ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
609/07.1TBPTL.G1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/20/2011
SECÇÃO 2ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA A REVISTA DA AUTORA E NEGADA A REVISTA DA RÉ
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ÁLVARO RODRIGUES

DESCRITORES LETRA DE CÂMBIO
REFORMA DE LETRA
RESPONSABILIDADE PELAS DESPESAS
ÁREA TEMÁTICA DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA - SENTENÇA - RECURSOS
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 285.º, 342.º, N.º2, 874.°, 879.° AL. C).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º, 664.º, 668.º, N.º1, AL. D), 712.º, N.º6, 715.º, N.º1, 722.º, NºS 1 E 2, 729.º, N.º1.
LEI 169/99, DE 18 DE SETEMBRO: - ARTIGO 38.º, N.º1 ALS. I) E J).
LULL: - ARTIGO 48.º, N.º3.
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
-DE 30/04/2009, PROCESSO N.º 1583/06.7TBABT-A.E1, WWW.DSGI.PT .
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 26/09/1991, PROCESSO N.º 0044922, WWW.DGSI.PT ;
-DE 16/05/1991, PROCESSO N.º 0043632, WWW.DGSI.PT;
-DE 25/3/2010, PROCESSO N.º 2130/08.2, WWW.DGSI.PT;
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 12/07/1994, WWW.DGSI.PT .
-DE 28/09/1999, WWW.DGSI.PT .
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17/02/1994, PROCESSO N.º 084210, WWW.DGSI.PT ;
-DE 10/07/1997, WWW.DGSI.PT .


SUMÁRIO
I- Como se escreveu no Acórdão da Relação de Évora de 30-04-2009, de que foi Relator, o então Exmº Desembargador Fernando Bento, que no presente recurso intervem como 1º Adjunto, «a reforma de um título cambiário é a sua substituição por outro, quer por os intervenientes terem acordado em diferir o vencimento, quer por o devedor efectuar um pagamento parcial e emitido um novo título com o valor da diferença entre pagamento efectuado e a dívida inicial» (Pº 1583/06.7TBABT-A.E1 in www.dsgi.pt).

II- Da própria definição do conceito de «reforma» dos títulos de crédito, quem dela beneficia é o devedor, geralmente o aceitante, na medida em que, por via deste instituto jurídico-mercantil, logra protelar sucessivamente o prazo de pagamento.

Justo é, portanto, que seja a Ré quem deva arcar com as despesas de tal operação mercantil que se torna necessária para a efectivação do direito do portador da letra, que pode exigir o seu pagamento ao devedor, como entende a citada jurisprudência.

III- Desde logo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17-02-1994 (Relator, o Exmº Juiz Conselheiro Sá Couto), assim sumariado:

«A reforma da letra consiste em substituir uma letra velha por uma nova e tem por fim diferir o pagamento da obrigação constante da letra renovada no interesse do aceitante, razão porque deve ser este a suportar as respectivas despesas» (Pº 084210, in www.dgsi.pt)

De igual modo, pode apontar-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 26-09-91 ( Relator, o então Juiz Desembargador, Sousa Dinis) assim sumariado na parte que ora interessa:

«As despesas com as reformas são necessárias para a efectivação do direito do portador da letra, que pode exigir o seu pagamento ao devedor» (Pº 0044922, in www.dgsi.pt).

Neste mesmo sentido, merece apontamento o Acórdão da mesma Relação, de 16-05-1991, de que foi Relator, o Exmº Juiz Desembargador Inácio Brandão, com o seguinte sumário:

«O devedor, único beneficiário das sucessivas reformas da letra, é responsável pelos respectivos encargos, responsabilidade que apenas prescreve nos termos do artº 309º do CC» (Pº 0043632, in www.dgsi.pt).



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

 AA, Ldª intentou a presente acção com processo ordinário contra  Junta de Freguesia de São Pedro da Afurada, ambas com melhor identificação nos autos, pedindo a condenação desta no pagamento de € 55.112,87 e juros de mora vincendos calculados sobre € 27.370,00 e € 21.331,49 desde a data da petição inicial até efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, que no exercício da sua actividade de fabrico e venda de fogo-de-artifício, forneceu à R , a pedido desta , e nos anos de 2002 a 2005, quantidades várias de fogo-de-artifício que se destinavam à festa anual de S. Pedro.

Continuou dizendo que a R , não pagou o fornecimento relativo ao ano de 2005 e não pagou parcialmente os fornecimentos de 2002 a 2004 pois deixou de reformar as letras que havia aceite para o dito pagamento , para além de não ter pago as despesas bancárias inerentes a tais reformas.

Terminou dizendo que, em vão, interpelou a R repetidas vezes para proceder ao pagamento dos valores devidos, cuja soma constitui o peticionado.

A R. contestou invocando a ineptidão e a incompetência territorial do Tribunal.

Acrescentou que as letras referidas na petição inicial são nulas uma vez que violam o art. 27º nº 1 da Lei das Finanças Locais que veda às freguesias o aceite e saque de letras, sendo que o aceite constante das letras como tendo sido efectuado pelo tesoureiro BB não foi por este efectuado.

Impugnou a versão dos factos dada pela A. dizendo que, até 2002, quem organizava as festas de S.Pedro, contratava e pagava aos fornecedores era uma Comissão de Festas e não a Junta de Freguesia.

Terminou dizendo que o aceite das letras referidas nos autos foi assinado pelo Presidente da Junta eleito e em funções, mas quando estas se venceram já aquele tinha suspendido o seu mandato na sequência de uma queixa-crime apresentada pelos então Tesoureiro e Secretário, sendo que o actual Presidente não tomou conhecimento de qualquer interpelação para pagamento.

Requereu a intervenção acessória de CC, anterior Presidente da Junta, com vista a um eventual direito de regresso, o que foi admitido.

         Após a legal tramitação, procedeu-se a julgamento ( onde a selecção de factos foi objecto de novo despacho ), tendo sido proferida sentença que absolveu a R do pedido.

Inconformada, interpôs a Autora recurso de Apelação da sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães que, julgando a Apelação parcialmente procedente, revogou, em parte, a sentença recorrida, condenando a Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de € 27.370,00, acrescida dos juros peticionados, mantendo-se tudo o mais.

         Ainda inconformadas, ambas as partes vieram interpor recursos de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações com as seguintes:

         CONCLUSÕES

Da Recorrente Autora, AA, Ldª

1ª - Contrariamente ao que foi decidido pelo tribunal "a quo", entende a Recorrente que as despesas e encargos com as reformas das letras em questão nos autos se enquadram na alínea c) do art°. 48° da LULL.

2ª  - Não resulta do teor da alínea c) do artº. 48° da LULL que o direito a reclamar despesas esteja limitado àquelas despesas "estritamente necessárias" para a efectivação do direito.       

3ª - Independentemente disso, as despesas com os descontos e reforma das letras são despesas "necessárias" à cobrança do crédito titulado pela letra.

4ª - A letra é um título de câmbio em que é dada uma ordem de pagamento para uma determinada data de vencimento, a qual constitui uma das condições do contrato celebrado subjacente à sua emissão, sendo, por isso, nessa altura que o portador tem a aspiração de receber o seu crédito.

5ª - Se o portador, na data de vencimento, não vê paga a letra de que é titular, é legítimo que veja reembolsadas as despesas que teve para ver reformado aquele título, na expectativa de ver pago o seu valor na data acordada.

6ª - Dada a frequência com que se generalizaram as operações de reforma e desconto de letras no nosso comércio, elas são hoje em dia um meio normal dos seus portadores verem pago o respectivo montante.

7ª - Sendo as despesas com a reforma e com o desconto da letra despesas normais associadas a essas operações,  não podem deixar de se ter essas despesas como necessárias .

8ª - É, por isso, errado o entendimento que o Tribunal da Relação de Guimarães faz do art°. 48°, n° 3 da LULL.

9ª - Deve, assim, considerar-se que as despesas realizadas pela Recorrente com a reforma das letras em questão nos autos são despesas "necessárias", revogando-se o douto acórdão recorrido e proferindo-se novo acórdão em conformidade com essa conclusão.

10ª - Mesmo que assim se não entendesse, sempre aquelas despesas ficariam a cargo da Recorrida, nos termos do disposto no artº. 878° do Cód. Civil, segundo o qual "Na falta de estipulação em contrário, as despesas do contrato e outras acessórias ficam a cargo do comprador".

11ª - Não pode deixar de se entender que as despesas com as reformas das letras são despesas inerentes à execução do contratado estabelecido entre Recorrente e Recorrida, sendo esta responsável pelo seu pagamento.

12ª - Nestes termos, deveria o tribunal "a quo" ter julgado o recurso totalmente procedente e, para além da condenação já efectuada, condenar a Recorrida a pagar também à Recorrente o valor das despesas por esta efectuadas com a reforma das letras em questão nos autos.

13ª - Ao decidir de forma diversa, violou, entre outras, as disposições dos artºs 879°, art°. 878° do Cód. Civil e artº. 48°, al. c) da LULL.

14ª - Pelo que, deve a decisão recorrida ser parcialmente revogada, substituindo-se por outra que, para além da condenação já efectuada, condene também a Recorrida no pagamento à Recorrente das despesas bancárias decorrentes da reforma das letras.

Da Recorrente, Ré, Junta de Freguesia de S. Pedro da Afurada

1- Vem o presente Recurso de Revista interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, o qual, para além de julgar nula a sentença proferida em primeira instância, porque padecendo do vício a que alude o art. 668° n.° 1 al. d) do CPC, alterando a matéria de facto apontada pela recorrente.

2- Quanto a nós o tribunal a quo incorreu em erro de interpretação e aplicação do comando contido no art. 668° n.° 1 al. d), violando ainda o que dispõe o art. 264° do CPC, pelo que se justifica a presente instância recursiva.

3- Bem sabemos que o preceituado no art. 722° n.° 3 do CPC o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista (ex vi 12° CPC).

4- Não pode, porém deixar de manifestar o seu inconformismo pelo facto de o Tribunal da Relação do Porto ter alterado na prática integralmente todo o julgamento da matéria de facto que era desfavorável à impetrante, fazendo tábua rasa dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.

5- Refere-se na decisão a quo que em parte alguma é suscitada a questão da ausência de deliberação conferindo poderes ao presidente para praticar os actos de contratar e aceitar letras (...).

6- Mais referindo aquele aresto que: esta questão, ainda que tivesse sido abordada pelas testemunhas em julgamento, como foi (os seus depoimentos foram ouvidos por este tribunal (...)) não foi alegada pela Ré e não é de conhecimento oficioso, pelo que não podia ser abordada na sentença, padecendo esta do vício a que alude o art. 668° n.° 1 al. d) do CPC sendo em consequência nula.

7- Não podemos concordar com tal asserção.

8 - Isto porque ao abrigo do princípio do inquisitório o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.665° CPC)

9- devendo considerar ainda que oficiosamente os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.

10- In casu, da discussão da causa surgiram factos que apesar de não directa e expressamente alegados pela recorrente o tribunal tinha a obrigação (como sucedeu) de ter em conta para chegar à solução justa do ponto de vista legal.

11- Se por um lado a recorrente alegou que ocorreu violação da lei das finanças locais quando o presidente aceitou a emissão de letras (como consta da própria decisão recorrida) mais tendo alegado que até 2005 as festas de S. Pedro da Afurada estavam a cargo de uma comissão (quesito 17 dado como provado),

12- por outro, naquela decisão também se concede que pode constatar-se da prova testemunhal que não existiu deliberação conferindo ao presidente poderes para praticar actos de contratar e aceitar letras.

13- Neste sentido, não é verdade que a parte aqui recorrente não haja alegado a ausência de poderes do presidente.

14- como consequentemente não é verdade que o tribunal de primeira instância haja conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento.

15- O que o tribunal de primeira instância fez foi em cumprimento do princípio do inquisitório considerar os factos que resultaram da discussão da causa, em particular na prova testemunhal, tendo como pano de fundo as alegações da parte recorrente referidas em 15 do presente e interpretar e aplicar as regras de direito, retirando as conclusões patenteadas na decisão.

16- De modo que, a mais pura das verdades é que o Presidente agiu sem poderes de representação não sendo os actos por si praticados eficazes em relação à recorrente.

21 - Em face do vertido, o tribunal a quo incorreu em erro de interpretação e aplicação do art. 668° n.° 1 al. d), violando ainda o que dispõe o art. 264° do CPC, pelo que deverá ser revogada aquela decisão, mantendo-se a decisão da primeira instância.

Observação: É patente o lapso verificado na numeração das conclusões da alegação desta Recorrente, na medida em que do nº 16, passa para o nº 21.

Tal erro, por manifesto,  pode ser corrigido ao abrigo do artº 249º do Código Civil, pelo que, em vez do referido nº 21, deve passar a ler-se nº 17.

Foram apresentadas contra-alegações apenas pela Autora, AA, Lda, pugnando pela negação de provimento ao recurso apresentado pela parte contrária.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

                     FUNDAMENTOS DE FACTO

Das instâncias vem dada como provada, a seguinte factualidade:

A primeira instância considerou provada a seguinte matéria de facto:

1-A Autora é uma sociedade comercial que se dedica, com fins lucrativos, ao fabrico e venda de fogo de artifício - alínea A dos Factos Assentes

2- A Autora instaurou já a competente execução, que corre os seus termos no 4º «Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, sob o nº 1975/07.4TBVCT, para cobrança do valor por aquelas letras titulado – alínea B dos Factos Assentes

3- No exercício da sua actividade, a A., mediante prévias encomendas do então presidente da Junta de Freguesia da Afurada e em nome desta forneceu-lhe e entregou-lhe continuamente , nos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005, quantidades e qualidades várias de fogos de artifício que se destinavam à festa anual de s. Pedro , na freguesia de Afurada, de Vila Nova de Gaia sendo que, a do ano de 2005, deu origem à factura nº 210 vencida em 30.06.2005 no valor de € 27.370,00 – resp. quesitos 1 e 6.-impugnado

4- Tal factura encontra-se por liquidar – resp. quesito 7.

5- Chegados ao ano de 2005, a Ré ainda não havia liquidado as facturas respeitantes aos espectáculos de fogo de artifício dos anos de 2003 e 2004 – resp. quesito 2.

6- Ainda se encontrava em circulação uma letra que pelo menos o então presidente havia aceite para pagamento do espectáculo de pirotecnia do ano de 2002 – resp. quesito 3.-impugnado

7- Como condição para fornecer o fogo de artifício para o espectáculo de pirotecnia do ano de 2005, a A. exigiu à Ré que esta aceitasse duas letras, no valor de € 26.114,55 cada, para pagamento dos espectáculos de 2003 e 2004 – resp. quesito 4.

8- Que se encontram por liquidar – resp. quesito 5.

9- O então presidente da Junta limitou-se a ir reformando sucessivamente aquelas letras –resp. quesito 8.-impugnado

10- Nunca pagou à A. as despesas que esta teve com as sucessivas reformas e descontos –resp. quesito 9.

11- Por esse motivo, a A. foi emitindo e enviando à Ré as notas de débito respeitantes às sucessivas despesas com as reformas e descontos de letras – resp. quesito 10.

12- Essas notas de débito foram sendo lançadas numa ficha de " contra corrente " aberta, para o efeito, em nome da Ré - resp. quesito 11.

13- A Ré não pagou e deixou de reformar as reformas das 3 letras que havia aceite para pagamento dos espectáculos dos anos de 2002,2003 e 2004 - resp. quesito 12.-impugnado

14- A A. ficou na posse de três letras, com os números de série 500792887050544160,500792887050544152 e 500792887050544136, no valor, respectivamente , de € 18.000 ,€19.000 e € 5.000, e com vencimento , respectivamente , nos dias 15/04/ 2006, 22/04/2006 e 23/04/2006 – resp. quesito 13.

15- Vencidas que foram essas letras , a Ré não as reformou nem pagou – resp. quesito 14.

16- Com as reformas das letras, suportou a A. as seguintes despesas e encargos, titulados pelas notas de débito que se deixam descriminadas, e que foram enviadas à Ré:

Nota de débito Data Valor

ND nº 1240007 18/06/2004 € 954,80

ND nº 1240008 18/06/2004 € 592,94

ND nº 1240009 18/06/2004 € 551,25

ND nº 1240010 18/06/2004 € 624,77

ND nº 1240025 06/08/2004 € 355,94

ND nº 1240029 21/10/2004 €520,86

ND nº 1240033 15/11/2004 € 5,20

ND nº 1240036 16/12/2004 € 497,73

ND nº 4 21/09/2005 € 605,00

ND nº 5 20/10/2005 € 367,00

ND nº 6 20/10/2005 € 1 989,73

ND nº 7 20/10/2005 € 319,66

ND nº 8 20/10/2005 € 958,92

ND nº 9 20/10/2005 € 610,08

ND nº 10 20/10/2005 € 255,72

ND nº 11 20/10/2005 € 610,08

ND nº 12 20/10/2005 € 294,79

ND nº 13 20/10/2005 € 891,48

ND nº 14 20/10/2005 € 243,91

ND nº 15 03/11/2005 € 271,49

ND nº 16 03/11/2005 € 890,21

ND nº17 03/11/2005 € 837,88

ND nº 18 13/12/2005 € 283,14

ND nº 1 07/12/2006 € 156,77

ND nº 2 07/02/2006 € 811,36

ND nº 3 07/02/2006 € 918,00

ND nº 4 07/02/2006 € 248,20

ND nº 5 07/02/2006 € 271,49

ND nº 6 07/02/2006 € 837,88

ND nº 7 07/02/2006 € 381,49

ND nº 8 07/02/2006 € 780,21

ND nº 9 23/03/2006 € 1 918,00

ND nº 10 27/03/2006 € 723,15

ND nº 11 27/03/2006 € 752,36

TOTAL € 21.331,49 - resp. quesito 15.

17- A A. interpelou a Ré na pessoa do seu então presidente, para pagar o seu débito – resp. quesito 16.-impugnado

18- Até ao ano de 2005 inclusive a realização das festas em causa sempre esteve a cargo de uma comissão de festas - resp. quesito 17.

19- O aceite das letras ora em causa, foi assinado pelo Presidente da junta eleito e em funções, à data da emissão das mesmas – CC – resp. quesito 20.

20- À data do vencimento das mesmas, o Presidente CC havia suspendido o seu mandato, vindo em Abril do corrente ano a renunciar ao mesmo, na sequência de uma queixa-crime apresentada pelo tesoureiro/ actual Presidente, e pelo secretário – resp. quesito 22.

            O Tribunal da Relação, na sequência do recurso de apelação da Autora, julgou provados os factos constantes dos artigos 1º, 3º, 6º, 8º e 16º da base instrutória que tinham a seguinte redacção:

No exercício da sua actividade , a A, mediante prévia encomenda da R Junta de Freguesia , forneceu-lhe e entregou-lhe , nos anos de 2002 a 2005 , quantidades e qualidade várias de fogo-de-artifício , que se destinavam  à festa anual de S.Pedro da Afurada , na freguesia de Afurada, Vila Nova de Gaia ? 

Ainda se encontrava em circulação uma letra que a R havia aceite para pagamento do espectáculo de pirotecnia do ano de 2002 ?

A A forneceu ainda e entregou à R fogo-de-artifício para as festas de S. Pedro da Afurada do ano de 2005 , dando origem à factura n.º210, vencida em 30.06.2005 no valor de €27.370,00 ?

A R limitou-se a ir reformando sucessivamente aquelas letras?

 

12º

A R não pagou e deixou de reformar as reformas das 3 letras que havia aceite para pagamento dos espectáculos dos anos de 2002,2003 e 2004?

16º

A A por diversas vezes interpelou a R para o pagamento do seu débito?

A 1ª instância havia respondido aos referidos artigos da seguinte forma:

1º e 6º

No exercício a sua actividade, a A., mediante prévias encomendas do então presidente da Junta de Freguesia da Afurada e em nome desta forneceu-lhe e entregou-lhe continuamente, nos anos de 2002, 2003, 2004 e 2005, quantidades e qualidades várias de fogos de artifício que se destinavam à festa anual de s. Pedro , na freguesia de Afurada, de Vila Nova de Gaia sendo que, a do ano de 2005, deu origem à factura nº 210 vencida em 30.06.2005 no valor de € 27.370,00.

Ainda se encontrava em circulação uma letra que pelo menos o então presidente havia aceite para pagamento do espectáculo de pirotecnia do ano de 2002.

O então presidente da Junta limitou-se a ir reformando sucessivamente aquelas letras.

12º

A Ré não pagou e deixou de reformar as reformas das 3 letras que havia aceite para pagamento dos espectáculos dos anos de 2002,2003 e 2004

16º

A A. interpelou a Ré na pessoa do seu então presidente, para pagar o seu débito.

    

Considerou ainda a Relação que quanto ao artº 12º, a 1ª Instância já o havia considerado provado no facto 13º, pelo que atribuiu a lapso da então Recorrente o ter reclamado de tal resposta.

        

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I- Do recurso da Autora

 A única discordância da Autora em relação ao Acórdão recorrido consiste na questão da responsabilidade pelo pagamento das despesas bancárias decorrentes da reforma das letras.

Defende a Recorrente que tal responsabilidade deve ser do aceitante das letras enquanto a posição das Instâncias e da parte contrária é no sentido de que tal responsabilidade não pode recair sobre o aceitante na medida em que as despesas com a reforma de tais títulos de crédito «não são estritamente necessárias para a efectivação do direito».

A metodologia decisória desta questão reside, em primeiro lugar, na interpretação da expressão «outras despesas», contida no nº 3 do artº 48º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças e, depois, na subsunção da factualidade apurada no conceito interpretado, como se passa a demonstrar!

O referido preceito legal dispõe:

«O portador pode reclamar daquele contra quem exerce o seu direito de acção....

1º.........................................................................................................................

2º.........................................................................................................................

3º As despesas do protesto, as dos avisos dados e as outras despesas.

Apesar de a lei referir expressamente, a par das «despesas do protesto» e dos «avisos dados», a expressão «outras despesas» tout court, alguma doutrina tem vindo a insistir no atributo de estritamente necessárias para a efectivação do direito, com base na afirmação de Gonçalves Dias, citada por Abel Pereira Delgado na sua obra de referência Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, anotada, 4ª edição, pg 265, de que as outras despesas são apenas as estritamente necessárias para a efectivação do direito.

Há que reconhecer razão à Autora quando alega que «Não resulta do teor da alínea c) do artº. 48° da LULL que o direito a reclamar despesas esteja limitado àquelas despesas "estritamente necessárias" para a efectivação do direito».          

Sendo assim, como, na verdade, é, desde logo o argumento «ubi lex non distinguit nec nos distinguire debemus» lhe daria razão neste aspecto concreto.

Porém, como já iremos ver, a posição jurisprudencial maioritária é no sentido de que as despesas com a reforma da letra devem ser suportadas pelo aceitante que não efectuou o pagamento na data do vencimento que, como bem refere a Recorrente na conclusão 4ª das suas doutas alegações,«constitui uma das condições do contrato celebrado subjacente à sua emissão, sendo, por isso, nessa altura que o portador tem a aspiração de receber o seu crédito».

Com efeito, como também refere a Recorrente, na conclusão 5ª, «se o portador, na data de vencimento, não vê paga a letra de que é titular, é legítimo que veja reembolsadas as despesas que teve para ver reformado aquele título, na expectativa de ver pago o seu valor na data acordada».

Finalmente, tem ainda razão a Recorrente quando judiciosamente sustenta, na conclusão 3ª, que «as despesas com os descontos e reforma das letras são despesas "necessárias" à cobrança do crédito titulado pela letra.», entendimento que reforça na conclusão 7ª onde alega que «sendo as despesas com a reforma e com o desconto da letra despesas normais associadas a essas operações,  não pode deixar de se ter essas despesas como necessárias».

A título de exemplo, indicaremos 4 (quatro) arestos no sentido apontado:

Desde logo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17-02-1994 (Relator, o Exmº Juiz Conselheiro Sá Couto), assim sumariado:

«A reforma da letra consiste em substituir uma letra velha por uma nova e tem por fim diferir o pagamento da obrigação constante da letra renovada no interesse do aceitante, razão porque deve ser este a suportar as respectivas despesas» (Pº 084210, in www.dgsi.pt)

De igual modo, pode apontar-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 26-09-91 ( Relator, o então Juiz Desembargador, Sousa Dinis) assim sumariado na parte que ora interessa:

«As despesas com as reformas são necessárias para a efectivação do direito do portador da letra, que pode exigir o seu pagamento ao devedor» (Pº 0044922, in www.dgsi.pt).

Neste mesmo sentido, merece apontamento o Acórdão da mesma Relação, de 16-05-1991, de que foi Relator, o Exmº Juiz Desembargador Inácio Brandão, com o seguinte sumário:

«O devedor, único beneficiário das sucessivas reformas da letra, é responsável pelos respectivos encargos, responsabilidade que apenas prescreve nos termos do artº 309º do CC» (Pº 0043632, in www.dgsi.pt).

Finalmente, pode indicar-se ainda outro aresto da Relação de Lisboa que embora não tenha aplicado este entendimento ao caso aí decidido, dada a sua inaplicabilidade naquele caso concreto por razões processuais, perfilhou, no entanto, o entendimento aqui exposto.

Trata-se do Acórdão de 25-03-2010 (Relatora, a Exmª Juíza Desembargadora, Ana Paula Boularot) onde assim se ponderou no curto excerto, que aqui nos permitimos transcrever pelo seu manifesto interesse:

«Insurge-se ainda o Apelante contra a sentença recorrida uma vez que nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 48°, n°3 da LULL, as despesas bancárias com o desconto ou reforma das letras estão contempladas no conceito de "outras despesas".

Tem razão o Recorrente, pois efectivamente, as quantias que forem despendidas com as subsequentes reformas da letra, estão incluídas naquele normativo e são devidas» ( Pº 2130/08-2, in www.dgsi.pt).

Como se escreveu no Acórdão da Relação de Évora de 30-04-2009, de que foi Relator, o então Exmº Desembargador Fernando Bento, que no presente recurso intervem como 1º Adjunto, «a reforma de um título cambiário é a sua substituição por outro, quer por os intervenientes terem acordado em diferir o vencimento, quer por o devedor efectuar um pagamento parcial e emitido um novo título com o valor da diferença entre pagamento efectuado e a dívida inicial» (Pº 1583/06.7TBABT-A.E1 in www.dsgi.pt).

A este propósito, ensina o Prof. Pais de Vasconcelos que «é usual, no comércio, que chegada a data do vencimento, o devedor, geralmente o aceitante ou o sacador, conforme os casos, proceda ao pagamento da letra (ou livrança) enviando ao portador uma nova letra por si aceite de montante correspondente parcialmente à quantia a pagar e o remanescente em dinheiro, ou nos casos da chamada «reforma por inteiro», que lhe envie aceite uma letra pelo montante do total montante anterior. A letra originária extingue-se por cumprimento e surge uma nova letra autónoma da primeira»

Como se colhe da própria definição do conceito de «reforma» dos títulos de crédito, quem dela beneficia é o devedor, geralmente o aceitante, na medida em que, por via deste instituto jurídico-mercantil, logra protelar sucessivamente o prazo de pagamento.

Justo é, portanto, que seja a Ré quem deva arcar com as despesas de tal operação mercantil que se torna necessária para a efectivação do direito do portador da letra, que pode exigir o seu pagamento ao devedor, como entende a citada jurisprudência.

Tudo visto e ponderado, procedem as conclusões da douta minuta recursória da Autora, pelo que inteiro provimento merece o presente recurso.

II - Do recurso da Ré

        

Nas suas contra-alegações relativas ao recurso da Ré, a Autora defende que o recurso interposto por aquela não seguiu a forma devida, pois o recurso próprio seria o de Agravo ( artºs 722º,nº 3 e artº 755º, nº 1, al. a) do CPC), pelo que o prazo para alegar era, de apenas 15 dias (artºs 759º e 741º do CPC), prazo esse que foi largamente excedido pela Recorrente.

Não tem razão.

Com efeito, não obstante a Ré Junta de Freguesia levantar questões de direito processual, a verdade é que a mesma sustenta a falta de poderes de representação do então Presidente da Junta de Freguesia, com o que chama à colação, embora de forma não expressa, normas de direito substantivo, tais como o artº 342º/2 do Código Civil e bem assim disposições contidas na Lei nº 169/99, de 18 de Setembro (Quadro de Competências e Regime Jurídico de Funcionamento dos Órgãos dos Municípios e Freguesias), o que também constitui direito substantivo.

Sendo assim, tem aqui cabal aplicação o disposto no artº 722º/1 do CPC, que estabelece para estas situações o recurso de Revista.

É portanto este o recurso apropriado que como tal foi recebido e vai ser julgado.

Para cabal entendimento da impugnação em causa, é de toda a conveniência, transcrever aqui o essencial da sentença da 1ª Instância no que diz respeito à falta de poderes de representação, por banda do Presidente da Junta de Freguesia, ora Ré, para celebrar os contratos de fornecimento de fogo de artifício com a Autora, de modo a vincular a Junta de Freguesia ao cumprimento dos referidos contratos.

«Em face da matéria de facto que logrou apurar-se cumpre, antes de mais, qualificar o contrato invocado nos autos e a sua validade.

Nos autos, parece-nos, estamos perante um contrato de compra e venda, o qual ê parece definido no art° 874° e 879° al. C), ambos do C.C., como sendo aquele através do qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço.

Alega a A. que celebrou ta! contrato com a R. Junta de Freguesia.

A Junta de Freguesia é um dos órgãos representativos da freguesia e é no exercício dessa competência que lhe está definida por lei que celebra contratos com outras pessoas e se obriga nos mesmos contratos.

Como se pode ler no Ac. do stj de 10.07.97 in www.dgsi.pt «as pessoas colectivas públicas são civilmente responsáveis pelos actos dos seus representantes legais, praticados no exercício das suas funções. A responsabilidade contratual da pessoa colectiva só existirá, porém, se o contrato do qual emerge a obrigação tiver sido celebrado por quem tinha poderes para vincular aquela pessoa colectiva. O negócio celebrado pelo presidente da Junta de Freguesia fora da sua esfera de competência não vincula a autarquia se não tiver sido autorizado para esse efeito mediante deliberação do órgão competente; nesse caso, por falta de poderes de representação, o negócio é ineficaz relativamente à Junta de freguesia, salvo se for por esta ratificado».

Dos factos apurados resulta que a A. celebrou tais acordos para fornecimento de  artifício apenas com o então presidente da Junta e em nome desta.

Qual a validade deste contrato?

Resulta claro que o presidente não tinha poderes para celebrar esse contrato em nome da Junta, não tendo havido qualquer deliberação a esse propósito – Lei 169/99, de 18 de Setembro.

Assim, a actuação daquele reconduz-se a uma actuação sem poderes de representação e, como tal, é ineficaz relativamente à Junta.

Na verdade não houve qualquer acto que se possa considerar de ratificação de tal gestão.

As citadas reformas das letras e a própria aceitação destas e que impulsionou, permitindo, a venda de fogo do ano de 2005, apenas se provou ser, mais uma vez, da autoria singular do então presidente.

Não temos, pois, qualquer ratificação da referida gestão, pelo que terá que ser considerado o referido contrato celebrado entre a A. e o então presidente da Junta como ineficaz relativamente a esta.

Note-se que, mesmo que se entendesse que na celebração do referido contrato estavam em causa actos de gestão privada ( pode uma Junta, instrumentalmente, praticar actos de direito privado, comportando-se como um simples particular), o presidente da Junta de freguesia há-de surgir como representante de um dos contraentes, aplicando-se-lhe as normas que disciplinam o instituto da representação - art. 285ss do Código Civil.

Neste sentido, ver AC da RP de 12.07.94 in www.dgsi.pt

Assim, considerando-se ineficaz o contrato celebrado no que respeita ao representado -Junta de Freguesia - outra solução não resta à A. que intentar acção contra o representante sem poderes, ou seja, o então presidente da Junta e aqui chamado (mas apenas como interveniente acessório com vista a um eventual direito de regresso).

Ver Ac RP de 28.09.99 no mesmo sítio «a Junta de freguesia é um dos órgãos representativos da freguesia e é no exercício dessa competência que lhe está definida por lei  que celebra contratos com outras pessoas e se obriga nos mesmos contratos. Provado que o  Secretário e o Tesoureiro celebraram com outrem um contrato de empreitada (....) sem que para isso tivessem poderes, a autarquia não é obrigada a pagar o seu custo. Mostrando-se que o empreiteiro actuou de boa fé, poderá exigir daqueles o respectivo preço pessoal.»

Desta forma, improcede a acção».

        

O Tribunal da Relação não perfilhou tal entendimento, afirmando o seguinte:

«A recorrida na sua contestação disse apenas que: a) as letras são nulas por violação da lei das Finanças Locais e a assinatura imputada ao Tesoureiro no lugar do aceite não é sua ;b)até 2002 a realização das Festas estava a cargo de uma Comissão de Festas; c)quando se venceram as letras  o mandato do Presidente da Junta estava suspenso , tendo o mesmo renunciado ao mesmo na sequência de uma queixa crime apresentada pelo Secretário e pelo então Tesoureiro (actual Presidente).

Em parte alguma é suscitada a questão de ausência de deliberação conferindo poderes ao Presidente para praticar os actos de contratar e aceitar letras…

Esta questão, ainda que tivesse sido abordada pelas testemunhas em julgamento, como foi( os seus depoimentos foram ouvidos por este Tribunal, atento o pedido de reapreciação da matéria de facto),não foi alegada pela R ( a sede própria para tal) e não é de conhecimento oficioso , pelo que não podia ser abordada na sentença, padecendo esta  do vício a que alude o art. 668º n.º 1 al.d) do CPC , sendo , em consequência, nula.

Ainda assim, atento o preceituado no n.º1 do art.715º do CPC conhece-se do mérito do recurso».

         Antes do mais, convém recordar que nos termos do artº 729º, nº 1 do CPC, aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, o Supremo Tribunal aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado e, por outro lado, nos termos do nº 2 do artº 722º do mesmo Código, o erro na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

         Com este quadro normativo, devidamente sublinhado, estaremos em melhor posição para demonstrar que não compete ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o julgamento da matéria de facto feito pelos Tribunais de Instância, fora da situação excepcional prevista no nº 2 do artº 722º que não ocorre no caso sub judicio.

         Não colhe, destarte, a afirmação da recorrente contida na conclusão 4ª segundo a qual, « não pode, porém deixar de manifestar o seu inconformismo pelo facto de o Tribunal da Relação do Porto ter alterado na prática integralmente todo o julgamento da matéria de facto que era desfavorável à impetrante, fazendo tábua rasa dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova».

            Dado que só existem dois graus de jurisdição no julgamento da matéria de facto, as decisões da 2ª Instância, como tribunal hierarquicamente superior ao da 1ª Instância, prevalecem sobre as do tribunal recorrido, pelo que é no exercício da sua competência que a 2ª Instância sindica, modificando, suprimindo ou mantendo o que tiver sido anteriormente decidido, tendo a palavra final em relação ao apuramento e fixação de tal matéria.

Por isso mesmo, o nº 6 do artº 712º do CPC veda o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação previstas nos nºs anteriores do mesmo preceito legal.

         Por outro lado, com o devido respeito, é impertinente e infundada a asserção produzida pela Recorrente, de que o Tribunal da Relação fez «tábua rasa dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova», tanto mais que completamente  infundamentada, não se vendo, sequer, em que consiste tal «tábua rasa» dado que nada vem alegado para tal demonstração.

Discorda a Recorrente do que escreveu a Relação nas passagens que cita nas conclusões 5ª e 6ª, dizendo não poder concordar com tal asserção ( conclusão 7ª), defendendo que «ao abrigo do princípio do inquisitório o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.665° CPC) e devendo considerar ainda que oficiosamente os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.» (conclusões 8ª  e 9ª).

O que a Relação disse foi que «em parte alguma é suscitada a questão da ausência de deliberação conferindo poderes ao presidente para praticar os actos de contratar e aceitar letras (...) Mais referindo aquele aresto que: «esta questão, ainda que tivesse sido abordada pelas testemunhas em julgamento, como foi (os seus depoimentos foram ouvidos por este tribunal (...)) não foi alegada pela Ré e não é de conhecimento oficioso, pelo que não podia ser abordada na sentença, padecendo esta do vício a que alude o art. 668° n.° 1 al. d) do CPC sendo em consequência nula

Ora, ao contrário do que a Recorrente parece supor, o princípio do inquisitório não posterga o princípio do dispositivo, não dispensando a  aplicação deste em processo civil.

Por força do princípio do dispositivo ou da disponibilidade das partes, trave mestra do direito processual civil, os Tribunais não podem deixar de ter em consideração o disposto na segunda parte do artº 664º do CPC, que consagra precisamente tal princípio ancestral (ne eat judex extra vel ultra partium; judex ex allegata et probata judicare debet), que vincula o Juiz, com algumas excepções, a «servir-se só dos factos alegados pelas partes», na locução expressiva do referido preceito legal e, aliás, já constante do proémio do artº 264º/2 do mesmo diploma legal.

Os factos fundamentais ou essenciais são aqueles que se revestem de importância capital para a pretensão do autor e para a defesa ou reconvenção do réu, isto é, os factos integradores da previsão ou Tatbestand da norma aplicável à pretensão ou à excepção ( A. Varela et alt., Manual de Processo Civil, 2ª edição, pg. 416).

Ora, como bem aponta a Recorrida nas suas doutas contra-alegações, a falta de poderes de representação do Presidente da Junta de Freguesia que subscreve um contrato ou um título de crédito em nome da Junta, não integra factos instrumentais, mas sim uma verdadeira excepção.

E a Recorrida acrescenta, com inteira pertinência: «tal como resulta da lei, as excepções devem ser deduzidas de forma descriminada nos articulados. A razão de ser dessa exigência legal é permitir que aquele contra quem a excepção é invocada se possa dela defender carreando prova para os autos em sentido contrário».

A lei é expressa, no artigo 342º/2 do Código Civil, ao dispor que «a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita».

Por sua vez, o nº 1 do artigo 264º do CPC não deixa margem para qualquer dúvida:

«Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções» ( destaque e sublinhado nossos).

Quanto aos factos instrumentais que, na definição do saudoso Prof. Castro Mendes «são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes»[1]não é pela simples razão de eles constarem de documentos ou terem sido referidos em depoimento testemunhal que devem ser atendidos pelo julgador na sentença, mas apenas aqueles que resultarem da instrução e discussão da causa como reza o preceito legal ( artº 264º, nº 2 do CPC) e também o mesmo sistema se aplica aos factos referidos no nº 3 do mesmo preceito, desde que obedeçam aos requisitos nele insertos.

Em suma, só são atendidos na sentença os factos instrumentais, desde que tenham sido submetidos ao regime de contraditório e de prova durante a discussão da causa.

É esse o sentido do temo resultar que não é sinónimo de constar de documentos ou de ter sido referido em depoimento testemunhal.

É esse o alcance da expressão legal «... dos factos que resultem da instrução e discussão da causa» constante do nº 2 do artº 264º do CPC.

Instrução é termo que decorre da aglutinação dos termos latinos  « in+ struere» que tem o sentido de acumular em certo lugar [2] e que consiste na «actividade processual tendente a coligir no processo os meios de prova a utilizar e preparar a sua discussão»[3]

Estes factos serão tidos em conta na sentença, inseridos no acervo factual que suportará a decisão de direito, pelo que constituem sempre matéria de facto.

Discussão é termo que se refere ao debate da audiência de julgamento ou equivalente, onde tais factos serão filtrados pelo crivo do contraditório, nas alegações e, sobretudo, pela convicção fundamentada do julgador em caso de prova não tarifada.

Em suma, o poder inquisitório do Juiz sofre as limitações legais que ficaram suficientemente referidas, pelo que, não tendo sido alegada pela Ré Junta de Freguesia matéria relativa a eventual falta de poderes do seu Presidente – matéria que integraria defesa por excepção, na medida em que seria relativa a factos impeditivos ou modificativos do direito da Autora, não procedem as conclusões 4ª a 12ª da douta minuta recursória da Recorrente.

Na verdade, a Ré Junta não alegou matéria relativa à competência do Presidente da Junta que impedisse o mesmo de celebrar com a Autora, em representação da Junta,  o contrato de compra e venda de fogo de artifício de que tratam os autos, limitando-se a alegar violação do artº 27º da Lei das Finanças Locais ( então a Lei nº 42/98, de 6 de Agosto) na medida em que este diploma vedava às freguesias, para efeitos de regime de crédito às mesmas, o aceite ou o saque de letras de câmbio,  o que nada tem a ver com poderes de representação para efeitos de contratos de compra e venda.

Sobre esta questão concreta, aliás, as Instâncias, designadamente a Relação, não tomaram posição.

Por outro lado, não há dúvida de que, nos termos da alínea a) nº 1 do artº 38º da Lei 169/99, de 18 de Setembro, compete ao Presidente da Junta da Freguesia « Representar a freguesia em juízo e fora dele», pelo que se representa a freguesia mesmo extrajudicialmente (em juízo e fora dele) tal representação ope legis abrange implicitamente a dos órgãos da freguesia representada, não ficando estes excluídos de tal representação, por força do conhecido argumento hermenêutico «a majore ad minus».

A tudo isto acresce que, como vem referido pela Relação no Acórdão recorrido – entidade soberana no julgamento da matéria de facto – que as letras (fls. 19 a 21) se mostram assinadas, no lugar do aceite, pelo Presidente e pelo Tesoureiro ( CC e BB), tal como as cópias do cheques sacados e emitidos à ordem da A. pelos então Presidente e Tesoureiro mencionados.

Por outro lado, também cabe nas competências do Presidente da Junta, autorizar a realização de despesas até ao limite estipulado por delegação da Junta de Freguesia [ al. i) do nº 1 do artº 38º da Lei 169/99], assim como autorizar o pagamento das despesas orçamentadas, de harmonia com as deliberações da Junta  [al. j) do nº 1 do artº 38º da Lei 169/99], pelo que, em caso de excesso do limite estipulado ou de pagamento de despesas não orçamentadas, tal matéria careceria de ser alegada e provada pela Ré, mas nada tem a ver com poderes de representação.

Nesta conformidade, cremos serem despiciendas mais considerações em ordem a demonstrar a improcedência das conclusões da alegação da Ré/Recorrente, o que determina a improcedência do presente recurso.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se conceder a Revista à Autora, revogando o Acórdão recorrido apenas na parte em que julgou improcedente o pedido do pagamento das despesas com a reforma das letras, condenando-se a Ré Junta de Freguesia de São Pedro da Afurada a pagar à Autora também o valor das despesas por esta efectuadas com a reforma das letras em questão nos autos, no valor peticionado de € 21.331, 49 (vinte e um mil, trezentos e trinta e um euros e quarenta e nove cêntimos), para além da condenação já efectuada, sendo devidos juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento, mantendo-se o demais decidido.

Acordam ainda em julgar improcedente o recurso interposto pela Ré, negando-se a Revista.

As custas de ambos os recursos serão suportadas pela Ré por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Outubro de 2011

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade

______________________________
[1] CASTRO MENDES ,  Direito Processual Civil, 1968,II, pg.208.
[2] CASTRO MENDES ,  Direito Processual Civil. vol. III, pg. 264.
[3] Idem, ibidem.