ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
4014/07.1TVLSB.L1.S1.
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO MAIORIA COM * VOT VENC

RELATOR FONSECA RAMOS

DESCRITORES ERRO MATERIAL DE CÁLCULO
RECTIFICAÇÃO
CASO JULGADO FORMAL
INDEMNIZAÇÃO
CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO

SUMÁRIO

I) - A recusa de rectificação de erro material, por extemporaneamente requerida, faz caso julgado formal no que respeita a essa pretensão, quid diferente daqueloutro que seria de ponderar se, no caso, o pedido de rectificação do erro material tivesse sido tempestivo mas o Tribunal tivesse considerado que não havia fundamento substancial e o indeferisse, mantendo a decisão.

II) Existindo um manifesto erro material (de cálculo) – por a soma das parcelas em que se decompõe o quantum indemnizatório não ser a que é indicada na decisão – sendo de afirmar o primado da verdade material sobre a verdade formal – é de admitir, em acção de consignação em depósito, que o devedor seja liberado da obrigação, consignando o valor efectivamente devido, expurgado do erro, por o caso julgado se ter formado não quanto à errada soma dos valores, mas quanto a cada uma das parcelas do total da indemnização.

III) Os normativos dos arts. 666º e 667º do Código de Processo Civil, conjugados com o art. 249º do Código Civil, não excluem que um ostensivo erro material, no caso um erro de cálculo, possa ser rectificado a todo o tempo.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



            G...-Companhia de Seguros, S.A., intentou, em 7.9.2007, pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, com distribuição à 5ª Vara, acção especial de consignação em depósito contra:

 AA, e;

BB.

Procedeu ao depósito da quantia de € 81.276,36 e requereu que fosse declarada extinta a obrigação do pagamento da quantia a que foi condenada no âmbito de decisão transitada em julgado no Processo 40/02 do Tribunal Judicial de Arraiolos.

Para tanto, alegou que, após o trânsito em julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo identificado nos autos, enviou aos réus recibo de indemnização no valor da quantia agora depositada, não aceitando os mesmos receber esse valor.

Os réus contestaram, impugnando o depósito efectuado, por considerarem ser maior a quantia devida pela autora, requerendo ainda que seja declarada a obrigação da autora proceder ao pagamento da quantia de € 105.396,63, e respectivos juros de mora.


***

            Foi proferida sentença que, ao abrigo do disposto no art. 1029°, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, determinou a notificação da autora para completar o depósito que efectuou até perfazer a quantia de € 105.396,63 e respectivos juros de mora.

***

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 29.3.2011 – fls. 205 a 220 –, julgou procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, declarando extinta a obrigação com o depósito da quantia de € 81.276,36, efectuado pela requerente nos autos.

***

Inconformados, os Réus recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1. O devedor só pode livrar-se da obrigação mediante o depósito da coisa devida — n° 1, do art. 841° do Código Civil.

 2. O instituto da consignação em depósito não serve para o devedor depositar coisa diversa.

3. A consignação em depósito não pode ser meio e expediente para o devedor voltar a discutir os termos e o alcance da sua obrigação.

4.A “coisa devida” estava definida por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, transitado há muito, e que, por isso mesmo, formou caso julgado sobre a questão.

5. A consignante, quando o podia ter feito, não suscitou qualquer reparo ao total da indemnização atribuído.

6.Qualquer rectificação de decisão judicial deve ser requerida ao respectivo julgador.

7. A consignante não requereu qualquer rectificação ao M.mo Juiz do Tribunal Judicial de Arraiolos, não requereu no Tribunal da Relação de Évora e nem no Supremo Tribunal de Justiça.

8. Foi só depois de o Supremo Tribunal de Justiça ter retirado uma parcela ao elenco indemnizatório, mantendo as restantes e o total como vinha das instâncias, que a ora consignante veio requerer a rectificação da indemnização.

9. Dirigiu esse pedido ao Tribunal de Arraiolos que, obviamente, considerou precludida essa questão, nomeadamente pelo facto de não ocorrer a previsão do n°2 do art. 667° do Código de Processo Civil.

10. A consignante, por manifesta má-fé, lançou mão, então, do instituto da consignação em depósito quando bem sabia que não podia envolver alteração da obrigação devida.

11. Demais, não se tratava de nenhum dos casos previstos nas alíneas a) e b) do citado n°1 do art. 841° do Código Civil.

12. Essa foi a razão por que a M.ma Juíza da 5ª Vara Cível de Lisboa considerou a consignação não liberatória devido a, no caso, o quantitativo em dívida se encontrar fixado por decisão com trânsito em julgado.

13. Persistindo na evidente má-fé processual, a aqui recorrida recorreu para a Relação de Lisboa, que veio sobrepor-se às decisões de outro distrito judicial, inclusive à esfera de competência da Relação de Évora.

14. Com o respeito que sempre merecem os Tribunais, o Acórdão em crise constitui uma violação clara e frontal dos arts.667°, nomeadamente o seu n°3, 668°, nº1, d) 671°, n°1, 673° e 677°, todos do Código de Processo Civil.

15. O douto Acórdão deve ser considerado nulo por violação expressa dos mencionados preceitos, bem como por violação das regras de jurisdição territorial na medida em que apreciou até a matéria de facto que vinha apurada pelas instâncias competentes.

Termos em que, revogando o douto Acórdão, deve ser mantida a douta sentença e ser

considerado não liberatória a consignação e, por isso, não extinta a obrigação com o depósito efectuado e até que seja completado com o total determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, isto é, pela quantia de € 105.396,63, a que hão-de acrescer os juros vencidos e vincendos.

A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

A) - No âmbito da acção declarativa com processo ordinário n°40/02 do Tribunal Judicial de Arraiolos, foi proferida sentença com o seguinte teor:

“AA, casada (...), e BB, solteiro, residente na Rua V..., intentaram, no Tribunal da Comarca de Arraiolos, a presente acção declarativa, na forma ordinária, contra Companhia de Seguros G..., SA, (...), pedindo a condenação desta a pagar a quantia de 271.278,12 €, acrescida de juros moratórias à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Alega, para tanto e em resumo, ter ocorrido um acidente de viação, do qual resultaram a morte de mãe CC e danos patrimoniais e não patrimoniais ressarcíveis sendo de um veículo segurado da ré a culpa pela eclosão do acidente.

Regularmente citada a ré contestou, impugnando a versão dos factos alegados pela autora.

(...)

São questões a resolver, a culpa pela eclosão do sinistro e os montantes indemnizatórios.

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1) No dia 6 de Fevereiro de 1999, cerca das 11 h e 30 m, na EN n° 2, ao Km 476,37, junto ao entroncamento formado com a EN n° 251, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias de matricula ...-BF, que seguia no sentido Pavia / Mora e era conduzido no momento do acidente por DD e o peão CC.

2) CC contava à data do acidente 55 anos de idade, nascera a 30-03-1943 e 1 em consequência do acidente veio a falecer em 18 de Fevereiro de 1999.

3) Naquele local a via tem dois sentidos de trânsito, a largura de cerca de 8,80 metros, o piso era asfaltado, em bom estado de conservação e as condições atmosféricas eram boas.

4) A estrada é delimitada em ambos os lados por bermas asfaltadas, medindo cada uma delas cerca de 2 metros, bordejando o traçado por guias contínuas.

5) O local onde ocorreu o acidente dista cerca de 50/60 metros do final de uma curva para a direita, atento o sentido de marcha Pavia / Mora / Ponte de Sôr, curva ampla, de boa visibilidade, cujo alcance útil em toda a sua largura em extensão é superior a 50 metros.

6) A CC estava imobilizada na berma.

7) O condutor do BF fez a curva por dentro.

8) E pisou e transpôs o traço delimitador da via e da berma no seu sentido de marcha.

9) O embate dá-se com a esquina do farolim direito.

10) O corpo da vítima ficou caído na faixa de rodagem.

11) O corpo da vítima ficou próximo do eixo da via.

12) Em consequência do atropelamento a CC sofreu traumatismo craniano com perda de conhecimento.

13) E sofreu fractura do terço superior da tíbia esquerda, fractura da rótula esquerda e ramo esquio púbico esquerdo.

14) CC foi socorrida no Hospital de S. João de Deus em Mora.

15) E dada a natureza e gravidade do seu estado de imediato transferida para o Hospital do Espírito Santo em Évora, donde foi transferida para o Hospital Garcia da Horta.

16) A 9 de Fevereiro foi transferida para a Clínica de S. João de Deus.

17) A causa da morte foi uma hemorragia interna causada pelas lesões traumáticas torácicas graves sofridas em consequência do acidente.

18) Desde a data do acidente até à sua morte a CC esteve consciente.

19) E durante aquele período sofreu dores.

20) E teve a percepção de que ia morrer.

21) A CC gozava de boa saúde e era alegre e cheia de energia e de enorme alegria de viver.

22) A percepção da morte provocou-lhe medo, angústia e ansiedade.

23) Os AA. Com o funeral gastaram a quantia de 1396,63 euros.

24) A CC era empregada da Portugal Telecom.

25) E auferia o vencimento mensal ilíquido de 923,35 euros, 14 vezes por ano.

26) A título de subsídio de refeição por cada dia de trabalho prestado auferia 6,91 euros.

27) Os AA. Sofreram com a perda da CC.

28) A CC dava-lhes apoio moral e financeiro.

29) O condutor do BF havia transferido para a Ré seguradora a sua responsabilidade civil pela circulação do mesmo por contrato de seguro, titulado pela apólice nº 96013590.

Estamos em sede da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, assente na responsabilidade do agente, com carácter geral (art. 483°, n° 1 do C. Civil).

E aqui compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão, ressalvada a existência de presunção legal de culpa (art. 487° n° 1 do C. Civil), presunção que não existe no caso concreto.

A culpa, no que ao caso dos autos interessa, pode resultar de uma conduta negligente por inconsideração, imprevidência, imperícia ou falta de destreza, ou de uma violação das normas específicas a que o agente deveria atender, in casu, no domínio do direito estradal.

Face aos factos dados como assentes, forçoso é concluir pela existência de culpa efectiva de facto provada nos autos, designadamente nos factos provados 6), 7) e 8), a saber:

6) — A CC estava imobilizada na berma.

7) — O condutor do BF fez a curva por dentro.

8) — E pisou e transpôs o traço delimitador da via e da berma no seu sentido de marcha.

Face aos factos dados como provados o condutor do BF é o único culpado do acidente, tendo agido com culpa efectiva.

Não existe, in casu, concorrência de culpas.

DA OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR

Quanto à obrigação de indemnizar, deverá ter-se em conta o preceituado no artigo 562° do C. Civil e contemplar-se não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter, em consequência da lesão.

Tendo em conta que a indemnização visa reparar os danos causados, deve ela reconstituir a situação que existia, se não se tivesse verificado o facto que determina a reparação (artigo 562º, do C. Civil).

E, não sendo possível a reconstituição natural, importa fixar a indemnização em dinheiro (artigo 566°, n° 1 do C. C.), atendendo-se à, actual, situação concreta do lesado e à Culpa) do lesante.

A medida dessa indemnização é a diferença entre a situação patrimonial neste momento e a que o lesado teria neste momento, se não existissem danos (artigo 566° n°2 do C. Civil).

Constituindo desvio à teoria da diferença, o art. 494° do C. Civil prevê, quando a responsabilidade se funda na mera culpa, que a indemnização pode ser fixada equitativamente em montante inferior ao dos danos causados” desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.

No caso sub-judice, as circunstâncias concretas não permitem a aplicação do citado artigo 494° do C. Civil, não só por haver culpa exclusiva do lesante mas também porque as situações económicas relativas (lesado — Companhia de Seguros) o não aconselham.

Fixando as indemnizações parcelares, em função da prova produzida:

A — Custos com funeral — 1.396,63 € [facto provado sob 23)];

B — Perda da vida — 39.000 € [facto provado sob 17)];

C — Danos não patrimoniais da vítima — 15.000 € [factos provados sob 18) a 20) e 22)];

D — Lucros cessantes — 70.000 [ (facto provado sob 2), 24), 25) e 26)];

E — Danos não patrimoniais dos autores — 5.000 € a cada um [factos provados sob 27) e 28)];

Tudo no total de 175.396.63 €.

*

Tratando-se de responsabilidade por facto ilícito a R constitui-se em mora, nos termos do artigo 805 n° 3 do C. C..

A mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (artigo 804º, n° 1, do C.C.), que nas obrigações pecuniárias – o caso dos autos – corresponde aos juros legais a contar do dia da constituição em mora — artigo 806 n°s 1 e2 do C.C.

Importa, portanto, condenar a R a pagar aos AA. os juros moratórios pedidos, desde a data da citação e até integral pagamento, juros que incidirão sobre o montante global do pedido.

Os juros moratórios serão devidos desde a data da citação e até integral pagamento, às taxas legais sucessivas em vigor, nos termos do artigo 805° nº 3 do C.Civil.

*

Como o proprietário do BF havia transferido para a ré seguradora a responsabilidade civil por danos causados a terceiros no exercício da condução daquele veículo, por via do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 066538399, a ré seguradora “Companhia de Seguros G...” é responsável pelo pagamento da indemnização.

Decisão

Face ao exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, condeno a ré seguradora G... a pagar aos Autores a quantia de 175.396,63 €. (cento e setenta e cinco mil, trezentos e noventa e seis euros e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros às taxas sucessivas legais, desde a citação e até integral pagamento.

Custas por ambas as partes na proporção do decaimento.

Registe e notifique.”

B) - No âmbito do processo referido na alínea anterior foi proferido em 01.06.2006, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que concluiu pela improcedência da apelação interposta pela aí ré e confirmou a sentença recorrida.

C) - Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2007, proferido no âmbito do processo referido na alínea A) foi decidido conceder parcialmente a revista, “revogando-se o acórdão recorrido na parte em que fixou indemnização por lucros cessantes (de € 70.000,00), nessa parte absolvendo a recorrente no pedido; na parte restante mantém-se a decisão recorrida”.

D) - O acórdão referido em C) transitou em julgado em 01.03.2007.

E) - Em 21-03-2007 foi proferido no âmbito do processo referido nas alíneas anteriores, despacho já transitado em julgado com o seguinte teor:

“Fls. 406: Do pedido de rectificação da sentença:

A fls. 406 veio a ré “G..., SA”, requerer a rectificação da sentença proferida nestes autos, por ter detectado “que a soma das quantias fixadas na douta sentença não corresponde a € 175.396,68, mas sim € 135.396,63”.

O Juiz a quo indeferiu tal requerimento, por extemporâneo, com fundamento em que o pedido de rectificação deveria ter sido efectuado pela Ré até à subida dos autos para o Tribunal da Relação de Évora e não agora (após acórdão do Supremo Tribunal de Justiça).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se, no processo de consignação em depósito, pode ser rectificada a quantia objecto da condenação (pretendida consignar) em precedente acção declarativa, ante a evidência de um erro de cálculo, em relação ao qual foi indeferido o pedido de rectificação por extemporaneidade, na acção condenatória.

Em breve resumo a controvérsia radica no seguinte:

Em acção declarativa intentada pelos ora recorrentes, invocando como causa de pedir um acidente de viação e suas consequências [danos patrimoniais e não patrimoniais – avultando o dano da morte de sua mãe] – formularam pedidos indemnizatórios por danos patrimoniais (direitos e indirectos) e danos não patrimoniais.

 A decisão da 1ª instância condenou a seguradora do veículo considerado causador do atropelamento da vítima, no pagamento da indemnização global de € 175.369,63 (na decisão estão discriminados os valores parcelares que indemnizam os vários danos), decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora.

 Todavia, em recuso de revista interposto pela Ré seguradora, este Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 15.2.2007, na parcial procedência do recurso, revogou o Acórdão recorrido na parte em que fixou a indemnização por lucros cessantes em € 70.000,00, nessa parte absolvendo a recorrente seguradora, mantendo no mais a decisão recorrida.

Ora, tendo em conta o valor condenatório que consta das decisões proferidas nas instâncias – € 175.369,63 – e o constante do Acórdão proferido no recurso de revista, o valor baixou para € 105.369,63.

Sucede, todavia, que os valores com que lidaram as instâncias e o Supremo Tribunal de Justiça não são, na realidade aritmética, aqueles € 175.369,63.

Com efeito, se atentarmos, os valores parcelares que constam da sentença e do confirmatório Acórdão da Relação, a indemnização global não atingiria aquela soma, mas antes, tendo em conta a soma das “das indemnizações parcelares” a de € 135.396, 63.

Esses valores parcelares foram assim discriminados nas instâncias:

A – Custos com o funeral – € 1.396,63 (facto provado sob 23);

B – Perda da vida – € 39.000,00 (facto provado sob 17);

C – Danos não patrimoniais da vítima – € 15.000,00 € (factos provados sob 18) a20) e 22));

D – Lucros cessantes – € 70.000,00 (facto provado sob 2), 24), 25) e 26);

E – Danos não patrimoniais dos AA. – € 5.000 € a cada um (factos provados sob 27 e 28) [porque são dois os autores, € 10.000,00].

Porque o Supremo Tribunal de Justiça revogou o Acórdão, quanto à condenação referida em D) (lucros cessantes), deveria ter indicado o valor de € 65.396,63 (valor do capital indemnizatório, juros excluídos), se tivesse reformulado o cálculo global, o que não fez.

            As partes, no processo e no recurso, estão de acordo que existe um lapso na soma dos valores, erro esse que teve origem na sentença apelada e no Acórdão da Relação.

Pese embora o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça não ter refeito o cálculo global da indemnização, limitando-se a revogar, apenas na parte referida, o Acórdão da Relação, contemplou involuntariamente o referido erro de soma.

            A ora recorrida/seguradora pediu, na 1ª instância, a rectificação desse erro da sentença, mas tal pretensão foi indeferida, por intempestiva, já que deveria ter sido exercida antes da subida do processo à Relação – nº2 do art. 667º do Código de Processo Civil.

O nº1 do normativo citado, na redacção aplicável, permite a correcção oficiosa, ou a requerimento de qualquer das partes, de erros materiais de escrita ou de cálculo ou quaisquer outras inexactidões devidas a lapso manifesto.

Todavia, o referido nº2 estatui que – “Em caso de recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de se seu direito no tocante à rectificação.”

O art. 666º do diploma processual estabelece: “1. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. 2. É lícito, porém, ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la, nos termos dos artigos seguintes. 3. […]”. 

Foi baseado no art. 667º, nº2, do Código de Processo Civil, que o juiz recusou o pedido de rectificação feito pela Ré seguradora, sendo certo que não consta que na Relação tivesse suscitado a questão do erro.

Temos assim assente, interpretando a sentença com os critérios aqui convocáveis dos arts. 236º e 238º do Código Civil – que o valor (de capital) devido aos AA. e de que a Ré é devedora, é materialmente de € 65.396,63 e não o que os recorrentes pretendem €   105.396,63, desconsiderando a existência de erro material.

Com efeito, estamos perante um erro material de cálculo e não erro de julgamento.

“Há que distinguir, cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O primeiro verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. No segundo caso, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra a lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro.

Por outras palavras: é necessário que do próprio conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam se depreende claramente que se escreveu manifestamente coisa diferente do que se queria escrever: se assim não for, a aplicação do art. 667.° é ilegal, pois importa evitar que, à sombra da mencionada disposição, o juiz se permita emendar erro de julgamento, espécie diversa do erro material.

Mais particularmente, quanto ao erro de cálculo, importa salientar que este erro há-de também evidenciar-se através a decisão ou das peças que a precederam.

 O caso de erro de cálculo pressupõe que o juiz escreveu o que quis escrever, mas devia ter escrito coisa diversa. Errou as operações do cálculo, e porque as errou chegou a resultado diferente do que chegaria se as operações estivessem certas. Aqui o erro material ainda será, na maior parte dos casos, mais palpável do que na hipótese de simples erro de escrita” – cfr. “Código de Processo Civil  Anotado”, 5.°-132 a 134, do Prof. Alberto dos Reis, e RLJ, 87.°.

O art. 249º do Código Civil estatui – “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”.

Este normativo exprime um princípio geral aplicável a actos, quer judiciais, quer extrajudiciais – cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10.10.2002, Revista n.°1950/02-2º: Sumários, 10/2002.

A recusa de rectificação do erro material por extemporaneamente requerida pela Ré, nos termos precedentemente enunciados, fez caso julgado formal – art. 672º do Código de Processo Civil – no que respeita à recusa da pretensão, quid diferente daqueloutro que seria se, no caso, o pedido de rectificação do erro material fosse aceite mas o Tribunal tivesse considerado que não havia fundamento substancial e o indeferisse porque examinando e apreciando a pretensão, tivesse concluído pela inexistência de erro e mantivesse a decisão.

No caso sub judice, o caso julgado formal formou-se apenas no que respeita à não admissibilidade do pedido de rectificação; em bom rigor, nada foi dito nem decidido no processo – recursos incluídos – sobre se havia ou não o acusado erro material e, como tal, não foi questionado o concreto valor da indemnização.

Mas será que essa circunstância deve, no confronto dos interesses que se perfilam, relevar ao ponto de ao nível deste Supremo Tribunal de Justiça se poder afirmar, sem margem para dúvidas, que há um erro de cálculo e não o rectificar, invocando o caso julgado formal?

A pergunta-questão interpela na perspectiva de, parametrizando a importância da verdade material, a realidade das coisas e a sua indiscutibilidade [diríamos científica – há um erro de cálculo –] dever ceder em homenagem a um princípio formal de cariz meramente processual que não contende com o fundo, com a substância mas com a forma, sabendo-se que o processo civil é um veículo para se alcançarem decisões de mérito, em demanda de uma Justiça que se quer efectiva, material, e não meramente formal.

A não fácil questão da verdade material versus verdade processual.

Os normativos dos arts. 666º e 667º do Código de Processo Civil, conjugados com o art. 249º do Código Civil, não excluem que um ostensivo erro material, no caso um erro de cálculo, possa ser rectificado a todo o tempo.

 Não se trata de um erro de julgamento, nem de interpretar uma decisão judicial numa perspectiva que demande um esforço interpretativo com apelo às normas da hermenêutica jurídica, mas antes de fazer coincidir num documento (decisão judicial) o que o juiz quis dizer, mas que por erro não disse, incorrendo num erro evidente ou lapso manifesto.

“ Lapso manifesto é, em princípio, aquele que de imediato resulta do próprio teor da decisão ou, no caso de elementos ou documentos inconsiderados, que de modo flagrante e sem necessidade de elaboradas demonstrações, logo revelem que só por si a decisão teria de ser diferente da que foi proferida” Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.3.2006 – Proc. 05B3878 – in www.dgsi.pt

 

No ensino do Professor Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, 1969, II, 313:

 “Erro material ou lapso é a inexactidão ou omissão verificada em circunstâncias tais que é patente, através dos outros elementos da sentença ou até do processo, a discrepância com os dados verdadeiros e se pode presumir por isso uma divergência entre a vontade real do juiz e o que ficou escrito”.

Superando a perspectiva formalista, dever-se-á considerar que o caso julgado material se formou relativamente ao que foi definitivamente sentenciado, ou seja, que aos AA. cabiam os montantes indicados na decisão, relativamente a cada um dos danos para os quais foi peticionada e concedida indemnização; daí que não é pelo facto de na decisão constar um valor que não exprime correctamente a soma das parcelas – não por contradição entre os fundamentos e a decisão[1] mas por mero erro de cálculo – que se deve recusar a rectificação do erro material, sob pena de em situação de manifesta injustiça se acolher o erro e não a verdade afirmada nas decisões das instâncias e por este Supremo Tribunal de Justiça, o que nem sequer deveria ter sido questionado pelos credores, se adoptado um padrão de conduta conforme à boa-fé.

O facto de, objectivamente, se ter agora considerado, no contexto da acção de consignação em depósito, que existiu um erro e que com base nele não podem os RR. receber o quantum por que pugnam, não constitui impedimento ao que vimos afirmando.

Com efeito, na acção de consignação em depósito – arts. 1024º do Código Civil – em adjectivação do estatuído no art. 841º do Código Civil – há uma ligação incindível ao processo e à obrigação em que a requerente da consignação foi condenada.

No caso, consideramos que a “obrigação em que foi condenada” a recorrida é a obrigação realmente por si devida, em relação ao qual não se formou caso julgado que agora seja infringido.

 Foi por o montante efectivamente devido, conforme o decreto judicial, não ter sido aceite pelo credor, que o legitimou a lançar mão da acção de consignação em depósito, meio idóneo, ante a divergência existente entre as partes para o Tribunal considerar se a prestação liberatória é a que foi objecto de consignação, ou aqueloutra superior que os recorridos pretendem, prevalecendo-se de um manifesto erro de cálculo, que, sendo rectificável a todo o tempo, o pode ser na acção de onde o recurso promana.

 Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelos AA./recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça,  23 de Novembro de 2011

Fonseca Ramos (Relator )
João Camilo (vencido conforme declaração que junto)*
Salazar Casanova.

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[1] “ São figuras distintas a nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão (vício que traduz o vício real no raciocínio do julgador, consistente em a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente) — prevista na al. c) do n.°1 do art. 668.° do Código de Processo Civil — e o erro de julgamento, traduzido na incorrecta interpretação da lei ou indevida aplicação dela aos factos provados. Só para as situações-limite de erro manifesto, previstas no n.°2 do art. 669.° do Código de Processo Civil, a lei consente que o Tribunal que proferiu a decisão a possa reformar” – Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10.1.2004, in www.dgsi.pt.




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Revista nº 4014/07.1TVLSB.L1.S1.
Voto de vencido do Relator.
Tal como consta do projecto de acórdão que elaborei, como Relator, concederia a revista pedida, com os argumentos que ali foram expostos e que se transcrevem no essencial, a seguir:
“Está a aqui em causa, essencialmente, uma questão em que se tem de atender aos fins prosseguidos pelo direito: justiça do caso concreto, por um lado, e a segurança e certeza do direito, por outro.
A primeira instância entendeu fazer prevalecer estas últimas segurança e certeza jurídicas, tal como está subjacente ao instituto do caso julgado aqui em causa.
Já o douto acórdão recorrido fez prevalecer a justiça do caso concreto, desconsiderando o instituto do caso julgado.
Assim, e antes de mais, há que precisar que tendo o despacho que indeferiu a rectificação do erro material julgado o mesmo requerimento extemporâneo, nos termos do art. 667º, nº 2 – do Cód. de Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições legais a citar sem indicação de origem - versou unicamente a relação processual, pelo que nos termos do art. 672º, tem natureza de caso julgado formal e, por isso, apenas é obrigatório no próprio processo.
Porém, tendo reflexo sobre a relação material ali em causa – fixação da indemnização em causa – revestirá aquela condenação não rectificada de força de caso julgado material até que seja, eventualmente, alterada nos termos muito restritos que a lei permite.
Por outro lado, há também um principio processual da auto-responsabilidade das partes – aflorado em diversas disposições legais, como os arts. 264º, 265º, 664º, 667º, nº 1 e 684º, nº 3, entre outros -, que impunha à recorrida, perante a sentença de 1ª instância proferida no Tribunal de Arraiolos, pedir a rectificação do erro, nos termos do art. 667º, o que não fez.
Deduziu, porém, tal pedido no mesmo Tribunal de Arraiolos após o trânsito em julgado da sentença onde tal lapso havia sido cometido, tendo esse requerimento sido indeferido, e abstendo-se a recorrida de o impugnar, pelo que ficou o erro material insusceptível de rectificação, por funcionamento do instituto do caso julgado, nos termos do nº 2 do art. 667º.
É que sendo o tribunal que cometeu o erro o competente para corrigir tal erro e havendo sido tal rectificação indeferida por decisão transitada formalmente em julgado, ficou a recorrida impossibilitada de alterar a decisão em causa.
Permitir agora na acção de consignação em depósito a correcção daquele erro seria subverter o referido instituto do caso julgado, tornando irrelevante o conteúdo do aludido princípio processual da auto-responsabilidade das partes e permitindo um enfraquecimento do valor das decisões transitadas em julgado, enfraquecimento esse que o legislador quis evitar em obediência às necessidade de certeza e de segurança jurídicas que estão subjacentes ao instituto do caso julgado.
E nem se diga que como fez o acórdão recorrido que está aqui apenas em causa a simples interpretação do acórdão do STJ que pôs termo à acção onde a obrigação em causa fora reconhecida.
Tal como decidiu, o acórdão deste STJ de 3-02-2011, no processo nº 190-A/1999.E.S1. do ITIJ, se é certo que é “possível que em qualquer processo, as decisões ulteriormente proferidas sobre a matéria litigiosa procedam a uma interpretação – ou definição do exacto sentido – de decisões definitivas, por transitadas em julgado, anteriormente proferidas pelo tribunal, não pode obviamente, a coberto de tal operação qualificada como de mera interpretação, de apuramento do exacto sentido normativo ínsito na decisão transitada, acabar por se lhe atribuir ou imputar sentido decisório incompatível com o sentido objectivo da sentença interpretada”.
E acrescenta tal acórdão:
“ Os despachos judiciais, como as sentenças, constituem actos jurídicos a que se aplicam, por analogia, as normas que regem os negócios jurídicos – art 295º C. Civil.
O afirmado vale então por dizer que a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente – arts. 236º-1 e 238º-1 C. Civil.
Como tem vindo a ser salientado, não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito a essa situação ( ac. STJ, de 5/11/98, proc. 98B712, ITIJ, citando Rosenberg e Schwab )”.
Ora a sentença condenatória de 1ª instância proferida pelo Tribunal de Arraiolos é clara no sentido da condenação da ali ré e aqui autora no pagamento aos aqui réus e ali autores da importância de € 175 396,63 e respectivos juros – cfr. fls. 9 dos autos.
O acórdão que pôs termo a essa acção, julgando a revista interposta da decisão da Relação que confirmara aquela decisão – cfr. fls. 27 dos autos – é igualmente claro no sentido de que da condenação global efectuada nas instâncias no pagamento de € 175 396,63, se absolveu a ré do montante de € 70 000,00 referentes aos lucros cessantes que as instâncias haviam fixado e acrescentou “ na parte restante, mantém-se a decisão recorrida”.
É certo que aquele montante de € 175 396,63 provinha de uma adição de montantes parcelares cujo produto não coincidia com aquele número ali expresso, irregularidade essa cuja reparação tem as regras fixadas no art. 667º e essa rectificação fora recusada por decisão transitada pelo tribunal competente para proceder a tal rectificação.
Foi este o raciocínio que esteve subjacente à decisão da 1ª instância, mas também poderemos enquadrar juridicamente a presente factualidade de forma diversa, mas que nos leva a idêntica decisão.
Com efeito, a referida sentença de 1ª instância apontou diversos montantes de indemnização pelos danos peticionados na petição inicial como devidos aos autores: custos com o funeral da vítima; perda da vida daquela; danos não patrimoniais sofridos pela mesma antes de morrer; danos não patrimoniais sofridos pelos autores com a morte da vítima e, ainda, lucros cessantes da mesma.
A soma destes montantes referidos nas premissas da sentença perfazia o valor de € 135 396,63, mas inexplicavelmente, a condenação referiu o montante de € 175 396,63.
Está aqui em causa uma oposição entre os fundamentos e a decisão prevista na al. c) do nº 1 do art. 668º.
Com efeito, segundo ensina J. Rodrigues Bastos, in Notas ao C.P.C., vol. III, pág. 194, da 3ª ed., “ A oposição referida na al. c) do nº 1 é a que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir.”
E tal como refere J. A. dos Reis, in CPC, anotado, vol. V, pág. 141, esta nulidade verifica-se quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”
E é esta a situação que se verifica no caso em apreço, pois pelas premissas daquela sentença – os apontados montantes parcelares dos danos a ressarcir -, a decisão logicamente esperada seria a condenação no montante de € 135 396,63, mas em contradição com isso, a condenação foi no pagamento da importância de € 175 396,63.
Assim, aquela sentença padece da apontada nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 668º.
Nos termos do nº 3, deste artigo, essa nulidade tinha de ser arguida no recurso que foi interposto daquela sentença, podendo e devendo o tribunal de 1ª instância perante tal arguição, apreciar tal nulidade, nos termos do nº 4 do mesmo art. 668º.
Não tendo sido então arguida tal nulidade sanou-se a mesma e, por isso, não deve ser nesta acção conhecida, pelo que se deve manter a condenação da aqui autora no pagamento da importância de € 175 396,63, abatida do montante de € 70 000,00 por força da procedência parcial decidida no acórdão do STJ que julgou a revista ali interposta.
Deve, assim, também, por este prisma que nos parece mais de acordo com a lei processual, proceder o fundamento do recurso”.
23-11-2011.
João Moreira Camilo