ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
273/05.2TBGVA.C1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/20/2011
SECÇÃO 1ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR HELDER ROQUE

DESCRITORES NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EFICÁCIA REAL
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PROMITENTE-VENDEDOR
INSOLVÊNCIA
TRADIÇÃO DA COISA
DIREITO DE RETENÇÃO

SUMÁRIO
I - Não se verifica a nulidade, por pronúncia indevida, quando o tribunal conhece de questão, ainda que não suscitada pelas partes, cuja apreciação oficiosa a lei permita ou imponha, ou quando a mesma se mostre indispensável para a solução do litígio.

II - Consistindo o pedido principal formulado na acção na execução específica do contrato-promessa, com fundamento no incumprimento culposo, não existe pronúncia indevida quando se decidiu, com base no mesmo pedido e idêntica causa de pedir, apenas se adoptando uma fundamentação jurídica distinta.

III - Não é admissível considerar subentendido o pedido de restituição de um prédio que, por sua natureza, deve ser explícito, com base na formulação do pedido de pagamento da indemnização pela sua ocupação e utilização, até efectiva desocupação e entrega do mesmo à respectiva parte reclamante, sob pena de nulidade, por pronúncia indevida.

IV - Apesar das partes terem declarado que o promitente-comprador não estava obrigada a entregar ao promitente-vendedor qualquer quantia, a título de sinal, deve presumir-se a sua existência como tal, quando o promitente-vendedor já tinha consigo um quantitativo que aquele era devido, contratualmente, pretendendo ambas apenas significar que não importava proceder ao reforço do sinal, que seria constituído pelo mesmo.

V - A suspensão obrigatória do contrato-promessa, em curso à data da declaração de insolvência, exige o preenchimento de três requisitos, ou seja, a natureza bilateral do contrato, o seu não cumprimento total, por ambas as partes, e a inexistência de regime diferente para os negócios, especialmente, regulados.

VI - Tendo ocorrido a entrega da coisa ao promitente-comprador, independentemente da eficácia real da promessa, só pode haver recusa do seu cumprimento, em virtude da declaração de insolvência, se nenhuma das partes tiver ainda cumprido, integralmente, a sua prestação.

VII - Uma vez declarada a insolvência do promitente-vendedor, o promitente-adquirente consumidor, beneficiário da promessa, sinalizada e com tradição da coisa, goza do direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, sendo titular de um direito real de garantia e não de um crédito comum.

VIII - No caso de existir tradição da coisa para o promitente-comprador, que já cumpriu, totalmente, a sua contra-prestação, a recusa do cumprimento do contrato-promessa, na hipótese de insolvência do promitente vendedor, por parte do administrador de insolvência, já se não afigura possível, independentemente de o contrato-promessa ter ou não eficácia real.

IX - É, meramente aparente, a incompatibilidade entre a situação do contrato-promessa, dotado ou sem eficácia real, mas em que aconteceu tradição da coisa, a favor do promitente comprador, para efeitos de, no primeiro caso, ao contrário do segundo, se justificar a recusa do seu cumprimento, por parte do administrador de insolvência.

X - O promissário, titular de um direito real de aquisição que prevalece sobre todos os direitos pessoais ou reais referentes à coisa, desde que não se encontrem registados antes do registo do contrato-promessa, tem a posse legítima do prédio que habita, em particular, se houver pago o preço e a coisa lhe tiver sido entregue “como se sua fosse”, até ser convencido do seu incumprimento culposo, hipótese em que o respectivo contrato-promessa termina, com a consequente obrigação de restituição do prédio ao promitente vendedor.

XI - Não existe uma relação de primazia da promessa, dotada ou não de eficácia real, em relação ao promitente-comprador, beneficiário do direito de retenção, que o obteve em consequência da tradição da coisa, operada aquando da celebração do contrato.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

AA, residente na Rua …, Condomínio ..., casa B, ..., Gouveia, propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB, residente na Avª ..., …, …, Gouveia, pedindo que, na sua procedência, seja proferida sentença que, por força da execução específica do contrato-promessa ajuizado, declare a autora e condene o réu a reconhecê-la como dona e legítima possuidora do imóvel identificado, condenando-se ainda o réu a pagar à autora a quantia que se vier a apurar ser suficiente para cancelar, junto da Caixa Geral de Depósitos, SA, a hipoteca que incide sobre esse prédio.

A título subsidiário, a autora pede a condenação do réu no pagamento da quantia de €146.646,58, correspondente ao dobro do sinal ou preço que recebeu com a retenção em seu poder das comissões devidas à autora, ou, para a hipótese de se considerar nulo o contrato-promessa, a condenação do réu no pagamento da quantia de €73.323,29 e juros, à taxa de 4%, desde 30 de Setembro de 2003, acrescidos de €18.335,81, referentes ao valor de comissões não pagas, nem imputadas no preço do contrato-promessa, conferindo-se à autora o direito de retenção sobre imóvel, enquanto essa quantia não for, integralmente, liquidada.

Alegou a autora, em síntese, com vista a alcançar a finalidade pretendida com a acção, que, por contrato escrito, datado de 30 de Junho de 2002, o réu prometeu vender à autora, que, por seu turno, prometeu comprar aquele, a fracção … de um prédio urbano, integrada em parte da área de um condomínio, não tendo as assinaturas apostas pelos signatários desse contrato sido reconhecidas, presencialmente, porque o réu prescindiu dessa formalidade, invocando não haver necessidade do seu cumprimento, sendo certo, também, que não foi feita menção à licença de utilização, na medida em que o réu ainda a não tinha conseguido obter, acordando-se, porém, que a escritura definitiva deveria ter lugar, até 30 de Agosto de 2003, mas sem se estipular a qual dos dois outorgantes caberia a sua marcação.

O réu, uns dias antes do final de Agosto de 2003, veio dizer que não faria a escritura, pelo que a autora lhe fixou um prazo admonitório ou suplementar de 30 dias, para o efeito, comunicando-lhe que a tinha marcado para 30 de Setembro de 2003, não obstante aquele não ter comparecido, nem haver justificado a ausência, assim incumprindo, culposamente, o contrato, no qual se havia consignado que a venda seria feita, livre de ónus ou encargos.

Por outro lado, continua a autora, no contrato-promessa, não foi fixado qualquer sinal, a pagar pela autora, uma vez que o réu tinha consigo 50% das comissões àquela devidas, no âmbito de um contrato de agência que haviam celebrado, pois que este contratou a autora como promotora de vendas das moradias construídas no condomínio, tendo a mesma direito a uma comissão de 5% ou de 2,5%, consoante a venda fosse feita, através da autora ou por outras agências, e ainda a metade da diferença entre o preço pretendido pelo réu e o preço efectivo da venda ao cliente, com excepção da moradia prometida à autora e de uma outra prometida a uma filha do réu, tendo a autora angariado compradores para as restantes moradias, pelo que, a título de comissões e de «overprice», o réu teria de lhe pagar €115.746,05, sendo certo que apenas efectuou entregas que totalizaram €24.086,95.

Conclui a autora que, a considerar-se que o montante retido pelo réu constitui sinal do contrato-promessa, compete a este dobrar a quantia correspondente ao preço de venda acordado, perfazendo €146.646,58, e a considerar-se nulo o contrato-promessa, por omissão de formalidades imputáveis à autora, esta tem o direito à restituição do que prestou, isto é, ao montante das comissões e a outros valores, até perfazer o preço da venda prometida realizar, acrescido de juros, desde a data do incumprimento definitivo.

Na contestação, o réu alega que não fala, não lê, nem escreve português, tendo assinado todos os contratos sem nunca os ler, desconhecendo as exigências legais, tais como o reconhecimento presencial das assinaturas e a certificação notarial da existência de licença de utilização, e ainda que a autora não está, legalmente, habilitada a exercer a mediação imobiliária, elaborar contratos-promessa e preparar escrituras de compra e venda, sendo certo que, por outro lado, esta concordou em receber uma comissão de 5% ou 2,5%, consoante fizesse a venda ou a mesma fosse realizada por terceiros, sobre o preço da tabela, e ainda em não receber qualquer comissão nas vendas efectuadas, exclusivamente, pelo réu, não constando do contrato esta última condição, porque a autora disse ao réu que tal era desnecessário, tendo, igualmente, acordado que os preços de tabela de venda seriam revistos, à medida que as casas fossem construídas, sendo as comissões calculadas em relação a esses preços e deduzidas no «overprice».

A isto acresce, conforme ficou, contratualmente, estipulado, que o réu reteve, a título de sinal, metade das comissões que acordou pagar à autora, pelo que só esse valor poderia ser considerado como sinal, impugnando, também, a alegada recusa em efectuar a escritura, em Setembro de 2003, o que apenas aconteceu, em virtude de ainda se encontrar em falta parte do preço da venda, e que pagou à autora €26.132,37, sendo certo que, até àquela data, esta apenas tinha direito a comissões, no montante de €46.687,63.

O réu pediu ainda a condenação da autora, em multa e indemnização, como litigante de má-fé, e, em sede reconvencional, solicitou a declaração de nulidade dos contratos, mencionados nos artigos 1º e 29º, da petição inicial [a], ou, a considerarem-se os mesmos válidos, a condenação da autora a reconhecer que o valor do sinal prestado equivale a metade das comissões apuradas, com referência à actividade por si prestada, até 30 de Setembro de 2003 [b], a condenação da autora pelo incumprimento culposo do contrato-promessa, com a consequente perda do sinal [c], mas, em qualquer caso, a condenação da autora em indemnização, pela ocupação e utilização que fez da casa objecto do contrato prometido, desde 30 de Junho de 2002 e até efectiva desocupação e entrega ao réu, computada em €250,00, por cada mês de ocupação, somando, até à data, a quantia de €9 500,00 [d].

Na réplica, a autora alega que o réu entende tudo o que lhe dizem e que discute, pormenorizadamente, qualquer cláusula, acordo ou negócio que lhe proponham, que nunca se recusou a celebrar a escritura, que nada deve ao réu e sempre ocupou a casa, sem oposição ou pedido de desocupação da mesma, impugnando a restante matéria de facto alegada pelo réu, referindo ainda que este confessou, extrajudicialmente, que já recebeu o preço do imóvel prometido vender, dando ainda o consentimento à sua ocupação, e concluiu pela improcedência deste pedido de desocupação, solicitando a condenação do réu como litigante de má-fé.

Na tréplica, o réu alega que não assinou a declaração de quitação que constitui a confissão invocada pela autora, mantendo o alegado na contestação e conclui pela impugnação da genuinidade e autenticidade do documento.

Foi admitida a ampliação do pedido descrito na alínea c), para o montante de €86.713,29, acrescido das restantes quantias aí referidas.

O réu foi, entretanto, declarado insolvente, por sentença transitada em julgado, vindo o respectivo administrador a intervir no processo, e passando a figurar, na qualidade de ré, a massa insolvente de BB.

A sentença indeferiu o pedido de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide [I] e, na total improcedência da acção, absolveu a ré massa insolvente de BB de todos os pedidos formulados pela autora AA [II].

Por seu turno, na parcial procedência da reconvenção, a sentença declarou a nulidade do contrato de mediação imobiliária outorgado entre a autora AA e o insolvente BB, condenando a autora a restituir à ré massa insolvente de BB a quantia de €26132,00 (vinte e seis mil cento e trinta dois euros) [III. i.], e condenando a autora a desocupar o imóvel que vem ocupando [III. ii.], mas absolveu a autora dos restantes pedidos deduzidos pela ré [IV] e julgou não verificada a litigância de má-fé da autora e ré [V].

Desta sentença, a autora interpôs recurso, pedindo, na parte final das alegações, que, alterando-se a decisão recorrida, no sentido de ser concedido o direito de execução específica ou, subsidiariamente, ser considerado que tem carácter de sinal a quantia entregue ou retida, a título de comissão, e, deste modo, ser a autora ainda absolvida do pedido reconvencional, tendo o Tribunal da Relação julgado, parcialmente, procedente a apelação, e, em consequência, revogou a sentença recorrida, na parte em que esta condena a autora «a restituir à ré massa insolvente de BB a quantia de €26.132,00», mantendo, porém, a douta decisão recorrida, em toda a sua parte restante.

Do acórdão da Relação de Coimbra, a autora interpôs agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua alteração, no sentido de ser decretada a nulidade de acórdão, conhecendo-se das questões em recurso, e de ser concedido o direito de execução específica, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, na totalidade:

1ª – Os efeitos da resolução imprópria, que opera ispo iure, sem necessidade de qualquer declaração.

2ª - Não havendo que decretar resolução relativa a contrato promessa, também a intimação da carta admonitória não tem que conter os elementos a que se refere o Acórdão da Relação.

3ª - Existe nulidade de acórdão, que conheceu de objecto diverso, pronunciando-se sobre a existência de questão que não havia sido recorrida na 1ª instância, que decidira que o incumprimento era do insolvente.

4ª - Declarado judicialmente o incumprimento culposo do promitente vendedor já não pode o administrador da massa declarar que não quer cumprir, dado que o incumprimento gerou imediatamente os efeitos da resolução imprópria, limitando-se o tribunal a concretizar os efeitos que decorrem da lei - no caso substituir apenas a declaração do faltoso.

5ª - A norma do artigo 106º do CIRE apenas visa regular as situações em que ainda não há esse incumprimento definitivo culposo, onde também ainda se pode recorrer à execução específica (sendo que o STJ, Ac. 21.01.2003, ao contrário de Calvão da Silva, admite essa mesmo em caso de mora).

6ª - Ou seja, deve ler-se tal norma apenas para os casos em que ainda não procedeu resolução, própria ou imprópria, e essencialmente onde ainda não decorreu uma situação de incumprimento culposo definitivo.

7ª - A alteração legislativa enunciada no preâmbulo do CIRE (“Poucas são as soluções que se mantiveram inalteradas neste domínio” e “deverá tratar-se de contrato em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento tanto pelo insolvente como pela outra parte”) dão-nos a exegese interpretativa de tal preceito.

8ª - Tal interpretação está de acordo com a potestividade da entrega do imóvel, que é afinal aquilo que se exige na acção de execução específica, adequando-se ao direito de retenção.

9ª - Deste modo, deve alterar-se a douta decisão no sentido de conceder o direito de execução específica do contrato.

10ª - Deve improceder a condenação na entrega da casa, que nem sequer foi peticionada na reconvenção, constituindo tal conhecimento nulidade da douta sentença (artigo 668 n° 1 al. d) do CPC).

11ª - Foram violadas as disposições dos artigos 106 do CIRE, 755 n° 1 alínea f do CC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando-se, porém, um novo facto, sob o nº 38, com base no teor de documentos e bem assim como no disposto pelos artigos 369º, nº 1 e 372º, do Código Civil, 659º, nº 3, 713º, nº 2 e 726º, do CPC:

1. Por acordo reduzido a escrito, celebrado em 30 de Junho de 2002 (e não 30 de Junho de 2001 como consta do mesmo), BB prometeu vender à autora, “livre de quaisquer ónus ou encargos”, e esta prometeu comprar-lhe o prédio formado por “fracção B composta de rés-do-chão e 1º andar com arrumos, aos quais foi atribuído o nº 2, destinado à habitação, constituída por sala, dois quartos, três casas de banho e cozinha equipada” [alínea A)].

2. Refere-se na cláusula 1ª do contrato, que a aludida fracção faz parte de um condomínio resultante de uma operação urbanística a que foram sujeitos os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Gouveia, sob os nºs … e … [alínea B)].

3. Os aludidos prédios, que pertenciam a BB, e que se situam na freguesia de ..., foram anexados e deram lugar ao prédio misto descrito sob o nº … [alínea C)].

4. Através da apresentação 02/171201, foi depois desanexado dessa descrição o prédio descrito sob o nº …, onde, por sua vez, foi reconstruído um edifício, constituído por seis moradias, integrado pelas fracções autónomas “A”, “B”, “C”, “D”, “E” e “F” [alínea D)].

5. Consta da cláusula 3ª do acordo, aludido em 1, que «o pagamento será efectuado pela já retenção de 50% do total das comissões em dívida à segunda outorgante da 1ª fase já concluída em Maio de 2002 e 50% do total das comissões em poder do primeiro outorgante, no acto das escrituras das primeiras oito fracções da segunda fase do projecto» [alínea E)].

6. Acordaram as partes que a autora não tinha de entregar a BB qualquer quantia, a título de sinal, dado que este já tinha consigo 50% das comissões devidas à autora, no âmbito de um denominado contrato de agência que haviam celebrado [alínea F)].

7. O preço acordado pela autora e BB foi de PTE 14.700.000$00/€73.323,29 [alínea G)].

8. Acordaram as partes que a escritura se realizaria, até 30 de Agosto de 2003 [alínea H)].

9. A autora remeteu a BB, em 30 de Agosto de 2003, uma carta registada com a comunicação de que tinha acabado de marcar a escritura, no Cartório Notarial de Gouveia, para 30 de Setembro de 2003 [alínea I)].

10. BB não compareceu, no Cartório Notarial de Gouveia, no dia 30 de Setembro, encontrando-se no aludido Cartório alguma documentação para a realização da escritura de compra e venda marcada [alínea J)].

11. Encontra-se registada hipoteca, a favor da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, sobre o imóvel objecto do contrato-promessa [alínea K)].

12. BB contratou a autora como “promotora de vendas” de todas as moradias construídas no aludido Condomínio da Estrela, por contrato celebrado por escrito, em 26 de Outubro de 2000 [alínea L)].

13. Ficou acordado que a autora receberia uma comissão de 5% sobre o valor fixado por BB para cada moradia, caso a venda fosse feita através da autora, uma comissão de 2,5% se essa venda se efectuasse através de outras agências, e metade da diferença entre o preço pretendido por BB e o preço efectivo da venda ao cliente (o chamado overprice) [alínea M)].

14. Para além de outras moradias projectadas, BB reconstruiu seis e edificou outras oito de raiz [alínea N)].

15. As seis moradias de raiz baptizou-as de A… (3 delas), C… (2 delas), C…, C… e E…, e as restantes (as reconstruídas) numerou de 1 a 5 e chamou W… a uma outra [alínea O)].

16. Por conta das aludidas comissões, BB fez entregas à autora, entre 19 de Novembro de 2000 e 1 de Junho de 2002, que totalizam, pelo menos, PTE 4.829.000$00/€ 24.086,95 [alínea P)].

17. A diferença até ao pagamento integral do preço do acordo, referido em 1, seria satisfeita pela retenção, por parte de BB, de outras comissões devidas à autora pela sua mediação imobiliária numa segunda fase do projecto que aquele desenvolvera [1º].

18. As assinaturas que as partes colocaram no aludido acordo não foram reconhecidas, presencialmente [2º].

19. Não foi feita menção à licença de utilização do prédio, porque BB ainda não tinha conseguido obtê-la [3º].

20. Em virtude de BB não querer celebrar a escritura pública, até ao dia estipulado no acordo (30 de Agosto de 2003), a autora fixou-lhe um prazo de mais 30 dias [5º].

21. Os preços mínimos que BB queria receber, por cada um dos imóveis aludidos em 15, eram os seguintes: i. A... 1 (hoje, conhecido por lote 4.5) – PTE 21.000.000$00; ii. A... 2 (hoje, conhecido por lote 4.4) – PTE 21.000.000$00; iii. A... 3 (hoje, conhecido por lote 4.3) – PTE 21.000.000$00; iv. C... 1 (hoje, conhecido por lote 4.2) – PTE 21.500.000$00; v. C... 2 (hoje, conhecido por lote 4.1) – PTE 21.500.000$00; vi. C... (hoje, conhecido por lote 3.3) – PTE 16.500.000$00; vii. C... (hoje, conhecido por lote 3.2) – PTE 14.000.000$00; viii. E... (hoje, conhecido por lote 3.1) – PTE 14.000.000$00; ix. Moradia 1 – PTE 16.000.000$00; x. Moradia 2 – PTE 14.700.000$00; xi. Moradia 3 – PTE 20.500.000$00; xii. Moradia 4 – PTE 14.500.000$00; xiii. Moradia 5 – PTE 17.500.000$00; e xiv. W… ou A… – PTE 16.000 000$00 [7º].

22. As moradias, aludidas em 15, foram vendidas pelos preços seguintes: i. A... 1 – PTE 22.000.000$00; ii. A... 2 – PTE 25.000.000$00; iii. C... 1 – PTE 25.000.000$00; iv. C... 2 – PTE 24.000.000$00; v. C... – PTE 17.500.000$00; vi. C... – PTE 16.000.000$00; vii. E... – PTE 14.500.000$00 [8º].

23. À excepção de duas moradias, uma prometida à autora, a moradia 2, e a outra a uma filha de BB (uma das denominadas A...), a autora arranjou compradores para as moradias, referidas em 22, pelo que, considerando as comissões devidas e o «overprice» conseguido, BB deveria pagar à autora €105.059,120 de capital (a que acrescem €7.003,94 de juros) [9º].

24. BB fala, apenas, algumas palavras em português, língua que nem lê, nem escreve [10º].

25. A autora, por vezes, traduzia, oralmente, para BB alguns documentos que lhe dava para assinar [11º].

26. BB assinou os contratos-promessa de venda das suas casas, como o aludido contrato, redigidos em língua portuguesa, língua que não lê [12º].

27. A autora não era agente imobiliária, legalmente, habilitada para exercer mediação imobiliária, fazer contratos-promessa e preparar escrituras de compra e venda (confissão), e BB aceitou remunerar a sua actividade, através de comissões e partilha do chamado «overprice» [14º].

28. Por contrato escrito, datado de 26 de Outubro de 2000, a autora e BB declararam: «Entre BB, proprietário do condomínio fechado, Vistas da …, e AA, promotora de vendas do mesmo, celebrou-se o seguinte acordo:

- Toda a construção é dada, para venda, em exclusivo, a AA;

- Sempre que se realize uma venda, através da promotora, esta recebe 5%. No caso da venda se efectuar, através de outras agências, a promotora receberá, apenas, 2,5%;

- No caso de existir overprice, esse valor será dividido pelo construtor e pela promotora, na percentagem de 50% para cada um, depois de retirados os 5% do valor inicial; (sublinhado corresponde à inscrição manuscrita);

- Sempre que o construtor alterar os preços tem de comunicar à promotora e esta fará o mesmo, no caso de venda;

- É por conta da promotora toda a divulgação, publicidade e acompanhamento dos clientes ao local do condomínio» [15º].

29. A 8ª casa da tabela (E...) foi a primeira a ser vendida, pelo preço de PTE 14.500.000$00 [27º].

30. As comissões devidas por BB resultaram dos seguintes negócios: i. Em 27 de Outubro de 2000, BB prometeu vender a CC a casa designada por E... – bungalow, pelo preço de PTE 14.500.000$00/€ 72.326,00; ii. Em 17 de Março de 2001, BB prometeu vender a DD a casa designada por C..., pelo preço de PTE 17.500.000$00/€ 87.290,00; iii. Em 10 de Abril de 2001, BB prometeu vender a EE a casa designada pelo nº 12, pelo preço de PTE 18.000.000$00/€ 89.784,00; iv. Em 30 de Abril de 2001, BB prometeu vender a FF a casa designada por C... – bungalow, pelo preço de PTE 16.000.000$00/€ 79.808,00; v. Em 10 de Maio de 2001, BB prometeu vender a GG a casa designada por Apartamento 1, pelo preço de PTE 18.500.000$00/€ 92.278,00; vi. Em 30 de Junho de 2001, BB prometeu vender a HH a casa designada por Apartamento 6, pelo preço de PTE 18.000.000$00/€ 89.784,00; vii. Em 18 de Julho de 2001, BB prometeu vender a II a casa designada por 3.1, pelo preço de PTE 23.500.000$00/€ 117.218,00; viii. Em 11 de Julho de 2001, BB prometeu vender a JJ a casa designada por A..., pelo preço de PTE 22.000.000$00/€ 109.736,00; ix. Em 23 de Julho de 2001, BB prometeu vender a KK a casa designada por C..., pelo preço de PTE 24.000.000$00/€119.711,00; x. Em 3 de Setembro de 2001, BB prometeu vender a LL... a casa designada por 1.2, pelo preço de PTE 22.000.000$00/€ 109.736,00; xi. Em 15 de Fevereiro de 2002, BB prometeu vender a MM a casa designada por C... nº 5, pelo preço de €124.700,00 [36º].

31. A autora recebeu, até Setembro de 2003, a quantia de, aproximadamente, €26.132,00 [40º].

32. No dia 30 de Setembro de 2003, às 17 horas, a autora e BB foram juntos para uma reunião, na Câmara Municipal de Gouveia [41º].

33. A autora utiliza a casa objecto do aludido acordo, desde Junho de 2002 [42º].

34. A autora reclamou, na insolvência de BB, a quantia de €112.063,04, correspondente a €105.059,10 de capital e €7.003,94 de juros, referentes a comissões de vendas (folhas 656 a 661).

35. Tal crédito foi integrado na relação de créditos reclamados, a que se refere o n.º 1, do artigo 129º, do CIRE, apresentada pelo Administrador da Insolvência (folhas 658), tendo sido reconhecido e graduado, na sentença proferida pelo Tribunal de Gouveia, em 28 de Julho de 2008 (folhas 672 dos autos).

36. A ora recorrente, já depois de reconhecido o seu crédito e de expirado o prazo de reclamações, requereu, no processo de insolvência, o reconhecimento do seu alegado direito de retenção sobre a casa em discussão nestes autos, tendo sido determinado o desentranhamento do referido requerimento (folhas 664), decisão confirmada por esta Relação (folhas 676) e pelo STJ (folhas 686).

37. A presente acção deu entrada em juízo, no dia 9 de Junho de 2005, o réu foi citado para os seus termos, no dia 14 de Junho de 2005 e a sentença que declarou a insolvência do réu BB foi proferida, a 8 de Janeiro de 2008, tendo transitado em julgado – Documentos de folhas 2, 41 e 415, respectivamente.

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da dupla nulidade do acórdão.

II – A questão do direito à execução específica do contrato-promessa de compra e venda de imóvel, no caso de declaração de insolvência do promitente vendedor.


                  I. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO

I. 1. Sustenta, desde logo, a autora que o acórdão é nulo, por ter conhecido de objecto diverso do pedido, pronunciando-se sobre a existência de questão que não havia sido recorrida na 1ª instância, ou seja, ao decidir que o incumprimento era do insolvente, mas, também, que é nulo, por ter confirmado a sentença, na parte em que esta, sem tal ter sido peticionado pelo réu, em sede reconvencional, decidiu condená-la na entrega da casa.

A sentença, conforme consta do antecedente relatório, absolveu a ré massa insolvente de BB de todos os pedidos formulados pela autora, mas, na parcial procedência da reconvenção, condenou a autora a desocupar o imóvel que vem ocupando.

Conhecendo do segmento da reconvenção em que o réu pedia a condenação da autora pelo incumprimento culposo do contrato promessa, com a consequente perda desse mesmo sinal, a sentença, considerando, por um lado, que, em virtude de a autora ter remetido ao insolvente uma carta registada com a comunicação de que tinha acabado de marcar a escritura, no Cartório Notarial de Gouveia, para 30 de Setembro de 2003, não tendo, contudo, este comparecido, e que, por outro, havia sido acordada a venda do imóvel, livre de quaisquer ónus ou encargos, quando sobre o mesmo impendia uma hipoteca, entendeu que ambas as situações consubstanciam um incumprimento culposo imputável ao insolvente.

Porém, o acórdão recorrido, sem que a autora tenha questionado a tese da sentença sobre o incumprimento culposo do contrato promessa imputável ao insolvente, ou o réu, que dela nem sequer apelou, entendeu, não obstante, que a autora “não logrou provar a conversão do incumprimento temporário (mora) em incumprimento definitivo”, confirmando o decidido pelo Tribunal de 1ª instância, quanto à condenação da autora a restituir ao réu a fracção objecto da promessa.

Dispõe o artigo 668º, nº 1, d), aplicável aos acórdãos da Relação, por força do preceituado no artigo 716º, nº 1, ambos do CPC, que “é nula a sentença quando o juiz…conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Efectivamente, existe uma situação de pronúncia indevida quando o Tribunal se ocupa de uma questão que as partes não tenham suscitado, a menos que a lei o permita ou imponha o conhecimento oficioso, na sequência do estipulado pelo artigo 660º, nº 2, parte final, do CPC.

Porém, não se verifica a nulidade proveniente de pronúncia indevida quando o tribunal conhece de questão indispensável para a solução do litígio, ainda que não levantada pelas partes[1].

Na hipótese em apreço, o acórdão recorrido não conheceu de questão que não podia apreciar, tendo-se limitado a confirmar o decidido pela sentença, quanto à condenação da autora a restituir ao réu a fracção objecto da promessa, muito embora com base em fundamentação jurídica distinta da adoptada pela 1ª instância, mas que não implicou qualquer alteração da causa de pedir.

Na verdade, não se encontrando o Tribunal sujeito às alegações das partes, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, por força do princípio do «iura novit curia», consagrado pelo artigo 664º, do CPC, as premissas da decisão não adquirem, por via de regra, força de caso julgado, quando não constituem antecedente lógico, necessário e imprescindível, da decisão final, como acontece quando a mesma decisão que condena a autora a restituir ao réu a fracção objecto da promessa se fundamenta não em incumprimento culposo imputável a este último, mas antes em incumprimento temporário ou mora do mesmo réu, o que não contende, manifestamente, com o núcleo essencial dos factos constitutivos ou das ocorrências da vida real constitutivas do direito do réu-reconvinte.

Consistindo o pedido principal formulado na acção, na execução específica do contrato-promessa, com fundamento no incumprimento culposo, e podendo este revestir as modalidades de incumprimento definitivo, da mora e do cumprimento defeituoso ou imperfeito, o dispositivo de ambas as decisões operou com o mesmo pedido e idêntica causa de pedir, apenas, em cada uma delas, se tendo adoptado uma fundamentação distinta.

Assim sendo, não ocorre a nulidade do acórdão, por pronúncia indevida.

I. 2. Alega, igualmente, a autora que o acórdão é nulo, por ter confirmado a sentença, na parte em que esta, sem tal ter sido peticionado pelo réu, em sede reconvencional, decidiu condená-la na entrega da casa.

O réu, em sede de reconvenção, pediu, além do mais, a condenação da autora-reconvinda no pagamento de uma indemnização pela ocupação e utilização que fez da casa objecto do contrato prometido, desde 30 de Junho de 2002 até efectiva desocupação e entrega ao réu, computada em €250,00, por cada mês de ocupação, somando, até à data, a quantia de €9 500,00.

Assim sendo, o réu não pediu a desocupação e entrega do prédio e bem assim como o pagamento de uma indemnização pela ocupação e utilização que a autora fez da casa objecto do contrato prometido, desde 30 de Junho de 2002 e até efectiva desocupação e entrega ao réu, mas, tão-só, repita-se, o pagamento de uma indemnização pela ocupação e utilização que a autora fez da casa objecto do contrato prometido, desde 30 de Junho de 2002 e até efectiva desocupação e entrega ao réu, computada em €250,00, por cada mês de ocupação.

Porém, a sentença, bem assim como o acórdão recorrido que, nesta parte, a confirmou, na parcial procedência da reconvenção, condenaram a autora a desocupar o imóvel que vem ocupando.

Ora, se o reconhecimento do direito de propriedade pode ser considerado como um pedido implícito, face ao pedido de restituição ou entrega da coisa[2], tal já não acontece com o pedido de desocupação e entrega do prédio, face ao pedido de pagamento de indemnização pela ocupação e utilização da coisa, até efectiva desocupação e entrega da mesma ao réu.

            Com efeito, não é admissível considerar subentendido o pedido de restituição que, por sua natureza, deve ser explícito, com base na formulação do pedido de pagamento da indemnização pela ocupação e utilização da coisa, até efectiva desocupação e entrega da mesma à respectiva parte reclamante[3].

            Como elemento identificador da acção, o pedido consiste, segundo a definição dada pelo artigo 498º, nº 3, na concretização do efeito jurídico que se pretende obter com a mesma, conforme se prevê nas várias alíneas do nº 2, do artigo 4º, em função do qual se fixam os limites da condenação, porquanto a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, nos termos do estipulado pelo artigo 668º, nº 1, e), todos do CPC, representando, portanto, o pedido o círculo fechado dentro do qual o Tribunal se tem de mover para definir a solução do conflito de interesses que é chamado a dirimir.

            Não pode, por isso, o Tribunal ultrapassar a tutela jurisdicional pretendida pela parte, até porque existem diversos tipos de acções, consoante o direito invocado e a providência jurisdicional requerida[4], sob pena de exceder o limite imposto por lei ao seu dever de condenar, com infracção do princípio do dispositivo, que impõe à parte circunscrever a questão a decidir.

            De todo o modo, inexistindo pedido explícito do réu quanto à restituição da fracção predial, o que implica a nulidade do acórdão, neste particular, por pronúncia indevida, nos termos do disposto pelos artigos 668º, nº 1, d), 2ª parte, e 716º, nº 1, ambos do CPC, urge ainda analisar, em II, se a mesma se impõe, imperativamente, como vem sustentado no acórdão recorrido.

Não obstante a insubsistência do pedido implícito, com a consequente falta de base legal para ordenar a restituição do prédio, importa, em seguida, por força do disposto no artigo 731º, nº 1, do CPC, após suprida a nulidade e alterado o decidido, conhecer do restante fundamento do recurso.

II. DA EXECUÇÃO ESPECÍFICA DO CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL, COM EFICÁCIA OBRIGACIONAL, NO CASO DE DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA DO PROMITENTE VENDEDOR

II. 1. Sustenta ainda a autora que lhe deve ser concedido o direito à execução específica do contrato-promessa, porquanto a declaração judicial de incumprimento culposo do promitente vendedor gerou, imediatamente, os efeitos da resolução imprópria, limitando-se o tribunal a substituir apenas a declaração do faltoso, sem que o administrador da massa possa recusar o cumprimento.

A sentença proferida em 1ª instância considerou imputável ao insolvente o incumprimento do contrato-promessa, a título definitivo e culposo, afastando a execução específica, apenas, devido à insolvência do réu, a que a autora é alheia, entendendo legítima a opção do administrador da insolvência no sentido da recusa do cumprimento do contrato-promessa.

Por seu turno, o acórdão recorrido, sustentando que, à partida, seria viável o recurso à execução específica, entende que se mostra legítima a recusa do administrador quanto ao cumprimento do contrato-promessa, atendendo a que existe incumprimento temporário ou mora do réu, e que o contrato-promessa não reveste eficácia real, com base no estipulado pelo artigo 106º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Efectuando uma síntese do essencial relevante para a decisão do núcleo essencial da questão objecto da revista, importa registar que, por acordo reduzido a escrito, celebrado em 30 de Junho de 2002, BB prometeu vender à autora, livre de quaisquer ónus ou encargos, e esta prometeu comprar-lhe, pelo preço de €73.323,29, uma fracção predial destinada à habitação, efectuando-se o pagamento pela já retenção de 50% do total das comissões em dívida aquela e de 50% do total das comissões em poder do primeiro, no acto das escrituras das primeiras oito fracções da segunda fase do projecto que o mesmo estava a executar e de que a autora era “promotora de vendas”, por contrato celebrado com aquele, em 26 de Outubro de 2000.

Acordaram, então, as partes que a autora não tinha de entregar a BB qualquer quantia, a título de sinal, dado que este já tinha consigo 50% das comissões que aquela eram devidas, no âmbito de um denominado contrato de agência que haviam celebrado entre si.

Tendo as partes acordado que a celebração da escritura ocorreria, até 30 de Agosto de 2003, a autora remeteu a BB, nesta data, uma carta registada, com a comunicação de que tinha acabado de marcar a escritura, no Cartório Notarial de Gouveia, onde se encontrava alguma documentação para a sua realização, para 30 de Setembro de 2003, não tendo, porém, aquele comparecido, na data e local assinalados.

Em virtude de BB não querer celebrar a escritura pública, até ao dia estipulado no acordo, isto é, 30 de Agosto de 2003, a autora fixou-lhe um prazo suplementar de 30 dias, sendo certo que sobre a fracção impendia o registo de uma hipoteca, a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA, e que a autora utilizava a casa, desde Junho de 2002.

II. 2. As partes declararam que a autora não estava obrigada a entregar a BB qualquer quantia, a título de sinal, dado que este já tinha consigo 50% das comissões que aquela eram devidas, no âmbito de um denominado contrato de agência que haviam celebrado um com o outro.

Preceitua o artigo 440º, do Código Civil (CC), que “se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa entregue o carácter de sinal”, sendo certo que o artigo 441º, do mesmo diploma legal, explicita que “no contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.

Trata-se de uma presunção legal ilidível, mediante prova em contrário, com base na oposta vontade real dos contraentes, atento o disposto pelo artigo 350º, nº 2, do CC[5], sendo certo, outrossim, que resulta, claramente, da lei que a quantia entregue pode ter o simultâneo alcance de constituição de sinal e de cumprimento antecipado da obrigação futura emergente do contrato prometido[6].

Por sua vez, o sinal é a coisa entregue por um dos contraentes ao outro, no momento do contrato, ou em data posterior, como garantia do cumprimento[7].

Deste modo, considerando que as partes, ao declararem que a autora não estava obrigada a entregar a BB qualquer quantia, a título de sinal, dado que este já tinha consigo 50% das comissões que aquela eram devidas, no âmbito de um denominado contrato de agência que haviam celebrado um com o outro, pretenderam significar que não importava reforçar o sinal, que seria constituído pela aludida percentagem das comissões que à autora eram devidas e que o réu tinha consigo, e que este quantitativo não foi entregue ao promitente-vendedor, aquando da celebração do contrato-promessa, por já se encontrar em seu poder, deve o mesmo ser qualificado como sinal, e nem as partes lograram ilidir a presunção que, assim, decorre do preceituado pelo artigo 441º, do CC.

II. 3. A promessa de contrato futuro ou o contrato-promessa é, nos termos do estipulado pelo artigo 410º, nº 1, do CC, “a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”.

A hipótese em discussão contende com o cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, com sinal passado, sem eficácia real, mas com tradição da coisa, de que resulta, como prestação devida, a emissão de uma declaração negocial destinada a celebrar o contrato prometido[8], que se consubstancia na outorga de uma escritura pública, que é uma formalidade «ad substantiam», como tal essencial à respectiva validade, atento o preceituado pelos artigos 875º, do CC, e 89º, a), do Código do Notariado.

O lesado com a não celebração do contrato prometido dispõe de duas vias no sentido de ver ultrapassada a situação de não cumprimento verificada, consistindo uma na execução específica do contrato-promessa, que pressupõe a simples mora, e a outra na resolução deste mesmo contrato, que tem subjacente o seu não cumprimento definitivo.

O não cumprimento da obrigação vem a ser a situação objectiva que se traduz na falta de realização da prestação debitória, com a consequente insatisfação do interesse do credor, independentemente da causa de onde a omissão procede[9].

No âmbito da responsabilidade contratual, que aqui interessa considerar, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, mas torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, desde que falte, culposamente, ao seu cumprimento, nos termos das disposições combinadas dos artigos 762º, nº 1 e 798º, do CC.

E das três modalidades de não cumprimento das obrigações, quanto ao efeito ou resultado produzido, ou seja, a falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, a mora e o cumprimento defeituoso ou imperfeito, apenas interessa relevar, para o caso decidendo, as hipóteses da mora e do incumprimento definitivo, porquanto a prestação debitória, a cargo do réu, promitente vendedor, mantinha-se em falta, pelo menos, à data da sua citação para os termos da acção, mas continua a poder ser efectuada, uma vez que a autora, até pelo teor do pedido constante das alegações da presente revista, conserva todo o interesse na celebração da respectiva escritura, não sendo esta acção mais do que a procura do suprimento judicial da declaração negocial do faltoso.

Assim sendo, não ocorre a situação da falta de cumprimento ou do incumprimento definitivo, nem a mora verificada se transformou em incumprimento definitivo, propriamente dito, que tem lugar, tão-só, nas três situações tipificadas, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 801º, 802º e 808º, nº 1, todos do CC, como seja se lhe sobrevier a impossibilidade da prestação, se o credor perder o interesse na mesma, ou, finalmente, em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório que o credor fixe, razoavelmente, ao devedor relapso, através do regime da interpelação admonitória, em conformidade com o estipulado pelo artigo 808º, nºs 1 e 2, do CC.

Por isso, se está, no caso «sub judice», perante uma hipótese de retardamento da prestação ou de «mora debitoris», com base no estipulado pelos artigos 801º e 804º, sendo certo que o réu não demonstrou, como lhe competia, atento o disposto pelos artigos 342º, nº 2 e 799º, todos do CC, a ausência de culpa.

Assim sendo, o contrato-promessa continuava válido e operante, a vincular ambas as partes, aquando da propositura da acção e ainda ao tempo da citação do réu para os seus termos.

II. 4. Entretanto, por sentença proferira, em 8 de Janeiro de 2008, transitada em julgado, o réu foi declarado insolvente, tendo-se o administrador da insolvência recusado a cumprir o contrato-promessa.

A definição do conceito de negócios em curso, ou seja, de negócios ainda não cumpridos, à data da declaração de insolvência, consta da norma genérica do artigo 102º, nº 1, completada pelos artigos 103º e 119º, todos do CIRE, pressupondo a existência de um contrato bilateral que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda obtido total cumprimento, por qualquer das partes, tendo como consequência que o seu cumprimento fique suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou pela recusa do cumprimento do contrato.

Com efeito, preceitua o artigo 102º, nº 1, do CIRE, que “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”.

Deste modo, a suspensão obrigatória do contrato-promessa, imposta pelo normativo legal acabado de transcrever, exige o preenchimento de três requisitos, ou seja, a natureza bilateral do contrato, o seu não cumprimento total, por ambas as partes, e a inexistência de regime diferente para os negócios, especialmente, regulados nos artigos seguintes.

Uma vez verificados estes pressupostos e tendo sido declarada a insolvência, o cumprimento do contrato fica, automaticamente, suspenso, sendo, então, atribuídas ao administrador, em alternativa, duas faculdades potestativas, cabendo-lhe optar entre a execução do contrato ou a recusa do seu cumprimento.

Apesar de se tratar de um direito potestativo, não se traduz num direito de exercício livre pelo administrador da insolvência, justificando-se uma ponderação casuística dos interesses implicados na manutenção ou extinção do negócio[10], sendo certo que o aludido princípio geral quanto aos negócios não cumpridos, constante da norma do artigo 102º, nº 1, fica subordinado às normas subsequentes dos artigos 103º a 119º, todos do CIRE, que consagram os efeitos especiais a respeito de cada uma das situações ou relações jurídicas do devedor, num articulado “dominantemente casuístico”[11].

Aliás, só havendo cumprimento total por ambas as partes se não está perante a figura dos negócios em curso, porquanto, desde que haja uma parcela, particularmente, relevante em aberto, ainda que só a cargo de uma das partes, o administrador da insolvência pode ou não determinar a sua execução[12].

E esta realidade é agora mais notória perante a nova redacção introduzida pelo DL nº 200/04, de 18 de Agosto, que alterou o artigo 120º, nº1, do CIRE, substituindo a expressão alternativa “quer pelo insolvente quer pela outra parte”, em que bastava o não cumprimento de uma para a aplicação do preceito, pela expressão copulativa “nem pelo insolvente nem pela outra parte”, donde resulta que o aludido dispositivo legal não se aplica se tiver havido cumprimento total por uma das partes.

No regime anterior do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (CPEREF), o contrato-promessa que se encontrasse ainda por cumprir, à data da declaração de falência, extinguia-se, automaticamente ou «ipso iure», por efeito da falência de qualquer um dos contraentes, configurando uma hipótese de caducidade do contrato, que não era inevitável, podendo o liquidatário, ouvida a comissão credores, optar pela celebração do contrato prometido, se o contraente «in bonis» realizasse, voluntariamente, o contrato definitivo, ou, pelo contrário, propor acção de execução específica se o contraente não falido se opusesse à celebração do contrato prometido, não vigorando, neste caso, o princípio da «par conditio creditorem»[13].

Com efeito, no âmbito do contrato-promessa, podem ocorrer situações em que ao administrador da insolvência é permitido optar pela recusa do cumprimento do contrato, suspendendo-se a sua execução, como decorre do preceituado pelo artigo 102º, a par de outras em que tal não acontece, quer na já mencionada situação do contrato-promessa com eficácia real, se tiver havido tradição da coisa, a favor do promitente-comprador, mas, também, quando uma das partes já tiver cumprido, totalmente, a sua obrigação, sendo, aliás, rara a hipótese de não haver, de nenhuma das partes, cumprimento total do contrato[14].

Assim, o artigo 106º, nº 1, do CIRE, a propósito da «promessa de contrato», estatui que “no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”.

II. 5. Efectivamente, o CIRE regula, apenas, de modo directo, no artigo 106º, nº 1, a situação do contrato-promessa com eficácia real, na eventualidade da declaração de insolvência do promitente-vendedor, estatuindo, expressamente, a propósito da «promessa de contrato», que “no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”.

Porém, no caso do contrato-promessa, os efeitos da declaração de insolvência variam consoante as partes lhe hajam ou não atribuído eficácia real e já tenha ou não havido tradição da coisa.

Na hipótese das partes terem optado pela atribuição de eficácia real ao contrato e de já ter havido tradição da coisa, a favor do promitente-comprador, à data da declaração de insolvência, considerando que este tem a posse do bem, o administrador da insolvência deve cumprir o mesmo e celebrar o contrato definitivo, sob pena de o promitente-comprador poder recorrer à execução específica, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 827º, 830º e 442º, nº 3, todos do CC.

Contudo, se as partes tiverem atribuído ao contrato-promessa eficácia, meramente obrigacional, e o promitente-comprador não tiver a posse do bem, à data da declaração de insolvência, ou se tendo aquele eficácia real, não tiver havido tradição da coisa, caberá ao administrador optar por cumprir ou recusar a sua execução, a menos que uma das partes já tenha cumprido, totalmente, a sua obrigação.

O artigo 106º, nº 1, do CIRE, omite a situação de o beneficiário da promessa sem eficácia real se encontrar na posse da coisa a que se refere o contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º, hipótese em que lhe é atribuído o direito de retenção, por força do disposto no artigo 755º, nº 1, f), do CC, que constitui uma garantia real atendível, em sede de insolvência.

Porém, se o artigo 106º, nº 1, do CIRE, só se aplica ao contrato- promessa com eficácia real, numa manifestação da relevância da situação real, já o respectivo nº 2 se reporta a todo o contrato-promessa, com eficácia real ou obrigacional, em que ainda não ocorreu a entrega da coisa ao promitente-comprador, o que é confirmado pela epígrafe do artigo «promessa de contrato» e não «contrato-promessa com eficácia real», ao estatuir que “à recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no nº 5 do artigo 104º [respeitante à «venda com reserva de propriedade e operações semelhantes»], com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor”, podendo haver recusa de cumprimento, nos termos gerais.

Assim, nas hipóteses do contrato de compra e venda com reserva de propriedade, do contrato de locação financeira e do contrato de locação com a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas, em que o vendedor ou o locador seja o insolvente, o adquirente ou locatário podem exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhes tiver sido entregue, na data da declaração da insolvência, atento o disposto pelo artigo 104º, nºs 1 e 2, do CIRE.

Quando a coisa foi já entregue ao promitente-comprador, por força da constituição de uma situação de natureza real ou possessória, «stricto sensu», o grau de solidez adquirido pela entrega tem um peso significativo nas opções do legislador, o que, coerentemente, pode justificar, «mutatis mutandis», em relação aos arrendamentos em que ainda não aconteceu a entrega do locado, que o administrador possa optar pela recusa do cumprimento, o que já não sucede, no caso de venda sem entrega, porquanto aqui a propriedade já se transmitiu, e só a entrega da coisa ainda se não efectuou, em conformidade com o estipulado pelos artigos 408º, nº 1, do CC, e 105º, nº 1, a), do CIRE.

Como assim, o contrato-promessa de compra e venda, sem eficácia real, não pode ser objecto de recusa de cumprimento se tiver ocorrido a tradição da coisa, a favor do promitente-comprador, de modo que só poderá haver recusa de execução do contrato se não tiver acontecido a entrega da coisa ao mesmo, ou se, tendo-se a mesma verificado, nenhuma das partes tiver cumprido, integralmente, a sua prestação.

Assim sendo, no caso de existir tradição da coisa para o promitente comprador, que já cumpriu, totalmente, a sua contra-prestação, a recusa do cumprimento do contrato-promessa, na hipótese de insolvência do promitente- vendedor, por parte do administrador de insolvência, já se não afigura possível, independentemente de o contrato-promessa ter ou não eficácia real, devendo, então, ser reconhecida, no âmbito da graduação de créditos, a garantia do direito de retenção, prevista pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC, com base numa interpretação correctiva do disposto pelo artigo 106º, do CIRE[15].

Defender-se a possibilidade de o administrador da insolvência recusar o cumprimento quando, independentemente de tradição, o contrato-promessa tenha eficácia, meramente obrigacional, com base no disposto pelo artigo 106º, nº 1, do CIRE, «a contrario sensu», que não permitiria a recusa do cumprimento apenas quando estejam reunidos aqueles três requisitos, isto é, a eficácia real do contrato-promessa, que o promitente-vendedor seja o insolvente e que tenha havido tradição, a favor do promitente-comprador[16], é, com o muito devido respeito, esquecer que este normativo legal constitui uma situação particular, expressamente, tipificada na lei, que, no aludido artigo 102º, do CIRE, encontra a regra geral da suspensão, obrigatória e automática, do cumprimento do contrato.

Por outro lado, face ao que já se expôs, o condicionalismo da hipótese versada pela norma do artigo 106º, nº 1, não é de molde a podê-la considerar como excepcional, de modo a erigir, a partir dela, um regime oposto, que seria o regime-regra, quando este já existe e consta do artigo 102º, nº 1, ambos do CC, o que esvazia a consistência do argumento, «a contrario sensu», em sede de interpretação da lei[17].

II. 6. O direito de retenção é um direito real de garantia que se traduz na faculdade de que goza uma pessoa de reter ou não restituir uma coisa alheia que possui ou detém enquanto não for paga do que lhe é devido, por causa dessa coisa, pelo respectivo proprietário[18].

E a autora goza do direito de retenção, na qualidade de beneficiária da promessa de transmissão do direito real que obteve por tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, promitente-adquirente consumidora, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º, por força do disposto pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC.

Deste modo, uma vez declarada a insolvência do promitente-vendedor, o promitente-adquirente beneficiário da promessa, sinalizado e com tradição da coisa, goza do direito de retenção sobre a mesma, sendo titular de um direito real de garantia e não um crédito comum[19].

Encontrando-se o réu em mora perante a autora, à data da declaração de insolvência, em virtude de se achar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, nomeadamente, o contrato prometido, como decorre do preceituado pelo artigo 3º, nº 1, do CIRE, a recusa da sua celebração pelo administrado da insolvência, resulta, objectivamente, de facto imputável ao réu, que permite a reconfiguração da relação jurídica subjacente[20] como a emergência de um crédito pelo não cumprimento, imputável à outra parte.

Por outro lado, esta norma do artigo 755º, nº 1, f), do CC, é, também, materialmente, uma norma de tutela do consumidor[21].

Com efeito, os interesses do promitente-adquirente de direitos reais sobre edifício ou fracções autónomas, já construídos ou a construir, beneficiam de um «acréscimo tutelar ou de segurança», por via, nomeadamente, da concessão do direito de retenção nas promessas que envolvam tradição do bem objecto do contrato prometido[22].

Com efeito, é, meramente aparente, a incompatibilidade entre a situação do contrato-promessa, dotado ou sem eficácia real, mas em que aconteceu tradição da coisa, a favor do promitente-comprador, para efeitos de, no primeiro caso, ao contrário do segundo, se justificar a recusa do seu cumprimento, por parte do administrador de insolvência, atento o preceituado pela artigo 106º, nº1, do CIRE.

É que, o exercício do direito de retenção pelo promitente-comprador pressupõe uma situação de incumprimento e, consequentemente, inexiste fundamento para a recusa de cumprimento, por parte do administrador de insolvência, nem para a aplicação do preceituado pelo artigo 102º, nº 1, do CIRE[23].

Na verdade, no âmbito das finalidades prosseguidas pelo processo de insolvência, que tem subjacente o princípio da igualdade dos credores, que visa impedir que, após a declaração de insolvência, algum deles possa obter uma satisfação mais eficaz, em relação e com prejuízo dos restantes, o cumprimento dos negócios em curso pelo administrador não deve apenas estar orientado por uma ideia de mera conveniência para os interesses da massa, com vista à satisfação mais completa possível do maior número possível de credores[24], mas, também, perspectivar a posição do contraente «in bonis», que não tem de ficar, por força do desenlace, quantas vezes súbito e inesperado, da insolvência, em pior situação do que se encontraria se o contrato prometido viesse a ser celebrado, sujeito ao risco de não ser possível, nos sucessivos rateios, o pagamento integral do montante do seu crédito.

II. 7. Dispõe o artigo 413º, nº 1, do CC, a propósito da eficácia real da promessa, que “à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo”.

A atribuição de eficácia real à promessa confere ao promissário, a par do direito obrigacional de poder exigir do promitente a realização da prestação prometida, ou seja, a celebração do contrato objecto da promessa, ou a devida indemnização compensatória, também a faculdade, oponível a terceiros ou «erga omnes», de adquirir, potestativamente, o direito, objecto da promessa de transmissão ou constituição, independentemente de qualquer colaboração do promitente, o que determina a invalidade ou ineficácia dos actos jurídicos realizados em sua violação, ficando o promissário dotado de um direito real de aquisição que prevalece sobre todos os direitos pessoais ou reais referentes à coisa, desde que não se encontrem registados antes do registo do contrato-promessa[25].

Por seu turno, o titular do direito de retenção, qualidade de que gozam os beneficiários da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, atento o preceituado pelo artigo 755, nº 1, f), do CC, permanecendo, no prédio, habitando-o, até à outorga da escritura pública de compra e venda ou até à resolução do contrato, tem a posse legítima do bem, em particular, se houver pago o preço e a coisa lhe tiver sido entregue «como se sua fosse», até ser convencido do seu incumprimento culposo, com exclusão do incumprimento, por parte do promitente-vendedor, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1251º, 1253º, e 1306º, do CC, não é obrigado a restituir o prédio ao promitente-vendedor se não tiver ocorrido qualquer uma dessas circunstâncias, hipótese em que, então, o respectivo contrato-promessa termina com a consequente obrigação de restituição do prédio ao promitente-vendedor[26].

Por isso, não sendo o direito de retenção, conferido pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC, um direito real de gozo, mas antes um direito real de garantia privilegiado, acaba por revestir, na prática, uma eficácia superior aquela de que goza a promessa com eficácia real, em especial, quando, havendo conflito entre os dois promissários, a tradição da coisa feita a um tenha sido posterior ao registo da promessa com eficácia real a favor do outro.

Com efeito, se o promitente-vendedor de um imóvel, ainda que dotada a promessa de eficácia real e tendo o promitente-comprador levado, imediatamente, o seu direito a registo, vier mais tarde a prometer vender o mesmo a um terceiro, permitindo a este a sua imediata ocupação, de nada aproveitará ao primeiro promitente-comprador a eficácia real da promessa e a autoridade do seu direito, nem sequer o registo da sua aquisição definitiva, com vista a desalojar do prédio o segundo promitente-comprador, enquanto este, dotado do direito de retenção, não for, integralmente, pago do seu crédito[27].

Deste modo, não existe uma relação de antinomia entre a promessa, dotada ou não de eficácia real, desde que o promitente-comprador seja beneficiário do direito de retenção que obteve, em consequência da tradição da coisa, por força do disposto pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC.

Inexistindo o direito potestativo de recusa do cumprimento pelo administrador de insolvência, ocorre o dever de celebrar o contrato prometido, sob pena da prática de um acto ilícito e culposo.

E, não podendo o administrador da insolvência recusar o cumprimento do contrato-promessa, procede o pedido de execução específica do mesmo, condenando-se a ré, na pessoa do administrador da insolvência, a celebrar a correspondente escritura pública de compra e venda da fracção predial em causa, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 827º, 830º e 442º, nº 3, do CC.

Considerando que a relação sinalagmática em que se traduz o contrato prometido de compra e venda, importa a transmissão da propriedade da coisa, que a autora já recebeu, por tradição, mediante um preço, que esta tem de satisfazer, nos termos do preceituado pelos artigos 876º e 879º, b) e c), do CC, considerando ainda que a autora já efectuou o seu pagamento parcial, através da retenção de 50% do total das comissões que lhe eram devidas pelo réu, aquando da celebração da promessa, que funcionou como sinal, sendo ainda credora de 50% do total das comissões em poder de BB, em relação ao preço acordado do prédio, no montante global de €73.323,29, condena-se, igualmente, a autora a pagar à ré massa insolvente de BB o quantitativo que, a este título, se vier a liquidar em execução, nos termos do disposto pelo artigo 661º, nº 2, do CPC, com a consequente dedução ou abatimento na quantia de €112.063,04, correspondendo €105.059,10 a capital e €7.003,94 a juros, referentes a comissões de vendas, reclamada pela autora, e já reconhecida e graduada por sentença, no processo de insolvência de BB.

CONCLUSÕES:

I - Não se verifica a nulidade, por pronúncia indevida, quando o tribunal conhece de questão, ainda que não suscitada pelas partes, cuja apreciação oficiosa a lei permita ou imponha, ou quando a mesma se mostre indispensável para a solução do litígio.

II - Consistindo o pedido principal formulado na acção na execução específica do contrato-promessa, com fundamento no incumprimento culposo, não existe pronúncia indevida quando se decidiu, com base no mesmo pedido e idêntica causa de pedir, apenas se adoptando uma fundamentação jurídica distinta.

III - Não é admissível considerar subentendido o pedido de restituição de um prédio que, por sua natureza, deve ser explícito, com base na formulação do pedido de pagamento da indemnização pela sua ocupação e utilização, até efectiva desocupação e entrega do mesmo à respectiva parte reclamante, sob pena de nulidade, por pronúncia indevida.

IV - Apesar das partes terem declarado que o promitente-comprador não estava obrigada a entregar ao promitente-vendedor qualquer quantia, a título de sinal, deve presumir-se a sua existência como tal, quando o promitente-vendedor já tinha consigo um quantitativo que aquele era devido, contratualmente, pretendendo ambas apenas significar que não importava proceder ao reforço do sinal, que seria constituído pelo mesmo.

V – A suspensão obrigatória do contrato-promessa, em curso à data da declaração de insolvência, exige o preenchimento de três requisitos, ou seja, a natureza bilateral do contrato, o seu não cumprimento total, por ambas as partes, e a inexistência de regime diferente para os negócios, especialmente, regulados.

VI - Tendo ocorrido a entrega da coisa ao promitente-comprador, independentemente da eficácia real da promessa, só pode haver recusa do seu cumprimento, em virtude da declaração de insolvência, se nenhuma das partes tiver ainda cumprido, integralmente, a sua prestação.

VII - Uma vez declarada a insolvência do promitente-vendedor, o promitente-adquirente consumidor, beneficiário da promessa, sinalizada e com tradição da coisa, goza do direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, sendo titular de um direito real de garantia e não de um crédito comum.

VIII - No caso de existir tradição da coisa para o promitente-comprador, que já cumpriu, totalmente, a sua contra-prestação, a recusa do cumprimento do contrato-promessa, na hipótese de insolvência do promitente vendedor, por parte do administrador de insolvência, já se não afigura possível, independentemente de o contrato-promessa ter ou não eficácia real.

IX -  É, meramente aparente, a incompatibilidade entre a situação do contrato-promessa, dotado ou sem eficácia real, mas em que aconteceu tradição da coisa, a favor do promitente comprador, para efeitos de, no primeiro caso, ao contrário do segundo, se justificar a recusa do seu cumprimento, por parte do administrador de insolvência.

X – O promissário, titular de um direito real de aquisição que prevalece sobre todos os direitos pessoais ou reais referentes à coisa, desde que não se encontrem registados antes do registo do contrato-promessa, tem a posse legítima do prédio que habita, em particular, se houver pago o preço e a coisa lhe tiver sido entregue «como se sua fosse», até ser convencido do seu incumprimento culposo, hipótese em que o respectivo contrato-promessa termina, com a consequente obrigação de restituição do prédio ao promitente vendedor.

XI - Não existe uma relação de primazia da promessa, dotada ou não de eficácia real, em relação ao promitente-comprador, beneficiário do direito de retenção, que o obteve em consequência da tradição da coisa, operada aquando da celebração do contrato.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista e, em consequência, embora com base em fundamentação diversa, revogam o acórdão recorrido, reconhecendo a autora AA, de modo a produzir os efeitos da declaração negocial do faltoso, por força da execução específica do contrato-promessa ajuizado que aqui se opera, como proprietária do prédio urbano, formado por “fracção B composta de rés-do-chão e 1º andar com arrumos, aos quais foi atribuído o nº 2, destinado à habitação, constituída por sala, dois quartos, três casas de banho e cozinha equipada, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº …”, condenando-se a ré massa insolvente de BB a reconhecer a autora como dona e legítima possuidora do imóvel identificado, condenando-se a autora, igualmente, a pagar à ré o quantitativo que se vier a liquidar em execução, nos termos do disposto pelo artigo 661º, nº 2, do CPC, a título de cumprimento parcial da contraprestação devida, com a consequente dedução ou abatimento na quantia de €112.063,04, reclamada pela autora, e já reconhecida e graduada por sentença, no processo de insolvência de BB, mas absolvendo-se a autora do pedido reconvencional de desocupação do imóvel em análise, confirmando-se, quanto a tudo o mais, o douto acórdão recorrido.

                                    

Custas da revista, a cargo da ré massa insolvente de BB.

Notifique.

Lisboa, 20 de Outubro de 2011

Helder Roque (Relator)

Gregório da Silva Jesus

Martins de Sousa

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[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, 1981, 144.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 2ª edição, revista e actualizada, 113.
[3] STJ, de 2-12-2008, Pº nº 08A2353, www.dgsi.pt
[4] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 109 e 110; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 106.
[5] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, reimpressão da 4ª edição de Abril de 2002, 2007, 281; Dias Marques, Código Civil, 2ª edição, 116.
[6] Almeida Costa, RLJ, Ano 117º, 59.
[7] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 221, nota (112).
[8] Almeida Costa, Contrato-Promessa, Uma Síntese do Regime Vigente, 7ª edição, revista e actualizada, 2001, 11 e 12.
[9] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 1974, 59.
[10] Luís C... Fernandes, Efeitos Substantivos da Declaração de Falência, Direito e Justiça, 1995, IX, 46.
[11] Oliveira Ascensão, Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso, ROA, Ano 65, Setembro de 2005, 286.
[12] Oliveira Ascensão, Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso, ROA, Ano 65, Setembro de 2005, 290.
[13] Maria do Rosário Epifânio, Os Efeitos Substantivos da Falência, Universidade Católica do Porto, 2000, 290 e 291. 
[14] Meneses Leitão, Código da Insolvência e da Reparação de Empresas Anotado, 5ª edição, 2009, 145 e 146.
[15] Meneses Leitão, Código da Insolvência e da Reparação de Empresas Anotado, 5ª edição, 2009, 145 e 146; e Direito de Insolvência, 2011, 3ª edição, 192 e 193; José Carlos Brandão de Proença, Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes-adquirentes de bens imóveis (maxime, com fim habitacional), Cadernos de Direito Privado, 2008, nº 22, 21.
[16] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, 2010, 91 e 92.
[17] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 6ª edição, revista e ampliada, 1965,125; Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 13ª reimpressão, 2002, 187.
[18] Vaz Serra, RLJ, Ano 104º, 200.
[19] Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 12ª edição, revista e aumentada, 2007, 119 e 120; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 430 e 431; STJ, de 22-2-2011, Pº nº 1548/06. 9TBEPS.G1.S1; e STJ, de 12-5-2011, Pº nº 5151/06. TBAVR.C1.S1, www.dgsi.pt
[20] Oliveira Ascensão, Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso, ROA, Ano 65, Setembro de 2005, 306.
[21] Miguel Pestana Vasconcelos, Direito de Retenção, Contrato-Promessa e Insolvência, Cadernos de Direito Privado, nº 33, Janeiro/Março de 2011, 8, 9, 25, 26, 28 e 29.
[22] José Carlos Brandão de Proença, Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes-adquirentes de bens imóveis (maxime, com fim habitacional), Cadernos de Direito Privado, 2008, nº 22, 7.
[23] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 149, nota (401).
[24] Meneses Leitão, Direito de Insolvência, 2011, 3ª edição, 172; Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, 2010, 83.
[25] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 148 e 149; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 411 e 412; e RLJ, Ano 117º, 21; Penha Gonçalves, Direitos Reais, 2ª edição, 1993, 210.
[26] STJ, de 4-12-84, BMJ nº 342, 347; STJ, de 11-3-99, BMJ nº 485, 404.
[27] Antunes Varela, RLJ, Ano 121º, 33 e 34.