no ano de 2000.

       Por impugnação, alegando, em síntese:                                         

--- O Estado Português tinha, por imposição legal, de proceder ao depósito, em instituições bancárias, das quantias que recebeu, em depósito, nos Consulados do Maputo e da Beira;

--- Não usou tais importâncias para financiar qualquer actividade, já que os Consulados nem são entidades bancárias, nem prosseguem quaisquer fins de semelhante natureza;

--- O R. nunca assumiu, nem podia, a obrigação de proceder à transferência de tais verbas para fora de Moçambique, já que a lei interna deste país o proibia;

--- Os montantes referenciados como depositados pelos AA. foram entregues nos Consulados Gerais de Portugal em Maputo e na Beira, com o fim único e exclusivo de aqueles Consulados os conservarem “em depósito” e à sua guarda;

--- A finalidade exclusiva visada, quer pelos AA., quer pelo R., com a entrega das quantias em dinheiro foi, tão só, proteger os capitais entregues, nos Consulados, pelos AA., atento o clima de insegurança instalado após a independência da República Popular de Moçambique.

       Pugnou pela improcedência da acção, na decorrência do alegado.

       Os AA. replicaram, batendo-se pela improcedência das excepções e reiterando o peticionado.

       Foi proferido despacho saneador em que, além do mais tabelar, se relegou para final o conhecimento das deduzidas excepções, com subsequente e irreclamada enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.).

       No decurso da audiência de discussão e julgamento, foi admitida a ampliação do pedido por forma a que, neste, fosse considerada abrangida a seguinte e correspondente redacção: “Condenar-se o R. a restituir aos AA., devidamente actualizadas por aplicação dos índices de preço estabelecidos, anualmente, pelo Instituto Nacional de Estatística, desde as datas dos respectivos depósitos até à data da sentença, as quantias por estes depositadas nos Consulados Gerais de Portugal na Beira e no Maputo, bem como as quantias pagas, quer a título de emolumentos, quer de acréscimos, no caso de proceder o pedido da al. b), que, no seu conjunto, ascendiam a Esc. 60 564 017$00, à data da entrada em Juízo da presente acção, correspondente a € 302 092,04”.

       Foi proferida (em 11.12.09) sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu o R. do pedido.

       Inconformados, apelaram os AA., FF, GG e DD, sendo, por acórdão de 29.03.11, julgada improcedente a apelação.

       Daí, a presente revista, em que aqueles visam a revogação do acórdão impugnado, conforme alegações culminadas com a formulação – em flagrante violação da síntese imposta pela lei adjectiva – das seguintes conclusões:                                          

1ª – Estando provado que os Consulados Gerais de Portugal, no Maputo e na Beira, assumiram a obrigação de guardar e vir a restituir aos recorrentes as quantias que estes confiaram à sua guarda, não restam dúvidas que foi celebrado (sic) entre os recorrentes e o recorrido contratos de depósito, tal como este é definido nos artigos 1185° e seguintes do Código Civil;

2ª – Tendo os valores entregues - escudos moçambicanos — a natureza de coisas fungíveis, dizem-se irregulares os depósitos efectuados, tal como resulta do artigo 1205° do CC;

3ª – Nos termos do disposto no artigo 1206° do CC: "Consideram-se aplicáveis ao depósito irregular, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo ";

4ª – À data dos depósitos consulares, 1976, o artigo 1143° do CC estipulava que: "Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a 20.000$00 só é válido se for celebrado por escritura pública (...) ";

5ª – Assim, tendo os depósitos de todos os recorrentes sido superiores a 20.000$00, os respectivos contratos celebrados nos Consulados deveriam ter sido celebrados por escritura pública;

6ª – Ao considerar que tais depósitos foram feitos ao abrigo do Regulamento Consular, e que este apenas exigia para os depósitos de numerário o preenchimento de impressos próprios dos Consulados, intitulados depósitos voluntários de numerário, a M. ma Juiz de Iª instância e o acórdão recorrido violaram o artigo 1143° do CC, na redacção, então, vigente;

7ª – E não se diga, como fazem ambas as instâncias recorridas, que, sendo o RC norma especial face às normas gerais do Código Civil, prevalecem sobre estas, atento o disposto no artigo 7º, n°3 do mesmo diploma;

8ª – É que o principio de que norma especial derroga lei geral, só pode ser atendido num quadro de normas jurídicas com a mesma dignidade na hierarquia das leis, e legisladas em contextos semelhantes e com alguma conexão temporal;

9ª – Em nota de rodapé, o acórdão fundamenta da seguinte forma este entendimento: "Constando o Regulamento Consular Português de Decreto e tendo o Código Civil sido aprovado por Decreto-Lei n°47 344, de 25.11.69, estamos perante leis de igual hierarquia, a primeira especial e a segunda geral, pelo que, de acordo com o artigo 7o, n°3, esta não revogou aquela ";

10ª – Ambas as instâncias esquecem que "antes" da entrada em vigor do Código Civil, entrou em vigor o Decreto Lei que o aprovou — o DL n° 47.344 —, o qual, no seu artigo 3º Preambular, dispõe que:

"Desde que principie a vigorar o novo Código Civil, fica revogada toda a legislação civil relativa às matérias que esse diploma abrange, com ressalva da legislação especial a que se faça expressa referência."

11ª – Ora, sendo o Regulamento Consular, quanto à questão da forma dos depósitos irregulares, lei especial civil, e não fazendo o Código Civil uma ressalva especial da sua manutenção, dúvidas não subsistem de que as normas constantes do dito Regulamento contrárias às novas disposições do Código Civil ficaram revogadas assim que o Código Civil entrou em vigor;

12ª – Assim, a invocação do artigo 7°, n°3 do CC deixa de fazer sentido, pois, à data da sua possível aplicação, estavam automaticamente revogadas as disposições do Regulamento Consular atinentes à forma dos depósitos Consulares;

13ª – De facto, a doutrina do artigo 7°, n°3, do Código Civil só é aplicável a legislação posterior à entrada em vigor do mesmo, pois a anterior, se não foi expressamente ressalvada, foi então revogada, atento o disposto no artigo 3º das disposições preambulares do Decreto-Lei n° 47 344;

14ª – Mas defenderam ainda ambas as instâncias que o artigo 1206° não equipara, pura e simplesmente, o contrato de depósito irregular ao contrato de mútuo, antes manda aplicar àquele as normas relativas a este «na medida do possível»;

Sobre tal matéria, diz o acórdão:

"É destes concretos contratos que se cuida nestes autos, submetidos ao indicado regime, pelo que, quanto a eles, não poderá deixar de ser conferida especial força à expressão «na medida do possível» usada no art. 1206°, de modo a concluir que não lhes era aplicável a exigência de forma imposta pelo art. 1143° para os contratos de mútuo nele previstos";

15ª – Simplesmente, o acórdão não fundamenta esta sua asserção, afinal fundamental para a decisão.

De facto, continuando-se a ler o acórdão, não se encontra, em lado algum, a explicação para o facto de o Tribunal recorrido entender que "não poderá deixar de ser conferida especial força à expressão «na medida do possível» usada no art. 1206°, de modo a concluir que não lhes era aplicável a exigência de forma imposta pelo art. 1143° para os contratos de mútuo nele previstos”;

16ª – Ora, os recorrentes continuam a entender que era possível (diríamos mesmo exigível) aplicar o artigo 1.143° aos depósitos irregulares consulares, e, repete-se, as instâncias não explicam nem convencem por que razão o não serão;

17ª – Só se for de todo impossível aplicar aos contratos de depósito as regras do contrato de mútuo (ou se houver uma norma especial que as afaste), é que, então, estas não se aplicarão.

O que não é, manifestamente, o caso dos autos;

18ª – Ao não aplicar o que se dispõe no artigo 1143° do Código Civil, o acórdão recorrido violou esta disposição legal, bem como o artigo 3° preambular do Decreto-Lei n° 47344, de 25 de Novembro de 1966 (Código Civil);

19ª – Tendo os contratos de depósito que ser celebrados por escritura publica, tem que se entender que também as impropriamente chamadas “Declarações de Renúncia” deveriam revestir a forma de escritura publica;

20ª – De facto, dispõe o n°2 do artigo 221° do Código Civil que: "As estipulações posteriores ao documento só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhe forem aplicáveis";

21ª – Este normativo tem que ser interpretado caso a caso, para avaliar a situação em concreto e verificar se as razões que a lei impôs para a forma da declaração se mantêm válidas para estipulações posteriores, “maxime” para a sua própria revogação ou renúncia;

22ª – Ora, se há caso em que se impõe que a forma exigida para a declaração seja a mesma da exigida para a sua revogação é o caso dos presentes autos;

23ª – Na verdade, as “Declarações de Renúncia” são documentos pelos quais determinadas pessoas emitiram declarações com relevantíssimo impacto patrimonial na sua esfera jurídica, obrigando-se a "nada mais reclamarem", documento esse ainda para mais "imposto" pelo devedor das respectivas quantias;

24ª – Não pode, pois, deixar de se aplicar a injunção do n°2 do artigo 221° do Código Civil, pelo que, se para os contratos de depósito era exigível escritura publica, também as declarações, chamadas impropriamente de "renúncia", deveriam revestir esta forma;

25ª – E, não revestindo essa forma, devem ser declaradas nulas;

26ª – Ao decidir que as Declarações não são nulas, a sentença e o acórdão recorridos violaram os artigos 219° e 221°, n°2 do Código Civil;

27ª – Mas as “Declarações de Renuncia”, se não fossem nulas, como entendem os apelantes, teriam que ser consideradas anuláveis, por usura;

28ª – De facto, o Estado, prevalecendo-se da situação de extrema necessidade em que se encontravam os apelantes, impôs a estes que assinassem as Declarações, sem o que não restituiria as verbas por ele arrecadadas, 20 anos antes;

29ª – Na verdade, só o desespero dos apelantes os levou a aceitar receber em singelo;

30ª – E, repare-se, desespero causado pelo próprio devedor, que durante 20 anos não consegue resolver o problema, que vai causando a ilusão que quer restituir as verbas que arrecadou 20 anos antes, que vai criando grupos de trabalho, alguns até inter-ministeriais, que vai emitindo declarações de intenções, mas que vai sempre adiando, adiando, adiando;

31ª – A Ma Juiz de 1ª instância decidiu esta questão com recurso a critérios meramente formais, descurando, em absoluto, os ditames da experiência comum, do senso comum, que não poderiam deixar de levar à conclusão que os recorrentes aceitaram receber de volta, em singelo, o que haviam confiado nos cofres do R., 20 anos antes, porque não tinham outra alternativa. Como diz o povo: “Quem espera desespera”. E os apelantes esperavam já há 20 anos!!

32ª – Esse é que foi o drama dos apelantes, e que a M.ª Juiz de 1ª instância desprezou por completo: foi a consciência de que, se não aceitassem o reembolso daquela forma, teriam que demandar judicialmente o Estado Português, no que levaria certamente mais meia dúzia de anos para tentarem receber. E sempre correndo o risco de perderem a demanda...

33ª – Se o Estado tivesse agido com boa fé, o mínimo que deveria ter feito era ter devolvido em singelo sem exigir as “Declarações de Renuncia” e deixar, depois, que os que quisessem a correcção monetária recorressem às instâncias judiciais;

34ª – Ao fazer como fez, não restam quaisquer dúvidas que o Estado se sentiu em posição de poder impor a renúncia, coarctando, desde logo, as legitimas expectativas dos depositantes.

De facto, o Estado, que era o devedor, é que impôs, unilateralmente, a condição em que restituiria as verbas que havia arrecadado;

35ª – Perante isto, perante um devedor que deve, há mais de 20 anos, mas que, ainda assim, impõe condições onerosas ao credor, como não considerar que o Estado se aproveitou do estado de necessidade dos depositantes, entre eles se incluindo os apelantes?

36ª – Em suma, as “Declarações de Renúncia” devem ser consideradas obtidas pelo R., por usura, sendo, em consequência, anuláveis, nos termos do n°1 do artigo 282° que, ao não ser considerado, foi violado pela sentença;

37ª – E o acórdão recorrido, ao manter a decisão da 1ª instância, violou também a citada disposição legal;

38ª – E, ainda que se considere que o prazo para arguir a nulidade decorrente da alegada usura já havia caducado à data da propositura da presente acção, a arguição da caducidade do direito à acção por parte do R. constituiria um evidente abuso de direito, na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pois foi o Estado quem foi, sucessivamente, adiando a restituição das verbas, criando a convicção de que um dia resolveria o problema;

39ª – Seria perverso permitir-se que o Estado se aproveitasse de um facto (o passar do tempo) que ele próprio fomentou, criando sucessivas expectativas nos depositantes;

40ª – Pelo exposto, e ainda que não fossem atendidas as demais razões, sempre teria que se considerar que o R. se aproveitou do estado de necessidade, de desespero, dos depositantes, para que estes assinassem as Declarações impropriamente denominadas de renúncia, pelo que estas devem ser anuladas, considerando-se não poder o R. excepcionar a caducidade do prazo para a sua arguição, por ter contribuído culposamente para a ultrapassagem de tal prazo;

41ª – Ou considerar-se, em alternativa, que tal prazo se interrompeu, sucessivamente, por facto imputável ao R.;

42ª – Além de que a própria invocação pelo R. de declarações inválidas – ainda que já estivesse esgotado o prazo para a arguição da sua anulação – constituiria um exercício em evidente abuso de direito, pois o Estado prevalecer-se-ia de documentos inválidos e que só não seriam anulados na medida em que estava esgotado o prazo para tanto, prazo esse que ele, o próprio Estado, havia contribuído para que passasse sem que os apelantes requeressem judicialmente a anulação das Declarações;

43ª – Estava, assim, o Estado obrigado a restituir aos recorrentes as verbas correspondentes aos depósitos consulares. Esta obrigação decorre do regime legal do contrato de depósito – arts. 1185° e 1187° do CC – se se considerar, contra aquilo que esperam os recorrentes, que os depósitos consulares se mostram formalmente válidos. Ou decorrerá do disposto no n°1 do artigo 289° do Código Civil, no caso contrário;

44ª – E a verdade é que o Estado acabou por restituir as verbas correspondentes aos depósitos, tendo-o feito, como sabemos, ao par, não obstante terem, entretanto, decorrido exactamente 20 anos;

45ª – Ora, as verbas restituídas têm que ser actualizadas, como forma de compensar a forte depreciação que sofreram nos 20 anos que intermediaram entre o seu depósito e a sua restituição;

46ª – Desde logo, por uma questão de bom senso, jurídico e não só. É evidente que quem restitui, 20 anos depois, (ainda, para mais, em épocas de notórias e sucessivas desvalorizações) o mesmo valor facial, não devolve o mesmo valor real, material;

47ª – Depois, porque não o fazer seria uma forma de beneficiar "o infractor". Os autos – e mesmo os factos que são públicos – demonstram, à saciedade, que o Estado sabia que tinha que restituir os montantes correspondentes aos depósitos. Talvez não soubesse como o fazer. Mas sabia, sempre soube que tinha a obrigação de restituir. Tanto assim é que o Estado restituiu (mesmo não tendo sido interpelado para tanto, como decidiu a sentença);

48ª – Veja-se o facto dado como assente em V, nos termos do qual, já em 1981, o MNE remetia para o Instituto de Cooperação Económica o processo referente aos "depósitos" consulares;

49ª – Veja-se também o Despacho do Senhor Ministro das Finanças, ao abrigo do qual foram restituídos os depósitos - Despacho n° 90/94- XII.

Nele:

- se reconhece que os depositantes fizeram os depósitos tendo em vista a sua guarda e posterior transferência em momento oportuno para Portugal, a fim de serem reembolsados das respectivas importâncias;

- se reconhece que há a necessidade de o Estado português regularizar esta situação;

 50ª – E não se esqueça que está provado – quesito 1º – que os funcionários dos Consulados asseguravam aos portugueses que os valores entregues lhes seriam restituídos, em Portugal, logo que o solicitassem;

51ª – Os recorrentes não lograram provar que os reclamaram, logo que chegaram a Portugal, mas se esse facto será eventualmente relevante para efeitos da contabilização dos juros moratórios, não o é para a questão da actualização. Para esta — uma vez que se trata de repor o valor aquisitivo dos montantes entregues, é indiferente saber se e quando os AA. reclamaram;

52ª – O que importa é que o Estado sempre reconheceu que tinha que restituir aquilo que havia sido confiado à sua guarda, a partir daí só tinha um caminho: restituir exactamente aquilo que havia recebido e isso só se verifica se proceder à actualização. Porque se não, não está verdadeiramente a restituir o que recebeu;

53ª – E releve-se que se a restituição se fizer ao abrigo do disposto no n°1 do artigo 289° do Código Civil, por nulidade dos contratos de depósito, como defendem os recorrentes, então a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado;

54ª – Sendo que aquela disposição legal refere que se a restituição em espécie não for possível, deverá ser restituído o valor correspondente.

Daqui se pode concluir que a nulidade obriga a restituir exactamente aquilo que se recebeu, sendo que, nas restituições de valores pecuniários, só se restitui aquilo que se recebeu quando se corrige o valor da prestação, defendendo aquele que tem direito à restituição da depreciação do valor da moeda;

55ª – E, assim, ao contrário do que resulta do acórdão recorrido, se faz a plena concretização do disposto no artigo 551° do CC, que aquele, com a decisão que proferiu, violou;

56ª – Quanto ao pedido formulado na alínea d) da parte final da p. i., sempre o recorrido teria que pagar juros moratórios sobre as importâncias que devolveu, 20 anos depois de as ter recebido, caso venha a ser considerado improcedente o pedido de correcção monetária;

57ª – Também nesta matéria, a decisão recorrida é ilegal, incompreensível e não aceitável. O acórdão manteve a decisão da 1ª instância, que entendeu que não há mora, pela simples razão de que os recorrentes não lograram provar os quesitos da interpelação do Estado para restituir as verbas;

58ª – Esquecendo o acórdão recorrido que é do conhecimento público e generalizado que os retornados regressaram a Portugal durante os finais dos anos 70; durante anos a fio, foram públicas as constantes queixas e as exigências dos mesmos relativamente aos bens e valores que deixaram nas antigas colónias; o problema dos retornados foi um verdadeiro problema à escala nacional; foi criado o IARN, o GAE; foram entregues petições na Assembleia da República; em 1981, o Governo encaminha a questão dos depósitos consulares para o Instituto da Cooperação e, finalmente, em 1994, o Governo – mesmo sem ser interpelado, segundo diz a sentença e o acórdão recorridos – restitui as verbas que havia arrecadado em 1976;

59ª – A tese da 1ª instância, e que o acórdão manteve, levaria ao caricato de termos de considerar que o Estado devolveu as verbas, em 1994, porque quis, porque a isso não estava ainda obrigado, porquanto não havia sido interpelado. O que, convenhamos é totalmente absurdo;

62ª – De facto, o Estado Português, atentas as circunstâncias em que foram feitos os depósitos, sempre soube que tinha que restituir as verbas depositadas;

63ª – Não se esqueça que os funcionários dos Consulados asseguravam aos portugueses que os valores entregues lhes seriam restituídos em Portugal, logo que o solicitassem (resposta ao facto 1 da b. i.);

64ª – Por todos os factos já relatados e constantes dos autos, é por de mais evidente, diríamos mesmo evidentíssimo, que o Estado não precisava de ser lembrado para cumprir, (nas sugestivas palavras de Ribeiro de Faria, trazidas à colação pela sentença), tornando assim dispensável a prova da interpelação para tanto, que ainda assim não se pode deixar de considerar que foi feita;

65ª – E não pode também deixar de se admitir que o R. sabia que tinha que restituir as verbas depositadas, e que, embora não tenha sido estipulado o local de restituição aquando dos depósitos, aquele não podia deixar de ser, em Portugal;

66ª – Pelo que não poderá deixar de se condenar o R. no pagamento de juros de mora, tal como peticionado;

67 – Ao não o fazer o acórdão recorrido violou o artigo 804° do Código Civil;

70ª – Se esse Venerando Tribunal não conceder provimento à pretensão dos recorrentes de correcção monetária das verbas depositadas, mas considerar que o R. restituiu as verbas, tardiamente, e, em consequência, o condenar a pagar juros de mora, deve, então, o R. ser condenado ainda a compensar os recorrentes por todos os danos morais, sofridos com o atraso na restituição das verbas a que estava obrigado, a liquidar em execução de sentença.

       Deve ser revogado o acórdão e a sentença recorridos, condenando-se o recorrido a restituir aos recorrentes, devidamente actualizados com referência à data do acórdão a ser proferido por esse Venerando Tribunal, as importâncias por aqueles depositadas nos Consulados de Portugal em Moçambique, em 1976, ou, no caso de assim não ser entendido por V. Exas., condenar-se o recorrido a pagar juros de mora sobre as mesmas quantias, nos termos peticionados, bem como indemnização por danos morais, em montante a liquidar em execução de sentença.

       Contra-alegando, defende o recorrido a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

                                             

1 – Após a independência, a antiga colónia de Moçambique entrou em guerra civil e muitos portugueses levantaram o dinheiro que tinham depositado nos bancos e entregaram-no nos Consulados de Portugal no Maputo e na Beira (A);

2 – Os funcionários dos Consulados asseguravam aos portugueses que os valores entregues lhes seriam restituídos em Portugal, logo que o solicitassem (1º);

3 – Os AA. não dispunham de outro meio seguro, para as suas integridade física e própria vida, para pôr a salvo as suas economias (2º);

4 – O A. AA entregou, em 1978, no Consulado-Geral de Portugal na Beira, a quantia de 1 000 000$00 (um milhão de escudos moçambicanos) (B);

5 – O A. BB efectuou, em Março de 1976, duas entregas, no Consulado-Geral de Portugal no Maputo, uma no valor de 407 166$00 (quatrocentos e sete mil, cento e sessenta e seis escudos moçambicanos) e outra no valor de 417 000$00 (quatrocentos e dezassete mil escudos moçambicanos) (C);

6 – Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância de 21 684$00 (vinte e um mil seiscentos e oitenta e quatro escudos moçambicanos) (D);

7 – O A. CC entregou, em 16 de Dezembro de 1976, no Consulado-Geral de Portugal na Beira, a quantia de 200 000$00 (duzentos mil escudos moçambicanos) (E);

8 – Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 10 400$00 (dez mil e quatrocentos escudos moçambicanos) (F);

9 – O A. DD entregou, em 2 de Abril de 1976, no Consulado-Geral de Portugal em Maputo, a quantia de 100 000$00 (cem mil escudos moçambicanos) (G);

10 – Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 5 200$00 (cinco mil e duzentos escudos moçambicanos) (H);

11 – O A. EE entregou, em 16 de Dezembro de 1976, no Consulado-Geral de Portugal no Maputo, a quantia de 150 000$00 (cento e cinquenta mil escudos moçambicanos) (I);

12 – Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 7 800$00 (sete mil e oitocentos escudos moçambicanos) (J);

13 – A A. FF entregou, no Consulado-Geral de Portugal no Maputo, em 24 de Fevereiro de 1976, o montante de 135 000$00 (cento e trinta e cinco mil escudos moçambicanos) (L);

14 – A A. GG entregou, em 25 de Fevereiro de 1976, no Consulado-Geral de Portugal na Beira, a quantia de 1 100 000$00 (um milhão e cem mil escudos moçambicanos) (M);

15 – Tendo pago de emolumentos e acréscimos aos mesmos a importância total de 57 200$00 (cinquenta e sete mil e duzentos escudos moçambicanos) (N);

16 – A finalidade com que os AA. procederam aos depósitos dos montantes referidos nos arts. 62, 63, 66, 68, 70, 72 e 73 da petição inicial, nos Consulados Gerais de Portugal em Maputo e na Beira, também foi a de protegerem os capitais entregues, atento o clima de insegurança entretanto instalado, após a independência da República Popular de Moçambique (27º e 28º);

17 – Todos estes depósitos foram efectuados mediante o preenchimento de impressos próprios dos Consulados, intitulados Depósitos voluntários de numerário (O);

18 – Nos quais os AA. declararam entregar certas quantias em dinheiro e o agente consular certificou o recebimento dessas quantias (P);

19 – Sobre o valor entregue, os AA. pagaram 4%, a título de emolumentos, e sobre o valor dos emolumentos pagaram mais 30%, a título de acréscimo (Q);

20 – Não foi convencionado o lugar da restituição, nem o respectivo prazo e também não foi estipulado em que moeda deveria ser feita a restituição (R);

21 – Um escudo moçambicano valia, na data da entrega, um escudo português e esta paridade manteve-se até 25 de Fevereiro de 1977 (T);

22 – O R. manteve sempre, antes da independência do Ex-Estado Português de Moçambique, o curso legal do escudo moçambicano confinado ao território de Moçambique (17º);

23 – Os Consulados depositaram as quantias recebidas dos AA. no Banco HH e noutras instituições bancárias de Moçambique (13º);

24 – E depositaram-nas em seu próprio nome, sem consentimento para tal (14º);

25 – Para que os Bancos as aplicassem e movimentassem como bem entendessem, o que os Bancos efectivamente fizeram (15º);

26 – Em 1977, o R. Estado Português acrescentou ao saldo da conta de «depósito» do A. BB, no Consulado-Geral de Portugal na Beira, a título de juros, o montante de 5 597$60 (cinco mil, quinhentos e noventa e sete escudos e sessenta centavos) (U);

27 – No ano de 1979, o Consulado-Geral da Beira justificava a impossibilidade da continuação do crédito de juros devido à reestruturação da Banca, remetendo, em consequência, um certificado de saldo aos respectivos titulares dos “depósitos” (19º);

28 – O Estado Moçambicano tinha, em 1979, vedado aos Consulados Gerais de Portugal em Moçambique o levantamento das importâncias ali depositadas por cidadãos portugueses não residentes naquele país (10º);

29 – Por ordens do Estado Moçambicano e de legislação aprovada para vigorar naquele país, passou a estar vedado o acesso aos depósitos consulares efectuados no Consulado-Geral de Portugal na Beira e no Maputo, quer mediante a proibição de movimento de contas, transferência de conta à ordem para conta a prazo, levantamentos de quantias, bem como de novos depósitos (18º);

30 – Em 1981, o Ministério dos Negócios Estrangeiros comunicou aos espoliados de Moçambique, mediante circular, que a entidade competente para o andamento do processo referente aos “depósitos” efectuados nos Consulados-Gerais em Moçambique era o Instituto para a Cooperação Económica, a quem, de futuro, se deveriam dirigir para resolver qualquer assunto (V);

31 – Em 1992, foi entregue à Comissão de petições da Assembleia da República uma petição com mais de mil assinaturas, solicitando a restituição dos montantes “depositados” (X);

32 – No dia 8 de Setembro de 1994, foi publicada, no jornal “Correio da Manhã”, uma nota informativa do Gabinete de Apoio aos espoliados, anunciando o pagamento de depósitos efectuados por cidadãos portugueses nos Consulados-Gerais de Portugal, nas cidades da Beira e Maputo, decorrentes do processo de descolonização (Z);

33 – Esta entidade do Ministério dos Negócios Estrangeiros informou os espoliados que tinha actuado junto das suas representações consulares na Beira e no Maputo no sentido de estas lhe enviarem um documento com a relação dos titulares de depósitos consulares, para, desta forma, se proceder à restituição dos mesmos (AA);

34 – O conteúdo dessa nota informativa consistia na descrição de uma série de documentos comprovativos da realização desses mesmos depósitos e, mediante a sua apresentação, o Estado possibilitaria a entrega dos montantes depositados (BB);

35 – Constava, ainda, desses elementos a exigência de uma declaração assinada pelos destinatários com um texto pré-definido pelo Estado Português (CC);

36 – Esta declaração tinha um conteúdo de um recibo, identificando o devedor, o credor, a quantia em dívida e a que título tinha sido contraída a dívida (DD);

37 – Continha, ainda, como elemento condicional obrigatório da restituição dos montantes «depositados», uma declaração referente aos «depósitos» (EE);

38 – O conteúdo da declaração, expressamente redigido e constante em minuta enviada pelo Gabinete de Apoio aos espoliados, constante de fls. 57 dos autos, era do seguinte teor: «(...) declara que nada mais reclamará do Estado Português, quanto aos depósitos efectuados naquele Consulado, a partir da data em que me for entregue o montante acima referido» (FF);

39 – Os AA. assinaram as respectivas declarações (GG);

40 – As declarações não foram assinadas pelos AA. perante notário, nem perante outro oficial dotado de fé pública (HH);

41 – Os AA. assinaram as declarações referidas em FF) e GG) como forma de, naquele momento, lhes serem restituídos os montantes que haviam depositado, uma vez que o Estado condicionou tal restituição à subscrição dessas declarações (20º e 24º);

42 – Os AA. apenas foram reembolsados das importâncias entregues, cerca de vinte anos mais tarde, montantes esses que lhes foram devolvidos ao par, nos seguintes termos:

- AA, a quantia de 1 000 000$00, em 96.06.19;

- CC, a quantia de 200 000$00, em 95.10.27;

- DD, a quantia de 100 000$00, em 95.10.27;

- EE, a quantia de 150 000$00, em 95.10.24;

- FF, o valor de 135 000$00, em 96.03.05;

- GG, o montante de 1 100 000$00, em 95.10. 03 (S);

43 – No dia 14 de Junho de 2004, foi elaborado um despacho conjunto dos Ministérios das Finanças (Maria Manuela Ferreira Leite), dos Negócios Estrangeiros (Teresa Patrício Gouveia) e da Segurança Social (António Bagão Félix), através do qual era constituído um grupo de trabalho, pelo prazo de um ano, com vista à resolução dos «(…) problemas e injustiças que afectam um significativo número de portugueses que se viram forçados a regressar a Portugal durante e por causa do processo de descolonização.» (II);

44 – No dia 3 de Fevereiro de 2005, foi publicado, no Diário da República, II Série, um despacho bastante similar ao datado de 14 de Junho de 2004, desta feita datado de 4 de Janeiro de 2005 e assinado pelo Ministro das Finanças e da Administração Pública (António José de Castro Bagão Félix), pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas (António Victor Martins Monteiro) e pelo Ministro da Segurança Social, da Família e da Criança (Fernando Mimoso Negrão) (JJ);

45 – Nos termos deste novo despacho de 4 de Janeiro de 2005, o Governo volta a afirmar que não pode, «em obediência à sua filosofia humanista e personalista, deixar de tomar as iniciativas que vão ao encontro do propósito de tentar reparar, tanto quanto possível, injustiças que foram consumadas» durante e por causa do processo de descolonização, pelo que se determinou a criação, «na dependência do Ministro das Finanças e da Administração Pública, de um grupo de trabalho que tem por objectivo estudar e propor soluções para as questões pendentes relativas aos cidadãos portugueses residentes nos antigos territórios ultramarinos, no período compreendido entre 25 de Abril de 1974 e a data da transferência plena de soberania para os novos Governos dos Estados sucessores, cujos direitos ou interesses legítimos tenham sido directamente afectados pelos processos de descolonização» (LL).

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção[1]) –, constata-se que – reproduzindo aqueles, quase “ipsis verbis”, as conclusões formuladas no recurso de apelação… – as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso são, em síntese, as seguintes:

              

I – Nulidade, por falta de forma legal, dos contratos integrados pelas entregas monetárias efectuadas pelos recorrentes e, bem assim, das declarações por si subscritas e que antecederam o reembolso daquelas por parte do R.-Estado Português;

II – Anulabilidade de tais declarações, por serem devidas a conduta usurária do R. perante os respectivos declarantes;

III – Actualização monetária das quantias entregues;

IV – Obrigação de pagamento de juros; e

V – Indemnização por danos não patrimoniais causados aos recorrentes, em consequência do atraso na restituição das sobreditas quantias, a liquidar em execução de sentença (terminologia esta, então, acolhida na lei adjectiva e que veio a ser alterada pelo nº2 do art. 378º do CPC, na redacção introduzida pelo art. 1º do DL nº 38/03, de 08.03).   

       Apreciemos, pois, tais questões, desde já se remetendo, “data venia” e no omitido, para as decisões das instâncias, ambas de excelente recorte técnico:

4IDa validade formal dos questionados depósitos:

                                              

       Estão em causa, nestes autos, depósitos em escudos moçambicanos efectuados, na sequência da proclamação, em 25.06.75, da independência da República Popular de Moçambique, efectuados, em 1976 e (um deles) 1978, por cidadãos nacionais, nos Consulados Gerais de Portugal, nas cidades da Beira e Maputo, na sequência do elevado risco de perda de haveres e da própria vida dos depositantes e familiares, perante a grande instabilidade e diluição das estruturas do poder que, então, se verificavam, na euforia do nascimento da jovem nação e, com frequência, à revelia do próprio poder constituído. Em tais circunstâncias, receberam os mencionados Consulados Gerais as importâncias depositadas, no cumprimento do dever de ajuda consular a que os mesmos estavam adstritos, porquanto, além do mais, constituíam, então, o único espaço territorial português em Moçambique, nos mesmos se concentrando, ao tempo, as funções de serviço público português na jovem nação, designadamente quanto a certificações, registos e notariado.

       Os montantes entregues a coberto de tais depósitos viriam a ser restituídos, em escudos portugueses, em Lisboa, nos anos de 1995 e de 1996.

       Contra o decidido nas instâncias, continuam os recorrentes a sustentar a nulidade de tais depósitos, por inobservância da forma legalmente imposta por via da aplicação do disposto no art. 1143º do CC, tido em conta o montante de cada um dos referidos depósitos. E isto porque, na tese dos recorrentes, nos confrontamos com verdadeiros depósitos irregulares a que, por via do disposto no art. 1206º do CC, deve ser aplicado o preceituado no citado art. 1143º.

       Mas, com respeito pela opinião contrária, não é assim, uma vez que aquele art. 1143º não tem, aqui e por duas ordens de razões, aplicação.

       Em primeiro lugar, porque os sobreditos e questionados depósitos se encontram sujeitos a uma regulamentação especial.

       Com efeito, é certo que, nos termos do disposto no art. 3º do DL nº 47 344, de 25.11.66 – diploma legal que aprovou o CC –, “Desde que principie a vigorar o novo Código Civil, fica revogada toda a legislação civil relativa às matérias que esse diploma abrange, com ressalva da legislação especial a que se faça expressa referência”.

       E, no entender dos recorrentes, tal estatuição legal não poderia deixar de abranger o denominado “Regulamento Consular Português”, aprovado pelo Decreto nº 6 462, de 21.03.20 (Diário do Governo nº 57, de 21.03.20), dado tratar-se de legislação especial a que o CC não fez a sobredita referência expressa.

       Porém, assim não é, uma vez que, como muito bem se expende nas doutas contra-alegações do recorrido, a guarda e o depósito de dinheiro ou outros valores pelos Consulados, constituindo uma forma de protecção e assistência prestada aos cidadãos nacionais que se encontram no estrangeiro – e que, no caso, permitiu aos recorrentes, valendo-se da inviolabilidade dos locais consulares e da imunidade diplomática, previstas na “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, adoptada pela ONU, trazer para Portugal parte do seu pecúlio, sem incorrerem nas acusações de sabotagem económica que a legislação da República Popular de Moçambique estatuía – constitui uma actividade que, “qua tale”, não se mostra abrangida pelo CC. Assim, os depósitos consulares mencionados no Regulamento Consular de 1920 não estão previstos no CC, pelo que não foram revogados com o início de vigência deste diploma.

       Aliás, se assim não devesse ser entendido, não faria qualquer sentido que o art. 2º do DL nº 381/97, de 30.12 tivesse revogado expressamente o Regulamento Consular aprovado pelo Dec. nº 6462, de 07.03.20, ao prescrever, no respectivo art. 2º, que “Ficam revogados o Regulamento Consular, aprovado pelo Decreto nº 6462, de 7 de Março de 1920, bem como toda a legislação anterior que contrarie o disposto no presente diploma”.

       Daí que, por haverem sido constituídos de acordo com os requisitos previstos no Regulamento Consular em vigor aquando da respectiva constituição, são dotados de plena validade formal os depósitos consulares em apreço nos autos.

       Outra não podendo ser a conclusão, mesmo que – contra o já sustentado – se tenha por aplicável, “in casu”, o disposto no art. 1206º do CC: é que, mesmo quem tal defenda não pode olvidar que a aplicação subsidiária, aí, prevista só poderá ocorrer, “na medida do possível”. O que, no caso dos autos tem de ser rejeitado, quer pelas já enunciadas razões, quer porque os Consulados Gerais não exerciam, ao assim actuarem, qualquer actividade bancária remunerada, antes visando, exclusiva ou predominantemente, a guarda e conservação, em ordem à sua posterior restituição, dos montantes depositados. Sendo que, num tal quadro, em que a urgência e discrição de actuação se sobrepunham a tudo o resto, em ordem à preservação dos haveres e vida dos depositantes, seria totalmente descabida a exigência de escritura pública para a salvaguarda da validade formal dos depósitos, para cuja realização existiam, até, impressos próprios, incompatíveis, pois, com a exigência legal da respectiva formalização através de escrituras públicas.

       E o que fica expendido determina, igualmente, que não possa sustentar-se a nulidade, por inobservância da forma legalmente prescrita, das sobreditas declarações que antecederam, como seu elemento condicional obrigatório, os reembolsos levados a cabo pelo R.-Estado Português. Certo sendo, por outro lado, que tal posição sempre teria de ser rejeitada por outras várias e complementares razões:

       Em primeiro lugar, porque, como se sustentou no Ac. deste Supremo, de 12.02.04 (Cons. Oliveira Barros) – Proc. 03B4195 – www.dgsi.pt), o preceituado no art. 221º, nº2, do CC nada tem a ver com a questão em análise, certo como é que não nos confrontamos com as “estipulações”, aí, previstas.

       Em segundo lugar, porque tais declarações mais não consubstanciam que verdadeiro reconhecimento negativo de dívida (reconhecimento da inexistência da dívida) – “negócio declarativo pelo qual o possível ou aparente credor reconhece vinculativamente perante a contraparte que certa obrigação não existe, ou porque nunca existiu ou porque foi extinta entretanto”[2].

       Finalmente, porque, como se consignou no sobredito Ac. deste Supremo, “Consistindo na abdicação ou perda voluntária e absoluta de um direito por manifestação unilateral de vontade do seu titular nesse sentido, a renúncia abdicativa dos juros não era, após a mora, proibida (…) Na vigência do Cod. de Seabra (CC de 1867), a renúncia só podia provar-se por documento escrito (cfr. seu art. 815º, § único) (…) Com o CC de 1966, vigente, essa exigência desapareceu. A renúncia deixou de ser um acto formal (…) A renúncia – manifestação unilateral de vontade, como já dito – pode resultar, consoante arts. 217º, nº1 e 219º, de declaração de vontade informal, expressa ou tácita”.

       Assim, tendo-se como extensivo aos demais direitos o que acaba de ser expendido quanto a renúncia a juros, improcedem as correspondentes conclusões formuladas pelos recorrentes.

II – Nos termos profusamente mencionados nas decisões das instâncias e que, aqui, se têm por reproduzidos, sustentam os recorrentes que a emissão das questionadas declarações foi consequência de actuação usurária do R.-Estado, o que as torna anuláveis, atento o preceituado no art. 282º, nº1do CC.

       Mas, os recorrentes não têm parcela de razão quando tal sustentam.

       Com efeito, diz-nos aquele preceito legal que “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.

       Ora, os recorrentes não lograram provar – como era seu ónus processual (arts. 342º, nº1 do CC e 516º) – qualquer facto dotado de idoneidade para poder integrar qualquer dos sobreditos pressupostos fácticos da actuação usurária por parte do R.-Estado. Na realidade, resultaram “não provados” os nº/s 21º a 26º da b. i., únicos com eventual interferência na questão, ora, em apreço.

       O que, só por si, seria suficiente para o completo naufrágio da pretensão dos recorrentes.

       Porém, há mais.

       É que, mesmo que pudesse triunfar aquela sua pretensão, nunca a mesma poderia proceder, por caducado o pretenso direito, como excepcionado foi pelo R., com referência ao preceituado nos arts. 287º, 303º e 333º, nº2, todos do CC.

       Além de que, como observado no citado Ac. de 12.02.04 deste Supremo, “O demandado só estava obrigado a restituir, em Moçambique, as quantias, aí, depositadas, e em moeda local (…) A restituição efectuada foi consequência de decisão política. E, muito desvalorizada aquela moeda, até por isso inexiste o pretenso «benefício manifestamente excessivo e injustificado»”.

       Com o que tem de concordar-se, mormente tendo em conta a extrema dificuldade ou, mesmo, impossibilidade de, na época das ocorrências em apreço nos autos, transferir qualquer quantia monetária para Portugal e, muito menos, de aqui ser reembolsado, em paridade e em escudos portugueses, de depósitos efectuados em Moçambique, em escudos moçambicanos a que sucedera o metical e com curso legal reservado àquele novo país.

       Improcedendo, pois, igualmente, as correspondentes conclusões tiradas pelos recorrentes.

                                               

III – Sustentam, igualmente, os recorrentes que as restituições efectuadas deveriam ter sido objecto de actualização monetária.

       Sem razão, mais uma vez.

       Desde logo, porque, ainda que a tal actualização houvesse lugar, a mesma deixaria de ter sustentáculo legal por força das declarações, válida e eficazmente, subscritas pelos recorrentes como elemento condicionador obrigatório das efectuadas restituições do montante por cada um depositado, em Moçambique.

       Depois, porque, confrontando-nos com obrigações de natureza pecuniária e nada tendo sido estipulado em contrário, por força do princípio nominalista acolhido no art. 550º do CC, o correspondente cumprimento faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver. Só havendo lugar à mencionada actualização se se tratar de dívida de valor ou, tratando-se de prestações pecuniárias, quando a lei o permitir – o que, aqui, não sucede – ou haja a mencionada estipulação em contrário, como decorre do preceituado no sobredito art. e no sequente art. 551º, ambos do CC.  

       Improcedendo, pois, as correspondentes conclusões enunciadas pelos recorrentes.

                                                 

IV – Quanto à pretensão de pagamento de juros de mora aos recorrentes, óbvio se nos antolha que a mesma está votada ao insucesso.

       É que, como resulta do preceituado nos arts. 804º, 805º e 806º, nº/s 1 e 2, todos do CC, para poder haver lugar ao pagamento de juros de mora, imprescindível se mostra, desde logo e entre o mais, que o devedor da correspondente prestação pecuniária haja incorrido em mora.

       Ora, está provado – nº20 de 2 supra –, entre o mais, que “Não foi convencionado o lugar da restituição, nem o respectivo prazo e também não foi estipulado em que moeda deveria ser feita a restituição” (acentuámos).

       Paralelamente, receberam respostas negativas os arts. 5º a 9º da b. i., que acolheram factos alegados pelos AA. com vista a integrar mora do R. nas restituições dos dinheiros por si depositados.

       Como se sabe, como tribunal de revista que aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que tem por adequado (arts. 729, nº1, 26º da Lei nº 3/99, de 13.01, e 33º da Lei nº 52/08, de 28.08), o STJ apenas conhece, em princípio e por regra, de matéria de direito.

       Constituindo excepção o que dimana das disposições conjugadas dos arts. 729º, nº2 e 722º, nº2 (hoje, nº3), nos termos das quais a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

       Assim, não sendo caso de aplicação destas disposições excepcionais, vedado nos está introduzir qualquer modificação na decisão proferida sobre a matéria de facto, estando, pois, processualmente, adquirido, e de forma definitiva, que não ocorreu mora por parte do R.

       Tanto bastaria, desde logo, para rejeitar a sobredita pretensão dos recorrentes, mesmo que invoquem em seu apoio – e com a nossa frontal discordância – a eventual desconsideração de factos notórios, não uso de presunções judiciais, alheamento do senso comum, como, sem êxito – como seria de esperar, tanto mais que não impugnaram, nos termos legais, a decisão proferida sobre a matéria de facto –, se houveram na Relação.

       Mas, há mais.

       É que, tendo subscrito as declarações que já foram objecto de análise, os recorrentes, na qualidade de respectivos declarantes, teriam, válida e eficazmente, renunciado, unilateralmente, ao correspondente direito a juros de mora, se dele fossem titulares, que o não são, como dito ficou.

       Improcedendo, pois, as conclusões atinentes a esta temática.                                              

V – Perante o expendido, não têm os recorrentes direito a qualquer indemnização por danos não patrimoniais a si causados pelo recorrido, em consequência de atraso verificado na restituição do montante por cada um deles depositado, uma vez que se mostra assente que não ocorreu tal atraso.

       Porém e em contraponto, não resistimos a transcrever as pertinentes considerações, a propósito tecidas, nas doutas contra-alegações do presente recurso, nos termos das quais, “…Estando provado que, em 1979, o Estado moçambicano tinha vedado aos Consulados de Portugal o levantamento das importâncias ali depositadas por cidadãos portugueses não residentes naquele país (Facto provado nº28) e, por ordens do Estado moçambicano, passou a estar vedado o acesso aos depósitos consulares efectuados no Consulado-Geral de Portugal, na Beira e no Maputo, quer mediante a proibição de movimentos de contas, transferências de contas à ordem para contas a prazo, levantamento de quantias, bem como novos depósitos (facto provado nº29), pensamos que «o passar do tempo» de que os recorrentes se queixam, e as diversas acções realizadas, a nível estatal, tendo em vista restituir as quantias correspondentes aos depósitos consulares efectuados em Moçambique, significam que o Estado se empenhou em resolver o problema, de natureza política e social – mas não jurídica, porque é um facto notório que a transferência de dinheiro das ex-colónias para Portugal não era legalmente permitida, quer antes, quer depois da independência das mesmas –, que os, ora, recorrentes e outros retornados lhe colocaram”.

       Assim, tratando-se de uma questão extremamente delicada e sensível, em termos sociais e políticos, não pode estranhar-se que o Estado com a mesma tivesse de lidar com todas as cautelas, sobremaneira agigantadas com a ausência duma linha uniforme de actuação decorrente da sucessão de Governos com diversa ideologia e visão das questões imbricadas na matéria, o que, aliado àquelas causas externas, não pode ter deixado de se repercutir, negativamente, na abordagem e solução da questão, pese, embora, o máximo de diligência, aí, investida pelo Estado Português.

       Com o que improcedem as remanescentes conclusões dos recorrentes.

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se, em consequência, o acórdão recorrido.

      Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam.                                              

  

 Lisboa, 10 de Novembro de 2011

Fernandes do Vale (Relator)

Marques Pereira

Azevedo Ramos


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[1]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[2]  Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. II (Reimpressão da 7ª Ed.), pags. 251; e Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in “CC Anotado”, Vol. II, 4ª Ed., pags. 151).