ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
168/09.0TBLMG-A.C1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/17/2011
SECÇÃO 7ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA PARCIALMENTE
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA

DESCRITORES TÍTULO EXECUTIVO
EXEQUIBILIDADE
DOCUMENTO PARTICULAR
CONFISSÃO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
LETRA
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 220º, 238º, 289º, 358º, 374º, 376º, 458º, 1143º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 46º, 810º, 814º, 816º
LEI UNIFORME DAS LETRAS E LIVRANÇAS, ARTIGOS 10º E 27º
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA, WWW.DGSI.PT :
– DE 23 DE ABRIL DE 2009, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 08B3905
– DE 21 DE OUTUBRO DE 2010, PROC. Nº 172/08.6TBGRD-A.S1
– DE 1 DE FEVEREIRO DE 2011, PROC. Nº 7273/07.6TBMAI-A.P1.S1


SUMÁRIO
1. A força executiva dos documentos seleccionados como títulos executivos pelo citado artigo 46º do Código de Processo Civil assenta na sua especial força probatória.
2. Não é título executivo um documento que apenas prova que o seu autor recebeu uma determinada quantia e declarou que a devolverá no circunstancialismo nele indicado, cuja verificação não prova.
3. Tal documento não pode ser interpretado no sentido de revelar um empréstimo, pois que se trataria de um mútuo para o qual a lei aplicável exige a forma de escritura pública, sendo certo que dele não consta a causa específica do mútuo.
4. Admitir a alegação do mútuo na contestação da oposição implicaria permitir a invocação, nesse momento, de uma nova causa de pedir, o que não é legalmente admissível.
5. Uma letra aceite pelo executado constitui título executivo.
6. No âmbito das relações imediatas entre exequente e executado, pode ser discutida a relação extra-cartular que os liga.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e BB, executados, deduziram oposição à execução contra eles movida por CC, exequente.

Em síntese, invocaram a inexequibilidade dos títulos em que a execução se baseou, uma letra (por não corresponder a “nenhuma relação jurídica”, a “qualquer transacção comercial” entre as partes, “o que acarreta nulidade e invalidade do título para os fins pretendidos”; por ter sido assinada em branco e preenchida “sem conhecimento dos autores em termos exactos”) e um documento particular assinado pelo executado (que, “no efeito cominatório, é nulo”, pois “o A. não tem, nem tinha, poderes para transmitir ao R. a quota da sociedade (…) do seu filho, por isso o A. não pode ter assumido a obrigação que o R. pretende estar implícita”).

O exequente contestou, afirmando, por entre o mais, que “os títulos (…) são válidos e com valor executivo”, correspondendo a empréstimos feitos aos executados.

A oposição foi julgada (parcialmente) improcedente pela sentença de fls. 113, nestes termos:

“(…) julgo parcialmente improcedente, por não provada, a presente oposição à execução (…) e determino que (…) seja reformulado o cálculo dos juros sobre o capital de € 74.819,68 (…) por forma a que, ao invés de lhe ser aplicada a taxa de 5%, os mesmos sejam calculados à taxa de 4%, prosseguindo tal execução, no demais, a sua normal tramitação”.

Todavia, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 170, proferido em recurso de apelação interposto pelos opoentes, julgou a oposição totalmente procedente, determinando consequentemente a extinção da execução.

O exequente recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso foi admitido como revista, com efeito devolutivo.

2. Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1ª- Foram dados à execução dois documentos que devem ser considerados como títulos executivos, face ao princípio da legalidade constante do art. 46º do CPC, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução, documentos a que seja legalmente atribuída força executiva.

(…).

3a - Da declaração subscrita pelo executado e junta a fls. 25, resulta claro estarmos perante um documento particular que deverá ser considerado corno título executivo, tanto mais que não constando dele a relação fundamental não foi feita prova da existência de qualquer vício pelos oponentes – ónus que sobre estes recaía – que infirmasse a sua qualidade executiva, ao invés até se provou existir na sua base um contrato de mútuo. 4a - Do documento particular, assinado pelo executado não resulta outra coisa senão o reconhecimento da constituição de uma obrigação, precisamente a obrigação do seu pagamento; aliás, tal requisito consta ali expressamente inscrito, contendo esta declaração todos os requisitos para que se erija um documento particular à qualidade de título executivo.

5ª - A letra de câmbio aqui em questão e dada à execução foi assinada pelos executados, no local destinado ao aceite e por estes aposto nesta o seu aval. Resultou ainda provada existência de um contrato de mútuo entre o exequente e os executados e a entrega dos valores que levaram à emissão de tal letra.

6a - A declaração junta a fls. 25  enquadra-se no reconhecimento de dívida previsto no art. 458º do Código Civil que inverte o ónus de prova, mas não obsta a que o devedor possa provar que afinal não existe a relação subjacente, que é a causa justificativa daquela, o que, os recorrentes não fizeram.

7a - Ao não serem considerados títulos executivos, sobre o exequente recai grave prejuízo, seguramente de maior grandeza que a necessidade de certeza incorporada nos títulos aqui em questão ou a segurança das obrigações estabelecidas, que aqui estão protegida, atendendo à prova do contrato de mútuo feita e já apreciada nos autos.

8ª  - Foi indevidamente interpretada a norma do artº. 46°, c) do CPC e ainda a norma constante no art. 458° do Código Civil, que assim resultaram violadas e que devem ser interpretadas de acordo com a posição que acima deixamos expressa”.

Não houve contra-alegações.

3. Vem provada a seguinte matéria de facto (transcreve-se do acórdão recorrido, que desatendeu a impugnação de parte da decisão de facto da 1ª Instância):

«5.1 - Os executados oponentes têm um filho – DD – de quem o exequente é conhecido;

5.2 - O filho dos executados explorou um negócio de comércio de calçado através da sociedade «S................, Ldª»;

5.3 - O exequente cedeu, temporariamente e de forma gratuita ao filho dos executados, DD, uma casa para este morar, no Brasil;

5.4 - No dia 16 de Setembro de 2004, no Cartório Notarial de Peso da Régua, DD, na qualidade de sócio da sociedade com a firma «S......, Ldª» constituiu seu procurador CC, mediante procuração cujos termos constam de fls.64 dos autos;

5.5 - A letra dada à execução foi assinada pelos executados, no local destinado ao aceite;

5.6 - O exequente fez um empréstimo aos executados, tendo em 18/11/2004 emitido o cheque n°000000000, no valor de 74.819,68 €, sacado sobre o «Banco Millenium BCP», emitido à ordem do executado BB;

5.7 - O executado recebeu essa quantia;

5.8 - Em 3 de Maio de 2005, o exequente emitiu um cheque no valor de 25.000,00 € com o n°0000000000 à ordem do executado marido, também sacado sobre o «Banco Millenium BCP»;

5.9 - O executado recebeu e fez sua tal quantia;

5.10 - Sobre a quantia referida na resposta dada ao artigo 5.6, o executado marido emitiu a declaração junta a fls.25, a qual foi integralmente escrita no escritório daquele, onde o exequente compareceu para lhe entregar o cheque que tem a mesma data;

5.11 - Respeitante à quantia mencionada na resposta dada ao artigo 5.8 por acordo entre o exequente e os executados, foi acertado, na data que consta da letra dada à execução, que a quantia devida naquele momento era a de 31.992,78 €, a qual foi preenchida pela executada;

5.12 - O filho dos executados, DD, em Setembro de 2004 pretendia ir para o Brasil por se encontrar com problemas financeiros, e foi apresentado ao exequente por uma amiga comum, EE, a pedido de quem o exequente lhe emprestou uma vivenda que possuía em Salvador da Baía;

5.13 - Apesar de o aludido filho dos executados ter outorgado a favor do exequente a procuração referida, este nunca praticou qualquer acto com a mesma;

5.14 - O exequente pediu aos executados para lhe pagarem os valores em débito;

5.15 - Os executados responderam que iriam vender um terreno e a seguir lhe pagariam;

5.16 - O executado pediu o valor constante da execução apensa por carta registada datada de 14/1/2009.»

4. Está em causa a exequibilidade dos documentos de fls. 25 (a declaração assinada pelo executado) e de fls. 27 (a letra).

Entendeu-se em 1ª Instância que a declaração de fls. 25, conjugada com a prova feita (“factualidade vertida nos pontos 5.6, 5.7, 5.8, 5.9, 5.10. 5.11 e 5.15”), incorpora um reconhecimento de dívida (nº 1 do artigo 458º do Código Civil); que a “relação fundamental” correspondente era um mútuo; que tal mútuo era nulo por falta de forma; mas que, “sendo devida a quantia em questão”, se aplicava o regime da nulidade (que é de conhecimento oficioso), reduzindo à taxa legal a taxa de juro estipulada.

No que respeita à letra, a 1ª Instância considerou estar também assente “um empréstimo inicial pelo exequente aos executados no montante de € 25.000,00, quantia entregue por cheque (5.6), a qual o executado recebeu (5.7) e que por acordo entre os executados e exequente, aquando do preenchimento da letra exequenda, foi estipulado que a quantia então em dívida correspondia a € 31.992,78 (5.11)”; julgou improcedente a alegação de se tratar de uma letra em branco abusivamente preenchida; e concluiu que, “consequentemente (…), não podem os executados/oponentes eximir-se ao cumprimento da obrigação cartular que assumiram”.

Com estas correcções, determinou o prosseguimento da execução.

A Relação, todavia, decidiu que os documentos apresentados não tinham força executiva.

Quanto ao de fls. 25, porque “a dita ‘declaração’ apresentada como título executivo, para lá de não reflectir um reconhecimento de dívida, não reconhece a existência de uma obrigação decorrente de um contrato de mútuo, nem o exequente alegou no requerimento inicial a realidade desse negócio, fonte da obrigação exequenda. Em suma (…), o contrato de mútuo que veio a provar-se e em que radica a obrigação exequenda no montante de 74.819,68 €, ainda que nulo, não surge reflectido nesse documento. Como tal, o mesmo carece de força executiva ou exequibilidade”, não cabendo apelar ao regime previsto no nº 1 do artigo 289º do Código Civil.

Relativamente à letra de fls. 27, que “não chegou a ser apresentada a pagamento”, a Relação concluiu que “não constando da letra a obrigação cuja prestação se pretende obter por via coactiva”, € 25000,00, “nem a obrigação causal que também não foi invocada no requerimento executivo, segue-se que a letra ajuizada, enquanto título de crédito, não pode valer como título executivo. E também não vale como simples documento particular, como prevê o citado art.46º/ c). É que, sendo característico do título executivo que dele transpareça, sem incertezas, o direito que se pretenda executar, no caso, a dita letra não evidencia a obrigação de pagamento da peticionada quantia de 25.000,00 €, que se provou estarem os executados em dívida. Em suma, a letra não vale como título certificativo da relação subjacente. Logo, não reveste exequibilidade, mesmo como simples documento.

O que equivale a dizer que, contrariamente à solução tomada na 1ª instância, não há que fazer apelo ao disposto no art.289º/1, C.C., considerando exigível as importâncias reclamadas como consequência legal da nulidade que enfermam os dois mútuos.”

5. Quer num caso, quer no outro, é por referência à al. c) do nº 1 do artigo 46º do Código de Processo Civil que se afere a exequibilidade dos documentos com base nos quais foi instaurada a presente acção executiva.

Como se sabe, a força executiva dos documentos (taxativamente) seleccionados como títulos executivos pelo citado artigo 46º assenta na sua especial força probatória, que, deixando agora de lado as sentenças condenatórias, permite que o credor inicie uma execução sem previamente ter passado por uma acção declarativa. Protege-se assim especialmente o credor, que cumpre de forma considerada suficientemente segura o ónus de provar a constituição do crédito a cuja satisfação material se destina a execução (ou que beneficia de uma presunção, como a que resulta do nº 1 do artigo 458º do Código Civil).

Isto não significa, todavia, que o devedor veja arredada a possibilidade de defesa contra a execução, que, na verdade, pode ser injustificada. Do mesmo passo que permite ao credor passar à execução, a lei garante ao devedor o recurso a todos os meios “que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração” (artigo 816º do Código de Processo Civil), para além, naturalmente, de lhe permitir contestar a própria exequibilidade do título (al. a) do artigo 814º, aplicável por remissão do artigo 816º) ou suscitar outros obstáculos processuais à execução, enunciados no artigo 814º.

A selecção dos documentos a que assim se confere força executiva corresponde a uma opção legislativa, mais ou menos generosa, mais ou menos restritiva; e tem variado ao longo das várias alterações de que o artigo 46º vem sendo objecto, cujo sentido tem sido o do alargamento progressivo da exequibilidade de documentos particulares, como é o caso.

Seja como for, e salvo “disposição especial” (al. d) do nº 1 do artigo 46º), não têm força executiva os documentos particulares que não preencham os requisitos impostos pela al. c) citada:

– têm de estar “assinados pelo devedor”;

– têm que importar “constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

Admite-se (nº 3, e), do artigo 810º do Código de Processo Civil) que, quando “os factos que fundamentam o pedido” não constarem do título, o exequente os exponha no requerimento executivo.

6. O documento de fls. 25 tem o seguinte conteúdo:

Eu, BB, declaro que recebi nesta data do Sr. CC a importância de 74.819,68 € (…), correspondente a 50% da quota que ambos pretendemos adquirir e que é pertença do Sr. DD na sociedade S......, Ldª.

Mais declaro que não se verificando, por qualquer motivo, a transmissão da referida quota da sociedade (…) até ao dia 31 de Dezembro de 2004, procederei à devolução da importância agora recebida, acrescida de juros à taxa de 5%, que terão efeito a partir do dia 01 de Janeiro de 2005.

Viseu, 08 de Novembro de 2004”.

 Segue-se uma assinatura.

Tal como o acórdão recorrido decidiu, o documento “não constitui uma declaração de dívida, mas antes a declaração de recebimento da importância e [para os] fins aí referidos, e a promessa de restituição da mesma verificado o condicionalismo também aí referido”.

Trata-se de um documento particular assinado que, assente a respectiva autoria (artigo 374º do Código Civil), prova a emissão das declarações por parte do seu autor, declarações essas que terão o valor conforme com a sua natureza e o seu conteúdo.

No caso, ficou plenamente provado o recebimento da quantia de € 74.819,68 por parte do executado (nºs 1 e 2 do artigo 376º e nº 2 do artigo 358º do Código Civil) e ainda, a emissão da declaração de que devolverá essa quantia no circunstancialismo ali indicado, cuja verificação o documento não prova.

O documento não pode, pois, ser enquadrado no nº 1 do artigo 458º do Código Civil e, como tal, valer como título executivo ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 46º do Código de Processo Civil.

Sucede, ainda, que a prova veio a revelar que a quantia a que o documento respeita foi, na realidade, emprestada pelo exequente aos executados.

Só que, nem o documento revela nenhum empréstimo, nem tão pouco o exequente invocou no requerimento executivo qualquer mútuo, ainda que nulo, como fundamento da execução. Com efeito, o requerimento executivo, no que a este documento se refere, limita-se a dizer que o exequente “é legítimo portador de uma declaração/confissão de dívida, no valor de € 74.819,68 (…)”.

Note-se que o documento não poderia ser interpretado no sentido de revelar um empréstimo, pois que se trataria de um mútuo para o qual a lei aplicável exige a forma de escritura pública, como requisito de validade (artigos 1143º, na redacção resultante do Decreto-Lei nº 343/98, de 6 de Novembro, e 220º do Código Civil), sendo certo que dele não consta a causa específica do mútuo – cfr. nº 2 do artigo 238º do Código Civil.

Admitir a alegação do mútuo na contestação da oposição implicaria permitir a invocação, nesse momento, de uma nova causa de pedir, o que não é legalmente admissível.

Trata de uma situação diferente da que foi tratada no acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Fevereiro de 2011 (www.dgsi.pt, proc. nº 7273/07.6TBMAI-A.P1.S1), no qual se entendeu possível que a execução, assente num documento de reconhecimento de uma dívida resultante de um mútuo, seguisse para a restituição da quantia mutuada com fundamento na nulidade: «Na situação aqui analisada a causa (ou seja, a fonte) da obrigação exequenda  – o empréstimo da quantia de 39.903,83 € – está expressamente indicada no título, independentemente de também o ter sido no requerimento inicial da execução “, nas palavras do citado acórdão.

7. No que diz respeito à letra de fls. 27, cumpre começar por assentar em que o exequente peticionou a quantia de € 31.992,78 (cfr. requerimento executivo), e não de € 25.000, e em que a execução foi instaurada com base na letra enquanto título de crédito, sendo o requerimento inicial totalmente omisso quanto à relação subjacente entre exequente e executados.

É pois necessário que “se mostrem integralmente respeitados todos os pressupostos e condições de que a respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo. Nesta situação, o título executivo é uma peculiar categoria de documentos particulares, regidos por uma disciplina específica, decorrente da sua especial segurança formal e fiabilidade, e a «causa petendi» da acção executiva é a relação creditória neles incorporada, com as suas características próprias, em larga medida decorrentes da literalidade e abstracção das obrigações cartulares por eles documentadas” (acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Outubro de 2010, www.dgsi.p+t, proc. nº 172/08.6TBGRD-A.S1).

No caso, estão preenchidos tais requisitos. Não releva a falta de apresentação a pagamento, observada pelo acórdão recorrido, porque, em último caso, a citação na acção executiva valeria como interpelação (acórdão deste Supremo Tribunal de 23 de Abril de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B3905). Ora a citação ocorreu dentro do prazo previsto no artigo 34º, I, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças.

Acresce que a letra foi aceite pelos executados (ponto 5.5 dos factos provados), assim se preenchendo ainda os requisitos de exequibilidade impostos pela al. c) do nº 1 do artigo 46º do Código de Processo Civil.

A letra constitui, portanto, título executivo. Neste ponto, não merece concordância o acórdão recorrido.

8. Assente a exequibilidade da letra enquanto título de crédito, cabe passar à análise da oposição de mérito.

Não se discute, no caso, que ao opor ao exequente a excepção de preenchimento abusivo (que não tem qualquer apoio na prova produzida, tendo ficado demonstrado o que consta do ponto 5.11) e ao afirmar que a letra não corresponde a nenhuma transacção ou relação jurídica entre as partes, os executados estão a discutir a relação extracartular que os liga; e que, ao contrapor que a letra tem subjacente um mútuo, o exequente se move no mesmo plano. Mas também ninguém contesta a admissibilidade dessas alegações, por se tratar de questões suscitadas no âmbito das relações imediatas entre exequente e executados (cfr. artigos 10º e 27º da Lei Uniforme).

A prova revela que o exequente emitiu um cheque no valor de € 25.000,00 à ordem do executado, que recebeu e fez sua tal quantia; e que, por acordo entre exequente e executados se estabeleceu que, na data constante da letra de fls. 27, 31 de Dezembro de 2008, eram devidos, neste âmbito, € 31.992,78.

Estes factos permitem concluir pela celebração de um contrato de mútuo, que vincula ambos os executados. No entanto, segundo a lei em vigor em 3 de Maio de 2005 (cfr. ponto 5.8), o artigo 1143º do Código Civil na versão resultante do já citado Decreto-Lei nº 343/98, um mútuo de € 25.000,00 tinha de constar de escritura pública, sob pena de nulidade (artigo 220º do Código Civil). Trata-se portanto de um mútuo nulo por falta de forma legal.

Sabe-se que a nulidade é de conhecimento oficioso (artigo 286º do Código Civil) e que a declaração de invalidade tem a eficácia retroactiva definida pelos artigos 289º e, no caso, 1270º do Código Civil.

Isto significa que a fonte da obrigação de restituir que recai sobre os executados é a lei e não o contrato de mútuo, não valendo, assim qualquer eventual acordo sobre juros, que explique a diferença entre € 31.992,78 e € 25.000,00, correspondente ao tempo decorrido entre 3 de Maio de 2005 e 31 de Dezembro de 2008.

Os executados estão pois obrigados a restituir o capital de € 25.000,00 acrescido dos juros, mas calculados à taxa legal.

Recorde-se que no requerimento executivo se pede a condenação no pagamento de juros até integral pagamento.

9. Nestes termos, concede-se provimento parcial ao recurso e determina-se o prosseguimento da execução na parte relativa à letra de fls. 27, no que respeita ao capital de  € 25.000,00 e a juros calculados à taxa legal, desde 3 de Maio de 2005 até integral pagamento, revogando-se o acórdão recorrido na parte correspondente e confirmando-o quanto ao mais.

Custas por recorrente e recorridos, na proporção do decaimento.

Lisboa, 17 de Novembro de 2011

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lopes do Rego
Orlando Afonso