ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
13559/09.8T2SNT-A.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/03/2011
SECÇÃO 2ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL AGRAVO
DECISÃO NEGADO PROVIMENTO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SERRA BAPTISTA

DESCRITORES ACIDENTE FERROVIÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

SUMÁRIO
1. É com base na forma como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, que se afere do tribunal materialmente competente para dela conhecer.

2. Os tribunais comuns são os competentes em razão da matéria para conhecer de acção de indemnização com base na responsabilidade civil extracontratual da Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P. decorrente de actos ilícitos praticados no exercício da sua actividade de exploração de rede ferroviária nacional.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

                AA, BB e CC vieram intentar acção, com processo ordinário, contra CP – CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, E. P., DD e REDE FERROVIÁRIA NACIONAL - REFER, E. P., pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhes quantia indemnizatória que melhor discriminam nas alíneas A) a F) da sua p. i.

                Alegando, para tanto, e em suma:

                No dia 11 de Abril de 1994, na Estação de Caminhos de Ferro de Queluz e nas demais circunstâncias de tempo, lugar e modo melhor descritas ma mesma p. i., o comboio ou composição ferroviária nº 18 356, propriedade da ré CP, conduzido pelo maquinista DD por conta, sob a direcção, fiscalização e instruções da aludida ré, atropelou FF, marido da primeira autora e pai dos restantes.

                O qual tinha viajado no comboio, que fazia a ligação Lisboa/Sintra, mediante a prévia aquisição de um bilhete de transporte, tendo-se apeado na Estação de Queluz, tendo o atropelamento ocorrido quando atravessava a linha férrea, pela passagem de nível destinada a peões.

                A passagem de nível não dispunha de qualquer dispositivo ou sinalização luminosa de aproximação e circulação de composições ferroviárias, como não dispunha de quaisquer barreiras ou aviso ou tabuleta que alertasse os peões e demais utentes que por ali transitavam de uma possível aproximação de composições ferroviárias.

                Quando o EE já se encontrava na zona dos carris ou da linha férrea, destinada à circulação de comboios, foi surpreendido pela composição ferroviária conduzida pelo réu DD, que se aproximava da Estação de Queluz a uma velocidade de cerca de 50/60 Kms/hora.

                Tendo colhido o EE, daí lhe resultando graves lesões que lhe causaram a morte.

                Causando aos autores danos patrimoniais e não patrimoniais, que peticionam.

                Constituindo atribuições da ré REFER a construção, instalação e renovação das infra-estruturas ferroviárias, nelas se incluindo as passagens de nível.

                Citados os réus, vieram contestar, alegando a REFER ser parte ilegítima, sustentando todos a prescrição do direito dos AA.

                Os RR CP e FRADE invocam, ainda, a ilegitimidade dos autores.

                Mais se defendendo, todos eles, por impugnação, contradizendo alguns dos factos alegados por estes alegados.

                Replicaram os autores, sustentando a sem razão dos réus.

                Foi proferido despacho saneador, que, alem do mais, julgou improcedentes as excepções da ilegitimidade e da prescrição pelos réus arguidas.

                Inconformada, veio a ré REFER interpor recurso do despacho saneador, na parte em que julgou improcedentes as excepções da ilegitimidade passiva e da prescrição arguidas.

                O qual foi recebido, em parte (quanto à excepção da ilegitimidade passiva) como de agravo, com subida diferida, na outra (prescrição), como de apelação, com subida a final.

                Também os réus CP e FRADE interpuseram recurso do despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a excepção da prescrição igualmente arguida, recebido como de apelação, com subida a final.

                Foram fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória.

                Apresentados os requerimentos probatórios, e proferido despacho de admissibilidade, veio a ré REFER do mesmo interpor recurso, recebido como de agravo, com subida a final.

                Em aditamento ao anterior requerimento probatório, vieram os autores requerer a junção aos autos de uma cassete vídeo, o que foi deferido.

                Inconformada, veio a ré REFER interpor recurso de agravo do respectivo despacho.

                Realizado o julgamento e decidida que foi a matéria de facto da base instrutória, foi proferida a sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou solidariamente os réus CP e REFER a pagar aos autores os montantes indemnizatórios que nela melhor constam. Tendo absolvido o réu FRADE.

                Inconformadas, vieram as rés interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde, por acórdão de 28 de Setembro de 2008, foi negado provimento ao agravo da REFER, confirmando-se o despacho saneador na parte em que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade passiva, foram julgadas improcedentes as apelações retidas, confirmando-se o despacho saneador na parte em que julgou improcedentes as excepções da prescrição, foi concedido provimento (parcial quanto ao primeiro) aos agravos da REFER, declarando-se a nulidade dos despachos de admissão dos meios de prova pré-constituídos, bem como dos subsequentes termos processuais. Não tendo sido conhecidas as apelações das rés, relativas à sentença final.

                Na 1ª instância, prosseguiram os autos com a realização da audiência de julgamento na parte não afectada pela declaração de nulidade.

                Notificada para se pronunciar sobre a admissibilidade dos meios de prova pré-constituída requeridos pelos autores, veio a REFER opor-se, tendo sido proferido despacho que os admitiu, esclarecendo-se que as fotografias juntas com a p. i., não estão abrangidas pela referida declaração de nulidade e que as cassetes seriam visionadas sem reprodução de som para evitar que possam consubstanciar depoimentos inadmissíveis.

                Inconformada, veio a REFER interpor recurso de agravo, admitido, com subida diferida.

                                Em resposta a um requerimento dos autores para visionamento em sede de audiência de julgamento, com reprodução de som, da cassete anexa ao processo de inquérito relativo ao acidente dos autos, veio a REFER deduzir a excepção da incompetência absoluta do Tribunal.

                Foi proferido despacho a julgar improcedente tal excepção.

                Inconformada, veio a ré REFER interpor recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa, que foi admitido, com subida imediata e em separado.

                                Foram mantidas as decisões recorridas.

                Por acórdão de fls 208 e ss foi negado provimento aos agravos.

                Ainda irresignada, na parte do indeferimento da excepção da incompetência absoluta do Tribunal comum, veio a REFER interpor recurso de agravo para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

                1ª - A decisão recorrida julgou improcedente a excepção da incompetência absoluta do tribunal comum em razão da matéria, deduzida pela recorrente, considerando, em síntese que a questão em causa, responsabilidade civil da recorrente decorrente da omissão de dever de condições de segurança em estação ferroviária, enquanto entidade gestora da mesma, se reconduz a uma relação jurídica de direito privado.

                2ª – Porém, como resulta dos preceitos conjugados dos arts 2 nº 2 e 4 alíneas a) e b) do DL 104/97 de 29/4, a recorrente tem por objecto a prestação do serviço público de gestão e segurança da infra-estrutura ferroviária, onde se insere a estação em causa nos autos.

                3ª - Consequentemente a omissão de condições de segurança na estação ferroviária em causa nos autos, imputada à recorrente - arts 17, 19, 20, 44 e 48 da P.I., insere-se na função administrativa de serviço público da gestão e segurança da infra-estrutura ferroviária que está atribuída à recorrente.

                4ª - Estando, assim em causa, manifestamente, um acto de gestão pública por parte da recorrente, consequentemente o litígio envolve uma situação de responsabilidade civil extracontratual da recorrente conexa com uma relação jurídica administrativa referente à prestação de um serviço público.

                5ª - Neste circunstancialismo, é da exclusiva competência dos tribunais administrativos o conhecimento do presente pleito, nos termos do art. 51, nº 1, alínea h) do E.T.A.F., na redacção do DL 129/84, aplicável à data da propositura da acção.

                6ª - Tendo, assim, a decisão recorrida violado o disposto no art. 51, n° 1, alínea h) do E.T.A.F. ao considerar a jurisdição comum como a competente para a presente acção,

                7ª - Devendo em conformidade revogar-se a mesma, declarando-se a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e absolver-se a recorrente da instância, nos termos dos arts 105,  nº 1, 493, nº 2 e 494, alínea a) do C.P.C.

                Contra-alegaram os autores, pugnando pela manutenção do decidido.

                Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                Com interesse para a decisão deste agravo, vem dado como PROVADO:

                                ­1. No dia 13 de Junho de 2002 os autores instauraram (nas Varas de Competência Mista, Cível e Criminal de Sintra) acção declarativa de condenação emergente de acidente de viação ferroviária contra o s ré u s;

                                2. Na petição inicial os autores alegaram que o acidente em causa ocorreu no dia 11 de Abril de 1994 na estação de Caminhos de Ferro de Queluz e consistiu no atropelamento do marido e pai dos autores por uma composição ferroviária quando ele atravessava a via numa passagem de nível destinada a peões e de que resultou a sua morte;

                                3. Mais alegam que tal passagem de nível não dispunha de dispositivo ou sinalização luminosa ou sonora de aproximação de comboios, nem barreiras ou sinalização gráfica que indicasse a possível aproximação de comboios;

                São, como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.

Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

As quais se resumem à de decidir sobre a competência em razão da matéria do Tribunal para conhecer da questão controvertida nos autos.

Sustentando a ré REFER[1] que, envolvendo o litígio uma situação de responsabilidade civil extra-contratual conexa com uma relação jurídica administrativa referente à prestação de um serviço público de gestão e de segurança da infra-estrutura ferroviária atribuída à agravante, está em causa um acto de gestão publica, que acarretará a competência dos tribunais administrativos para o seu conhecimento (art. 51.º, nº 1, al. h) do ETAF, na redacção do DL 129/84, de 27 de Abril, aqui vigente)[2].

Tendo o Tribunal da Relação recorrido, na fundamentação da sua decisão, entendido que, consistindo o pedido dos autores na condenação solidária dos réus a pagar-lhes indemnizações pecuniárias com base na responsabilidade civil decorrente de um determinado facto de que resultou a morte do seu familiar, tendo os autores alegado, em síntese, que o acidente ocorreu quando aquele atravessava a via férrea e foi colhido por uma composição ferroviária, ficando o sinistro a dever-se, alem do mais, a deficiências estruturais da estação respectiva, nomeadamente à inexistência de sinalização, da responsabilidade da ré REFER, não existe nos autos qualquer conflito decorrente de uma relação jurídica administrativa, não se enquadrando os comportamentos imputados à ré no conceito normativo de actos de gestão pública.

Vejamos, pois:

                A competência de um tribunal - pressuposto processual - é a medida da sua jurisdição, a parte da jurisdição que a lei lhe assinala, tratando-se de determinar, quanto á competência em razão da matéria, em que tribunal é que a acção deve ser pro­posta, se num tribunal comum, se num tribunal de jurisdição especial.

                                Ora, é sabido que é com base na forma como o autor configura a sua acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, tendo-se ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se afere da determinação do tribunal competente para dela conhecer[3].

                Escrevendo, a propósito, M. Andrade[4]:

                "A competência do tribunal constitui, portanto, um pressu­posto processual que se determina pela maneira como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir".

                Acrescentando, ainda, acerca dos elementos determinativos da competência dos tribunais: "São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc), seja quanto aos elementos subjacentes (identidade das partes).

                A competência do tribunal - ensina Redenti - afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para as pessoas dos litigantes".

                E, assim, questão prévia à verificação e determinação do tribunal competente é a da natureza da matéria que fundamenta ou estrutura a acção, a qual, no sentido de direito de acção judicial, consiste no direito de uma pessoa recorrer ao tribunal pedindo solução para um litígio (concreto) em que se ache envolvida. Na generalidade dos casos o direito de acção judicial pretende fazer valer um determinado direito substantivo. Existe, por isso, uma relação muito íntima entre o direito de acção judicial e o direito substantivo que serve de meio de tutela.

                E, como o nosso processo civil se rege – ainda que, na actualidade, de forma mitigada - pelo princípio do dispositivo, é através da matéria de facto invocada pela parte que se estrutura e fundamenta o direito de acção e se delimita a pretensão ou pedido[5].

                Sendo, pois, através daquilo que o autor alega e pede que se aferirá a correcta correspondência da forma de processo por si utilizado com os critérios a tal propósito abstractamente definidos na lei.

                Ora, na acção intentada pretendem os autores obter a condenação solidária dos réus – entre eles, naturalmente, a da ré agravante - no pagamento de quantias que discriminam, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, imputando-lhes responsabilidade civil na produção de um acidente ferroviário ocorrido numa passagem de nível da Estação de Queluz, do qual resultou a morte do infeliz EE, que antes havia viajado de comboio, mediante prévia aquisição do título de transporte devido, ali se tendo apeado, sendo que o réu FRADE era o condutor de uma composição ferroviária que aquele atropelou, fazendo-o sob a direcção, fiscalização, instruções e orientação da ré CP, dona da mesma, sucedendo, ainda, ser atribuição da REFER a construção, instalação e renovação de tal estrutura ferroviária.       

                Fundamentando-se, assim, o direito de indemnização de que os autores se arrogam, por um lado, na responsabilidade contratual emergente do contrato de transporte celebrado entre o falecido e a CP, por outro, na responsabilidade civil extra-contratual, por omissão dos cuidados por banda dos réus, para com os utentes da Estação de Queluz, maxime do infeliz sinistrado, designadamente ao nível da sinalização, ou melhor da falta dela, para quem utilizasse a dita passagem de nível.

                Prescreve, desde logo, o art. 211º, nº 1 da CRP que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

                                Determinando, ainda a propósito, o art. 66º do CPC, que são da competência dos tribunais judiciais, na ordem interna, em razão da matéria, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

                                Estando tal preceito também em natural consonância com o art. 18º, nº 1 da LOFTJ, o qual atribui aos tribunais judiciais a competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

                                Podendo, assim, resumir-se o critério geral residual para a determinação do tribunal competente em razão da matéria: todas as causas que não forem por lei atribuídas a jurisdição especial são da competência do tribunal comum.

                               E, assim, tendo em conta este critério residual - sabendo-se, também, que, segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial[6] - haverá que, como salientou Palma Carlos[7], ao intentar-se qualquer acção “… proceder-se a um breve trabalho de pesquisa: há alguma lei que estabeleça jurisdição especial para a acção que vai propor-se?

                Se tal existir, a acção deverá ser intentado ante essa jurisdição especial.

                No caso contrário, deverá a causa ser proposta perante o tribunal comum …”.

                Ensinando, também, a propósito, A. Reis[8]:

                “Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a acção em vista a jurisdição de qualquer tribunal especial.”

                                Ora, nos termos do art. 51.º, nº 1, al. h) do ETAF, na redacção aqui vigente, na esteira, aliás, do já anteriormente prescrito no art. 815.º, § 1.º, al. b) do Código Administrativo, na redacção que lhe foi dada pelo DL 48 051, de 21/11/67 - o ETAF, estabelecendo um novo regime para os tribunais administrativos, substituiu nesta matéria este diploma legal, cujas disposições respectivas se devem ter como revogadas – compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções de responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.

                Entendendo-se por actos de gestão pública os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não, eles mesmos, o exercício dos meios de coerção e, independentemente, ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas.

                E por actos de gestão privada aqueles que envolvem uma actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a quem os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado[9].

                Ou, no dizer de Vaz Serra[10], os actos de gestão pública serão os praticados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva, isto é, os regidos pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade (jus imperii).

                Ou, ainda, segundo a lição de Marcello Caetano[11], “… deve entender-se por gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e por gestão privada a actividade da Administração que decorre sob a égide do Direito Privado”, podendo dizer-se “ … que reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito”.

                Sendo, pois, pela autoridade e poder, típicos de quem exerce atribuições públicas, visando fins de satisfação de interesses públicos e colectivos, que se manifesta a gestão pública.

                Sendo, ainda, certo, e seguramente de não menor relevo, haver que considerar, para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos, o critério constitucional plasmado no art. 212º, nº 3 da Lei Fundamental, competindo, por via dele, aos tribunais dessa jurisdição especial o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das denominadas relações jurídicas administrativas – cfr., também, art. 3.º do ETAF.

                                Mas, prossigamos, por caminho por onde talvez se devesse ter começado.

                A Rede Rodoviária Nacional – REFER, E. P. foi criada pelo DL 104/97, de 29 de Abril, tendo a natureza de pessoa colectiva de direito público[12] e é regida pelo Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, com as alterações posteriores, pelo estatuto que constitui o anexo I àquele diploma legal, que dele faz parte integrante, e pela demais legislação aplicável – art.1.º, nº 1 do citado DL 104/97.

                Tendo por principal escopo a prestação do serviço público de gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional, incumbindo-lhe a gestão da capacidade, conservação e manutenção da infra-estrutura instalada e a própria construção, instalação e renovação das infra-estruturas ferroviárias – arts 2.º e 3.º do citado DL 104/97.

                Integrando-se nas infra-estruturas ferroviárias, desde que façam parte das vias principais e de serviço, alem do mais, a estrutura e plataformas da via, as passagens de nível, pátios das gares, instalações de segurança, sinalização, telecomunicações, iluminação, etc – anexo II (a que se refere a al. a) do art. 4.º do citado DL 104/97.

                Assim prescrevendo o art. 32.º dos atrás referidos Estatutos, quanto aos “tribunais competentes”[13]/[14]:

                “1. Sem prejuízo decorrente do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 3.º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que seja parte a REFER, E. P., incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos para com a respectiva empresa.

                2. São da competência dos tribunais administrativos os julgamentos dos recursos dos actos dos órgãos da REFER, E.P. que se encontrem sujeitos a um regime de direito público, bem como o julgamento das acções sobre a validade, interpretação e execução dos contratos administrativos celebrados pela empresa.”[15].

                                Havendo, assim, norma legal de competência contenciosa que poderá ser interpretada como corolário do princípio geral de que as empresas públicas actuam segundo o direito privado, isto é, que a fiscalização da actividade destas empresas não fica submetida aos tribunais administrativos porque fazem gestão privada e na exacta medida em que o fazem (cfr. art. 7.º, nº 1 do DL 558/99, de 17 de Dezembro)[16].

             E, assim, desde logo, vigorando o citado art. 32º e não havendo razões de inconstitucionalidade que imponham a sua desaplicação, tudo indica que será à luz dessa norma que o dissídio ora em presença haverá de ser solucionado. Na verdade, o preceito diz com clareza qual a ordem jurisdicional competente para julgar a acção dos autos, atribuindo competência aos tribunais judiciais para esse efeito[17].

                Podendo ler-se, por seu turno, e sempre se adiantando, ainda, no acórdão do STJ de 07.10.04,[18]:

                “Perante uma conduta atribuível a um dado órgão público há, desde logo, que saber se o mesmo exerce ou não um poder público enquanto entidade integrada na administração directa ou indirecta do Estado, ou age despido dessa qualidade, tal como se fosse uma entidade privada.

                ....um instituto público pode limitar-se a exercer as suas atribuições em pleno pé de igualdade com os particulares, portanto desprovido do poder de supremacia que em princípio lhe advém da sua qualidade de ente público administrativo. Os actos assim praticados já seriam de qualificar como de gestão privada”.

                Só interessando à justiça administrativa as relações jurídicas administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público.”[19]

                Pelo que, também por aplicação da regra e dos princípios gerais que regulam a competência dos tribunais em razão da matéria, atrás melhor explanados, e mesmo que não houvesse norma expressa sobre a competência contenciosa em relação à REFER[20], se chegaria à conclusão de serem os tribunais comuns os competentes para conhecer do presente litígio, aqui pretendendo os autores, no fundo, a apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil, vasados nos artigos 483º e sgs. do Cód. Civil.

                Devendo a pretensão formulada contra a REFER ser aferida por normas, princípios e regras de direito privado, sendo certo que, como já vimos, a lei excluiu da jurisdição administrativa as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que uma das partes seja pessoa de direito público[21].

                Assim se podendo ler no citado acórdão deste STJ de 20/10/2005:

                “Reconduz-se, pois, a questão central a decidir sobre uma relação jurídica de direito privado (actividade por sua natureza potencialmente geradora de danos), como tal regulada pelas normas e princípios do direito civil comum, sem embargo de, a montante, na fase da construção e, ulteriormente, no exercício dos seus poderes de fiscalização nela haver intervindo - na sua veste de publica autorictas - uma empresa pública (a recorrente).

                É, em suma, uma "questão de direito privado" aquela que as partes submeteram à apreciação do tribunal, ainda que uma das entidades putativamente responsáveis, isto é uma das "partes" alegadamente responsável seja uma pessoa de direito público, para utilizar a expressão contemplada na al. f) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

                Questão essa que deve ser aferida por normas, princípios e critérios próprios do direito privado, e, como tal, a respectiva apreciação encontrar-se-á, por sua própria natureza, arredada da jurisdição especial dos tribunais administrativos.

                O entendimento que vimos de expor tem, aliás, sido sufragado maioritariamente pelo Supremo, que, em situações similares, tem declarado a competência dos tribunais comuns, que não dos administrativos”.

                Concluir, assim se tem, tal como ocorreu nas instâncias, e sem necessidade de mais, serem competentes para conhecer do litígio os tribunais comuns.

                Concluindo:

1. É com base na forma como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, que se afere do tribunal materialmente competente para dela conhecer.

2. Os tribunais comuns são os competentes em razão da matéria para conhecer de acção de indemnização com base na responsabilidade civil extracontratual da Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P. decorrente de actos ilícitos praticados no exercício da sua actividade de exploração de rede ferroviária nacional.

               Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida.

                Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de Novembro de 2011

Serra Baptista (Relator)

Álvaro Rodrigues

Fernando Bento

____________________


[1] Sem se perceber bem a razão porque, não obstante a legitimidade e a oportunidade legal da respectiva arguição (art. 102., nº 1 do CPC), só decorridos cerca de 8 anos de tramitação processual no tribunal comum, com variados recursos pela ré interpostos, vem suscitar tal questão.
[2] O actual ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, que entrou em vigor, na sua primitiva redacção em 19/2/2003 (art. 9.º) não se aplica a este processo, já pendente em tal data (art. 2.º, nº 1).

[3] Acs do STJ de 6/11/08 (Pº 08B3356), de 10/4/08 (Pº 08B845), de 13/3/08 (Pº 08A391) e de 11/10/05 (Pº 05B2294), entre outros.
[4] Noções Elementares de Processo Civil, pags 88 e 89.

[5]  BoI. 477, p. 393, em anotação ao Ac. do STJ de 20/5/88.

[6] Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, p. 76.
[7] CPC Anotado, p. 230,
[8] Comentário ao CPC, vol. I, p. 201.
[9] Acs do Tribunal de Conflitos de 20/10/83, Bol. 331, p. 587 e de 5/11/81, Bol. 311, p. 202.
[10] RLJ ano 110.º, p. 315.
[11] Manual de Direito Administrativo, vol. II, p. 1222.
[12] Sob a forma de entidade pública empresarial (art. 23.º do DL 558/99, de 17 de Dezembro).
[13] Limitando-se tal norma a reproduzir o que já constava do art. 46.º do DL 260/76, de 8 de Abril, respeitante ao regime geral das empresas públicas.
[14] Acerca da manutenção em vigor deste normativo, mesmo após a vigência da lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, cfr. ac. deste STJ de 12/5/2011 (Álvaro Rodrigues), agravo nº 907/07.4TBCTX.S1.
[15] Norma esta que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão de 21 de Marco de 2007 (Vítor Gomes), considerou não violar, quer orgânica, quer materialmente, a CRP.
[16] Vide citado acórdão do TC de 21 de Março de 2007.
[17] Ac. do Tribunal de Conflitos de 6/7/2006 (Madeira dos Santos), Conflito nº 28/05.
[18] (Ferreira de Almeida) CJ S, Ano XII, Tomo III, pag. 48.
[19] Ac. da RP de 7/11/2000 (Afonso Correia), CJ Ano XXV, T. 5, p. 186.
[20] Podendo estranhar-se que a recorrente a não conheça, ou, pelo menos, que aqui de todo a ignore, dela não retirando quaisquer consequências.
[21] Neste mesmo sentido, ac. do STJ de 20/10/2005 (Araújo de Barros), Pº 05B2224, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: Os tribunais comuns (cíveis) são os competentes em razão da matéria para conhecer de acção de indemnização com fundamento na responsabilidade civil extracontratual proposta contra a empresa pública "Rede Ferroviária Nacional, EP" decorrente de factos ilícitos praticados no exercício da sua actividade de exploração da rede ferroviária nacional.