ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1455/09.3TABRR.L1-A.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/20/2011
SECÇÃO 3.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
DECISÃO REJEITADO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR PIRES DA GRAÇA

DESCRITORES RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
DESOBEDIÊNCIA
DESPACHO
JUIZ
REGISTO PREDIAL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO

SUMÁRIO I - A lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial – arts. 437.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 438.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
II - Entre os primeiros, a lei enumera: a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido; a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição; e, se este estiver publicado, o lugar da publicação; o trânsito em julgado de ambas as decisões; os recorrentes com legitimidade.
III - Entre os segundos, conta-se: a justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência; a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.
IV - A exigência de oposição de julgados, de que não se pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP, é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação..
V -A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. E, sendo o recurso em causa um recurso extraordinário e, por isso, excepcional, é entendimento comum do STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso se deve fazer com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) a essa excepcionalidade.
VI - A fundamentação de direito, ou a argumentação jurídica utilizada, não confere a identidade de situação de facto, apenas constituindo argumentos de convencimento jurídico da decisão.
VII - No caso em apreço, as situações fácticas são diferentes, pelo que necessariamente implicaram diferença, e não propriamente oposição, nas decisões que lhes corresponderam. Na verdade, enquanto no acórdão recorrido se tratava de um recurso penal, tendo por objecto a questão fáctica de relevância jurídico-criminal: incumprimento de uma determinada ordem judicial de cancelamento de registos de direitos reais (hipotecas e penhoras) em determinado imóvel, por a caducidade de registos resultar ope legis, “não competindo a conservador aferir, ou fiscalizar a legalidade das decisões judiciais”, o acórdão fundamento teve por objecto conhecer e decidir se o despacho que determina o cancelamento dos registos dos ónus ou encargos (ou melhor dos direitos reais) que subsistam sobre o bem imóvel em causa, e que devem caducar nos termos do art. 824.º do CC, deverá especificar ou identificar concretamente esses registos ou deverá bastar-se com uma declaração genérica e abstracta de cancelamento dos mesmos.
VIII - É, pois, evidente que as decisões de direito aqui são diferentes e não se referem a idênticas situações fácticas, ou, dito de outro modo, não há identidade de situações de facto, que legitimem a conclusão de que geraram decisões de direito diferentes, pelo que se conclui não existir oposição de julgados, sendo o recurso rejeitado.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No processo nº 1455/09.3tbrr.l1, da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, provindo do 1º Juízo Criminal da comarca do Barreiro, vem a arguida recorrida AA, com os demais sinais dos autos, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, “nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 437.°, n.º 2 do CPP e com os seguintes fundamentos:

I.          INTRODUÇÃO: QUESTÃO JURÍDICA CONTROVERSA.

1. A Recorrente exerce de profissão a função de Conservadora do Registo Predial do Barreiro.

2. No âmbito das suas funções, a Recorrente foi acusada de ter cometido, em autoria material, crime de desobediência, previsto e punido no Art. 348.°, n.o 1, aI. b) do CP, pela recusa da prática de certos actos registrais ordenados judicialmente, em 25.06.2008, pelo Mmo. Juiz de Direito do 2.° Juízo Cível do Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro, no âmbito do processo com o n.º 10/1999.

3. A ordem judicial em causa determinou o seguinte: "(. . .) cancele todos os registos de hipotecas e penhoras que à data da venda ainda subsistam sobre o imóvel vendido nestes autos", a qual não foi cumprida pela Recorrente porquanto a mesma se encontrava ferida de ilegalidade.

4. Na verdade, como tem vindo comummente a ser aceite pela nossa jurisprudência, e resulta da vontade do legislador, não basta determinar o cancelamento genérico dos registos pendentes, ou seja, dos direitos existentes. O juiz está vinculado, no âmbito do processo executivo, a identificar expressamente as inscrições cujo cancelamento pretende, obrigação que decorria, à data da prática dos factos, do disposto no Art. 888.° do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo DL n,º 38/2003, de 8 de Março, já que não se inclui nas competências da Recorrente a verificação das inscrições que devem ser canceladas.

5.  Antes pelo contrário, dentro dos poderes da Recorrente, insere-se o poder de qualificação dos actos susceptíveis ou não de ser registados, pelo que, caso o Art. 68.° do Código do Registo Predial seja interpretado no sentido de ceder perante ordens judiciais ilegais, tal interpretação sempre seria inconstitucional por violação do princípio constitucional da separação de poderes.

6. Assim, a questão jurídica controversa que se coloca é a de saber se as ordens jurídicas que determinam a prática de actos registrais devem ou não ser específicas para que, depois, assente que está este ponto, saber se tal ordem é ou não legítima, nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 348. ° do CP.

II.        OPOSiÇÃO DE JULGADOS: ACÓRDÃO FUNDAMENTO.

7.  A Recorrente, pese embora absolvida pelo Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro, foi posteriormente condenada em multa pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de que ora se recorre.

8.  No douto Acórdão da Relação a fls. dos autos escreve-se que "não só a lei. processual civil, civil ou registral. não impõe esse dever de especificação como também sabia, atenta a sua formação académica e profissional, que as orientações jurisprudenciais só valiam dentro dos processos em que foram proferidas" (sublinhado nosso), tese esta que. determinando a verificação do pressuposto da ordem legítima para efeito do preenchimento do tipo do Art. 348.° do CP, contraria frontalmente o sentido do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.10.2005, Proc. n.º 1595/05 e disponível em www.dgsi.pt.

9. Com efeito, neste aresto pode ler-se, de forma clara e peremptória, "Ao impor-se, no artº 888° do CPC, o carácter oficioso do cancelamento dos registos de ónus ou encargos existentes sobre os bens vendidos em processo de execução, visou-se manter sobre o controle judicial a decisão relativa à caducidade dos direitos reais que devam caducar, nos termos do artº 824°, nº 2, do CC, pelo que deve o iuiz especificar ou identificar. no despacho relativo ao cumprimento do artº 888º do CPC. as inscricões reaistais que devam ser canceladas. não bastando que o faça através de uma ordem genérica e abstracta de cancelamento" (sublinhado nosso).

10.  Resulta por isso claro que as soluções de direito agora versadas são antagónicas, gerando resultados práticos diametralmente opostos. Com efeito, caso a tese sufragada no Acórdão fundamento estivesse presente no Acórdão recorrido, nunca poderia ter sido a Recorrente condenada, porquanto não se encontram reunidos os pressupostos objectivos do tipo de crime de desobediência qualificada.

11. Paralelamente, as situações de facto em causa em ambos os arestos são em tudo idênticas, reportando-se ao mesmo domínio legislativo, qual seja a interpretação do Art. 888.° do CPC na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março.

12. Aliás, o facto do Acórdão fundamento ter sido produzido por uma secção civil, não obsta à identidade das causas, uma vez que figurando este aresto sobre o elemento objectivo que compõe o tipo penal, a decisão de um tem que ser forçosamente transponível para o outro.

13. Este Acórdão fundamento não surge, porém, isolado, sendo fruto de jurisprudência pacífica e consolidada, a qual, a par do Instituto dos Registos e Notariado e da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, sempre consideraram que só após a identificação das respectivas inscrições, pode a Conservatória de Registo Predial, através do respectivo conservador - no caso a Recorrente - proceder ao cumprimento do respectivo despacho judicial.

14. Esta competência é exclusiva do Tribunal, pelo que qualquer interferência neste ponto por parte da Recorrente sempre se traduziria na prática, pela mesma, de um acto ilegal.

15. Paralelamente, impondo o actual Art. 907.° do CPC ao Juiz o dever de ordenar, independentemente de qualquer pedido das partes, o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam, sempre terá de se entender que tal oficiosidade apenas se insere no âmbito do processo civil e já não na actividade registral, onde indubitavelmente vigora o princípio da instância (Cfr. Art. 41° do Código do Registo Predial).

16. Ou seja, não é adequado o entendimento segundo o qual o Juiz no âmbito do processo executivo pode promover a execução do cancelamento de determinado registo junto da Conservatória de Registo Predial, na medida em que esta execução representa uma verdadeira substituição às partes que são quem tem legitimidade para o efeito.

17. Assim, a decisão proferida pelo Tribunal de Execução, porquanto omissa quanto às inscrições que deviam ser objecto de cancelamento por parte da Conservatória do Registo Predial do Barreiro, foi manifestamente insuficiente e, consequentemente, contrária à lei, pelo que a recusa da Recorrente no seu cumprimento é legítima, não merecendo qualquer censura.

18. Com efeito, só o Juiz, em face do processo e da certidão de encargos que dele faz parte, pode verificar se todos os titulares dos direitos de garantia e demais direitos reais que caducam foram chamados aos autos, ou seja, só o Juiz pode proceder ao controlo de legalidade dos actos processuais praticados, estando o Conservador impedido de fazer tal verificação.

19. Pelo exposto, não resta senão concluir pela ilegalidade da ordem em causa nos autos e, logo, pela inverificação dos pressupostos necessários à cominação do tipo penal prescrito pelo douto Acórdão dos autos a fls. de que ora se recorre.

III.    SENTIDO EM QUE DEVE FIXAR-SE A JURISPRUDÊNCIA CUJA FIXAÇÃO É PRETENDIDA.

20. Consequentemente, do ponto de vista da Recorrente, deverá ser fixada jurisprudência no sentido de: nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 888.° do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, a recusa do Conservador do Registo Comercial em cumprir ordens judiciais genéricas de cancelamento de inscrições registrais não constitui uma ordem legítima, pelo que não se encontra preenchido o tipo objectivo nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 348.°, n. 1, al. b) do CP.

21. Importa, contudo, que fique expresso não bastar para a licitude da ordem de cancelamento a menção de que devem ser cancelados "todos os registos", porquanto é considerável o hiato temporal entre o momento em que é proferido o despacho judicial e aqueloutro em que o requerimento de cancelamento é levado ao Senhor Conservador, podendo, entretanto, ter já ocorrido novas inscrições registrais sobre aquele bem sujeito a registo.

22. Pelo exposto, requer-se a V. Exas. a admissão do requerimento de recurso extraordinário, notificando-se as partes para a apresentarem, por escrito, no prazo de 15 dias, as suas alegações, nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 442.°, n.º 1 do CPP.

Foi proferido despacho a admitir o recurso, cumprindo-se o disposto nos artigos 438º e 439º do CPP.

Neste Supremo Tribunal, o Dig.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer onde, além do mais, assinala:

a)  A arguida AA, em 20 de Junho de 2011, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação de Lisboa de 05 de Maio de 2011, proferido pela 9ª Secção, nos Autos de Recurso Penal à margem identificados, alegando que, relativamente a questão «de saber se as ordens jurídicas que determinam a prática de actos registrais devem ou não ser especificas para que, depois, assente que está este ponto, saber se tal ordem é ou não legitima, nos termos e para os efeitos do disposto no Art. 348.° do CP», o acórdão recorrido adoptou solução divergente da acolhida pelo acórdão da Relação de Coimbra de 04.10.2005, no Processo n.º 1595/05, disponível na base da dgsi.

Refere que «as situações de facto em ambos os arestos são em tudo idênticas, reportando-se ao mesmo domínio legislativo, qual seja a interpretação do Art. 888.° do CPC na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Marco».

b) Segundo a certidão de fls. 10, o acórdão recorrido transitou em 31 de Maio de 2011, tendo sido notificado ao Ministério Público a 9 de Maio e às partes a 6 de Maio de 2011.

Presumindo-se notificado aos sujeitos do processo a 12 de Maio, e não admitindo recurso ordinário, transitou decorridos 10 dias, ou seja, a 23 de Maio (22, Domingo).

Tendo o recurso sido interposto a 20 de Junho de 2011, inscreve-se no prazo fixado no art. 438.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, sendo por isso tempestivo.

c)  O Ministério Público na Relação não respondeu à motivação.

II          Da oposição:

Pelas razões que de seguida se passarão a expor, entendemos não se verificar a imprescindível oposição de julgados, o que dita a rejeição do recurso.

O acórdão recorrido, a propósito da questão - “Se existe falta de consciência da ilicitude por parte da arguida” -, considerou que «provado o conteúdo dos factos n.º 12 a 15, inclusive, a conclusão que forçosamente (no sentido de se apresentarem como consequência lógica daqueles) terá que se extrair dos mesmos é que a arguida sabia tratar-se de ordem legítima e que, actuando da forma descrita, praticava actos proibidos e punidos por lei penal.

 Explicando melhor:

 Não existem dúvidas, e a recorrida também não parecia tê-las, que o despacho judicial que determinava o cancelamento de todos os registos de hipotecas e penhoras era proveniente de uma autoridade judicial no exercício de funções. Se se pode compreender a primeira atitude tida pela arguida ao recusar o cumprimento daquele primeiro despacho face aos entendimentos, quer jurisprudenciais quer aos oriundos do Instituto de Registos e Notariado, que tinha e seguia, as subsequentes decisões proferidas pelo tribunal -  despacho de 8.03.2007 (facto 6) e de 25.6.2008 (facto 9) - não deixavam espaço de manobra à arguida no sentido de não proceder ao cancelamento determinado, especialmente o último dos despachos que apontava para um entendimento jurisprudencial seguido por aquela concreta autoridade judiciária ordenante, entendimento esse diferente do seguido pela arguida, sendo certo que só perante o despacho último é que se perspectivava o cometimento do crime cominado.

 Tal intenção de recusa e desobediência mostra-se mantida e reforçada pelo conteúdo do facto 9 dado como provado.

 De todo este comportamento e encadeamento de factos a conclusão tida pelo tribunal, quando deu como não provados os factos que ali inseriu e a que acima fizemos referenda, mostra-se incongruente e incompatível com a factualidade anterior que deu origem ao despacho cominatório do crime de desobediência.

 Tal como menciona o recorrente M° P.° não só a lei, processual civil, civil ou registral, não impõe esse dever de especificação como também sabia, atenta a sua formação académica e profissional, que as orientações jurisprudenciais só valiam dentro dos processos em que foram proferidas.

 Ainda a este propósito, a leitura dos acórdãos com tais orientações jurisprudenciais demonstra que os termos dos despachos em que as mesmas se fundavam e que necessitavam da tal especificação não tinham exactamente o mesmo conteúdo que o despacho ora em apreço: o despacho inicial que desencadeou a recusa em apreciação nestes autos mencionava não só a quantidade (“todos os registos”), mas também o tipo (“de hipotecas e penhoras”) pelo que a arguida não tinha base para alimentar dúvidas sobre o que deveria cancelar, ao passo que os casos invocados pela defesa se referiam a despachos com uma mera invocação de preceitos da lei processual civil ou do Código Civil ou obedecendo a formulas como “cancelamento do registo de todos os ónus e encargos que incidiam....

(…)

 Como de certo modo já antes mencionamos, se num primeiro momento se percebe as razoes, de não cumprimento do despacho de 12.12.2005, adiantadas nas posições jurisprudenciais e dos pareceres do Instituto, conhecidas da arguida, quando esta veio a ser confrontada com o entendimento seguido pelo Mmo. Juiz, no seu despacho de 25.06.2008, aquelas razoes deixavam de ter qualquer validade para aquele caso concreto e as dúvidas existentes no espírito da arguida deixavam de ter qualquer alicerce, pelo que não se concebe a existência de falta de consciência da ilicitude no presente caso, atentos os termos em que o despacho judicial cominatório do crime de desobediência se mostra redigido».

Em síntese, verifica-se que o acórdão recorrido não decidiu da questão relativa à qualificação da ordem de cancelamento dos registos como cumpridora do dever de especificação. Considerou, sim, que aquela concreta ordem, além de não ser genérica, era legítima, face aos factos dados como provados nos n.º s 6 e 9 (despachos judiciais posteriores à primeira recusa).

Por seu turno, o acórdão fundamento, apreciando o despacho judicial proferido naqueles autos do qual constava que a «adjudicação do imóvel fosse feita “livre de quaisquer ónus e/ou encargos, de cujo registo determino o cancelamento”», decidiu que «o juiz, ao proferir o despacho em que, à luz do citado artº 888 do CPC/95, ordene o cancelamento dos registos dos ónus ou encargos existentes sobre o imóvel que, em processo de execução, foi objecto de venda, deva aí especificar ou concretamente identificar as inscrições registrais que devam ser canceladas, não bastando (como o fez a srª juiz a quo) que o faça através de uma ordem genérica e abstracta de cancelamento.».

Daqui flui que o acórdão fundamento decidiu, por um lado, que o juiz deve especificar ou identificar as inscrições que devam ser canceladas, nos termos do artigo 888.° do CPC, e por outro, que aquela concreta ordem era genérica, não cumprindo aquele dever de especificação.

É jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que as expressões normativas soluções opostas relativas à mesma questão de direito constantes do art. 437.º, 1 do Cód. Proc. Penal, exigem que [1]essa mesma questão integre o objecto concreto e directo das duas decisões, objecto naturalmente fundado em circunstancialismo fáctico essencialmente idêntico do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos.

Como se diz no acórdão deste STJ de 13.01.2000, proc. n.º 1129/99, Para haver oposição de acórdãos, é indispensável que sejam idênticos os factos neles contemplados e que em ambos a decisão seja expressa, isto é, a questão fundamental de direito resolvida pelos arestos em sentido contrário deve ter sido por eles directamente examinada e decidida, não sendo suficiente que num acórdão possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária à enunciada no outro.

Ora, como se disse, os acórdãos em confronto não resolvem a mesma questão.

Como se vê com meridiana clareza, tratam-se de situações e questões distintas, merecendo, consequentemente, avaliações (/reexames) distintas.

III         Pelo exposto, não ocorrendo a imprescindível oposição de julgados, deverá o recurso ser rejeitado, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do CPP.

            Encontra-se junta certidão do acórdão recorrido e do acórdão fundamento.

            Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Nos termos  do artigo 437º nº 1 do Código de Processo Penal, quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis podem recorrer, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.- nº 2 do preceito.

A lei processual faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência da existência de determinados pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial.- artsº 437º nºs 1, 2 e 3 e 438º nºs 1 e 2 do CPP.

Entre os primeiros, a lei enumera:

- A interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão recorrido;

- A identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre e oposição

-  E, se este estiver publicado, o lugar da publicação.

- o trânsito em julgado de ambas as decisões.

- Os recorrentes com legitimidade.

Entre os segundos, conta-se:

- a justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência;

- a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.      

A exigência de oposição de julgados, de que não se pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP, é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.

A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. - Acº do STJ 10-01-2007 , Proc. n.º 4042/06 - 3.ª Secção

Sendo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário e, por isso, excepcional, é entendimento comum deste Supremo Tribunal (v. desde logo o Ac. de 23 de Janeiro de 2003, processo n. 1775/02-5ª), que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras tal recurso, deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excepcionalidade.

   Tendo em conta a data do trânsito em julgado do acórdão recorrido - em 31 de Maio de 2011 - (v. certidão de fls 10, e a data da interposição do presente recurso em 20 de Junho, conforme carimbo de entrada no Supremo, é tempestiva a sua interposição.

   Se ocorrer motivo de inadmissibilidade ou o tribunal concluir pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado; se concluir pela oposição, o recurso prossegue - artº 441º nº 1 do CPP.

   Se, porém, a oposição de julgados já tiver sido reconhecida, os termos do recurso são suspensos até ao julgamento do recurso em que primeiro se tiver concluído pela oposição - Artº 441º nº2 do CPP.

   Com interesse para o presente recurso, consta do acórdão recorrido, supra referido:

“Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I

   No processo comum nº 1455/09.3TABRRR do 1º Juízo Criminal de Barreiro, a arguida AA foi submetida a julgamento, após ter sido acusada da prática, em autoria material, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº1, alínea b), do Código Penal.

   Realizada a audiência, com documentação da prova produzida, foi pelo tribunal proferida decisão absolutória da arguida.

   Não conformado com tal decisão absolutória, veio o recorrer da mesma, formulando das motivações apresentadas as seguintes conclusões

(….)

Por sua vez a arguida respondeu a tais motivações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

19. Assim deve ser mantida a douta decisão impugnada que absolveu a Recorrida do crime previsto e punido no Art. 348º, nº 1, alínea  b) do CP;

20. Contudo, em caso do Recurso do recorrente ser procedente, deverá a douta sentença recorrida ser substituída por outra que considere ilegal a ordem judicial que deu origem aos presentes autos, absolvendo a recorrida da imputação, em autoria material, de um crime de desobediência, p. e p. no Artº 348º, nº 1 alínea b) do CP, vindo a julgar-se procedente, por provado, o recurso subsidiário.

(…)

            II

          Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

          Da sentença recorrida consta o seguinte:

"F ACTOS PROVADOS:

1- A arguida AA, no período de tempo decorrido entre Dezembro de 2005 e Julho de 2008, exercia funções de conservadora do registo predial junto da Conservatória do Registo Predial do Barreira;

2- Nos autos de execução ordinária que, com o n° 10/1999, correu termos pelo 2° Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e Comarca do Barreira, foi penhorada a fracção autónoma designada pela letra "A", do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Barreira sob o n° xxxxx, da freguesia de Santo António da Charneca;

3- No âmbito do mencionado processo n° 10/1999 foi proferido, em 12/12/2005, pelo Senhor Juiz de Direito, despacho do seguinte teor:

"Uma vez que foi realizada a venda executiva e que se mostram pagas as custas, e a arrematante foi dispensada de depositar o preço, caducaram os registos dos direitos reais (hipotecas e penhoras) incidentes sobre o imóvel arrematado (arts. 90Jº CPC e 824°,2 CC).

Esta caducidade resulta ope legis.

Por todo o exposto, e ainda ao abrigo do disposto no art. 888° CPC, o Tribunal manda à Conservatória do Registo Predial competente que cancele todos os registos de hipotecas e penhoras que à data da venda ainda subsistam sobre o imóvel vendido nestes autos.

Notifique, com certidão deste despacho. "

4- Em 02/03/2007, foi levado ao conhecimento desse Tribunal pelo aí exequente Banco Santander Totta que o pedido de cancelamento dos referidos ónus junto da Conservatória do Registo Predial do Barreira fora recusado, por despacho da arguida de 04/05/2006, de que o exequente foi notificado, com o seguinte teor:

"Despacho

Ap. 72 e 73/0604010- Recusadas

o facto não se encontra titulado nos documentos apresentados. A certidão judicial apresentada não especifica as inscrições a cancelar. Cfr. Arts 13,43 n01, 68 e 69 n01 b) do CRP".

5- Com efeito, na sequência da recusa do cancelamento, o exequente, em 02/03/2007, apresentou requerimento no Proc. n° 10/1999, peticionando, em suma, que:

" ... o Exequente foi notificado de despacho da Conservatória do registo predial do Barreiro a informar que os cancelamentos em causa foram recusados, devido ao facto do despacho de cancelamento proferido nos autos não especificar quais as inscrições a cancelar. Dessa forma, vem requerer a V Exa. cancelamento da penhora ordenada nos presentes autos (F-2 Ap. N° 48 de 20/12/2002) e da hipoteca registada a favor do Crédito Predial português (C-1 Ap. N° 42 de 09/11/1981) (. . .)

Vem ainda requerer a passagem da certidão de cancelamento das mesmas para efeitos de registo predial ... ";

6- Sobre tal requerimento do exequente veio a recair, em 08/03/2007, o seguinte despacho judicial:

"Fls. 241: Porque a recusa de que se dá notícia é manifestamente ilegal, oficie à Conservadora para que cumpra o despacho judicial que determinou o cancelamento dos registos, que transitou em julgado, não competindo a conservador aferir, ou fiscalizar a legalidade das decisões judiciais. "

7- Oficiado o despacho de 08/03/2007 à Conservatória do Registo Predial, por oficio de 16/0312007, a arguida não efectuou o acta de registo em causa, nem nada disse no âmbito do processo de execução ordinária;

8- Por requerimento de 17/06/2008, o aí exequente Banco S…T… informou o Tribunal de que "(oo.) constatou agora o Exequente que, apesar de ter sido oficiada a Conservatória nos termos acima indicados, os mesmos ónus se encontram em vigor, tendo sido apenas registada a aquisição a seu favor.

Assim, e a fim de tentar ultrapassar esta situação de algum impasse na efectivação dos registos pretendidos, vem o Exequente requerer novamente a emissão de certidão judicial onde conste que os ónus a cancelar são as inscrições F-2 (Ap. xx/xxxxx) e C-1 (Ap. xx/xxxxx) ... ";

 9- Em 25/06/2008 foi proferido pelo Senhor Juiz de Direito, no mencionado processo n° 10/1999, o seguinte despacho:

"Requerimento de fls. 271 e 272:

(. .. ) Tem agora o Tribunal notícia, através do requerimento de fls.271, que a conservadora, persiste reiteradamente na recusa em cancelar os registos em causa.

 (. . .) Em face desta recusa, porque um eventual recurso contencioso ;)?; do acto de recusa interposto pelo exequente carece de objecto processual, não podendo o juiz da instância de recurso sobrepor uma decisão sua, à decisão judicial transitada em julgado nos presentes autos,' e porque na acção executiva, actualmente, como anteriormente, cabia oficiosamente ao conservador o cancelamento dos registos ordenados judicialmente (cfr.art.101° nº5 do C.R.Predial); com vista manter a eficácia jurídica do segundo despacho de fls. 174 (que a conservadora pretende inutilizar), determino, nos termos do at.265° nºs 1 e 2 do Cód.Proc.Civil se notifique a conservadora, através de oficial de justiça, para que, no prazo de dez dias, providencie pelo cancelamento dos registos tal como se decidiu no segundo despacho defls.174, sob pena de incorrer no crime de desobediência. (. .. )";

10 - Porém, pessoalmente notificada, em 08/07/2008, deste despacho de 25/06/2008, a arguida, desrespeitando a ordem nele contida, não efectuou o acto de registo de cancelamento dos ónus que incidiam sobre a fracção autónoma em causa, nem justificou tal omissão por qualquer forma;

11- A arguida, na sequência da notificação lhe efectuada no dia 08/07/2008, redigiu a carta de fls. 162 a 163, cujo teor se dá por reproduzido, e por razões não apuradas não deu entrada em juízo;

12- A arguida sabia tratar-se de ordem emanada de autoridade judicial no exercício das suas funções;

13- A arguida agiu com o propósito, concretizado, de não obedecer à ordem lhe foi transmitida;

14- A arguida sabia que punha, como efectivamente pôs, em causa a autoridade subjacente a tal ordem;

15- A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente;

16- A arguida não efectuou o cancelamento dos ónus que incidiam sobre a fracção autónoma em causa por estar convicta que a ordem que lhe havia sido comunicada era ilegítima, já que, a cumpri-la, no seu entender, que era corroborado por pareceres do Instituto dos Registos e Notariado e em jurisprudência dos diversos Tribunais da Relação, teria de violar a lei, e tendo o seu despacho de recusa sido fundamentado sempre poderia o requerente daquele acto reagido ao mesmo nos termos legais;

17 - A arguida acreditava ser a sua recusa de proceder cancelamento do registo legítima e legalmente admissível;

18- Antes da reforma executiva, levada a efeito em 2003, era entendimento do Instituto dos Registos e Notariado, entendimento este desde há muito preconizado, que o cancelamento de direitos reais deveria ser efectuado com base em despacho judicial, transitado em julgado, que especificasse, claramente quais os direitos a cancelar. Entendia-se, que a certidão de decisão judicial proferida em processo de execução em cumprimento do disposto no art. 888° do Código de Processo Civil (anterior art. 907°) que apenas ordenasse genericamente o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam, não era documento suficiente para o cancelamento, sendo necessário que a decisão especificasse os registos a cancelar;

19- Já no âmbito do Proc. n° 166/1996 do 2° Juízo Cíve1 deste Tribunal a arguida havia recusado cancelamento semelhante com os seguintes fundamentos, que em 24/01/2007 foram dados a conhecer aos respectivos autos pelo ali adquirente:

"1- O teor do o 888 do CPC (que veio tomar inequívoco o sentido da oficiosidade processual já anteriormente prevista no art. 907) refere que:

"Após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam, nos termos do nº2 do art. 824 do C.C., entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho".

A ordem de cancelamento dos registos que cabe ao Juiz do processo tem, salvo o devido respeito, de referir concretamente quais os direitos que caducaram por força daquela execução, pois só ele, em face do processo e da certidão de encargos que dele faz parte, pode verificar se todos os titulares dos direitos de garantia e demais " direitos reais que caducam, foram chamados aos autos, não sendo possível nem competindo ao Conservador do registo predial se pronunciar sobre esse aspecto.

Esta é a lição que se extrai da doutrina e da quase generalidade da jurisprudência. Cfr Doutor J. Alberto dos Reis, Processo de Execução, Il- nOl03 e Lopes Cardoso, aí citado.

Também como ensinam Anselmo de Castro e Lebre de Freitas "caducando ... os direitos sobre bens sujeitos a registo, o Juiz profere despacho a mandar cancelar as inscrições respectivas, procedendo então o adquirente, com base nele, ao cancelamento dos registos, incluindo o da própria penhora (artO 888). CfI. Acção Executiva Singular Comum e Especial - 1970- pág. 231, e Acção Executiva ¬2a Edição - 1997. pág. 279, respectivamente.

Sem dúvida, a ordem de cancelamento dada no despacho abrange todos os direitos reais de garantia. Mas, em abstracto (premissa maior do silogismo judiciário) não se designando, aqueles constantes do registo, que o Conservador deve cancelar, claudica o silogismo judiciário, por falta da sua premissa menor, tomando-se assim, pouco clara e equívoca a respectiva de decisão.

Este tem sido o entendimento que perfilhamos e que é defendido pelo Conselho Técnico do Registo Predial, entre outros, Proc018/90 - PR4; 21/90 PR4; 6/91 - PR4; 39/91 PR4 e 14/92 PR4, constando deste último, entre outras, a seguinte conclusão:

"1- A certidão da decisão judicial proferida em processo de execução em cumprimento do disposto no art 907 (actual artº 888) que apenas ordena genericamente o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam não é documento suficiente para o cancelamento sendo necessário que a decisão especifique os registos a cancelar assegurando o controlo dos direitos que caducam não só pelo Tribunal de execução como pelos interessados, que dela podem recorrer ... "

Ao determinar expressamente que seja entregue ao adquirente certidão do despacho que manda cancelar os registos dos direitos reais que caducam, afigura-se-nos salvo melhor opinião, que a lei deixa claro que a competência do juiz neste plano, não deve extravasar para a área das competências próprias do Registo Predial.

A lei vem, pois, corroborar o entendimento que julgamos dominante na jurisprudência segundo o qual o juiz não deve interferir em órgão de outro poder do Estado, para utilizar a expressão do Acórdão da Relação de Évora de 02/05/1996. C.J., 3,263 (No sumário do Ac. do S.T.J. de 21/02/1995, B.M.J. 444-555).

Se o Juiz interferir, impondo ao Conservador um registo ou o seu cancelamento, o Tribunal estará a praticar um acto para o qual é incompetente em razão da matéria: impor a Conservatória que proceda a um registo, ou ao seu cancelamento, subtraindo-se, deste modo, ao Conservador a possibilidade de exercer os poderes de fiscalização que a lei lhe impõe - arte 68 do CRP.

Claro que o Tribunal tem competência para determinar o cancelamento de registos, mas não a tem para a execução dessa determinação que passará pelo crivo das normas atinentes ao registo predial, designadamente o princípio da legalidade atrás citado.

Notifique";

20- No âmbito do referido Proc. n° 166/1999 do 2° Juízo Cível havia sido, por despacho judicial, determinada a comunicação à Direcção Geral de Registos e Notariado a conduta da Sra Conservadora para efeitos de averiguação de eventuais responsabilidades disciplinares, o que foi efectuado por oficio datado de 15/01/2007, tendo a mesma Direcção, mais concretamente os Serviços de Avaliação e Inspecção, na pessoa do Subdirector -Geral, por oficio de 25/01/2007, entrado em juízo a 31/01/2007, comunicado que:

"Com referência ao assunto em epígrafe, e em resposta ao oficio supra de V Ex.a, cumpre-nos fazer um esclarecimento prévio:  nos termos do art. 68. o do CRPredial, ao Conservador do Registo Predial compete apreciar a viabilidade dos pedidos de registo em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos dispositivos neles contidos. Por sua vez, nos termos do art. 140. o do citado Código, os despachos de recusa do Conservador em efectuar qualquer acta de registo nos termos requeridos, podem ser impugnados por recurso hierárquico para o Director-Geral dos Registos e do Notariado, ou por recurso contencioso para o Tribunal de Comarca a que pertence a sede da Conservatória.

De quanto fica exposto, e salvo melhor opinião, concluímos pela inexistência de matéria com relevância disciplinar na actuação da Sr. a Conservadora, cujo despacho, como ficou referido, só em sede de recurso pode ser apreciado.

Todavia, e na expectativa de contribuir para uma melhor compreensão da decisão da Sr. a Conservadora, junto se remete cópia do parecer proferido pelo Conselho Técnico desta Direcção-Geral nos processos n.C.P. 44/2003 DSJ-CT e 25/2004DSJ-CT; sublinhando contudo que a força vinculativa do mesmo se esgota nos processos em que foi proferido ";

21- A arguida não tem antecedentes criminais;

22- A arguida aufere 3500,00 euros mensais;

23- Vive com o marido, engenheiro, e dois filhos maiores de idade, ambos estudantes;

24- Reside em casa própria pagando ao banco para amortização do mútuo contraído 2.000,00 euros por mês;

25- Tem de habilitações literárias a Licenciatura em Direito.

*

B- FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa, ficaram por provar os seguintes factos:

- A arguida sabia tratar-se de ordem legítima;

- Sabia a arguida que actuando da forma descrita praticava actos proibidos e punidos por lei penal.

            C- FUNDAMENTAÇÂO

(….)

Não existem dúvidas, e a recorrida também não parecia tê-las, que o despacho judicial que determinava o cancelamento de todos os registos de hipotecas e penhoras era proveniente de uma autoridade judicial no exercício de funções. Se se pode compreender a primeira atitude tida pela arguida ao recusar o cumprimento daquele primeiro despacho face aos entendimentos, quer jurisprudenciais quer aos oriundos do Instituto de Registos e Notariado, que tinha e seguia, as subsequentes decisões proferidas pelo tribunal - despacho de 8.03.2007 (facto 6) e de 25.6.2008 (facto 9) - não deixavam espaço de manobra à arguida no sentido de não proceder ao cancelamento determinado, especialmente o último dos despachos que apontava para um entendimento jurisprudencial seguido por aquela ~ concreta autoridade judiciária ordenante, entendimento esse diferente do seguido pela arguida, sendo certo que só perante o despacho último é que se perspectivava o cometimento do crime cominado. 

Tal intenção de recusa e desobediência mostra-se mantida e reforçada pelo conteúdo do facto 9 dado como provado.

De todo este comportamento e encadeamento de factos a conclusão tida pelo tribunal, quando deu como não provados os factos que ali inseriu e a que acima fizemos referência, mostra-se incongruente e incompatível com a factualidade anterior que deu origem ao despacho cominatório do crime de desobediência.

Resulta do teor dos despachos proferidos pela arguida que a sua recusa, inicial e subsequente, no cumprimento do despacho inicial assentava no entendimento de que o despacho judicial não especificava, devendo fazê-lo, as inscrições e direitos ali inscritos que deveriam ser cancelados, tendo a arguida invocado entendimento jurisprudencial e do Instituto de Registos e Notariado que pareciam exigir essa especificação.

Tal como menciona o recorrente M.º P.º não só a lei, processual civil, civil ou registral, não impõe esse dever de especificação como também sabia, atenta a sua formação académica e profissional, que as orientações jurisprudenciais só valiam dentro dos processos em que foram proferidas.

Ainda a este propósito, a leitura dos acórdãos com tais orientações jurisprudenciais demonstra que os termos dos despachos em que as mesmas se fundavam e que necessitavam da tal especificação não tinham exactamente o mesmo conteúdo que o despacho ora em apreço: o despacho inicial que desencadeou a recusa em apreciação nestes autos mencionava não só a quantidade  ("todos os registos"), mas também o tipo ("de hipotecas e penhoras") pelo que a arguida não tinha base para alimentar dúvidas sobre o que deveria cancelar, ao passo que os casos invocados pela defesa se referiam a despachos com uma mera invocação de preceitos da lei processual civil ou do Código Civil ou obedecendo a fórmulas como "cancelamento do registo de todos os ónus e encargos que incidiam ... ".

Já quanto aos pareceres emanados do Instituto de Registos e Notariado valem o que valem enquanto pareceres, mas nunca se podem sobrepor às decisões dos tribunais, face ao disposto no art.º 205° n.ºs 2 e 3 da CRP de que a arguida não poderia invocar desconhecimento.

Este preceito constitucional afasta a possibilidade de vingar a invocação pela arguida de um pretenso conflito de deveres - por um lado, o despacho judicial e, por outro, as normas e pareceres do Instituto - que justificasse o seu comportamento de recusa em cumprir o referido despacho, e atento o disposto no art.° 36° n.º 2 Código Penal impunha-se-lhe o cumprimento do judicialmente determinado face à concreta cominação do cometimento do crime.

Nem a argumentação desenvolvida pela arguida no sentido de a sua recusa no cancelamento determinado ser sindicável, pelo particular, via recurso hierárquico ou via impugnação judicial poderá colher como estando salvaguardada uma via de escape para atingir a finalidade não respeitada do despacho judicial. Admitindo, num cenário mais abrangente, que o recurso do particular às vias judiciais para sindicar a bondade da recusa vinha a dar razão ao particular, caía-se na eventual contradição de se ter de provocar a intervenção de um tribunal para validar uma decisão judicial já transitada em julgado que, para a respectiva execução, não necessita da intervenção de outro qualquer órgão judicial. Essa contradição seria ainda mais evidente caso o recurso do particular não obtivesse sucesso uma vez que o tribunal chamado a apreciar a validade da recusa não estaria em situação de apreciar hierarquicamente a validade da ordem contida num despacho transitado em julgado que determinou o cancelamento recusado.

Aqui chegados fazemos apelo à argumentação vertida na motivação de recurso quando o recorrente afirma: "Perante uma cominação de incorrer no crime de desobediência, sabendo que existe outra posição jurídica diferente da que perfilhava, por que motivo a arguida persistiu na recusa em cancelar os registos ordenados judicialmente? A resposta só pode ser a de que quis desobedecer e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Aliás, o artigo 6° do Código Civil com a epígrafe: "Ignorância ou má interpretação da lei", reza assim: «A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nelas estabelecidas». No domínio criminal, esta regra civilística funciona com base no "mínimo ético" que cada norma jurídica deve ter como substracto social e cultural da comunidade em que vigora. Neste sentido não é crível que após ter lido o despacho de cominação da prática de um crime de desobediência no qual, na parte final, o Senhor Juiz diz expressamente o seguinte: «determino, nos termos do art. 265° nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil se notifique a conservadora, através de oficial de justiça, para que, no prazo de dez dias, providencie pelo cancelamento dos registos tal como se decidiu no segundo despacho de fls. 174, sob pena de incorrer no crime de desobediência.», a arguida continuasse a agir sem consciência da ilicitude do facto de recusa em acatar a ordem emanada de um juiz no exercício de funções, sendo do seu total domínio a prescrição do artigo 265° do CPC, como conservadora que é, e do artigo 348°, nº 1, alínea b), do Código Penal, enquanto jurista.

A arguida não podia escudar-se numa certa interpretação da lei para não a cumprir, até porque o artigo 101°, nº 5, do Código de Registo Predial citado no referido despacho cominatório da prática do crime de desobediência diz claramente isto: «A inscrição de aquisição, em processo de execução, de bens penhorados determina o averbamento oficioso de cancelamento dos registos que forem judicialmente mandados cancelar», sendo certo que o Senhor Juiz indicara quais os registos a cancelar que eram «todos os registos de hipotecas e penhoras que à data da venda ainda subsistam sobre o imóvel vendido nestes autos».

Atente-se no facto de o próprio despacho cominatório da prática do crime de desobediência à arguida, o Senhor Juiz ter chamado a atenção da arguida das consequências da recusa na tramitação processual, nestes termos: «Em face desta recusa, porque um eventual recurso do acto de recusa interposto pelo exequente carece de objecto processual, não podendo o juiz da instância de recurso sobrepor uma decisão sua, à decisão judicial transitada em julgado nos presentes autos; e porque na acção executiva, actualmente, como anteriormente, cabia oficiosamente ao conservador o cancelamento dos registos ordenados judicialmente (cfr. art. 101 ° nº 5 do C. R. Predial), mesmo assim a arguida não deu ouvido a esses apelos de consciência.

Apesar desta chamada de atenção que o despacho judicial faz à arguida, esta não se demoveu na sua atitude de recusa. Aliás, é bem patente que o extracto acima transcrito do referido despacho visava levar a arguida a reponderar a sua conduta de recusa, fazendo-lhe ver que a sua posição é que era ilegal e não legítima. Mesmo assim a arguida continuou renitente com a sua recusa, revelando grande vontade de desobedecer e de pôr em crise a ordem. de magistrado judicial exarada no exercício de funções, sabendo das consequências dessa recusa tanto mais que é licenciada em Direito. "

Daqui se conclui que a decisão fáctica no tocante aos factos não provados se mostra inconciliável com os factos provados descritos sob os n.ºs 12 a 14 devendo aqueles serem dados também como provados.

Por outro lado, face à argumentação acabada de desenvolver relativas ao conhecimento da arguida do entendimento que o Magistrado Judicial titular do processo tinha acerca das razões da recusa, num primeiro momento, invocada pela arguida e que levou à prolação do despacho de 25-06-2008, em que foi cominada com o crime de desobediência, a decisão fáctica relativa aos factos 16 e 17 provados representam também um erro notório na apreciação da prova nos termos acima enunciados acerca deste vicio pelo que tais concretos factos passarão a ser considerados como não provados.

Chegados a esta matéria de facto provada, nenhuma dúvida existe acerca do preenchimento pela arguida do crime de desobediência de que se encontrava acusada sendo irrelevantes as considerações vertidas pela recorrida acerca da legitimidade da ordem, até pelos esclarecidos argumentos que foram levados à sentença recorrida nas suas páginas 19 a 23 em que se concluiu pela legitimidade daquela determinação.

Na base da absolvição da arguida invoca o tribunal recorrido que a arguida agiu sem culpa pois actuou sem consciência da ilicitude do facto não lhe sendo o erro censurável nos termos do art. ° 1 7° n. ° 1 CP.

(…)

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal:

1. Rejeitar o recurso "subsidiário" apresentado pela recorrida AA.

2. Conceder provimento ao recurso interposto pelo M.º Pº e, em consequência: 2.1. Alterar a matéria de facto provada, aditando aos factos provados os seguintes:

A arguida sabia tratar-se de ordem legítima;

Sabia a arguida que actuando da forma descrita praticava \actos proibidos e punidos por lei penal.

2.2. Alterar a matéria de facto não provada, aditando aos factos não provados os seguintes:

"A arguida não efectuou o cancelamento dos ónus que incidiam sobre a fracção autónoma em causa por estar convicta que a ordem que lhe havia sido comunicada era ilegítima, já que, a cumpri-la, no seu entender, que era corroborado por pareceres do Instituto dos Registos e Notariado e em jurisprudência dos diversos Tribunais da Relação, teria de violar a lei, e tendo o seu despacho de recusa sido fundamentado sempre poderia o requerente daquele acto reagido ao mesmo nos termos legais;

A arguida acreditava ser a sua recusa de proceder ao cancelamento do registo legítima e legalmente admissível."

3. Alterar a decisão recorrida no sentido de considerar que, com os factos provados nos moldes acima descritos, a arguida AA constituiu-se em autora material de uma crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348°, n.o 1, alínea b), do Código Penal.

4. Revogar a absolvição constante da decisão recorrida e, pela prática do mencionado crime, condenar a arguida AA na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 30,00 (trinta euros) o que perfaz uma multa global de € I 500,00 (mil e quinhentos euros).

5. Condenar a arguida/recorrida, pela rejeição do recurso "subsidiário", em 4 UC nos termos do art.º  420° n.º 3 CPP. “

Por sua vez consta do invocado acórdão fundamento, de 04-10-2005, proc. 1595/05,  prolatado pelo Tribunal da Relação de Coimbra. publicado em www.dgsi.pt

“Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. A A... , instaurou (em 25/3/1999) os presentes autos de execução, então com forma de processo ordinário, contra B... e sua mulher C... e D..., visando obter deles o pagamento da quantia exequenda por si descriminada no seu requerimento inicial executivo. Quantia essa que resultou de um empréstimo (mútuo) efectuado aos 1ºs executados, e avalizado pelo 2º, e cujo pagamento aqueles haviam garantido com a constituição de uma hipoteca voluntária sobre o imóvel ali identificado.

Após os autos terem prosseguido o correspondente ritualismo processual (que incluiu da dedução do "incidente" previsto no artº 869 do CPC de outros credores, BB e sua mulher) veio tal imóvel (que oportunamente havia sido penhorado) a ser vendido judicialmente. Venda essa feita, na modalidade de negociação particular, à própria exequente, com dispensa de depósito do correspondente preço, e depois de previamente ter efectuado o depósito do montante das custas prováveis em dívida.

No correspondente despacho judicial de adjudicação do imóvel, proferido a fls. 461, a srª juiz a quo ordenou, para o efeito que aqui nos interessa, que a mesma fosse feita "livre de quaisquer ónus e/ou encargos, de cujo registo determino o cancelamento".

Mais tarde, através do seu requerimento de fls. 280, a exequente-adquirente veio pedir ao tribunal a quo que declarasse, por um lado, que a mesma estava isenta do pagamento de sisa, e, por outro, que os ónus a cancelar são os registados sob as cotas C2, F1 e F2, alegando para o efeito, e em síntese, que sem tal menção especificadora a Conservatória se recusava a efectuar, a seu favor, o registo definitivo do direito de propriedade que havia adquirido sobre o aludido imóvel.

Requerimento petitório esse que a srª juiz a quo indeferiu, através do seu despacho de fls. 481, considerando as respectivas declarações desnecessárias, face ao teor daquele seu despacho adjudicatório, e que, em síntese, fundamentou nos seguintes termos:

No que concerne ao 1º pedido (declaração de isenção de sisa), argumentou-se que tal dispensa está ínsíta naquele seu despacho, já que foi precisamente por se considerar que a exequente beneficiava de tal isenção que foi proferido, sem mais, o referido despacho de adjudicação, sendo que, todavia, sempre tal declaração de isenção seria da competência da repartição de finanças e não do tribunal.

No que tange ao 2º pedido (especificação dos ónus/registos existentes o imóvel a cancelar), argumentou-se com a sua desnecessidade face à declaração genéríca de cancelamento feita naquele seu mesmo despacho, que impõe ao srº Conservador a obrigação de efectuar o cancelamento de todas as inscrições que estiverem em vigor à data da venda do dito imóvel.

2. Não se tendo conformado com tal despacho, que foi mantido mesmo depois do pedido de aclaração que dele foi pedido, a exequente dele interpôs recurso, o qual foi admitido como agravo e a subir nos próprios autos.

3. Nas correspondentes alegações do recurso que apresentou, a exequente-agravante concluiu as mesmas nos seguintes termos:

"1. O título de transmissão de imóvel judicialmente adquirido e adjudicado deve certificar, expressamente o cumprimento das obrigações fiscais, que no caso dos autos passa pela declaração de isenção de que beneficia a recorrente.

2. O cancelamento dos ónus e/ou encargos registados sobre o imóvel deverá ser ordenado de forma explícita, identificando-se concretamente sobre quais incide, não sendo suficiente uma menção genérica.

3. Em nome do princípio da cooperação, nada obsta, antes aconselha, a que se mencione e concretize especificadamente os factos que assumidamente se verificam e se entende terem sido referidos de forma genérica; como forma, além do mais, de remover o obstáculo que assim se apresenta à parte utente dos serviços da justiça que se vê impedida de exercer um direito que legitimamente lhe assiste, porque se insiste em não concretizar o que se assume se disse genericamente.

4. Pelo exposto, deveria ter sido deferido o requerimento da recorrente, no sentido de se declarar no título de transmissão que se mostram cumpridas, pelo adquirente ora recorrente, as obrigações fiscais, posto beneficiar da respectiva isenção, bem como identificar concretamente quais os ónus/e ou encargos a cancelar.

5. Mostra-se, assim, violado, no douto despacho em recurso, o disposto nos artigos 900º, 888º e 266º do CPC e 284 (trata-se de manifesto lapso de escrita, já que, tal como decorre do contexto do que foi expressamente alegado e citado nas alegações motivatórias do recurso, queria a recorrente dizer e escrever 824 ) do CC."

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. A srª juiz a quo proferiu, de forma tabelar, despacho a sustentar o despacho decisório recorrido.

6. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.

***

II- Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto ou o âmbito dos mesmos (cfr. artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC, e bem assim, entre muitos outros, o Ac. da RC de 5/11/2002, in "CJ, Ano XXVII, T5 - 15").

1.1 Ora calcorreando as conclusões da parte motivatória do presente recurso, verifica-se que as questões que nele importa apreciar e decidir são as seguintes:

a) Deverá, ou não, no despacho judicial de adjudicação de bem imóvel, e que serve de título de transmissão do mesmo, declarar-se ou certificar-se expressamente o cumprimento, pelo seu adquirente, das obrigações fiscais devidas pelo acto (transmissivo) ou, no caso de tal suceder, a sua isenção?

b) A declaração que, em tal despacho, determina o cancelamento dos registos dos ónus ou encargos (ou melhor dos direitos reais) que subsistam sobre o bem imóvel em causa, e que devem caducar nos termos do artº 824 do CC, deverá especificar ou identificar concretamente esses registos ou deverá bastar-se com uma declaração genérica e abstracta de cancelamento dos mesmos?

***

2. Os factos

Com relevância para a decisão, os factos a atender são aqueles que acima deixámos descritos no nº 1 do ponto I.

A eles deve ainda acrescentar-se que as únicas inscrições registais actualmente subsistentes - embora tivessem havido outras - sobre o aludido imóvel são (tal como resulta da respectiva certidão registral junta aos autos) aquelas acima referidas e cujo pedido de cancelamento foi expressamente pedido pela exequente-agravante.

Factos esses que resultam directamente dos autos e dos diversos documentos a eles juntos.

***

3. O direito

3.1 Antes de entrarmos propriamente na apreciação das sobreditas questões, começaremos por lamentar que as mesmas tenham motivado o presente recurso, pondo, a nosso ver, desnecessariamente, em causa o princípio de uma justiça célere e eficaz, ou seja, feita em tempo oportuno (e que constitui uma pedra angular da vigente reforma processual). É que, como se pode observar pelo que atrás se deixou exarado, não existe desintonia quanto ao fundo ou âmago das questões substanciais que estão subjacentes àquelas duas enunciadas questões recursivas, ou seja, quer o tribunal a quo, quer a parte recorrente, estão de acordo que, no caso em apreço, a exequente está isenta do pagamento do imposto devido pela transmissão/aquisição do aludido imóvel, e bem assim quanto à necessidade, legalmente imposta, de cancelar os registos dos direitos reais que devam caducar nos termos do artº 824 do CC. O que a tal propósito divide o tribunal a quo e a recorrente é tão somente uma pequena questão de pormenor, ou seja, sobre o modo, a forma ou os termos de que deve revestir-se (a declaração de) tal reconhecimento e cancelamento.

Por outro lado, devemos, desde já, deixar expresso que o presente caso será analisado, em termos da legislação processual civil aplicável, à luz da reforma introduzida pelos DLs 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/9 (e que doravante designaremos somente por CPC/95) e que estava então em vigor à data da reforma processual, introduzida pelo DL nº 38/2003 de 8/3, que consagrou o novo regime jurídico da acção executiva, actualmente em vigor (o qual, como é sabido, só é aplicável aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, acontecida em 15/9/2003 – cfr. artºs 21, nº 1, e 23, do último diploma).

3.2 Quanto à 1ª questão

Da expressa referência ao cumprimento das obrigações fiscais.

Como resulta do que atrás já deixámos exarado, não constitui objecto de polémica no presente recurso o indagar sobre o cumprimento ou o incumprimento das obrigações fiscais, já que é questão pacífica (tal como foi reconhecido pelo tribunal a quo no seu despacho aclaratório) que a agravante, adquirente do imóvel vendido no processo de execução a que se reportam os presentes autos, está, pela legislação aplicável ao caso, isenta do correspondente imposto que, normalmente, é devido em tais situações, e como tal não iremos perder tempo sobre essa subjacente questão substancial.

Sendo assim, aqui tão somente se discute sobre a necessidade, ou não, de naquele despacho judicial de adjudicação do bem imóvel em causa, e que serve de título de transmissão do mesmo, constar expressa referência ao cumprimento, pela sua adquirente, das obrigações fiscais devidas pelo acto (transmissivo) e, mais concretamente ainda, que a mesma está isenta do pagamento do correspondente imposto que seria devido pela aquisição do imóvel em causa.

Na reforma do CPC/95, o artigo 900, sobre a epígrafe “Adjudicação dos Bens”, dispunha o seguinte:

Nº 1 “Os bens apenas são adjudicados e entregues ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão”.

Nº 2 “Proferido despacho de adjudicação dos bens, é passado ao adquirente título da transmissão, no qual se identifiquem os bens, se certifique o pagamento do preço e o cumprimento das obrigações fiscais e se declare a data em que os bens lhe foram adjudicados”.

Ora da leitura de tal normativo resulta, por um lado, que o pagamento integral do preço e a satisfação das legais obrigações fiscais devidas por tal acto transmissivo funcionam como condição sine qua non para que os bens vendidos em processo de execução possam ser adjudicados e entregues ao seu adquirente, e, por outro lado, resulta que uma vez satisfeitos tais requisitos se impõe ao tribunal que profira despacho de adjudicação dos bens e que automática e expressamente faça constar, além do mais, do título de transmissão que foram cumpridas pelo adquirente as correspondentes obrigações fiscais devidas por tal acto. Só assim faz sentido e se compreende o teor do citado nº 2: “Proferido despacho de adjudicação dos bens, é passado ao adquirente título da transmissão, no qual ....se certifique.....o cumprimento das obrigações fiscais...”.

Tal imposição resulta, pois, a nosso ver, directamente da lei. Na versão anterior ao CPC/95, o artigo 905 equivalia ao acima citado normativo, apresentando, a tal propósito, uma ligeira, mas quanto a nós, significativa alteração, ao dispor no seu nº 2 que “depositado o preço e paga a sisa, se for devida, pode o arrematante exigir que lhe seja passado título....no qual...se certifique o pagamento....da sisa” (sublinhado nosso). Aí a referência expressa no título do cumprimento das obrigações fiscais (pagamento do imposto de sisa), não era automática, já que a mesma estava, ao contrário do que sucedia na versão do CPC/95 e mesmo também no actual regime da acção executiva (com a diferença de que a emissão do correspondente título compete agora ao agente de execução), dependente da exigência ou pedido feito nesse sentido pelo adquirente.

Afigura-se-nos, assim, e sem necessidade de outras considerações, que, quanto a tal questão, faz todo o sentido, por ter suporte legal, a pretensão da ora agravante ao exigir que do respectivo título de transmissão do aludido bem imóvel, que adquiriu nestes autos, conste a expressa referência de que a mesma está, no caso, isenta do cumprimento das obrigações fiscais que seriam devidas, razão pela qual se julga, quanto a essa questão, procedente o recurso, revogando-se, consequentemente, nessa parte o despacho recorrido.

3.3 Quanto à 2ª questão

Da necessidade, ou não, de especificação ou concretização das inscrições registrais que devam ser canceladas.

Voltamos a sublinhar que a questão terá que ser, pelos motivos supra expressos, analisada à luz da reforma processual de 95.

Preceitua, o artigo 888 do CPC/95 que “após o pagamento do preço devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº 2 do artigo 824 do Código Civil, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.”

Depois do nº 1 do artº 824 do CC começar por estatuir que “a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”, dispõe o nº 2 desse mesmo normativo que “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”

Face ao que supra se deixou exarado, não subsistem dúvidas de que no despacho judicial de adjudicação do imóvel, a srª juiz a quo ordenou o cancelamento de todos os ónus ou encargos que se encontrassem registados sobre o mesmo.

A questão que constitui pomo de discórdia, e que aqui urge resolver, consiste apenas em saber se, para cumprimento daqueles normativos legais, basta que o tribunal a quo profira uma ordem genérica e abstracta de cancelamento dos registos dos ónus ou encargos (ou melhor dos direitos reais) que subsistam sobre o bem imóvel em causa, e que devem caducar nos termos do artº 824 do CC (tal como fez e defende a srª juiz a quo), ou, pelo contrário, se tal ordem deverá especificar ou identificar concretamente esses registos a cancelar (tal como defende a agravante)?

Vejamos então.

O artº 888 do CPC/95 (na sequência do que já havia sucedido com o artº 907, na redacção que então lhe havia sido dada pelo DL nº 457/80 de 10/10) manteve inequívoco o sentido da oficiosidade processual, imposta ao juiz do processo, do cancelamento dos registos dos ónus ou encargos existentes sobre os bens vendidos em processo de execução. Oficiosidade essa que – entendimento esse que é hoje pacífico, face ao segmento final que foi acrescentado a tal normativo com a referida reforma “entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho” – deve ser interpretada no sentido de competir ao juiz determinar, em despacho por si proferido nos autos, o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam com a venda, e já não que deva ser o tribunal ex ofício a proceder a tal cancelamento junto da competente Conservatória do Registo Predial, incumbindo depois à secção entregar tão somente ao adquirente certidão de tal despacho, ao qual competírá, esse sim – de acordo como princípio da instância registral -, providenciar directamente, junto da conservatória, pelo cancelamento e feitura dos pertinentes actos de registo (vidé, a propósito e por todos, o cons. Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, pág. 596, nota II” e o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil, Anotado, Coimbra Editora, vol. 3º, pág. 570”). Matéria essa que veio a sofrer a alterações, como adiante veremos (ainda que ao de leve, por não ser aplicável, como acima já deixámos exarado, ao caso em apreço), com a nova redacção dada a tal normativo pelo diploma que introduziu o novo regime da acção executiva.

Como resulta, aliás, do seu próprio texto, aquele normativo terá que ser articulado com o acima citado artº 824 (nomeadamente com o seu nº 2) do CC.

Normativos esses que, no essencial, visam satisfazer o princípio geral de que no processo de execução os bens devem ser transmitidos para o seu adquirente livres de ónus ou encargos.

Daí que o legislador processual se tenha preocupado, antes de mais, em chamar ao processo todos os credores beneficiários de direitos reais (reunindo-os num só processo), nomeadamente de garantia (sendo esses que nestes autos apenas estão em causa), sobre os bens que nele foram penhorados, para que possam fazer valer atempadamente os seus direitos, dado o facto de a venda deles só ser possível uma vez e de para o seu produto serem transferidos todos os direitos reais (cfr., nomeadamente, artºs 864 e 871, do CPC).

Ora considerando, por um lado, que os direitos reais, nomeadamente os de garantia, estão sujeitos a registo (cfr., nomeadamente, artº 2, nº 1 als. a), h), n) e u), do CRP) e, por outro, que a finalidade do registo predial (enunciada no artº 1 desse mesmo código) só se concretizará desde que ele corresponda à realidade, facilmente será de concluir que a venda de bens penhorados na execução imponha, com a caducidade dos direitos reais (especialmente os direitos de garantia), o cancelamento dos respectivos registos, sob pena, de o não fazendo, se defraudar a finalidade do registo e , ao mesmo tempo, se não defender segurança dos direitos em causa.

Porém, e como resulta de uma leitura atenta do citado nº 2 do artº 824 do CC, nem todos os direitos reais existentes sobre o bem imóvel vendido caducam, mas tão só aqueles que se encontrem nas situações ali expressamente referidas, ou seja, que não se encontrem compreendidos na ressalva ali feita (e cujas situações aqui nos dispensamos de descriminar, por ora tal se achar despiciendo).

Logo, ao impor-se no citado artº 888 do CPC/95 o carácter oficioso do cancelamento dos registos de ónus ou encargos existentes sobre os bens vendidos em processo de execução, visou-se manter sobre o controle judicial a decisão relativa à caducidade dos direitos reais (neste nosso caso de garantia) que devam caducar nos termos do aludido artº 824, nº 2, do CC.

E porquê?

Porque é o juiz (e já não, por exemplo, o srº Conservador) quem está em melhores condições – já que acompanha e controla processo desde os seus primórdios (não nos cansamos de sublinhar que estamos a falar à luz do regime anterior ao actual regime da acção executiva) e face aos concretos elementos factuais carreados para os autos - de indagar, por um lado, sobre quais os direitos reais que caducaram ou devem ser declarados caducos (pois já acima deixamos expresso que nem todos caducam automaticamente), e, por outro lado, se foi proporcionada a todos os credores, que detêm direitos reais (nomeadamente de garantia) sobre os bens vendidos, a possibilidade de terem vindo ao processo defender os seus direitos ou interesses, sendo certo ainda que aquele seu despacho de adjudicação dos bens e de declaração de cancelamento dos registos, por caducidade dos direitos reais que sobre eles incidam, está, naturalmente, sujeito a ser objecto de impugnação judicial, por via de recurso, o que significa que só será título bastante (com a produção de todos os seus efeitos) se tiver transitado em julgado.

Por tudo o exposto, somos chegamos à conclusão de que o juiz, ao proferir despacho em que, à luz do citado artº 888 do CPC/95, ordene o cancelamento dos registos dos ónus ou encargos existentes sobre o imóvel que, em processo de execução, foi objecto de venda, deva aí especificar ou concretamente identificar as inscrições registrais que devam ser canceladas, não bastando (como o fez a srª juiz a quo) que o faça através de um ordem genéríca e abstracta de cancelamento. (Entendimento esse que vem sendo sufragado, podemos dizer de forma uniforme, pelo Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e Notariado, através dos seus múltiplos pareceres - vidé, por ex: parecer proferido, no proc. nº RP 107/99 , em 17/12/999 -, e que igualmente foi perfilhado pelo Ac. da RP de 18/11/2003, in “CJ, Ano XXXVIII, T5 – 191”; Ac. da RE de 2/7/1998, in “BMJ nº 479 – 732” e Ac. do STJ de 17/12/1991, in “BMJ nº 412, págs. 471/47”3, sendo certo que na escassa jurisprudência publicada a tal propósito não descortinámos nenhuma proferida em sentido contrário).

Dir-se-á, por fim, que a nova redacção dada entretanto ao citado artº 888 pelo DL nº 38/03 de 8/3, e da qual resulta (além do mais) que aquela tarefa de cancelamento oficioso dos registos que estava cometida ao juiz passou a estar atribuída ao Conservador Predial, em nada altera tal entendimento, antes mesmo o reforçando, já que, por um lado, tal incumbência é agora (o que não sucedia até então, em que o silencio era absoluto) feita expressamente, e, por outro lado, porque a dejudicialização de tal tarefa ou função se insere nos objectivos que estiveram subjacentes à consagração legal do novo regime da acção executiva e que expressamente visavam acabar com a excessiva jurisdicionalização e rigidez de que enfermava o anterior regime (cfr. o preâmbulo do respectivo diploma).

Logo, também quanto a tal questão, se terá de reconhecer assistir razão à agravante ao pretender que o tribunal a quo especifique ou expressamente identifique as inscrições registrais, subsistentes sobre o imóvel que adquiriu nos autos de execução, que devem ser canceladas.

***

III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, na medida e por forma a ser substituído por outro no qual se faça expressamente constar do título de transmissão acima referido que a exequente-agravante está isenta, na aquisição do imóvel supra identificado, do cumprimento das obrigações fiscais que seriam devidas (ou seja, do pagamento do imposto correspondente) e bem assim ali se especifique ou concretize a identificação das inscrições registais existentes sobre tal imóvel que devam ser canceladas.

Sem custas.”

Analisando:

Em termos de perspectiva empírica, meramente formal, poderia alvitrar-se que as situações fácticas são idênticas (em ambos os casos os Magistrados proferiram ordens genéricas de cancelamento de registos prediais sobre determinado imóvel), proferidas no âmbito da mesma legislação registral, que geraram decisões jurídicas diferentes (uma jurídico-penal e outra jurídico-civil), e logo, numa lógica também formal, estritamente literal, poderia concluir-se pelos pressupostos do fundamento do presente recurso extraordinário, nos termos do artº 437º nº 1 do CPP.

Porém, jurídicamente não é de aceitar tal conclusão

Na verdade:

Desde logo, e, em termos substanciais, só aparentemente as situações de facto são idênticas.

No acórdão fundamento, o objecto do processo incidia apenas em matéria de natureza cível, enquanto o acórdão recorrido tinha por objecto matéria de natureza criminal.

È certo que há em ambos os arestos, um núcleo idêntico estruturante da decisão na determinação judicial, que em ambos os casos considera ser bastante a ordem genérica de cancelamento registral, de inscrições sobre determinado bem.

Com efeito referiu o acórdão recorrido:

“3- No âmbito do mencionado processo n° 10/1999 foi proferido, em 12/12/2005, pelo Senhor Juiz de Direito, despacho do seguinte teor:

"Uma vez que foi realizada a venda executiva e que se mostram pagas as custas, e a arrematante foi dispensada de depositar o preço, caducaram os registos dos direitos reais (hipotecas e penhoras) incidentes sobre o imóvel arrematado (arts. 90Jº CPC e 824°,2 CC).

Esta caducidade resulta ope legis.

Por todo o exposto, e ainda ao abrigo do disposto no art. 888° CPC, o Tribunal manda à Conservatória do Registo Predial competente que cancele todos os registos de hipotecas e penhoras que à data da venda ainda subsistam sobre o imóvel vendido nestes autos.

Notifique, com certidão deste despacho. "

4- Em 02/03/2007, foi levado ao conhecimento desse Tribunal pelo aí exequente Banco S.… T… que o pedido de cancelamento dos referidos ónus junto da Conservatória do Registo Predial do Barreira fora recusado, por despacho da arguida de 04/05/2006, de que o exequente foi notificado, com o seguinte teor:

"Despacho

Ap. 72 e 73/0604010- Recusadas

o facto não se encontra titulado nos documentos apresentados. A certidão judicial apresentada não especifica as inscrições a cancelar. Cfr. Arts 13,43 n01, 68 e 69 n01 b) do CRP".

5- Com efeito, na sequência da recusa do cancelamento, o exequente, em 02/03/2007, apresentou requerimento no Proc. n° 10/1999, peticionando, em suma, que:

" ... o Exequente foi notificado de despacho da Conservatória do registo predial do Barreira a informar que os cancelamentos em causa foram recusados, devido ao facto do despacho de cancelamento proferido nos autos não especificar quais as inscrições a cancelar. Dessa forma, vem requerer a V Exa. cancelamento da penhora ordenada nos presentes autos (F-2 Ap. N° 48 de 20/12/2002) e da hipoteca registada a favor do Crédito P… p… (C-1 Ap. N° 42 de 09/11/1981) (. . .)

Vem ainda requerer a passagem da certidão de cancelamento das mesmas para efeitos de registo predial ... ";

6- Sobre tal requerimento do exequente veio a recair, em 08/03/2007, o seguinte despacho judicial:

"Fls. 241: Porque a recusa de que se dá notícia é manifestamente ilegal, oficie à Conservadora para que cumpra o despacho judicial que determinou o cancelamento dos registos, que transitou em julgado, não competindo a conservador aferir, ou fiscalizar a legalidade das decisões judiciais. "

7- Oficiado o despacho de 08/03/2007 à Conservatória do Registo Predial, por ofício de 16/0312007, a arguida não efectuou o acta de registo em causa, nem nada disse no âmbito do processo de execução ordinária;

(…)

Por sua vez, consta do acórdão fundamento

“No correspondente despacho judicial de adjudicação do imóvel, proferido a fls. 461, a srª juiz a quo ordenou, para o efeito que aqui nos interessa, que a mesma fosse feita "livre de quaisquer ónus e/ou encargos, de cujo registo determino o cancelamento".

Mais tarde, através do seu requerimento de fls. 280, a exequente-adquirente veio pedir ao tribunal a quo que declarasse, (…)que os ónus a cancelar são os registados sob as cotas C2, F1 e F2, alegando para o efeito, e em síntese, que sem tal menção especificadora a Conservatória se recusava a efectuar, a seu favor, o registo definitivo do direito de propriedade que havia adquirido sobre o aludido imóvel.

Requerimento petitório esse que a srª juiz a quo indeferiu, através do seu despacho de fls. 481, considerando as respectivas declarações desnecessárias, face ao teor daquele seu despacho adjudicatório, e que, em síntese, fundamentou nos seguintes termos:

(…)

No que tange ao 2º pedido (especificação dos ónus/registos existentes o imóvel a cancelar), argumentou-se com a sua desnecessidade face à declaração genérica de cancelamento feita naquele seu mesmo despacho, que impõe ao srº Conservador a obrigação de efectuar o cancelamento de todas as inscrições que estiverem em vigor à data da venda do dito imóvel.”

Porém, a situação de facto, para além disto, não coincide, nem é comparável, por dizer respeito a processos de natureza diferente, por conseguinte, e necessariamente, com implicações e decisões jurídicas diferenciadas, sendo a situação de facto concretizada de harmonia com o objecto do processo em que se insere

Por isso, o acórdão recorrido prossegue no sentido de apreciação jurídico-criminal da conduta da arguida, e acrescenta:

“8- Por requerimento de 17/06/2008, o aí exequente Banco S…. T… informou o Tribunal de que "(…) constatou agora o Exequente que, apesar de ter sido oficiada a Conservatória nos termos acima indicados, os mesmos ónus se encontram em vigor, tendo sido apenas registada a aquisição a seu favor.

Assim, e a fim de tentar ultrapassar esta situação de algum impasse na efectivação dos registos pretendidos, vem o Exequente requerer novamente a emissão de certidão judicial onde conste que os ónus a cancelar são as inscrições F-2 (Ap. xxx/xxxxxx) e C-1 (Ap. xx/xxxxxx) ... ";

 9- Em 25/06/2008 foi proferido pelo Senhor Juiz de Direito, no mencionado processo n° 10/1999, o seguinte despacho:

"Requerimento de fls. 271 e 272:

(. .. ) Tem agora o Tribunal notícia, através do requerimento de fls.271, que a conservadora, persiste reiteradamente na recusa em cancelar os registos em causa.

 (. . .) Em face desta recusa, porque um eventual recurso contencioso ;)?; do acto de recusa interposto pelo exequente carece de objecto processual, não podendo o juiz da instância de recurso sobrepor uma decisão sua, à decisão judicial transitada em julgado nos presentes autos, e porque na acção executiva, actualmente, como anteriormente, cabia oficiosamente ao conservador o cancelamento dos registos ordenados judicialmente (cfr.art.101° nº5 do C.R.Predial); com vista manter a eficácia jurídica do segundo despacho de fls. 174 (que a conservadora pretende inutilizar), determino, nos termos do at.265° nºs 1 e 2 do Cód.Proc.Civil se notifique a conservadora, através de oficial de justiça, para que, no prazo de dez dias, providencie pelo cancelamento dos registos tal como se decidiu no segundo despacho defls.174, sob pena de incorrer no crime de desobediência. (. .. )";

10 - Porém, pessoalmente notificada, em 08/07/2008, deste despacho de 25/06/2008, a arguida, desrespeitando a ordem nele contida, não efectuou o acto de registo de cancelamento dos ónus que incidiam sobre a fracção autónoma em causa, nem justificou tal omissão por qualquer forma;

11- A arguida, na sequência da notificação lhe efectuada no dia 08/07/2008, redigiu a carta de fls. 162 a 163, cujo teor se dá por reproduzido, e por razões não apuradas não deu entrada em juízo;

12- A arguida sabia tratar-se de ordem emanada de autoridade judicial no exercício das suas funções;

13- A arguida agiu com o propósito, concretizado, de não obedecer à ordem lhe foi transmitida;

14- A arguida sabia que punha, como efectivamente pôs, em causa a autoridade subjacente a tal ordem;

15- A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente;

16- A arguida não efectuou o cancelamento dos ónus que incidiam sobre a fracção autónoma em causa por estar convicta que a ordem que lhe havia sido comunicada era ilegítima, já que, a cumpri-la, no seu entender, que era corroborado por pareceres do Instituto dos Registos e Notariado e em jurisprudência dos diversos Tribunais da Relação, teria de violar a lei, e tendo o seu despacho de recusa sido fundamentado sempre poderia o requerente daquele acto reagido ao mesmo nos termos legais;

17 - A arguida acreditava ser a sua recusa de proceder cancelamento do registo legítima e legalmente admissível;

18- Antes da reforma executiva, levada a efeito em 2003, era entendimento do Instituto dos Registos e Notariado, entendimento este desde há muito preconizado, que o cancelamento de direitos reais deveria ser efectuado com base em despacho judicial, transitado em julgado, que especificasse, claramente quais os direitos a cancelar. Entendia-se, que a certidão de decisão judicial proferida em processo de execução em cumprimento do disposto no art. 888° do Código de Processo Civil (anterior art. 907°) que apenas ordenasse genericamente o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam, não era documento suficiente para o cancelamento, sendo necessário que a decisão especificasse os registos a cancelar;

19- Já no âmbito do Proc. n° 166/1996 do 2° Juízo Cíve1 deste Tribunal a arguida havia recusado cancelamento semelhante com os seguintes fundamentos, que em 24/01/2007 foram dados a conhecer aos respectivos autos pelo ali adquirente:

(….)

21- A arguida não tem antecedentes criminais;

22- A arguida aufere 3500,00 euros mensais;

23- Vive com o marido, engenheiro, e dois filhos maiores de idade, ambos estudantes;

24- Reside em casa própria pagando ao banco para amortização do mútuo contraído 2.000,00 euros por mês;

25- Tem de habilitações literárias a Licenciatura em Direito.

O acórdão recorrido aditou factos privativos do julgamento penal, convocou a lei constitucional, modificou a matéria de facto, e concluiu pela existência da prática de um crime de desobediência, pela arguida

Nele se disse, além do mais:

“Já quanto aos pareceres emanados do Instituto de Registos e Notariado valem o que valem enquanto pareceres, mas nunca se podem sobrepor às decisões dos tribunais, face ao disposto no art.º 205° n.ºs 2 e 3 da CRP de que a arguida não poderia invocar desconhecimento.

Este preceito constitucional afasta a possibilidade de vingar a invocação pela arguida de um pretenso conflito de deveres - por um lado, o despacho judicial e, por outro, as normas e pareceres do Instituto - que justificasse o seu comportamento de recusa em cumprir o referido despacho, e atento o disposto no art.° 36° n.º 2 Código Penal impunha-se-lhe o cumprimento do judicialmente determinado face à concreta cominação do cometimento do crime.

Nem a argumentação desenvolvida pela arguida no sentido de a sua recusa no cancelamento determinado ser sindicável, pelo particular, via recurso hierárquico ou via impugnação judicial poderá colher como estando salvaguardada uma via de escape para atingir a finalidade não respeitada do despacho judicial. Admitindo, num cenário mais abrangente, que o recurso do particular às vias judiciais para sindicar a bondade da recusa vinha a dar razão ao particular, caía-se na eventual contradição de se ter de provocar a intervenção de um tribunal para validar uma decisão judicial já transitada em julgado que, para a respectiva execução, não necessita da intervenção de outro qualquer órgão judicial. Essa contradição seria ainda mais evidente caso o recurso do particular não obtivesse sucesso uma vez que o tribunal chamado a apreciar a validade da recusa não estaria em situação de apreciar hierarquicamente a validade da ordem contida num despacho transitado em julgado que determinou o cancelamento recusado.

Perante uma cominação de incorrer no crime de desobediência, sabendo que existe outra posição jurídica diferente da que perfilhava, por que motivo a arguida persistiu na recusa em cancelar os registos ordenados judicialmente? A resposta só pode ser a de que quis desobedecer e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Aliás, o artigo 6° do Código Civil com a epígrafe: "Ignorância ou má interpretação da lei", reza assim: «A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nelas estabelecidas». No domínio criminal, esta regra civilística funciona com base no "mínimo ético" que cada norma jurídica deve ter como substrato social e cultural da comunidade em que vigora. Neste sentido não é crível que após ter lido o despacho de cominação da prática de um crime de desobediência no qual, na parte final, o Senhor Juiz diz expressamente o seguinte: «determino, nos termos do art. 265° nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil se notifique a conservadora, através de oficial de justiça, para que, no prazo de dez dias, providencie pelo cancelamento dos registos tal como se decidiu no segundo despacho de fls. 174, sob pena de incorrer no crime de desobediência.», a arguida continuasse a agir sem consciência da ilicitude do facto de recusa em acatar a ordem emanada de um juiz no exercício de funções, sendo do seu total domínio a prescrição do artigo 265° do CPC, como conservadora que é, e do artigo 348°, nº 1, alínea b), do Código Penal, enquanto jurista.

A arguida não podia escudar-se numa certa interpretação da lei para não a cumprir, até porque o artigo 101°, nº 5, do Código de Registo Predial citado no referido despacho cominatório da prática do crime de desobediência diz claramente isto: «A inscrição de aquisição, em processo de execução, de bens penhorados determina o averbamento oficioso de cancelamento dos registos que forem judicialmente mandados cancelar», sendo certo que o Senhor Juiz indicara quais os registos a cancelar que eram «todos os registos de hipotecas e penhoras que à data da venda ainda subsistam sobre o imóvel vendido nestes autos».

Atente-se no facto de o próprio despacho cominatório da prática do crime de desobediência à arguida, o Senhor Juiz ter chamado a atenção da arguida das consequências da recusa na tramitação processual, nestes termos: «Em face desta recusa, porque um eventual recurso do acto de recusa interposto pelo exequente carece de objecto processual, não podendo o juiz da instância de recurso sobrepor uma decisão sua, à decisão judicial transitada em julgado nos presentes autos; e porque na acção executiva, actualmente, como anteriormente, cabia oficiosamente ao conservador o cancelamento dos registos ordenados judicialmente (cfr. art. 101 ° nº 5 do C. R. Predial), mesmo assim a arguida não deu ouvido a esses apelos de consciência.

Apesar desta chamada de atenção que o despacho judicial faz à arguida, esta não se demoveu na sua atitude de recusa. Aliás, é bem patente que o extracto acima transcrito do referido despacho visava levar a arguida a reponderar a sua conduta de recusa, fazendo-lhe ver que a sua posição é que era ilegal e não legítima. Mesmo assim a arguida continuou renitente com a sua recusa, revelando grande vontade de desobedecer e de pôr em crise a ordem. de magistrado judicial exarada no exercício de funções, sabendo das consequências dessa recusa tanto mais que é licenciada em Direito. "

Daqui se conclui que a decisão fáctica no tocante aos factos não provados se mostra inconciliável com os factos provados descritos sob os n.ºs 12 a 14 devendo aqueles serem dados também como provados.

Por outro lado, face à argumentação acabada de desenvolver relativas ao conhecimento da arguida do entendimento que o Magistrado Judicial titular do processo tinha acerca das razões da recusa, num primeiro momento, invocada pela arguida e que levou à prolação do despacho de 25-06-2008, em que foi cominada com o crime de desobediência, a decisão fáctica relativa aos factos 16 e 17 provados representam também um erro notório na apreciação da prova nos termos acima enunciados acerca deste vicio pelo que tais concretos factos passarão a ser considerados como não provados.

Chegados a esta matéria de facto provada, nenhuma dúvida existe acerca do preenchimento pela arguida do crime de desobediência de que se encontrava acusada sendo irrelevantes as considerações vertidas pela recorrida acerca da legitimidade da ordem, até pelos esclarecidos argumentos que foram levados à sentença recorrida nas suas páginas 19 a 23 em que se concluiu pela legitimidade daquela determinação.”

E, assim, veio a decidir:

“ 2. Conceder provimento ao recurso interposto pelo M.º Pº e, em consequência: 2.1. Alterar a matéria de facto provada, aditando aos factos provados os seguintes:

A arguida sabia tratar-se de ordem legítima;

Sabia a arguida que actuando da forma descrita praticava \actos proibidos e punidos por lei penal.

2.2. Alterar a matéria de facto não provada, aditando aos factos não provados os seguintes:

"A arguida não efectuou o cancelamento dos ónus que incidiam sobre a fracção autónoma em causa por estar convicta que a ordem que lhe havia sido comunicada era ilegítima, já que, a cumpri-la, no seu entender, que era corroborado por pareceres do Instituto dos Registos e Notariado e em jurisprudência dos diversos Tribunais da Relação, teria de violar a lei, e tendo o seu despacho de recusa sido fundamentado sempre poderia o requerente daquele acto reagido ao mesmo nos termos legais;

A arguida acreditava ser a sua recusa de proceder ao cancelamento do registo legítima e legalmente admissível."

3. Alterar a decisão recorrida no sentido de considerar que, com os factos provados nos moldes acima descritos, a arguida AA constituiu-se em autora material de uma crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348°, n.º 1, alínea b), do Código Penal. “

Já o acórdão fundamento começou por deixar expresso “que o presente caso será analisado, em termos da legislação processual civil aplicável, à luz da reforma introduzida pelos DLs 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/9 (e que doravante designaremos somente por CPC/95) e que estava então em vigor à data da reforma processual, introduzida pelo DL nº 38/2003 de 8/3, que consagrou o novo regime jurídico da acção executiva, actualmente em vigor (o qual, como é sabido, só é aplicável aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, acontecida em 15/9/2003 – cfr. artºs 21, nº 1, e 23, do último diploma).”

O acórdão recorrido embora descreva no ponto 19 da matéria de facto provada que “no âmbito do Proc. n° 166/1996 do 2° Juízo Cível deste Tribunal a arguida havia recusado cancelamento semelhante com os seguintes fundamentos, que em 24/01/2007 foram dados a conhecer aos respectivos autos pelo ali adquirente:

"1- O teor do o 888 do CPC (que veio tomar inequívoco o sentido da oficiosidade processual já anteriormente prevista no art. 907) refere que:

"Após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam, nos termos do nº2 do art. 824 do C.C., entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho". (…), não analisou a questão em termos cíveis, e deu como assente que:

“Tal como menciona o recorrente M.º P.º não só a lei, processual civil, civil ou registral, não impõe esse dever de especificação como também sabia, atenta a sua formação académica e profissional, que as orientações jurisprudenciais só valiam dentro dos processos em que foram proferidas.

Ainda a este propósito, a leitura dos acórdãos com tais orientações jurisprudenciais demonstra que os termos dos despachos em que as mesmas se fundavam e que necessitavam da tal especificação não tinham exactamente o mesmo conteúdo que o despacho ora em apreço: o despacho inicial que desencadeou a recusa em apreciação nestes autos mencionava não só a quantidade  ("todos os registos"), mas também o tipo ("de hipotecas e penhoras") pelo que a arguida não tinha base para alimentar dúvidas sobre o que deveria cancelar, ao passo que os casos invocados pela defesa se referiam a despachos com uma mera invocação de preceitos da lei processual civil ou do Código Civil ou obedecendo a fórmulas como "cancelamento do registo de todos os ónus e encargos que incidiam ... ".

Ora o acórdão fundamento teve precisamente por objecto a apreciação dessa questão cível, referindo:

“3.3 Quanto à 2ª questão

Da necessidade, ou não, de especificação ou concretização das inscrições registrais que devam ser canceladas.

Voltamos a sublinhar que a questão terá que ser, pelos motivos supra expressos, analisada à luz da reforma processual de 95.

Preceitua, o artigo 888 do CPC/95 que “após o pagamento do preço devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº 2 do artigo 824 do Código Civil, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.”

Depois do nº 1 do artº 824 do CC começar por estatuir que “a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”, dispõe o nº 2 desse mesmo normativo que “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”

Face ao que supra se deixou exarado, não subsistem dúvidas de que no despacho judicial de adjudicação do imóvel, a srª juiz a quo ordenou o cancelamento de todos os ónus ou encargos que se encontrassem registados sobre o mesmo.

A questão que constitui pomo de discórdia, e que aqui urge resolver, consiste apenas em saber se, para cumprimento daqueles normativos legais, basta que o tribunal a quo profira uma ordem genérica e abstracta de cancelamento dos registos dos ónus ou encargos (ou melhor dos direitos reais) que subsistam sobre o bem imóvel em causa, e que devem caducar nos termos do artº 824 do CC (tal como fez e defende a srª juiz a quo), ou, pelo contrário, se tal ordem deverá especificar ou identificar concretamente esses registos a cancelar (tal como defende a agravante)?

Vejamos então.

O artº 888 do CPC/95 (na sequência do que já havia sucedido com o artº 907, na redacção que então lhe havia sido dada pelo DL nº 457/80 de 10/10) manteve inequívoco o sentido da oficiosidade processual, imposta ao juiz do processo, do cancelamento dos registos dos ónus ou encargos existentes sobre os bens vendidos em processo de execução. Oficiosidade essa que – entendimento esse que é hoje pacífico, face ao segmento final que foi acrescentado a tal normativo com a referida reforma “entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho” – deve ser interpretada no sentido de competir ao juiz determinar, em despacho por si proferido nos autos, o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam com a venda, e já não que deva ser o tribunal ex ofício a proceder a tal cancelamento junto da competente Conservatória do Registo Predial, incumbindo depois à secção entregar tão somente ao adquirente certidão de tal despacho, ao qual competírá, esse sim – de acordo como princípio da instância registral -, providenciar directamente, junto da conservatória, pelo cancelamento e feitura dos pertinentes actos de registo (vidé, a propósito e por todos, o cons. Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, pág. 596, nota II” e o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil, Anotado, Coimbra Editora, vol. 3º, pág. 570”). Matéria essa que veio a sofrer a alterações, como adiante veremos (ainda que ao de leve, por não ser aplicável, como acima já deixámos exarado, ao caso em apreço), com a nova redacção dada a tal normativo pelo diploma que introduziu o novo regime da acção executiva.

Como resulta, aliás, do seu próprio texto, aquele normativo terá que ser articulado com o acima citado artº 824 (nomeadamente com o seu nº 2) do CC.

Normativos esses que, no essencial, visam satisfazer o princípio geral de que no processo de execução os bens devem ser transmitidos para o seu adquirente livres de ónus ou encargos.

Daí que o legislador processual se tenha preocupado, antes de mais, em chamar ao processo todos os credores beneficiários de direitos reais (reunindo-os num só processo), nomeadamente de garantia (sendo esses que nestes autos apenas estão em causa), sobre os bens que nele foram penhorados, para que possam fazer valer atempadamente os seus direitos, dado o facto de a venda deles só ser possível uma vez e de para o seu produto serem transferidos todos os direitos reais (cfr., nomeadamente, artºs 864 e 871, do CPC).

Ora considerando, por um lado, que os direitos reais, nomeadamente os de garantia, estão sujeitos a registo (cfr., nomeadamente, artº 2, nº 1 als. a), h), n) e u), do CRP) e, por outro, que a finalidade do registo predial (enunciada no artº 1 desse mesmo código) só se concretizará desde que ele corresponda à realidade, facilmente será de concluir que a venda de bens penhorados na execução imponha, com a caducidade dos direitos reais (especialmente os direitos de garantia), o cancelamento dos respectivos registos, sob pena, de o não fazendo, se defraudar a finalidade do registo e , ao mesmo tempo, se não defender segurança dos direitos em causa.

Porém, e como resulta de uma leitura atenta do citado nº 2 do artº 824 do CC, nem todos os direitos reais existentes sobre o bem imóvel vendido caducam, mas tão só aqueles que se encontrem nas situações ali expressamente referidas, ou seja, que não se encontrem compreendidos na ressalva ali feita (e cujas situações aqui nos dispensamos de descriminar, por ora tal se achar despiciendo).

Logo, ao impor-se no citado artº 888 do CPC/95 o carácter oficioso do cancelamento dos registos de ónus ou encargos existentes sobre os bens vendidos em processo de execução, visou-se manter sobre o controle judicial a decisão relativa à caducidade dos direitos reais (neste nosso caso de garantia) que devam caducar nos termos do aludido artº 824, nº 2, do CC.

E porquê?

Porque é o juiz (e já não, por exemplo, o srº Conservador) quem está em melhores condições – já que acompanha e controla processo desde os seus primórdios (não nos cansamos de sublinhar que estamos a falar à luz do regime anterior ao actual regime da acção executiva) e face aos concretos elementos factuais carreados para os autos - de indagar, por um lado, sobre quais os direitos reais que caducaram ou devem ser declarados caducos (pois já acima deixamos expresso que nem todos caducam automaticamente), e, por outro lado, se foi proporcionada a todos os credores, que detêm direitos reais (nomeadamente de garantia) sobre os bens vendidos, a possibilidade de terem vindo ao processo defender os seus direitos ou interesses, sendo certo ainda que aquele seu despacho de adjudicação dos bens e de declaração de cancelamento dos registos, por caducidade dos direitos reais que sobre eles incidam, está, naturalmente, sujeito a ser objecto de impugnação judicial, por via de recurso, o que significa que só será título bastante (com a produção de todos os seus efeitos) se tiver transitado em julgado.

Por tudo o exposto, somos chegamos à conclusão de que o juiz, ao proferir despacho em que, à luz do citado artº 888 do CPC/95, ordene o cancelamento dos registos dos ónus ou encargos existentes sobre o imóvel que, em processo de execução, foi objecto de venda, deva aí especificar ou concretamente identificar as inscrições registrais que devam ser canceladas, não bastando (como o fez a srª juiz a quo) que o faça através de um ordem genéríca e abstracta de cancelamento. (Entendimento esse que vem sendo sufragado, podemos dizer de forma uniforme, pelo Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e Notariado, através dos seus múltiplos pareceres - vidé, por ex: parecer proferido, no proc. nº RP 107/99 , em 17/12/999 -, e que igualmente foi perfilhado pelo Ac. da RP de 18/11/2003, in “CJ, Ano XXXVIII, T5 – 191”; Ac. da RE de 2/7/1998, in “BMJ nº 479 – 732” e Ac. do STJ de 17/12/1991, in “BMJ nº 412, págs. 471/47”3, sendo certo que na escassa jurisprudência publicada a tal propósito não descortinámos nenhuma proferida em sentido contrário).

Dir-se-á, por fim, que a nova redacção dada entretanto ao citado artº 888 pelo DL nº 38/03 de 8/3, e da qual resulta (além do mais) que aquela tarefa de cancelamento oficioso dos registos que estava cometida ao juiz passou a estar atribuída ao Conservador Predial, em nada altera tal entendimento, antes mesmo o reforçando, já que, por um lado, tal incumbência é agora (o que não sucedia até então, em que o silencio era absoluto) feita expressamente, e, por outro lado, porque a dejudicialização de tal tarefa ou função se insere nos objectivos que estiveram subjacentes à consagração legal do novo regime da acção executiva e que expressamente visavam acabar com a excessiva jurisdicionalização e rigidez de que enfermava o anterior regime (cfr. o preâmbulo do respectivo diploma).

Logo, também quanto a tal questão, se terá de reconhecer assistir razão à agravante ao pretender que o tribunal a quo especifique ou expressamente identifique as inscrições registrais, subsistentes sobre o imóvel que adquiriu nos autos de execução, que devem ser canceladas.

***

III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, na medida e por forma a ser substituído por outro no qual se faça expressamente constar do título de transmissão acima referido que a exequente-agravante está isenta, na aquisição do imóvel supra identificado, do cumprimento das obrigações fiscais que seriam devidas (ou seja, do pagamento do imposto correspondente) e bem assim ali se especifique ou concretize a identificação das inscrições registais existentes sobre tal imóvel que devam ser canceladas.”

As situações fácticas dos acórdãos pretensamente colidentes, não se afiguram comparáveis para efeitos de poderem extrair-se os pressupostos da oposição de julgados.

Somente de forma genérica e mediata, decorrente da fundamentação, a questão de direito aparenta ser a mesma

Mas, a fundamentação de direito, ou a argumentação jurídica utilizada, não confere a identidade de situação de facto, apenas constituindo argumentos de convencimento jurídico da decisão.

E, nos acórdãos em confronto, a questão de direito não é a mesma, pois que uma é de natureza penal e a outra, de natureza estritamente cível.

A situação fáctica dos acórdãos pretensamente colidentes é diferenciada, não pode considerar-se idêntica, face à diferente natureza e forma do processo, com a conformação diferenciada do objecto do processo.

Por isso, também não pode dizer-se que as soluções jurídicas sejam opostas, uma vez que as decisões havidas não têm entre si qualquer similitude.

As situações fácticas são diferentes, pelo que necessariamente implicaram diferença, e não propriamente oposição, nas decisões que lhes corresponderam.

Na verdade, enquanto no acórdão recorrido se tratava de um recurso penal tendo por objecto a questão fáctica de relevância jurídico-criminal: incumprimento de uma determinada ordem judicial de cancelamento de registos de direitos reais (hipotecas e penhoras) em determinado imóvel, por a caducidade dos registos resultar ope legis, “não competindo a conservador aferir, ou fiscalizar a legalidade das decisões judiciais”, o acórdão fundamento teve por objecto conhecer e decidir se o despacho que determina o cancelamento dos registos dos ónus ou encargos (ou melhor dos direitos reais) que subsistam sobre o bem imóvel em causa, e que devem caducar nos termos do artº 824 do CC, deverá especificar ou identificar concretamente esses registos ou deverá bastar-se com uma declaração genérica e abstracta de cancelamento dos mesmos

            Como bem refere o Exmo Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo:

“Em síntese, verifica-se que o acórdão recorrido não decidiu da questão relativa à qualificação da ordem de cancelamento dos registos como cumpridora do dever de especificação. Considerou, sim, que aquela concreta ordem, além de não ser genérica, era legítima, face aos factos dados como provados nos n.º s 6 e 9 (despachos judiciais posteriores à primeira recusa).

Por seu turno, o acórdão fundamento, apreciando o despacho judicial proferido naqueles autos do qual constava que a «adjudicação do imóvel fosse feita “livre de quaisquer ónus e/ou encargos, de cujo registo determino o cancelamento”», decidiu que «o juiz, ao proferir o despacho em que, à luz do citado artº 888 do CPC/95, ordene o cancelamento dos registos dos ónus ou encargos existentes sobre o imóvel que, em processo de execução, foi objecto de venda, deva aí especificar ou concretamente identificar as inscrições registrais que devam ser canceladas, não bastando (como o fez a srª juiz a quo) que o faça através de uma ordem genérica e abstracta de cancelamento.».

Daqui flui que o acórdão fundamento decidiu, por um lado, que o juiz deve especificar ou identificar as inscrições que devam ser canceladas, nos termos do artigo 888.° do CPC, e por outro, que aquela concreta ordem era genérica, não cumprindo aquele dever de especificação.”

É pois evidente que as decisões de direito são diferentes e não se referem a idênticas situações fácticas, ou, de outro modo, na presente situação concreta, - o decidido pelo acórdão recorrido e o julgado pelo acórdão fundamento -, não há identidade de situações de facto, que legitimem a conclusão de que geraram decisões de direito diferentes.

Inexistindo identidade de situações de facto, conclui-se pela não oposição de julgados.

Concluindo-se pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado. (artº 441º nº 1 do CPP)

Daí que, decidindo.

Acordam os da 3ª Secção deste Supremo Tribunal, em rejeitar, de harmonia com disposto no artigo 441º nº 1 do CPP o presente recurso de fixação de jurisprudência.

Tributam a recorrente em 4 Ucs de taxa de justiça, e condenam-na na importância de 5 UCs, nos termos do artº 420º nº 3 do CPP.

      Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Outubro de 2011

Pires da Graça (relator)
Raul Borges
Pereira Madeira
___________________________________________________                                    
[1] Por todos, Ac. STJ de 10.10.2001, processo n.º 1070.01, 3ª