ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
247/05.3TTLMG.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/26/2011
SECÇÃO 4ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR FERNANDES DA SILVA

DESCRITORES ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE AGRAVADA
CULPA DO EMPREGADOR
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
CONSTRUÇÃO CIVIL

SUMÁRIO I - No âmbito da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), o responsável pela reparação dos danos emergentes de um acidente de trabalho é o empregador, a quem a mesma Lei obriga a transferir a responsabilidade infortunística para entidades legalmente autorizadas a realizar este tipo de seguro, prevendo-se apenas que, quando seja o caso, possa discutir-se, no respectivo processo, a determinação da entidade empregadora responsável, como estatuído nos art.s 127.º e 129.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do CPT.

II - Nos casos especiais de reparação – situação contemplada nos arts 18.º, n.º 1 e 37.º, n.º 2 da LAT –, a responsabilidade agravada naquele prevista recai, em primeira linha, sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais salvaguardadas naquele diploma legal.

III - A responsabilidade agravada do empregador funda-se numa de duas causas: o seu (ou do seu representante) comportamento culposo ou a (sua) inobservância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho. No que tange à prova da culpa, a mesma tem-se por indispensável relativamente ao primeiro fundamento, sendo desnecessária no segundo, exigindo-se, sempre, em qualquer umas das apontadas situações, a afirmação do nexo de causalidade entre o aludido comportamento culposo ou a falta de observação das ditas regras e a produção do acidente, cuja prova impende sobre quem pretenda tirar proveito da responsabilidade agravada.

IV - O empregador, empreiteiro da construção civil, está, não só, adstrito ao cumprimento das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho constantes do DL n.º 273/2003, de 29 de Outubro, que procedeu à revisão da regulamentação das condições de segurança e de saúde no trabalho em estaleiros temporários ou móveis, constante do DL n.º 155/95, de 1 de Julho, mantendo as prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho estabelecidas pela Directiva n.º 92/57/CEE, do Conselho, de 24 de Junho – disposições que se compaginam com o preceituado nos art.s 272.º e 273.º do Código do Trabalho – mas também, como ao cumprimento das regras constantes do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo decreto n.º 41.821, de 11 de Agosto de 1958.

V - O artigo 162.º do referido Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil prescreve que «durante a realização da obra de construção civil, serão tomados os cuidados necessários para evitar que os operários contactem com condutores ou aparelhos eléctricos de qualquer tensão», prescrevendo, em consonância, a Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, que os cabos eléctricos existentes devem ser desviados para fora da área do estaleiro ou colocados fora de tensão, ou sempre que isso não seja possível, devem ser colocadas barreiras ou avisos que indiquem o limite de circulação e o afastamento das instalações.

VI - É de afirmar a responsabilidade agravada do empregador quando está demonstrado que o mesmo não observou as sobreditas regras sobre segurança e saúde no trabalho, providenciando no sentido de prevenir, impedir ou anular o risco de contacto com os condutores eléctricos, por banda dos seus trabalhadores, e que, numa relação de causa--efeito, ocorreu esse contacto do qual resultou uma descarga eléctrica que atingiu o sinistrado quando este estava a içar uma verga de ferro, com seis metros de comprimento, que lhe causou a morte imediata.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I –

1.

Terminada, sem êxito, a fase conciliatória deste processo especial emergente de acidente de trabalho, na sequência da participação autuada em Maio de 2005 no Tribunal do Trabalho de Lamego, vieram os AA., AA e BB, demandar os RR. «CC – Companhia de Seguros, S.A.» e DD, pedindo a sua condenação a pagarem-lhes:

a) - A pensão anual e vitalícia, para cada um, no montante de € 1.155,00, sendo € 798,00 da responsabilidade da Seguradora, e € 357,00 da responsabilidade da entidade patronal;

 b) - As despesas de funeral e trasladação, no montante de € 2.977,60, cujo pagamento recai sobre a Ré Seguradora;

 c) - A quantia de € 10,00 respeitante a despesas de transporte e alimentação, sendo € 6,91 da responsabilidade da Ré Seguradora e € 3,09 da responsabilidade do 2ºRéu;

 d) - Sobre as quantias referidas os juros de mora.

 Pedem ainda os AA. a condenação do 2.º Réu na pensão agravada, caso seja considerado que ele violou as regras de segurança, sendo, neste caso, a 1.ª Ré apenas subsidiariamente responsável.

                  Alegam, para o efeito, que no dia 19.5.2005 o seu filho, EE, quando trabalhava para o 2.º Réu, numa obra, sofreu um acidente, que descrevem.

                  Do mesmo resultou para o filho dos AA. lesões que foram a causa directa e necessária da sua morte.

2.

A Ré Seguradora apresentou contestação, alegando, em suma, que o acidente se ficou a dever à violação de condições de segurança por parte do 2.º Réu, e concluindo pela procedência da acção, mas apenas no que respeita à sua condenação a título subsidiário.

O 2.º Réu contestou, repudiando qualquer responsabilidade na ocorrência do acidente, nomeadamente por violação de normas de segurança que, no caso, não estava obrigado a observar.

Defendeu ainda que o acidente se ficou a dever às condutas dos donos da obra, FF e mulher, à Câmara Municipal de Armamar e à EDP, requerendo a sua intervenção nos autos, e também à negligência grosseira da infeliz vítima.

Os Autores vieram responder, assim como a Ré Seguradora.

O Mmo. Juiz 'a quo' proferiu despacho, a indeferir o pedido de intervenção provocada.

O 2.º Réu veio agravar de tal despacho.

Foi proferido Despacho Saneador, elaborada a Especificação e a Base Instrutória.

3.

Procedeu-se a julgamento e proferiu-se sentença a condenar os Réus no pagamento das pensões e demais indemnizações, mas sem qualquer agravamento para o 2.º Réu.

A Ré Seguradora, irresignada, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 14.7.2008, e ao abrigo do disposto no artigo 712º, nº4, do C. P. Civil, anulou o julgamento para reformulação da matéria constante do quesito 8.º da Base Instrutória.

Procedeu-se a novo julgamento e foi proferida sentença a condenar:

a) - O Réu DD, a pagar aos Autores uma pensão anual e vitalícia, no montante de € 3.850,00, a cada um dos Autores, a partir de 20.5.2005, acrescida dos juros de mora, a contar de 4.4.2006 e até efectivo pagamento; a quantia de € 2.997,60, a título de despesas do funeral e trasladação, acrescida de juros de mora, a contar de 4.4.2006 e até efectivo pagamento;

b) – A Ré «CC – Companhia de Seguros, S.A.», subsidiariamente, a pagar aos Autores uma pensão anual e vitalícia no montante de € 798,00, a cada, a partir de 20.5.2005, até perfazerem a idade da reforma por velhice, sendo de € 1.064,00, a partir desta idade; a quantia de € 2.997,60, a título de despesas do funeral e trasladação.

4.

                O Réu DD veio arguir a nulidade da sentença e recorrer da mesma, pedindo a sua revogação e substituição por acórdão que o absolva do pedido.

Sem sucesso, pois o Tribunal da Relação do Porto julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

5.

Inconformado, é desse Aresto que o R. vem pedir Revista, cuja motivação remata com a formulação deste quadro conclusivo:

- Foi a CMA que aprovou a alteração do primitivo projecto, dando-a como apta e eficaz à prevenção de acidentes e, depois, a licenciou, cobrando a taxa legal àquele, que, depois, entregou ao recorrente licença, alvará e projecto, para que o empreiteiro, supostamente, a executasse em segurança, sendo justamente presumível que este sempre estivesse convencido de que tudo estava em ordem e em condições materiais para trabalhar à vontade;

- Ora, nos arts. 6.º, n.º1, b), 17.º e 18.º do Decreto-Lei n.º 273/03, a responsabilidade vem expressamente cometida ao dono da obra, normativo que o Tribunal 'a quo' não ponderou ao analisar os elementos relativos à culpa, à revelia aliás do douto Acórdão deste S.T.J. 09S0619, JSTJ000, de 9.9.2009, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que “não se demonstrando a existência de qualquer regra que, visando garantir a segurança no trabalho, directamente, imponha deveres especiais a observar pela empregadora, quanto à execução, pelos trabalhadores, das tarefas de tensionamento de cabos e de introdução de cavilhas, os comportamentos negligentes daqueles que terão estado na origem do sinistro não podem ser encarados como inobservância de regras sobre segurança no trabalho imputável à entidade patronal.”

- Nem tão-pouco considerou o disposto nos arts. 4.º/1 e 7.º do mesmo Decreto-Lei, onde se prescreve que ‘o autor do projecto deve ter em conta os princípios gerais de prevenção de riscos profissionais consagrados no regime aplicável em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho…bem como as condições de implantação da edificação e condicionalismos envolventes da execução dos trabalhos’;

- Não se extraíram ainda as devidas inferências do facto provado, e que salta à vista desarmada, de os cabos eléctricos não possuírem qualquer protecção, quando se sabe, porque é de Lei, que ‘havendo condutores nus, têm que estar isolados, com porcelana ou silicone’, sendo certo que estes não estavam protegidos com nenhum desses elementos;

- Há ainda outros factos que, sendo notórios ou fazendo parte das chamadas ‘regras da vida’ deveriam ser tidos como assentes, e não foram, com violação do disposto no art. 72.º do C.P.T., mostrando-se alguns deles alegados e documentados nos Autos, deixando, pois, o douto Acórdão recorrido de os subsumir às previsões legais adequadas;

- Na verdade, o dever de dirigir, acompanhar e aconselhar, bem como a responsabilidade por tudo quanto se passe dentro da obra, quando legalizada, como esta, recai sobre aquele que, no respectivo edital, figura como seu director, in casu o engenheiro que elaborou e subscreveu o projecto e respectivo PSS, onde não previu nem aludiu a quaisquer perigos que aquela linha pudesse representar;

- Ainda, não se valorizou o facto de a EDP ter mandado instalar na obra o quadro provisório, quando a casa estava implantada e os trabalhos iam já adiantados, todos ficando a saber, ao menos, a partir dali, que a energia provinha de outra linha. Sinal mais do que seguro, para um leigo como o recorrente, de que a outra estaria desactivada;

- De igual modo, não se atendeu que a própria vítima, GG, confessou expressamente, nos respectivos articulados, aquilo que também reafirmou em Audiência, ou seja, que (citamos de cor), “o acidente não ocorreu em consequência da violação de qualquer regra de construção civil por parte do DD ou de segurança, por parte dos trabalhadores, pois estavam todos convencidos de que a linha não levava luz”;

- E também não se teve em conta o facto de a EDP não ter cumprido o Regulamento de Segurança de Linhas Eléctricas, nem o disposto nos arts. 657.º, 658.º, 659.º e 699.º, todos do Decreto-Lei n.º 740/74; de contrário, teria ela mesma fiscalizado a linha, antes do início da obra, para substituir os fios nus e durante a sua execução, certificar-se se fora ou não observado o afastamento mínimo legal, maxime quando só ela sabia bem que a linha levava corrente;

- Não se deu como provado, minimamente, que o recorrente haja infringido qualquer norma geral ou especial do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, publicado no Decreto n.º 41.821, de 11 de Agosto de 1958, pelo que se impunha, quanto mais não fosse, do ponto de vista legal e humano, a absolvição do recorrente.

- Não conhecendo nem valorando as questões ora relevadas, mostra-se, pois, o douto Acórdão recorrido incurso na prática das nulidades previstas nos arts. 668.º, n.º1, d), 660.º/2 e 646.º/4, todos do C.P.C.

 Contra-alegou a recorrida, concluindo no sentido da inteira confirmação do julgado.

                                                    __

Já neste Supremo Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu proficiente Parecer, nele propendendo para a total improcedência do recurso.

Notificado às partes, o mesmo não suscitou qualquer resposta.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

       

                                                    II –

A – O ‘thema decidendum’.

Ante as conclusões recursivas – por onde se afere e delimita, por via de regra, o objecto e âmbito da impugnação – a questão primordial a resolver consiste em determinar se o R. empregador é ou não o responsável pelas consequências do infortúnio de trabalho que vitimou EE, quando este trabalhava, sob a autoridade, direcção e fiscalização daquele, na construção de um moradia.

B – Dos Fundamentos.

B.1 – De Facto.

As Instâncias deram como provada a seguinte factualidade: 

1. No dia 19.5.2005, pelas 12 horas e 50 minutos, em Tapada, Fontelo, Armamar, quando sob a autoridade, direcção e fiscalização do Réu DD, trabalhava na construção de uma moradia, foi vítima de um acidente EE.

2. Quando este e outros trabalhadores estavam a içar uma verga de ferro, com seis metros de comprimento, do rés-do-chão, para o varandim do primeiro piso, aquela verga tocou num cabo de electricidade de alta tensão da EDP, cabo que passava por cima do referido varandim e a menos de quatro metros do ponto mais alto da obra.

3. Tendo ocorrido uma descarga eléctrica que atingiu o sinistrado e lhe causou a morte imediata.

4. Nas circunstâncias do acidente o sinistrado encontrava-se sobre a laje situada ao nível da cobertura do segundo piso e que constituía a cobertura do alpendre ou varandim.

5. Laje que, em altura, distava do solo entre seis a sete metros.

6. Os cabos eléctricos não possuíam qualquer protecção.

7. Ao tempo, o sinistrado auferia a retribuição mensal de € 550,00 em 14 vezes por ano.

8. Os Autores são pais e únicos herdeiros do sinistrado EE.

9. O sinistrado entregava mensalmente à Autora, sua mãe, todo o salário, a qual ia devolvendo ao mesmo algum dinheiro para as necessidades, ficando com o remanescente para as despesas domésticas do agregado, inclusivamente as dos Autores.

10. Os Autores não têm emprego certo, dedicando-se a pequenos trabalhos agrícolas para os próprios, sendo que apenas o Autor marido trabalha alguns dias por ano para outros agricultores, conforme a sazonalidade agrícola e o clima permite.

11.O funeral ocorreu com trasladação.

12. O Réu empregador tinha a sua responsabilidade formalmente transferida pela retribuição de € 380,00 x 14 por ano.                                                                 

Este quadro de facto não vem propriamente posto em causa, não obstante o que adiante se dirá, pelo que, não se configurando qualquer das situações previstas no n.º3 do art. 729.º do C.P.C., é com base nele que vai ser resolvida a questão central suscitada no presente recurso.                                                            

B.2 – Do direito.

Conhecendo.

O Acórdão sub specie, confirmando a sentença condenatória da 1.ª Instância, não considerou a argumentação aduzida pelo então apelante no fundamental sentido de que a matéria de facto provada permitia afastar a sua culpa, argumentos que o ora recorrente basicamente reedita.

1. Na última asserção conclusiva consignou-se que o Acórdão recorrido, não conhecendo nem valorando as questões ora relevadas, incorreu na prática das nulidades previstas nos arts. 668.º, n.º 1, d), 660.º, n.º 2 e 646.º, n.º 4, todos do C.P.C.

Reportam-se as duas primeiras previsões legais invocadas à omissão de pronúncia, enquanto vício susceptível de constituir causa de nulidade da decisão.

Nos termos do art. 668.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C. é nula a sentença quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar …ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Tal arguição não pode ser atendida, porque extemporânea.

O recorrente – como se constata pela compulsação do requerimento de fls. 661.º – não observou a disciplina constante do art. 77.º/1 do C.P.T., que manda que a mesma seja feita, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, regra aplicável aos Acórdãos da Relação ex vi dos arts. 1.º, n.º2, a) do C.P.T. e 716.º/1/726.º do C.P.C., como é reiteradamente entendido neste Supremo Tribunal.

A etiologia desta exigência legal é consabida: ditam-na razões de celeridade e economia processuais, visando permitir ao Tribunal recorrido que detecte, rápida e claramente, os vícios arguidos e proceda ao seu eventual suprimento.

 

Sempre se dirá, não obstante, que razões, fundamentos ou argumentos são apenas elementos dialécticos, distintos, por isso, de ‘questões’ proprio sensu, só destas estando o Tribunal obrigado a conhecer – art. 660.º/2 do C.P.C.

Diferentes das tipificadas nulidades são também os chamados erro na valoração das provas e/ou o erro de julgamento.

O recorrente convoca ainda, neste contexto e enquadramento, a norma do art. 646.º, n.º 4 (sempre do C.P.C.), pretendendo significar – tanto quanto nos é dado alcançar – que, mais do que uma pretensa nulidade, se imporia ter dado/dar como provados factos que, na sua tese, se não fizeram constar do elenco da materialidade seleccionada.

Sem razão.

Reza a norma em causa que se têm por não escritas as respostas do Tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo, quer por confissão das partes.

Estando excluída a hipótese de poder tratar-se de uma qualquer nulidade da sentença – inatendível, se assim fosse considerada, como sobredito – importa lembrar que a possibilidade de intervenção deste Supremo Tribunal, ao nível da decisão de facto, não vindo embora propriamente aqui suscitada, é indirecta e meramente residual, circunscrita às delimitadas situações a que alude o n.º3 do art. 729.º do C.P.C.

Aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, não podendo a decisão proferida quanto àqueles ser alterada, salvo no caso excepcional previsto no n.º2 do art. 722.º – n.º 2 do art. 729.º.

Dispõe esse n.º2 do art. 722.º que o erro não apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Integrar-se-á nos limites do poder de cognição deste Supremo Tribunal – no âmbito daquela previsão do n.º4 do art. 646.º – tão-só determinar, enquanto questão de direito, se no elenco fáctico estabelecido se contém matéria que, envolvendo juízos de direito, de valor, ou meramente conclusivos, haja de considerar-se matéria de direito[1].

Ora, de nada disso que se trata.

Como não é também o caso da pretensa violação do art. 72.º do C.P.T., cuja vocação se restringe à discussão e julgamento da matéria de facto na 1.ª Instância, e sob cuja égide o recorrente – conforme estampado nas 4.ª e 5.ª conclusões do alinhamento com que remata a sua motivação – pretenderia ver alargada a base factual, nela se incluindo v.g. factos notórios e inferências de facto…quando é sabido que, concretamente quanto a estas, é vedado ao S.T.J. extrair ilações de factos.

O que se persegue afinal, perseverantemente, é o convencimento (da ideia) de que, na cadeia das responsabilidades, o recorrente ocupa o último lugar.

E daí que – como se propugna – devessem ter sido adequadamente valoradas as identificadas circunstâncias de facto que, na tese sustentada, evidenciam negligência grosseira de terceiros.

2. Da responsabilidade do R.

Insistindo no entendimento de que o acidente ocorreu, não em consequência de violação, por sua parte, de qualquer regra de construção civil, mas sim em virtude de negligência de terceiros, designadamente da EDP e da Câmara Municipal de Armamar – como tenta demonstrar – o R./recorrente convoca em seu abono, dentre outras, o conteúdo de algumas disposições do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, a que, adiante, melhor aludiremos.

Mas – tudo já visto e ponderado – sem razão, podemos adiantá-lo.

Com efeito.

É antiga a preocupação do legislador de assegurar aos trabalhadores o direito à prestação da sua actividade em condições de higiene, segurança e saúde.

Tal reconhecimento assumiu, há muito, foros de dignidade Constitucional, com assegurado direito a assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional – art. 59.º da C.R.P., n.º1, alíneas c) e f).   

Em seu desenvolvimento, a Lei n.º 100/97[2], (NLAT), de 13 de Setembro, complementada pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, que a regulamentou – sucedendo, no plano da lei ordinária, à Lei n.º 2.127, de 3.8.1965 – é o regime jurídico infortunístico basilar onde se contém a solução para o presente litígio, lembrado que o infortúnio sujeito ocorreu em 19 de Maio de 2005.

Nos seus termos, equacionando-se a reparação dos danos emergentes de um característico acidente de trabalho, são titulares do direito à mesma os trabalhadores (por conta de outrem, em qualquer actividade) e seus familiares – arts. 1.º, n.º 1 e 2.º, n.º 1, reforçados pela presunção legal consagrada no n.º3 do art. 12.º do RLAT.

O pressuposto ôntico de um acidente laboral é, pois, a existência de uma relação de trabalho dependente ou subordinado, considerando-se trabalhadores por conta de outrem, para os efeitos da LAT, os que estejam vinculados por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado, para além dos demais nas circunstâncias aí elencadas. – assim se estatui no n.º2 do art. 2.º.

O responsável pela reparação é, necessariamente, no âmbito da LAT, o empregador, (como expressamente consta do art. 11.º do referido Decreto-Lei n.º 143/99, o seu Regulamento), a quem a mesma Lei obriga, por compreensíveis razões, a transferir a responsabilidade infortunística para entidades legalmente autorizadas a realizar este tipo de seguro – art. 37.º/1 – prevendo-se apenas que, quando seja o caso, possa discutir-se, no respectivo processo, a determinação da entidade (empregadora) responsável, como estatuído nos arts. 127.º e 129.º, n.º 1, b) e n.º3 do C.P.T.

Nos casos especiais de reparação – situação contemplada nos arts. 18.º, n.º 1 e 37.º, n.º 2 – a responsabilidade agravada naquele prevista recai, em primeira linha, sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais salvaguardadas na presente legislação.

Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar da falta de observação, por banda da entidade empregadora, das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão (agravadamente em relação às prestações normais), nos termos constantes das alíneas a) e b) do art. 18.º/1, ou seja, nos casos de morte, como o sujeito, serão iguais à retribuição que o sinistrado auferia.

Esta responsabilidade agravada do empregador funda-se, pois, numa de duas causas: o seu (ou do seu representante) comportamento culposo ou a (sua) inobservância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.

E embora a questão não se suscite, in casu, sempre se deixa referido que, no que tange à prova da culpa, é entendimento firmado neste Supremo Tribunal e Secção – conforme, inter alia, Acórdãos de 18.4.2007 e de 3.12.2008, citados no Acórdão de 8.6.2001, este tirado na Revista n.º 1530/04.0TTCBR.C1.S1 – que a mesma se tem por indispensável relativamente ao primeiro fundamento, sendo desnecessária no segundo.

Diferentemente, no que tange ao necessário nexo de causalidade entre a falta de observação das ditas regras e a produção do acidente, cuja prova impende sobre quem pretenda tirar proveito da responsabilidade agravada – arts. 342.º/1 e 487.º/1 do Cód. Civil.

Prosseguindo.

O recorrente alega que o acidente não ocorreu em consequência de violação, por sua parte, de qualquer regra de construção civil.

Com que fundamento?

Simplesmente por entender que a responsabilidade da construção da casa, a que procedia, naquele local, não é sua, mas de terceiros, o dono da obra, a EDP, a Câmara Municipal de Armamar, uns por umas razões, outros por outras.

Fixa-se, para abono da sua tese, nas considerações constantes do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, em cujos termos o regime aqui aplicável assenta numa separação de responsabilidades, sendo que a entidade executante é responsável pela execução da obra, e o planeamento da segurança no trabalho e a verificação do seu cumprimento são atribuídos a um coordenador de segurança.

Sustenta que do PSS (Plano de Segurança e Saúde), cindido em duas vertentes, só uma delas é da sua responsabilidade, a restrita ao Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, publicado no Decreto n.º 41.821, de 11 de Agosto de 1958, em vigor (sic).

Convoca também o disposto no art. 4.º/1 do citado Decreto-Lei para dizer que os princípios gerais aí referidos, em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho, se impõem observar ao autor do projecto, que não a si, que não violou nenhuma dessas normas, pois enquanto empreiteiro, apenas tem obrigação de usar e fazer usar, com segurança, as máquinas, utensílios e material logístico próprios da sua profissão.

Como facilmente se alcança, as regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho a que o empregador/empreiteiro da construção civil está adstrito – e que não foram observadas – não são apenas e concretamente as que enformam o diploma que convocou.

O Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, procedeu à revisão da regulamentação das condições de segurança e de saúde no trabalho em estaleiros temporários ou móveis, constante do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, mantendo as prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho estabelecidas pela Directiva n.º 92/57/CEE, do Conselho, de 24 de Junho.

(De acordo com o estatuído no seu art. 29.º, ‘[A]té à entrada em vigor do novo Regulamento de Segurança para os Estaleiros da Construção mantêm-se em vigor o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo Decreto n.º 41821, de 11 de Agosto de 1958, e a Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, sobre as prescrições mínimas de segurança e de saúde nos locais e postos de trabalho nos estaleiros temporários ou móveis’).

O R., aí definido como ‘empregador’ – art. 3.º, alínea g) do n.º 1 – vê as suas obrigações genericamente elencadas no art. 22.º:

1- Durante a execução da obra, os empregadores devem observar as respectivas obrigações gerais previstas no regime aplicável em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho…

Com estas disposições se compagina aliás o que se preceitua nos arts. 272.º, n.º1, n.º2 e n.º3, b) e 273.º, n.ºs 2 e n.º3, do Código do Trabalho de 2003.

Nos seus termos, o trabalhador tem direito à prestação de trabalho em condições de segurança, higiene e saúde, asseguradas pelo empregador.

O empregador é obrigado a organizar as actividades de segurança, higiene e saúde no trabalho que visem a prevenção de riscos profissionais e a promoção da saúde do trabalhador.

A execução de medidas em todas as fases da actividade da empresa, destinadas a assegurar a segurança e saúde no trabalho, assenta nos seguintes princípios de prevenção…b) eliminação dos factores de risco e de acidente.

O empregador é obrigado a assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho…devendo aplicar as medidas necessárias, proclamando o n.º5 da norma que:

O empregador deve, na empresa, estabelecimento ou serviço, observar as prescrições legais… assim como as directrizes das entidades competentes respeitantes à segurança, higiene e saúde no trabalho.

Ora, prescreve o art. 162.º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo decreto n.º 41.821, de 11 de Agosto de 1958, vigente, que ‘Durante a realização de obras de construção civil, serão tomados os cuidados necessários para evitar que os operários contactem com condutores ou aparelhos eléctricos de qualquer tensão’.

Em consonância, prescreve a Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, que os cabos eléctricos existentes devem ser desviados para fora da área do estaleiro ou colocados fora de tensão ou, sempre que isso não seja possível, devem ser colocadas barreiras ou avisos que indiquem o limite de circulação e o afastamento das instalações.

Isto posto.

Ora, vistos os factos estabelecidos, à luz do enunciado quadro legal, e não tendo o R./empregador observado, como lhe cumpria, estas regras sobre segurança e saúde no trabalho, providenciando no sentido de prevenir/impedir/anular o risco de contacto com os condutores eléctricos, por banda dos seus trabalhadores, nas sobreditas circunstâncias – contacto do qual resultou, numa relação de causa-efeito, uma descarga eléctrica que atingiu o sinistrado quando este estava a içar uma verga de ferro, com seis metros de comprimento, e lhe causou a morte imediata, conforme oportunamente factualizado – não pode o mesmo deixar de ser responsabilizado, nos termos ajuizados, soçobrando por isso, necessariamente, as razões que enformam as proposições conclusivas da motivação.                                                          

                                                                     III –

                DECISÃO

Nos termos expostos, delibera-se negar a Revista e manter a decisão impugnada.

Custas pelo recorrente.

                                                                                                                           

Lisboa, 26 de Outubro 2011

Fernandes da Silva (Relator)

Gonçalves Rocha

Sampaio Gomes

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[1]  - Cfr., v.g., Acórdãos deste S.T.J. de 7.3.2007, na Revista n.º 1824/06; de 3.3.2010, na Revista n.º 482/06.7TTPRT e de 24.2.2011, na Revista n.º 740/07.TTALM, consultáveis in www.dgsi.pt.
[2]  - A este diploma pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem.