ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
869/05.2TBAMT-C.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/06/2011
SECÇÃO 2ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SERRA BAPTISTA

DESCRITORES EXECUÇÃO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
RESPONSABILIDADE DO EXEQUENTE

SUMÁRIO
1. A execução do património do devedor, enquanto realização judicial da função de garantia geral das obrigações, tem como condição o incumprimento da obrigação. Traduzindo-se o mesmo naquilo que a lei implicitamente refere como exigibilidade.

2. A prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou quando o vencimento depende de simples interpelação do devedor.

    Não o sendo, quando não tendo ocorrido o vencimento, este não está dependente de mera interpelação. É o caso da constituição da obrigação estar sujeita a condição suspensiva que ainda se não verificou.

3. Em sede de interpretação dos negócios jurídicos constitui matéria de facto, da  exclusiva competência das instâncias, o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, sendo matéria de direito a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, isto é, a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts 236.º, nº 1 e 238.º, nº 1 do CC, competindo ao Supremo apreciar se a Relação, na actividade interpretativa observou esses critérios, se se conteve ou não entre os limites dos mesmos.

4.É cumulável o pedido de indemnização por responsabilidade do exequente (art. 819.º do CC) com a oposição à execução deduzida pelo executado não previamente citado.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

                AA – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, S. A. veio intentar acção executiva contra BB e mulher CC, DD e EE e mulher FF os quais deduziram oposição, pedindo a consequente extinção da execução e o levantamento da penhora, a condenação da exequente a pagar-lhes a quantia de € 100.000,00 ou aquela que se julgar adequada para os indemnizar pelos danos que lhes causou, bem como em multa por não ter agido com a diligência normal e em multa e indemnização por ter litigado de má fé.

                Alegando, para tanto, e em suma:

                O título dado à execução é inexequível, não sendo a obrigação exigível, porque a exequente omitiu o que consta das cláusulas 4ª a 7ª do acordo, inexistindo incumprimento por parte dos executados.

                A penhora efectuada é ilegal, só tendo sido possível com a deturpação dos factos pela exequente e pela negligência do agente de execução.

                Com a instauração da execução sofreram danos, patrimoniais e não patrimoniais, que computam em € 100 000,00.

                Contestou a exequente, sustentando que a devolução do dinheiro não ficou sujeita a qualquer acontecimento, notificação ou condição, pelo que a oposição não tem qualquer fundamento.

                Foi proferido despacho saneador-sentença, que julgou a oposição improcedente.

                Inconformados, vieram os opoentes interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, onde, por acórdão aí proferido, foi a oposição julgada procedente, tendo sido declarada extinta a execução e ordenado o levantamento da penhora. Mais se tendo ordenado o prosseguimento do processo para instrução e julgamento das questões referentes aos pedidos de indemnização e de condenação em multa.

                Agora irresignada, veio a exequente pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado, na sua alegação, as seguintes conclusões:

                1ª - Foram considerados provados em Primeira Instância os factos respeitantes aos termos do acordo entre Recorrente e Recorridos, então Ré e Autores, homologado por sentença transitada em julgado no dia 14/01/2009 e que aqui, por economia de meios, se dão por integralmente reproduzidos.

                2ª - A cláusula 1ª daquele acordo estabelece, inequívoca e indubitavelmente, sem qualquer dependência de condição, material ou formal, a obrigação dos devedores procederem ao pagamento da quantia entregue a título de sinal.

                3ª - A única especificação feita a propósito dessa obrigação é o estabelecimento, na cláusula 2ª, de um prazo e de um local, e, evidentemente, da respectiva quitação.

                4ª - As cláusulas 3ª e 4ª estabelecem faculdades para ambas as partes, a exercer até 31/12/2009: - a Recorrente poderia, se assim o entendesse, adquirir as quotas dos Recorridos (3/6), cada uma pelo preço aí fixado, descontando-se no total a quantia já na posse dos Recorridos a título de sinal (cláusula 3ª) e - os Recorridos poderiam, caso cumprissem a obrigação prevista na cláusula lª, adquirir à Recorrente ou indicar-lhe terceiro a quem esta deveria vender o sexto (1/6) que aquela adquirira ao irmão dos Recorridos (cláusula 4ª).

                5ª - A cláusula 5ª exige uma comunicação à outra parte com a antecedência de 15 dias, através de carta com aviso de recepção, apenas para o exercício da faculdade das cláusulas 3ª e 4ª do dito acordo.

                6ª - Não se vislumbra no texto do acordo qualquer obrigação para a Recorrente de efectuar qualquer comunicação aos Recorridos para cumprir a obrigação prevista na cláusula lª.

                7ª - O equívoco da decisão recorrida está no facto de ter lido a cláusula lª apenas à luz da primeira parte da cláusula 5ª, quando a verdade é que é a cláusula 5ª que tem que ser lida à luz das cláusulas que a precedem.

                8ª - Ao decidir conforme decidiu, o Digníssimo Tribunal a quo fez uma errada aplicação da norma prevista no nº 1 do artigo 236.º do Código Civil e violou a norma prevista no nº 1 do artigo 238.º do mesmo Código.

                9ª - O declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição de qualquer das partes na transacção em causa nos autos, não pode deixar de concluir no sentido que temos vindo a defender.

                10ª- Razão pela qual se impõe a revogação da decisão recorrida e a reconfirmação da sentença do Tribunal da Primeira Instância.

                11ª- Decidiu ainda o Digníssimo Tribunal a quo não existir qualquer impedimento processual à dedução do pedido de indemnização pelos Recorridos/Executados na oposição à execução, porque, como a lei não diz se esse direito deve ser exercido na própria execução ou em acção autónoma, pode ser utilizado qualquer um desses meios.

                12ª- O pedido de indemnização é um elemento completamente alheio ao espírito da acção executiva que aqui se quer à força enxertar, porque não lhe respeita os fins nem os limites nem as espécies, violando assim as normas dos nºs 1 e 2 do artigo 45.º do CPC.

                13ª- A sua dedução não representa qualquer economia de meios ou celeridade processual.

                14ª- O valor reclamado - de resto, sem qualquer fundamento que o sustente - pelos Recorridos, a ser utilizada a via normal de uma acção declarativa autónoma, logo imporia a utilização de uma acção de processo (comum) ordinário e não de processo sumário, como é o caso na oposição à execução - cfr. art. 462.° do CPC.

                15ª- A utilização do processo sumário poderia, em teoria, trazer alguma economia de meios e ce1eridade processual, mas tal seria sem dúvida à custa dos direitos constitucionalmente consagrados da Recorrente (cfr. artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa), o que esta desde já invoca, para todos os devidos e legais efeitos, e que para confirmação apenas exige a comparação entre alguns normativos do processo ordinário e do processo sumário (artigo 783.° CPC vs. n.º 1 do artigo 486.° do CPC, artigo 787.º CPC vs. artigos 508.º·Ae 510.° e 511.º CPC, artigo 789.° CPC vs. artigos 632.° e 633.° CPC, artigos 646.° CPC e ss. vs. artigo 790.° CPC).

                16ª- A decisão vinda de colocar em crise viola as normas previstas nos números 1 e 2 do artigo 45.°, no artigo 265.º·A e nos artigos 813.° e 814.°, todos do CPC.

                Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão.

                Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


                Vem dado como PROVADO:

                Em 27 de Novembro de 2008, no âmbito da audiência de julgamento no processo apenso de acção ordinária n.º00000 (deve ler-se 05, já que de lapso se trata), os oponentes BB e mulher CC, DD e FF e marido EE, aí na qualidade de autores e a exequente "AA- Sociedade Imobiliária, S. A.", aí na qualidade de ré, acordaram nas seguintes cláusulas, acordo este, homologado por sentença transitada em julgado:

                1- Os autores obrigam-se a restituir à ré a quantia de € 37.500 (trinta e sete mil e quinhentos euros) a título de restituição singela do sinal que receberam, aquando da assinatura do contrato-promessa em causa nos autos.

                2- Tal pagamento será efectuado até ao dia 31/12/2009 no escritório do Ilustre Mandatário da ré, contra-recibo.

                3- No mesmo prazo (até 31/1212009) pode a ré adquirir as quotas dos autores (3/6), cada uma, pelo preço igual àquele que pagou ao irmão dos autores, GG, na aquisição da sua quota, por escritura de 05/09/2001, ou seja, € 70.659,71 (setenta mil seiscentos e cinquenta e nove euros e setenta e um cêntimos). No pagamento do preço será descontada a quantia de € 37.500 (trinta e sete mil e quinhentos euros) entregue a título de sinal e já na posse dos autores.

                4- Ainda no mesmo prazo (31/12/2009) a ré, caso receba a quantia referida na cláusula 1ª, obriga-se a vender aos autores, ou a quem estes indicarem, o sexto (1/6) que adquiriu a GG , pelo preço da aquisição de € 70.659,71.

                5- O exercício das faculdades que emanam das cláusulas 1, 2, 3 e 4 será comunicado à outra parte com a antecedência de 15 dias, através de carta com aviso de recepção; terá prevalência a comunicação que primeiramente for efectuada.

                6- No caso de, até 31/1212009, nenhuma das cláusulas anteriores estiver cumprida, fica desde já acordado entre as partes que, qualquer uma delas e, usando o direito legalmente permitido, poderá requerer judicialmente a não continuação na indivisão do imóvel.

                7- Na eventualidade da cláusula anterior e, independentemente do valor da adjudicação, da identidade do adjudicatário e do recebimento do valor da quota a que tem direito a ré, os autores obrigam-se solidariamente a restituir à ré, aquando do recebimento do preço da adjudicação, a quantia total de € 37.5000 (trinta e sete mil e quinhentos euros) referida na cláusula 1ª. Esta obrigação mantém-se ainda que o pedido de não continuação na indivisão do imóvel ou pedido de divisão de coisa comum seja requerido por qualquer dos outros comproprietários não intervenientes nestes autos.

                A sentença homologatória, acabada de referir, transitou em julgado no dia 14/1/2009.

                 O requerimento executivo deu entrada em Tribunal em 15/1/2010.

                A penhora foi realizada em 16/2/2010, sem prévia citação dos executados.

Como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.

Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

As quais assim se podem resumir:

a) a da exigibilidade da obrigação exequenda;

                b) a da não cumulação do pedido de indemnização por responsabilidade do exequente com a oposição à execução.

                Comecemos pela primeira: a da exigibilidade da obrigação exequenda.

                Sustentando a recorrente que, ao invés do decidido no acórdão recorrido, a obrigação exequenda é exigível, estabelecendo a cláusula 1ª da transacção judicialmente homologada, dada á execução como título executivo, sem qualquer dependência de condição, material ou formal, a obrigação dos devedores, ora recorridos, procederem ao pagamento da quantia entregue a título de sinal.

                Não se vislumbrando, no texto do acordo, qualquer obrigação para a recorrente/exequente de efectuar qualquer comunicação aos recorridos para cumprir a obrigação prevista na cláusula 1ª .

                Fazendo o tribunal recorrido uma errada aplicação da norma prevista no nº 1 do art. 236.º do CC, tendo violado a norma prevista no nº 1 do art. 238.º do mesmo diploma legal.

                Sendo certo que a Relação, no seu recorrido acórdão, aceitando a exequibilidade do título dado à execução (sentença homologatória de transacção, transitada em julgado - arts 46.º, nº 1 e 47.º, nº 1 do CPC), entendeu, por seu turno, em face do mesmo título executivo, ser inexigível a obrigação exequenda.

                Pois, interpretando a transacção judicial em apreço, mais concretamente as suas cláusulas, umas com outras articuladas, com socorro do preceituado nos arts 236.º e 238.º do CC, concluiu que a obrigação de restituição da quantia exequenda de € 37 500 por parte dos executados estava sujeita à verificação da condição estipulada na última cláusula, seja do recebimento do preço de adjudicação aquando da divisão do imóvel, objecto do contrato-promessa em causa na acção declarativa.

                Vejamos, então.

Estamos, in casu, perante a oposição a uma acção executiva, fundada, ao abrigo dos mencionados arts 46.º, nº 1 e 47.º, nº 1, numa sentença judicial, transitada em julgado, que homologou uma transacção celebrada entre os então autores, aqui executados e opoentes e a aí ré, ora exequente/recorrente.

                Ora, toda a execução, como é bem sabido, tem por base um título executivo[1], pelo qual se determina o seu fim e limites – art. 45º, nº 1 do CPC.        

                De facto, para que possa ser pedida a realização coactiva de uma prestação, o dever de prestar respectivo tem de, desde logo, constar de um título, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva[2].

                Não bastando alegar a existência do título, sendo antes necessário exibi-lo, sendo sempre indispensável que ele tenha força executiva.

                                Cumprindo o título executivo uma função constitutiva, na medida em que atribui exequibilidade a uma pretensão, possibilitando que a correspondente prestação seja realizada através das medidas coactivas impostas ao executado pelo Tribunal[3].

                A exequibilidade extrínseca da pretensão é, pois, conferida pela sua incorporação num título executivo, num documento que formaliza por via legal “a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida”.

                O título executivo é, assim, pressuposto ou condição geral de qualquer execução, sua condição necessária e suficiente. Não havendo acção executiva sem título.

                Os títulos executivos são os indicados na lei como tal (art. 46º do CPC), estando a sua enumeração legal submetida a uma regra de tipicidade – nullus titulus sine lege – sem possibilidade de quaisquer excepções criadas ex voluntate, estando, assim, vedado às partes não só a atribuição de força executiva a um documento a que a lei não reconheça eficácia de título executivo, como ainda a recusa de um título legalmente qualificado como executivo[4].

                Mas, a exequibilidade do título não é aqui posta em causa, razão porque se torna desnecessário mais nos alongarmos sobre esta exigida característica.

                Contudo, a execução do património do devedor, enquanto realização judicial da função de garantia geral das obrigações nos termos do art. 601.º do CC, tem como condição o incumprimento da obrigação. Traduzindo-se o mesmo naquilo que a lei implicitamente refere como exigibilidade – cfr. arts 802.º e 814.º, al. e) do CPC – e que em rigor condiciona a existência de interesse processual na obtenção de tutela judicial pelo meio adequado, que é a acção executiva.

                Podendo a existência de interesse processual na execução da obrigação resultar:

                a) do próprio título executivo, de modo imediato, quando a obrigação esteja sujeita a prazo;

                b) de um facto externo ao título executivo: a verificação da condição suspensiva, a realização da prestação sinalagmática, a interpelação para o cumprimento de uma obrigação pura.

                Incumbindo, então, ao credor, nesta hipótese, ao instaurar a execução, fazer a demonstração da ocorrência do facto, nos termos do regime previsto no art. 804.º do CPC (reforma de 2003)[5].

                A prestação tem de ser, pois, exigível.

                Sendo-o, repetindo-se e mais esclarecendo, quando a obrigação se encontra vencida ou quando o vencimento depende de simples interpelação do devedor.

                Não o sendo, quando não tendo ocorrido o vencimento, este não está dependente de mera interpelação.

                Sendo o caso, alem de outros, quando a constituição da obrigação foi sujeita a condição suspensiva, que ainda se não verificou (arts 270.º do CC e 804.º, nº 1 do CPC)[6] .

                Ora, tendo em conta o título executivo apresentado, dúvidas não restam, como bem diz a Relação, que tudo passará, para a resolução da questão em apreço, da interpretação das cláusulas inseridas na transacção, homologada por sentença transitada em julgado.

                Cláusulas essas que constam da matéria de facto dada como assente.

                Como é bem sabido, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, “… cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e de aplicação de normas jurídicas cometidos pela Relação ou pelo Tribunal de 1ª instância …”[7], não conhece em regra de questões de facto, cuja fixação cabe, em princípio, às instâncias.

                Não podendo, assim, o Supremo sindicar a decisão de facto proferida pela Relação, a não ser no caso excepcional do art. 722.º, nº 2 do CPC, isto é, se houver ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art. 729.º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal).

                Casos estes que aqui se não verificam[8].

                Confinando-se, assim, a competência do Supremo à matéria de direito não podendo ocupar-se de matéria de facto (art. 26.º da LOFTJ). Tal correspondendo, de algum modo, à tradição francesa que considera que o Tribunal Superior não constitui um 3.º grau de jurisdição, competindo-lhe apenas a fiscalização do respeito da lei[9].

                Não cabendo no âmbito do recurso de revista o apuramento ou o controlo do sentido com que hão-de valer as declarações negociais, enquanto se procura determinar a vontade real das partes que as emitiram.

                Apenas competindo ao Supremo controlar o respeito dos “critérios legais de interpretação”[10].

                                Na verdade, em sede de interpretação de negócios jurídicos[11], crendo-se ser este o entendimento uniformemente assumido por este Supremo, constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, sendo matéria de direito a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, isto é, a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts 236.º, nº 1 e 238.º, nº 1 do CC, competindo ao Supremo apreciar se a Relação, na actividade interpretativa, observou esses critérios legais, se se conteve ou não dentro dos limites desses critérios.

                E daí que o apuramento da vontade real do declarante e o conhecimento dessa vontade pelo declaratário constitua matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, que, por isso, o Supremo não pode reapreciar; envolvendo já matéria de direito a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts. 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1 do CC[12].

                No caso em análise, a Relação, tendo presentes as regras legais de interpretação que melhor expôs, considerando as cláusulas contratuais no seu conjunto, procedendo a uma apreciação global e atendendo, sobretudo, à letra das cláusulas 6 e 7, entendeu não haver dúvidas que as partes quiseram através delas, mediante a utilização de expressões “no caso de …” e “na eventualidade da cláusula anterior .,.”, ali mencionadas na parte inicial de cada uma delas, submeter a obrigação de restituição da quantia de € 37 500,00 por parte dos autores/executados (ora opoentes/recorridos), à verificação da condição estipulada na última cláusula, qual seja a do recebimento do preço da adjudicação aquando da divisão do imóvel, objecto do contrato-promessa em causa na acção declarativa. Reportando-se a cláusula 7ª à mesma quantia referida na cláusula 1ª, prevenindo o seu campo de aplicação para a eventualidade prevista na cláusula anterior, isto é, para o caso de ser judicialmente requerida a divisão do imóvel. Só podendo ser requerida a divisão, conforme a cláusula 6ª, no caso de nenhuma das cláusulas anteriores ter sido cumprida até 31/12/2009. Sendo certo que até essa data nenhuma das cláusulas 1ª a 5ª foi cumprida. Desde logo, porque a ré /exequente não comunicou aos autores/executados, no prazo e termos previstos na cláusula 5ª, por qual das faculdades que lhe foram conferidas pelas cláusulas anteriores optava, isto é, se pretendia adquirir as quotas dos autores ou se queria antes a restituição das quantias por estes devida. Estando, assim, os executados impossibilitados de cumprir a obrigação a que vincularam pelas cláusulas 1ª e 2ª. Sendo, por isso, concluiu em remate final, a obrigação inexigível, pela não verificação da respectiva condição.

                Podemos assim concluir que não estamos ali no domínio da indagação da vontade real das partes e, portanto, no quadro de uma averiguação fáctica da Relação, mas sim perante a procura do sentido juridicamente relevante da declaração, operada por apelo a critérios normativos, e, por isso, perante matéria de direito, sindicável por este Supremo Tribunal.

                Tendo, porém, a Relação bem abordado a questão.

                                Na verdade, o n.º 1 do art. 236º do CC, que consagra, pode assim dizer-se, a chamada teoria da impressão do destinatário, dispõe que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante. A prevalência deste sentido,  que    corresponde à impressão do destinatário, sofre, porém, uma limitação, estabelecida na parte final do preceito: é preciso, para que ele possa relevar, que o declarante pudesse razoavelmente contar com ele, isto é, que seja possível imputar tal sentido ao declarante.

                Na busca do sentido da declaração, nos termos do n.º 1 do art. 236º, são atendíveis todos os elementos e circunstâncias que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, colocado na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta: os termos do negócio e os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, etc.

                Ora, a interpretação feita pela Relação não se desviou do critério normativo definido no n.º 1 do citado art. 236º, fixando à declaração um sentido objectivo, o sentido que lhe atribuiria um declaratário razoável colocado na posição concreta do declaratário efectivo.

                Pelo que aqui se aceita mesma, sem censura.

                Procedendo, por tudo isto, crendo-se que sem necessidade de mais, a oposição deduzida, por falta de exigibilidade da obrigação exequenda.

Passemos à segunda questão: a da não cumulação do pedido de indemnização por responsabilidade do exequente com a oposição à execução.

Também aqui não tem a recorrente razão.

O regime mais inovador trazido pela reforma do processo civil de 2003, introduzida pelo DL 38/2003, de 8 de Março, foi a consagração expressa da responsabilidade do exequente pelos danos culposamente causados ao executado, não citado previamente, por uma execução que venha, através do julgamento da oposição, a revelar-se ilegal (art. 819.º do CC)[13].

Não determinando a lei, de forma expressa, como é que o eventual direito do executado pode ser exercido: se na própria execução, se através de uma acção autónoma.

Contendo o citado artigo 819.º a previsão da responsabilidade do exequente, definindo os pressupostos específicos dessa responsabilidade, nada estabelece quanto à forma da sua dedução, parecendo nada obstar à dedução, na própria oposição, de um pedido cível.

Com efeito, e tal como sucedia com os antigos embargos de executado, a oposição à execução configura-se como uma verdadeira acção declarativa, seguindo, por opção legal, os termos do processo sumário de declaração (art. 817.º, nº 2 do CPC), enxertada na executiva, correndo por apenso a esta (citado art. 817.º, nº 1).

Implicando a propositura da demanda a constituição de uma nova relação processual autónoma, não reconduzível a uma fase da relação processual executiva, por poder apresentar pressupostos próprios, e se delinear como uma relação processual de cognição, com a estrutura do processo normal de declaração, enquanto a relação executória jamais conduz a um provimento decisório.

Sendo distintos os actos das duas relações processuais, com trajectórias independentes, não se configurando os actos processuais respeitantes à oposição como actos de execução[14].

Não se estando, agora, perante uma verdadeira acção executiva, cujo fim e limites, como bem diz a recorrente, são determinados pelo título que lhe dá origem (art. 45.º, nº 1 do CPC, mas perante uma acção declarativa que naquela, correndo embora por apenso, é enxertada.

Não havendo naquela, na executiva, qualquer sentença declarativa de condenação do exequente.

E assim, constituindo a oposição uma acção declarativa, coaduna-se a dedução do pedido de indemnização na própria oposição, sendo razoável que, com o pedido de apreciação do fundamento conducente à extinção da execução seja cumulável, com manifesta economia processual[15], o de condenação do exequente na indemnização de que se tenha constituído devedor pela sua actuação ilícita ao mover uma execução injusta[16].

Podendo invocar-se neste mesmo sentido a solução paralela do art. 860.º, nº 4 do CPC, nos termos do qual o exequente de um crédito penhorado é expressamente admitido a fazer valer na contestação da oposição à execução a responsabilidade do terceiro alegado devedor desse crédito, quando se demonstre que, afinal, o crédito não existia, mas esse terceiro não cumpriu o dever de declarar se o crédito existia ou não nos termos do art. 865.º do mesmo diploma legal[17].

Entender se deve, pois, ser admissível, na oposição à execução, a cumulação desta com o accionamento da responsabilidade do exequente.

A tal não obstando o facto de a oposição, seja qual for o seu valor, seguir sempre os termos do processo sumário.

Tal se devendo, desde logo, a uma legítima opção legislativa.

Que as partes deverão respeitar.

Sem que, com tal interpretação da lei, se vislumbre qualquer violação da Lei Fundamental, mormente, como alega a recorrente, do seu artigo 20.º, onde, em sede de princípios gerais no âmbito dos direitos fundamentais, se consagra o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

Não se vendo, desde logo, que os diferentes prazos processuais ou o diferente número de testemunhas que numa forma de processo e noutra existam sejam desadequados ou desproporcionados, inviabilizem ou dificultem excessivamente o acesso das partes aos tribunais, assim se violando esta garantia plena[18].

Não havendo, pois, qualquer violação da Constituição.

Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 06 de Dezembro de 2011

Serra Batista (Relator)

Álvaro Rodrigues

Fernando Bento

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[1] Pode definir-se o título executivo, meio de demonstração do direito do exequente, perfilhando o ensinamento de Castro Mendes, como o documento que, por oferecer demonstração legalmente bastante da existência de um direito a uma prestação, pode, segundo a lei, servir de base à respectiva execução – Direito Processual Civil, vol. I, p. 333.
[2] Lebre de Freitas, A Acção Executiva, p. 26.

[3] Ac. do STJ de 4/5/99, Bol. 487, p. 242.

[4] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 26 e Amâncio Ferreira, Curso do Processo de Execução, p. 21.
[5] Rui Pinto, A Acção Executiva depois da Reforma, p. 40 e 41.
[6] Lebre de Freitas, A Acção Executiva depois da Reforma, p. 82 e 83.
[7] A. Reis, CPC Anotado, vol. VI, p. 2.
[8] Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 440 e, entre muitos outros, acs deste STJ de 15/2/05 (Sousa Peixoto), Pº 04S3037, de 9/2/06 (Salvador da Costa), Pº 06B152, de 5/12/07 (Mário Pereira), Pº 06S29631 e de 10/11/2011 (Nuno Cameira), Pº 245/08.7TBOHP.C1.S1, in www.dgsi.pt, onde se encontrarão os mais citados sem referência expressa.
[9] Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 3.º, p. 118, com interessante desenvolvimento sobre a noção de matéria de facto/ matéria de direito.
[10] Ac. do STJ de 12/7/2011 (Maria dos Prazeres Beleza), Pº 2901/05.0TBOUR.P1.S1.
[11] Cfr. art. 1248, nº 1 do CC.
[12] Ac. do STJ de 31/3/2009 (Santos Bernardino), Pº 08B3886.
[13] Paula Costa e Silva, A Reforma da Acção Executiva, p. 75 e Rui Pinto, ob. cit., p. 76.
[14] Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, p. 116.
[15] Sem que tal argumento de ordem prática, como é bom de ver, seja o único a relevar na decisão desta questão.
[16] Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, vol. 3.º, p. 333. Neste mesmo sentido, acs da RP de 26/1/2006, CJ Ano XXXI, T. 1, p. 172 e de 2/2/2007, Pº 0536252.
[17] Maria Olinda Garcia, Responsabilidade do Exequente e de Outros Intervenientes Processuais, 81.
[18] Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, p. 186.