ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
2546/07.OTBVLG.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/25/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR FONSECA RAMOS

DESCRITORES CONTRATO ATÍPICO
PARTILHA
ACORDO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL

SUMÁRIO
              

I) - Interpretar a declaração negocial contratual é determinar o sentido (dos vários possíveis face à literalidade do texto e aos interesses em causa) com que deve valer, numa perspectiva de actuação ética e do agir de boa-fé, ou seja, tendo em conta padrões de objectividade, rectidão e protecção dos interesses que o negócio visa regular.

II) -Sendo formal o contrato, desde logo, o intérprete não pode adoptar, em caso de dúvida, sobre o sentido da declaração negocial, um sentido que não tenha no documento um mínimo de correspondência a menos que estejamos perante circunstâncias que permitam a consideração do princípio “falsa demonstratio non nocet”.

III) – Assim importa ter em conta o sentido que uma pessoa medianamente sagaz, informada, sensível e prudente, colheria do texto se estivesse colocada na posição do destinatário real, conhecida a sua intenção negocial e a do declarante e os interesses que visavam salvaguardar, bem como as circunstâncias envolventes, a que honestamente se poderia apelar, para surpreender o verdadeiro sentido das declarações de vontade.

IV) Constando com vista à partilha de bens entre a viúva do de cujus e os filhos do casal um acordo, por todos subscrito, do seguinte teor:

Os filhos ... e ... comprometem-se a adquirir, no terreno actualmente designado pela Quinta de Sá, uma casa de habitação, com pelo menos dois quartos, ficando a primeira com o direito a viver nesse local durante o tempo e nas condições que assim o entenda, dispondo deste como se dele fosse proprietária;

 Do referido será dono e legítimo possuidor o aqui contratante ..., que neste acto autoriza a primeira a habitar por tempo indeterminado e sem retribuição o imóvel prometido comprar”. há que interpretar o inciso “dispondo deste como se fosse proprietária”, não como significando que seria a mãe dos Autores e Réus a dona do imóvel, mas apenas assegurar-lhe o direito de viver nessa habitação vitaliciamente.

V) Interpretação diversa é arredada pela clara e decisiva estipulação que dessa casa seria dono e legítimo possuidor quem, documentalmente, se comprometeu a autorizar que a mãe habitasse a casa por tempo indeterminado e sem retribuição.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

       


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            AA e mulher, BB, intentaram, em 11.6.2007, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Valongo – 2º Juízo – acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

- CC, e;

 - DD e mulher, EE

 Pedindo que os Réus sejam condenados, solidariamente, a pagarem-lhes a quantia de € 150.000,00, acrescida de juros legais, à taxa de 4%, desde a citação até pagamento.

Alegaram, em resumo, que:

- o Autor, bem como o 1º e o 2º Réus são filhos de FF que faleceu em 16.08.1988 e de cuja herança faziam parte diversos bens imóveis;

- a partilha dessa herança foi efectuada por escritura pública outorgada em 09.04.1999;

- os imóveis aí adjudicados ao 1º Réu tinham o valor real de € 133.000,00, sendo que os imóveis adjudicados ao Autor apenas tinham o valor de € 32.000,00;

- embora se diga na escritura que o 1º Réu pagou de tornas a quantia de € 20.610,27, a verdade é que tal não corresponde à verdade, sendo certo que os Autores não receberam essa quantia;

- a partilha foi efectuada na sequência de negociação e acordo que já haviam sido celebrados em 09.03.1999 e, por via do qual, os Réus, para compensarem a inferioridade do quinhão dos Autores, se obrigaram a adquirir, no terreno designado por “Quinta do Sá”, uma casa de habitação com pelo menos dois quartos, cujo direito de propriedade ficaria a pertencer aos Autores;

- os Autores apenas aceitaram a divisão dos bens da herança nos termos que constam da escritura em função da obrigação assumida pelos Réus no dito acordo de 9 de Março;

- acontece que os Réus não cumpriram essa obrigação, não obstante a interpelação e a fixação de prazo pelos Autores, pelo que o seu património se encontra diminuído no exacto valor da fracção que os Réus se obrigaram a inscrever em nome dos Autores, valor esse que ascende a € 150.000,00.

Os Réus contestaram, alegando, em suma:

- que o acordo celebrado em 09.03.1999 não visou acertar qualquer desigualdade existente na partilha, porque tal desigualdade não existia;

- esse acordo visou apenas salvaguardar os interesses da mãe do Autor e Réus que, na sequência da partilha, ficaria sem a casa onde vivia e sem rendimentos prediais;

- acontece que a mãe de Autor e Réus faleceu em 22.02.2001, pelo que, quando esse acordo ficou em condições de ser cumprido (com a conclusão do primeiro bloco da urbanização “Quinta do Sá”), o mesmo já não podia ser cumprido por falta de objecto;

- na partilha da herança aberta por óbito da mãe, o Autor ficou com todos os bens, obrigando-se ao pagamento de tornas no valor de € 10.498,92 a cada um dos irmãos e, se é verdade que o Autor não recebeu as tornas que lhe cabiam na herança aberta por óbito do pai (€ 20.610,27), também é verdade que não pagou aos Réus as tornas que a estes cabiam na herança aberta por óbito da mãe (€ 20.997,84), pelo que aquele crédito extinguiu-se por compensação com este débito.

Com estes fundamentos, concluem pela improcedência da acção e pedem, em reconvenção, que os Autores sejam condenados a pagar a quantia de € 10.498,92 a cada um dos Réus, acrescida de juros legais desde a citação e até pagamento.

Os Autores responderam, reafirmando os factos alegados na petição inicial, afirmando que pagaram as tornas devidas aos Réus na partilha por óbito da mãe, sendo certo que os mesmos declararam, na escritura, ter recebido essas tornas; ainda que assim não fosse, sempre assistiria aos autores o direito de compensar esse débito com o débito dos Réus, pelo que o crédito dos Réus ficaria reduzido a € 387,57.

Com estes fundamentos, concluíram pela procedência da acção e improcedência da reconvenção, pedindo, ainda, que os Réus fossem condenados, como litigantes de má fé, em multa e indemnização a seu favor.

Subsidiariamente, pediram que fosse operada a compensação entre os apontados créditos, reduzindo-se o dos Réus à quantia de € 387,57.

Os Réus, por seu turno, vieram também pedir a condenação dos Autores, por litigância de má fé, em multa e indemnização a seu favor.

Foi elaborado o despacho saneador e efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.


**

Foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, julgando improcedente a reconvenção, condenou os Réus a pagar aos Autores a quantia de € 125.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até pagamento, absolvendo os Autores do pedido reconvencional.

Mais condenou os Réus, como litigantes de má fé, na multa correspondente a 15 UC e no pagamento ao mandatário dos Autores da quantia de € 2.500,00, a título de honorários.


***

Inconformados, os Réus interpuseram recurso, para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 17.3.2011 – fls. 386 a 394 –, negou provimento ao recurso, confirmando o Acórdão recorrido.

***

            De novo inconformados os RR. recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

            1. O douto acórdão ora em crise, faz uma leitura perfeita do quid do recurso apresentado pelos ora Apelantes, não se discute a existência de um acordo ou contrato, que é patente, mas antes se existe naquele alguma obrigação directa perante os AA. que derive daquele texto, porém, a interpretação que faz do referido contrato, e as suas conclusões, é que se nos afiguram, com o devido respeito, incorrectas.

2. Não podemos aceitar que, “as declarações de vontade – emitidas pelos Réus e aceites pelos Autores, (...) – envolvem inequivocamente a obrigação de os Réus adquirirem uma casa de habitação na Quinta do Sá que ficaria a pertencer ao Autor”.

3. Com todo o respeito, reiteramos que do texto do referido contrato só se pode retirar que o mesmo foi feito com o fim primeiro, e último, de garantir à Mãe das partes, uma vez realizada as partilhas do património da família, um tecto, rendimentos, assistência, em suma todas as condições necessárias para que nada faltasse à Mãe enquanto a mesma fosse viva.

4. Naquele contrato somente um outorgante tinha garantias e benefícios: a Mãe. Os restantes outorgantes, os filhos, só outras tinham obrigações, e dentro dessas obrigações uma parte delas cabia aos RR., em exclusivo: o adquirirem uma casa de habitação onde a Mãe ficaria a viver dispondo dessas casa como se dela fosse proprietária, n° 5 do contrato: “dispondo deste como se dele fosse proprietária”.

5. Ou seja, é patente que a casa era para beneficiar a Mãe das partes, em exclusivo, a qual poderia dispor da mesma como se dela fosse proprietária. O escrever-se e referir-se tal amplitude de poderes/direitos que a Mãe teria sobre a casa não nos pode levar a concluir outra coisa.

6. As partes quiseram, como se extrai, claramente da clausula 5ª do contrato, garantir à Mãe um direito pleno, sobre um imóvel, que ainda que registado em nome de um filho, a Mãe poderia dispor dele como proprietária e não conferir-lhe um mero direito vitalício de gozo, o uso e habitação, o usufruto.

7. Nada mais se pode extrair do referido contrato, nomeadamente o raciocínio plasmado no acórdão em crise, onde se considera que o acordo celebrado ultrapassou em muito as necessidades de habitação da Mãe.

8. E não ultrapassou porque, da sua leitura retiramos, com segurança, uma conclusão que destrói tal afirmação do acórdão recorrido: Se a Mãe das partes (AA. e RR.) não estivesse viva, teriam as mesmas outorgadas tal acordo?

Obviamente que não, por inexistência de motivo e a razão para contratar, a Mãe das partes.

9. Tendo a mesma falecido, as obrigações do contrato cessam pois nenhum sentido faz garantir-se o sustento a alguém que já não está entre nós, logo deixa de ter propósito comprar-se uma casa para beneficio da falecida mãe, que da mesma disporia como se proprietária fosse, uma vez que as partes contrataram por causa da Mãe e não para colocar em nome dos AA. um apartamento como compensação fosse do que fosse.

10. Pois se assim fosse, não seria óbvio que tal compensação ficasse a constar do texto do contrato, para que inexistissem margens para dúvidas como as que temos agora?

Se assim fosse, não seria natural retirar do texto, no seu n°5, a expressão supra referida “dispondo dele como se dele fosse proprietária”, e acrescentar, v.g. no n°6 do referido contrato três ou quatro simples palavras no início da oração, como “Por direito próprio”, ou “Em compensação por tornas...”?

11. Nada disso foi feito. E o facto é que as partes poderiam tê-lo feito. E se não fizeram, se não escreveram essa clareza de ideias, é porque não o quiseram fazer. E se não o fizeram é porque nunca o desejaram e somente, com o referido contrato, quiseram beneficiar a Mãe, e mais ninguém.

12. Daí que se tenha de concluir que os RR., legitimamente, estavam plenamente convencidos que nenhuma obrigação tinham directamente com os AA em virtude do contrato em causa, pois que o ter-se provado que os AA. estavam convencidos que os RR. iriam transmitir-lhe o imóvel, não gera nestes a obrigação de o fazerem.

13. Não estando provada a declaração de vontade dos RR., alegadamente espelhada naquele contrato, como sendo a de transmitir o dito imóvel aos AA., independentemente da sorte da Mãe destes, não pode revelar, por si só, a prova de “Que os Réus sabiam do convencimento dos autores que estes lhes iriam transmitir o imóvel”

14. Ou seja, inexiste qualquer prova nos autos da vontade contraposta dos RR. mas perfeitamente harmonizável com a vontade dos AA, como lhe chama Manuel de Andrade, pois não ficou provado que os RR. sabiam da obrigação que recaía sobre eles de transmitirem o dito imóvel independentemente da sorte da Mãe destes.

15. E esta vontade não provada dos RR. não se pode extrair do texto do contrato, tal como fez o Acórdão ora em crise, pois tal contrato não contem, nem de longe nem de perto os elementos bastantes para que tal vontade seja revelada, bem pelo contrário como referimos.

16. Jamais, consciente ou inconscientemente, tencionaram os RR. e muito menos os seus mandatários com o texto dos articulados juntos, litigar de má fé, fosse a que titulo fosse.

17. Tudo o que alegaram parte e termina numa interpretação que temos por absolutamente legítima, face ao clausulado dum contrato, e assenta em expressões que esse mesmo contrato tem e foram supra transcritas.

18. Não inventaram os RR. nada, não distorceram qualquer realidade, não ultrapassaram limites de arguição processual, não foram temerários.

19. Com todo o respeito e total sinceridade limitaram-se a, legitimamente interpretar um texto com base nas palavras e expressões desse mesmo texto, como supra exposto, não litigando, minimamente, de má fé nos presentes autos.

20. Pelo que, face ao exposto, deve o douto acórdão ser revogado, porque violador dos artigos 236°, n°1, 238°, 404°, n°1, 406°, n°1, 762°, 763°, 799°, n°1, 798°, 562° a 564°, 566°, n°1, todos do Código Civil e ainda 266º-A, 456º, nºs 1 e 2 als. a), b), e d) do Código de Processo Civil e ainda art. 102º, al. a) do C. Custas Judiciais.

Termos em que e nos mais de direito dando como provado e procedente a presente Revista e revogado o Acórdão em crise, substituindo-o por outro que absolva os RR. de tudo o que vieram condenados, ou, caso tal não aconteça se absolvam os RR. da condenação como litigantes de má fé.

21. Devendo ser completamente revogado na sua parte dispositiva quer quanto à condenação dos R.R. no pagamento de € 125.000,00 aos AA., quer na condenação dos RR. como litigantes de má fé.

Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

            I. Por escritura pública lavrada no dia 25.01.1990, no Cartório Notarial de Ermesinde, o autor, AA, os réus, CC e DD, e GG, foram habilitados como únicos herdeiros legitimários de FF, falecido no dia 16-08-1998 – (cfr. fls. 15 e ss.) – alínea A) da matéria assente;

II. Na escritura pública outorgada no dia 09.04.1999, no Cartório Notarial de Marco de Canavezes, pelo autor, AA, os réus, CC e DD, e GG, os mesmos declararam, além do mais, que, conforme escritura de habilitação referida em A), são os únicos interessados na partilha dos bens do casal de GG e do seu falecido marido FF, cujo óbito ocorreu sem testamento ou qualquer outra disposição de bens de última vontade e no estado de casado em primeiras núpcias de ambos segundo o regime da comunhão geral (cfr. fls. 21 e ss.) – alínea B) da matéria assente;

III. Na escritura referida em B), os outorgantes declararam que procedem à partilha dos imóveis constantes da relação que apresentam, elaborada para o efeito e de harmonia com o art. 74º, n.º 2, do Cód. do Notariado, da forma seguinte:

“Somam tais bens o valor patrimonial total e atribuído de 61.330.439$00.

Este valor divide-se por dois para determinar a meação do falecido, no montante de 30.665.220, sendo de igual valor a da primeira outorgante.

Aquela meação do falecido divide-se então por quatro, para calcular o quinhão hereditário de cada herdeiro, no montante de 7.666.335$00, pelo que cada filho tem direito a receber bens neste valor, cabendo por sua vez à viúva o valor total de 38.231.525$00.”alínea C) da matéria assente.

IV. Consta da mesma escritura que à primeira outorgante, Ana de Castro, é adjudicado o imóvel constante da verba 1), no valor de 567.879$00, pelo que recebeu em tornas a quantia de 37.763.646$00 e fica paga – alínea D) da matéria assente.

V. Consta, também, da mesma escritura que ao autor e esposa, são adjudicados os imóveis constantes das verbas 2 a 5 e 7, no valor total de 3.534.317$00, pelo que receberam em tornas a quantia de 4.131.980$00 e ficam pagos – alínea E) da matéria assente.

VI. Na mesma escritura consta que ao réu DD é adjudicado o imóvel constante da verba 6, no valor de 229.359$00, pelo que recebeu em tornas a quantia de 7.436.046$00 e fica pago – alínea F) da matéria assente.

VIII. Na mesma escritura consta que ao réu Carlos Carvalho são adjudicados os imóveis constantes das verbas 8 a 12, no valor de 56.998.884$00, pelo que pagou em tornas a quantia de 49.332.579$00 que os demais interessados declararam já haver recebido, na proporção dos respectivos quinhões, pelo que dão em consequência a partilha por concluída – alínea G) da matéria assente.

IX. Ana de Castro Moura, o autor Manuel Carvalho, e os réus DD e Carlos Carvalho e autora e rés esposas, assinaram o documento escrito constante de fls. 33 e ss., datado de 09.03.1999, cujo teor aqui se dá por reproduzido, intitulado Acordo/ Contrato, no qual consta que:

“Entre os que abaixo assinam (...) foi estabelecido o acordo que se regerá pelas seguintes cláusulas:

1. Por acordo entre todos, foi estabelecido realizar escritura pública de partilhas por óbito de FF, marido da primeira e pai dos segundos.

2. Serão adjudicados à primeira o prédio misto sito no lugar de Montezelo, inscrito na matriz da Freguesia de Fânzeres do Concelho de Gondomar, sob os arts. 850º e 851º (urbanos) e o art. 446º (rústico).

3. A primeira concorda com a restante divisão dos bens pelos seus três únicos filhos e aceita sem reservas que estes disponham destes imóveis da forma que entendam.

4. A fim de acautelar os seus rendimentos, que com a presente partilha poderão ficar prejudicados, os três filhos comprometem-se a entregar mensalmente à primeira a importância de 210.000$00 (sendo que cada um entrega 70.000$00).

Este valor deverá ser anualmente actualizável de acordo com os índices de inflação decretados pelo Governo.

5. Os filhos Alberto e Carlos comprometem-se a adquirir, no terreno actualmente designado pela Quinta de Sá, uma casa de habitação, com pelo menos dois quartos, ficando a primeira com o direito a viver nesse local durante o tempo e nas condições que assim o entenda, dispondo deste como se dele fosse proprietária;

6. Do referido será dono e legítimo possuidor o aqui contratante Manuel António, que neste acto autoriza a primeira a habitar por tempo indeterminado e sem retribuição o imóvel prometido comprar;

7. Todos os filhos da primeira comprometem-se a acompanhar a primeira, sua mãe, em vida, garantindo-lhe toda a assistência;

8. que lhe é devida, especialmente médica e medicamentosa, assegurando-lhe todos os meios económicos de que esta possa dispor.

9. Em caso de incumprimento do n.º 4 do presente acordo deverá o filho faltoso entregar à primeira, no mês seguinte a quantia em dívida acrescida de 50 %.

10. Os cônjuges BB e Maria Celeste de Azeredo Gouvêa de Castro Carvalho concordam e assinam o presente acordo.”alínea H) da matéria assente.

X. O autor enviou aos réus Carlos Carvalho e DD as cartas cujas cópias constam de fls. 36 e 39, recebidas pelos mesmos em 01.08.2006 (fls. 38 e 40), nas quais consta, além do mais, o seguinte:

Invocando os pontos 5. e 6. do Acordo/Contrato entre nós celebrado em 09 de Março de 1999, e considerando que há muito se encontram materialmente verificados os pressupostos do respectivo cumprimento, designadamente a existência das fracções para venda no local e com as características ali especificadas, solicito que no prazo de 90 dias procedas à aquisição da fracção cuja propriedade te obrigastes a inscrever em meu nome.

Faço notar que o prazo aqui fixado é essencial e definitivo, conquanto não posso continuar a suportar os prejuízos resultantes duma partilha que me foi desfavorável, no pressuposto da aquisição da fracçãoalínea I) da matéria assente.

XI. Na escritura pública outorgada no dia 14.05.2004 no Cartório Notarial de Santo Tirso pelos Autores, AA e mulher, e os Réus, CC e DD e mulher, os mesmos declararam que, no dia 21.02.2001, faleceu Ana de Castro Moura, no estado de viúva, deixando testamento e herança da qual fazem parte os prédios que aí se mostram descritos sob as verbas 1 a 3, que somam o valor de € 47.245,16, tendo-lhe sucedido como seus herdeiros o autor e os réus, AA, e os réus, CC e DD (cfr. fls. 62 e ss.) – alínea J) da matéria assente.

XII. Consta da escritura referida em J) que os outorgantes declararam que do valor resultante da soma das verbas que integram a herança, aí mencionado, cabe ao autor Manuel Carvalho, a importância de € 26.247,32, cabendo a cada um dos demais co-herdeiros, da sua quota legitimária, a importância de € 10.498,92 – alínea L) da matéria assente.

XIII. Mais consta da referida partilha que os outorgantes declararam que procedem à partilha do seguinte modo:

Aos primeiros outorgantes, AA e BB, são adjudicados todos os prédios atrás identificados no valor de € 47.245,16.

Sendo a sua quota-parte no valor de € 26.247,32, leva a mais bens no valor de € 20.997,84 que repõe de tornas aos restantes co-herdeiros, tornas estas que eles já receberam – alínea M) da matéria assente.

XIV. O autor Manuel Carvalho, e réus Carlos Carvalho e DD, outorgaram o documento escrito de fls. 81, datado de 08.07.1998, intitulado Compromisso de Família entre Mãe Ana e Filhos Manuel, Alberto e Carlos, no qual consta que:

1. A mãe Ana concorda com a venda Quinta de Sá e a realização posterior das partilhas dos restantes bens, excepto dos que se situam no lugar de Montezelo, Fânzeres, Gondomar, que ficarão exclusivamente para si, podendo ela deles dispor como bem entender.

2. Como, vendida a Quinta de Sá e realizadas as partilhas da maior parte dos bens, a mãe fica sem o rendimento que esses bens lhe davam, os filhos comprometem-se a entregar à mãe, cada um, mensalmente, a quantia de 70.000$00 – valor actualizável anualmente conforme o aumento decretado pelo Governo para rendas.

3. Os filhos comprometem-se ainda:

a) A garantir à mãe, vitaliciamente, o direito à habitação em andar a adquirir pelo Alberto e pelo Carlos e a registar em nome do Manuel, de entre os primeiros que vierem a ser construídos na Quinta de Sá;

b) A, enquanto não se verificar a instalação no andar acima referido, garantir-lhe habitação em prédios seus;

c) A acompanhá-la em vida, garantindo tudo aquilo que sua mãe necessitar, especialmente em caso de doença, assegurando-lhe todos os meios, designadamente económicos no caso de os seus proventos para tal não se mostrarem suficientes;

d) A facultar a entrada e visita, durante o tempo que a mãe entender, na casa que na altura habitar, a todas as pessoas que a mãe entender alínea N) da matéria assente.

XV. Mediante escritura pública lavrada no dia 14.05.2004, no Cartório Notarial de Santo Tirso pelos autores, AA e mulher, BB, e o réu CC, declararam que, mediante a mesma, aqueles dão a este o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 1004, no valor de € 42.988,39, e recebem deste, em troca, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o n.º 2.736 e o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o n.º 2737º, de igual valor – alínea O) da matéria assente.

XVI. Os outorgantes da mesma escritura declararam, ainda, que, sendo idêntico o valor dos bens permutados não têm a receber uns dos outros – alínea P) da matéria assente.

XVII. Os autores nada receberam a título das tornas referidas em G) – alínea Q) da matéria assente.

XVIII. Em Setembro de 2005 as primeiras habitações com dois quartos do empreendimento imobiliário realizado na Quinta de Sá ficaram concluídas – alínea R) da matéria assente.

XIX. O valor venal de uma fracção no empreendimento Quinta de Sá, com dois quartos, é de € 125 000,00 – resposta ao ponto 1º da base instrutória.

XX. Os autores apenas outorgaram a escritura pública referida em B) porque havia sido assinado o documento mencionado em H) – resposta ao ponto 2º da base instrutória.

XXI. E porque convencidos de que os réus iriam transmitir-lhe o imóvel a que respeitam os pontos 5 e 6 do documento referido em H) – resposta ao ponto 3º da base instrutória.

XXII. O que os réus sabiam – resposta ao ponto 4º da base instrutória.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso, afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber:

- qual o sentido com que deve valer o acordo celebrado a fls. 33, em 9.3.1999, prévio à partilha extrajudicial da herança aberta por morte do Autor e dos RR. Carlos Carvalho e DD por morte do pai, em que os filhos e a viúva intervieram.

- se deve manter-se a condenação dos RR. como litigantes de má-fé.

Vejamos.

Falecido FF, pai do Autor Manuel António e dos RR. Carlos Carvalho e DD, os irmãos, tendo em conta que importava assegurar a situação pessoal e patrimonial da mãe e viúva Ana Moura, todos herdeiros do falecido, celebraram, por escrito, em 9.3.1999, um Acordo/Contrato [assim o apodaram] em que todos intervieram, bem como a Autora e as mulheres dos RR. que estabeleceu:

“Entre os que abaixo assinam (...) foi estabelecido o acordo que se regerá pelas seguintes cláusulas:

1. Por acordo entre todos, foi estabelecido realizar escritura pública de partilhas por óbito de FF, marido da primeira e pai dos segundos.

2. Serão adjudicados à primeira o prédio misto sito no lugar de Montezelo, inscrito na matriz da Freguesia de Fânzeres do Concelho de Gondomar, sob os arts. 850º e 851º (urbanos) e o art. 446º (rústico).

3. A primeira concorda com a restante divisão dos bens pelos seus três únicos filhos e aceita sem reservas que estes disponham destes imóveis da forma que entendam.

4. A fim de acautelar os seus rendimentos, que com a presente partilha poderão ficar prejudicados, os três filhos comprometem-se a entregar mensalmente à primeira a importância de 210.000$00 (sendo que cada um entrega 70.000$00).

Este valor deverá ser anualmente actualizável de acordo com os índices de inflação decretados pelo Governo.

5. Os filhos Alberto e Carlos comprometem-se a adquirir, no terreno actualmente designado pela Quinta de Sá, uma casa de habitação, com pelo menos dois quartos, ficando a primeira com o direito a viver nesse local durante o tempo e nas condições que assim o entenda, dispondo deste como se dele fosse proprietária;

6. Do referido será dono e legítimo possuidor o aqui contratante Manuel António, que neste acto autoriza a primeira a habitar por tempo indeterminado e sem retribuição o imóvel prometido comprar;

7. Todos os filhos da primeira comprometem-se a acompanhar a primeira, sua mãe, em vida, garantindo-lhe toda a assistência;

8. que lhe é devida, especialmente médica e medicamentosa, assegurando-lhe todos os meios económicos de que esta possa dispor.

9. Em caso de incumprimento do n.º 4 do presente acordo deverá o filho faltoso entregar à primeira, no mês seguinte a quantia em dívida acrescida de 50 %.

10. Os cônjuges BB e Maria Celeste de Azeredo Gouvêa de Castro Carvalho concordam e assinam o presente acordo.”

As partes discordam, sobretudo, quanto ao sentido e interpretação a dar aos pontos 4., 5. e 6.

O Autor entende que os RR. violaram a esse contrato  que deveremos considerar atípico – art. 405º, nº1, do Código Civil – que os vinculou, do ponto em que nunca compraram a casa de habitação referida no ponto 5. do acordo, que seria destinada a constituir património do Autor que sustenta que apenas subscreveu a partilha extrajudicial por morte do pai na convicção que os RR. honrariam esse compromisso e assim equilibrariam patrimonialmente a partilha que foi feita e, primo conspectu, resultou desvantajosa para si.

O equilíbrio e a equidade da partilha seriam repostos com a aquisição pelos RR. da casa de habitação que seria depois registada em nome do Autor e constituiria seu património, assim acertando os valores da partilha.

Mais alega, invocando a letra do acordo, que ele se destinava ainda a proteger a situação da mãe viúva, assegurando-lhe o direito de viver vitalícia e gratuitamente nessa casa, não obstante se destinar a ingressar no património do Autor. Os RR., por sua vez, discordam veementemente dessa interpretação, sustentando que a casa não visaria repor qualquer equilíbrio da partilha, mas servir de morada à mãe e, porque ela entretanto faleceu, a aquisição do imóvel, dada aquela finalidade, perdeu a sua razão de ser.

 Ante a extremada divergência, e não obstante ser de referir que os interessados, depois da morte dos progenitores sempre procederam à partilha dos bens extrajudicialmente, importa interpretar a declaração negocial constante daquele Acordo/Contrato, tendo como pedra angular e ponto de partida a consideração estimável que os filhos quiseram proteger a situação da mãe após a sua viuvez, assegurando-lhe bem estar material – cada um deles contribuiria mensalmente com 70.000$00 para as suas necessidades – sendo que, também, pretenderam acautelar a questão da habitação.

Porque aqui aparece a questão de saber se a falada compra da casa de habitação que acordaram se destinava ou não ao Autor, não obstante a mãe aí poder residir disponde dela “como se fosse proprietária”, importa, segundo as regras da hermenêutica negocial, proceder à interpretação da declaração negocial.

 Por regra, a vontade declarada deve coincidir com a vontade real porque só assim os interesses de declarante e de declaratários e até de terceiros ficam protegidos da arbitrariedade interpretativa.

Interpretar a declaração negocial é determinar o sentido (dos vários possíveis face à literalidade e aos interesses em causa) com que deve valer, numa perspectiva de actuação ética e do agir de boa-fé, ou seja, tendo em conta padrões de objectividade, rectidão e protecção dos interesses que o negócio visa regular.

Estamos imersos na problemática da interpretação da declaração negocial, sendo pertinente a convocação dos princípios da hermenêutica negocial.


No que concerne à interpretação da declaração negocial rege o art. 236º do Código Civil que dispõe:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 233, em nota ao art. 236º do Código Civil ensinam:

“ [...] A regra estabelecida no nº l, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, media­namente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).

(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectiva­mente atribuir.

 (...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”


O declaratário normal deve ser uma pessoa com – “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” – Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.
Ensina Menezes Cordeiro – “Tratado de Direito Civil Português l, Parte Geral. Tomo l”, 1999, págs. 478 e 479:
  “A doutrina actual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objectivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo”...“tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança…” […] “entendemos que a interpretação do negócio deve ser assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas.
Embora virada para as declarações concretas, ela deve ter em conta o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado, as regras supletivas que ele veio afastar e o regime que dele decorra.”

O art. 237º do mesmo diploma:

 

Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.”

O art. 238º do Código Civil fornece o critério de interpretação para os negócios formais, sendo aplicável no caso de ser cogente ou voluntária a solenidade contratual.

“1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Se sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade”.

Nos negócios formais rege o princípio - “falsa demosntratio non nocet”.

Heirinch Ewald Hörster, in “A Parte Geral do Código Civil Português -Teoria Geral do Direito Civil”, 1992, pág.511, acerca da falsa demonstratio escreve:

Esta ocorre em...situações em que declarante e declaratário se exprimem mal e se entendem bem, apesar de este entendimento comum contrariar o uso linguístico ou o sentido normal das expressões empregues.” 

Mais adiante, pág.512:

Quanto aos negócios formais, seja legal ou voluntária a forma adoptada, determina o nº1 do art. 238º que em princípio a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (...).

No entanto, um sentido que não tenha esta correspondência sempre pode valer se corresponder à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes de forma se não opuserem a essa validade (art. 238, nº 2).

Quer dizer, a regra “falsa demonstratio non nocet”, também se aplica a negócios formais (...).”

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11.11.92, in BMJ-421/364, sentenciou:

O Código Civil acolheu no artigo 236º, n.º1, a chamada “teoria da impressão do destinatário”. Segundo essa teoria, a declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante.

Mas, segundo o n.º2 daquele artigo, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é esta que prevalece ainda que haja divergência entre ela e a declarada, resultante da aplicação da teoria da impressão do destinatário.

A interpretação das cláusulas contratuais constitui “questão de direito”, cujo conhecimento é da competência do Supremo Tribunal de Justiça, mas a determinação da vontade real constitui matéria de facto, excluída daquela competência […]”

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2.2.88, in BMJ – 374, 436, doutrinou:

No tocante à interpretação, o artigo 236º, determinado por razões de protecção ao declaratário e de segurança do tráfico, consagrou a denominada teoria da impressão do destinatário, vindo privilegiar o sentido objectivo da declaração negocial temperado por um elemento de inspiração subjectivista: aquele sentido deixa de prevalecer quando não possa razoavelmente ser imputado ao declarante (n.º 1, “in fine”). O mesmo sentido objectivo igualmente é inatendível quando não coincida com a vontade real do declarante e esta seja conhecida do declaratário (n.º 2).

Assim, a interpretação das declarações negociais não se dirige, salvo no caso do artigo 236º, n.º 2, a fixar um facto simples – o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração –, mas o sentido jurídico, normativo, da declaração.

A integração dos negócios jurídicos postula, por seu turno, duas exigências: investigar o que as partes teriam querido se houvessem previsto o ponto omisso, e o que os ditames da boa fé impõem. Estando em causa a aplicação de critérios da lei, ainda que apoiados factualmente, trata-se, nos dois casos, de matéria de direito.” 

Mota Pinto – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – Coimbra Editora – Maio 2005 – pág. 446 e segs, ensina:

“…O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação.

De acordo com o critério propugnado, quanto ao problema do tipo do sentido negocial decisivo para a interpretação, também aqui se deverá operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.

A título exemplificativo, Manuel de Andrade referia os termos do negócio”; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.”.

Ao lado destas circunstâncias, referidas a título de exemplo, podem assinalar-se outras, designadamente “os modos de conduta por que, posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído”.

Sendo formal o contrato, desde logo o intérprete não pode adoptar, em caso de dúvida, sobre o sentido da declaração negocial, um sentido que não tenha no documento um mínimo de correspondência a menos que estejamos perante circunstâncias que permitam a consideração do princípio “falsa demonstratio non nocet”.

No caso importa, desde logo, partir da declaração negocial escrita – solenização voluntária – não sendo lícito acolher interpretação que não tenha no texto o mínimo de correspondência. Depois, seguindo a lição dos Mestres citados, importa ter em conta o sentido que uma pessoa medianamente sagaz, informada, sensível e prudente, colheria do texto se estivesse colocada na posição do destinatário real, conhecidas a sua intenção negocial e a do declarante e os interesses que visavam salvaguardar, bem como as circunstâncias envolventes, a que honestamente se poderia apelar, para surpreender o verdadeiro sentido das declarações de vontade.

Disto isto e sempre amparados aos factos provados, é inquestionável que a declaração negocial elaborada pelas partes e subscrita também pela falecida mãe do Autor e dos RR. Carlos e Alberto visou um compromisso que, apesar de assumido pela mãe dos litigantes seus filhos, se destinava não só a assegurar-lhe um interesse (o dispor de uma casa de habitação), como também a reintegrar o valor hereditário do Autor.

Lida e interpretada a declaração na sua integralidade e tendo em conta as circunstâncias em que foi elaborada é imperioso concluir que traduz essa intenção e vontade dos outorgantes.

Consta da referida declaração escrita:

 “5. Os filhos Alberto e Carlos comprometem-se a adquirir, no terreno actualmente designado pela Quinta de Sá, uma casa de habitação, com pelo menos dois quartos, ficando a primeira com o direito a viver nesse local durante o tempo e nas condições que assim o entenda, dispondo deste como se dele fosse proprietária;

6. Do referido será dono e legítimo possuidor o aqui contratante Manuel António, que neste acto autoriza a primeira a habitar por tempo indeterminado e sem retribuição o imóvel prometido comprar”.

Assim, a casa que os RR. se comprometiam a adquirir era destinada, em primeira linha, a proporcionar à mãe “o direito a viver nesse local durante o tempo e nas condições que assim o entenda, dispondo deste como se dele fosse proprietária”.

 A alusão a “como se fosse proprietária” pode ter algo de equívoco, por poder suscitar a consideração que o imóvel poderia, a partir daí aquisição, ser dela, como dona: os RR. adquiriam a casa de habitação que entregavam à mãe, podendo esta dispor como se fosse dona, proprietária, podendo exercer o domínio absoluto sobre ela.

 Tal interpretação é arredada pela clara e decisiva estipulação que dessa casa será dono e legítimo possuidor o Autor Manuel António que, naquele mesmo escrito se comprometeu a autorizar que a mãe habitasse a casa por tempo indeterminado e sem retribuição.

Em resumo, os RR. adquiriam a casa que seria para o Autor e este, como dono e possuidor desse imóvel, concederia o uso vitalício à mãe; assim, quando se alude a que esta poderia dispor da casa como proprietária, mais não se quis acordar que ela a usaria como muito bem entendesse, e não que disporia dos poderes absolutos conferidos a um titular do direito real de propriedade.

Tanto assim é, e tão claro é, que o acordo tinha a ver com a partilha dos bens do pai e com os interesses dos herdeiros – a mãe incluída – que se provou que os AA. apenas outorgaram a escritura pública de partilha porque havia sido assinada a declaração em apreço, e porque os AA. ficariam convencidos que os RR. iriam transmitir-lhe o imóvel, convencimento dos AA. que os RR. conheciam.

Assim, e sem embargo das declarações feitas nas escrituras de partilhas do pai e depois da mãe do Autor e dos RR. seus irmãos quanto a tornas e respectivo recebimento – questão que nada traz como subsídio interpretativo que conforte a tese dos RR. –, é manifesto que a declaração negocial constante daquele documento e também do de fls. 81, de 8.7.1998, este não assinado pela mãe mas reapresentando um compromisso dos irmãos – não teve outro sentido senão do que a aquisição do imóvel, a que se obrigaram os RR., era  para o transferir para a posse e propriedade do Autor.

Nesse documento de fls. 81 – Autor e RR. não questionam a validade do texto e das suas assinaturas – consta:

  “ 1. A mãe Ana concorda com a venda da Quinta de Sá e a realização posterior das partilhas dos restantes bens, excepto dos que se situam no lugar de Montezelo, Fânzeres, Gondomar, que ficarão exclusivamente para si, podendo ela deles dispor como bem entender.

2. Como, vendida a Quinta de Sá e realizadas as partilhas da maior parte dos bens, a mãe fica sem o rendimento que esses bens lhe davam, os filhos comprometem-se a entregar à mãe, cada um, mensalmente, a quantia de 70 mil escudos – valor actualizável anualmente conforme o aumento decretado pelo Governo para as rendas.

 3. Os filhos comprometem-se ainda:

 a) A garantir à mãe, vitaliciamente, o direito à habitação em andar a adquirir pelo Alberto e pelo Carlos e a registar em nome do Manuel, de entre os primeiros que vierem a ser construídos na Quinta de Sá;

b) A, enquanto não se verificar a instalação no andar acima referido, garantir-lhe habitação em prédios seus;

c) A acompanhá-la em vida, garantindo tudo aquilo de que a mãe necessitar, especialmente em caso de doença, assegurando-lhe todos os meios, designadamente económicos no caso de os seus proventos para tal não se mostrarem suficientes:

 d) A facultar a entrada e visita, durante o tempo que a mãe entender, na casa que na altura habitar, a todas as pessoas que a mãe entender”.

Sendo este acordo prévio, aqueloutro que em 1999 foi celebrado entre os mesmos e a sua mãe, mais cristalino se torna o compromisso de que a casa que os RR. se comprometeram a comprar seria da propriedade do Autor Manuel António e que este proporcionaria  o seu  uso vitalício à mãe.

As instâncias, acolhendo este entendimento, julgaram com acerto, sendo que a tese sustentada pelos RR., sem qualquer apoio na letra e no espírito do acordo negocial, não pode ser, como não foi acolhida, merecendo o modo como os RR. litigaram a  sua condenação como litigantes de má-fé.

Uma vez que a tal condenação, decretada em 1ª Instância foi confirmada pelo Acórdão recorrido, dela não cabe recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, razão pela qual não será tal questão apreciada por já se ter cumprido, quanto a ela, um grau de recurso[1] – art. 456º, nº3 do Código de Processo Civil.

Pelo que dissemos o recurso soçobra.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

                                                                Supremo Tribunal de Justiça, 25.10.2011

Fonseca Ramos ( Relator )
Salazar Casanova.
Fernandes do Vale.



[1] “A decisão da Relação relativamente a litigância de má fé, proferida sobre decisão da 1ª instância, não é passível de recurso para o Supremo, salvo se a questão da má fé estiver intrinsecamente ligada à decisão do mérito da causa” – Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17.4.2008, Proc. 08S149, www.dgsi.pt.