ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
278/10.1TBFND-C.C1.1
DATA DO ACÓRDÃO 11/10/2011
SECÇÃO 1ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GARCIA CALEJO

DESCRITORES INSOLVÊNCIA
CREDITO LABORAL
HIPOTECA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONSTITUCIONALIDADE
ÁREA TEMÁTICA DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO DO TRABALHO - INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
DIREITO CONSTITUCIONAL
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, 686.º, N.º 1, 748.º, 751.º.
CÓDIGO DO TRABALHO: - ARTIGO 333.º (ANTERIOR ARTIGO 377.º DO CT/2003).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 18.º, N.º3, 29.º, N.º 1, 103.º, N.º3.
DL N.º 53/2004, DE 18-3 (CIRE).
LEI 99/2003: - ARTIGO 8.º, N.º1.
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29-5-1980, BMJ 297, PÁGS. 278 E SS.;
-DE 5-6-2007, WWW.DGSI.PT .
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-DE 22-10-2003 (IN DR, II SÉRIE DE 3-1-04.
(OU WWW. TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT/ACORDAOS/20030498.HTML)


SUMÁRIO
I - A lei confere privilégio imobiliário especial aos créditos laborais dos trabalhadores, sobre os bens imóveis do empregador nos quais ao tempo da declaração eles exerciam a sua actividade, devendo esses créditos ser graduados antes dos créditos do Estado (pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre sucessões e doações), dos créditos das autarquias locais (pela contribuição predial), dos créditos das contribuições devidas à Segurança Social e da hipoteca.

II - A hipoteca sobre um imóvel, mesmo registada anteriormente, cede, no sentido da prioridade do pagamento, em relação a um crédito garantido por um privilégio imobiliário especial sobre o mesmo prédio.

III - A norma constante do art. 333.º do CT (anteriormente do art. 377.º do CT) que estabelece o privilégio imobiliário creditório especial a favor dos créditos dos trabalhadores é de aplicação imediata, abrangendo os créditos gerados pela violação ou cessação dos contratos de trabalho subsistentes à data da sua entrada em vigor.

IV - A interpretação da norma constante do actual art. 333.º do CT (anterior art. 377.º do CT), sustentada em III, não é inconstitucional.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL  

                                               Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                                   

                        I- Relatório:

                        1-1- No Tribunal Judicial da Comarca do Fundão corre termos o processo de insolvência com o nº 278/10.1TBFND, em que foi declarada insolvente, por sentença de 17/09/2010, transitada em julgado em 14/10/2010, a sociedade “AA, Ldª”, com sede na Zona Industrial do Fundão, ..., Fundão.

                        Instaurado o respectivo apenso de reclamação de créditos, foi nele proferida decisão de verificação e de graduação dos créditos nos seguintes termos: “Considerando os princípios atrás expostos, procede-se ao pagamento dos créditos, através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem:

1º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem móvel (artigo 172º, nº 1 e 2).

2º- Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos indicados sob a ordem preconizada e com as especificações realizadas nos pontos 1.2 a 1.9, conforme se alcança de fls. 17 e 18.

3º- Em particular, no que ao imóvel respeita, a graduação será feita naqueles moldes, alterando-se todavia, a ordem aí preconizada, no que respeita à preferência dos créditos laborais, na medida em que os créditos garantidos por hipoteca, ao abrigo da legislação anterior ao CT de 2003, devem ser pagos, relativamente aos bens imóveis sobre que esta incide, com preferência sobre os créditos laborais que, gozando embora de privilégio imobiliário geral, têm de ser graduados depois dos créditos hipotecários”.

                         1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu credor (trabalhador) BB de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo-se aí decidido julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a sentença recorrida quanto à graduação dos créditos a serem pagos pelo produto da venda do único imóvel apreendido para a massa insolvente, determinando-se a seguinte graduação ou ordem de preferência nos respectivos pagamentos:

                        1º - Os créditos dos trabalhadores reclamados/reconhecidos.

                        2º - O crédito da Caixa CC do Fundão e Sabugal também reconhecido e que goza de hipoteca registada sobre tal imóvel.

                        3º - Os demais créditos reconhecidos.

                       

                        1-3- Irresignada com este acórdão, dele recorreu a credora Caixa CC do Fundão e Sabugal para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

                       

                        A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                               1ª- A aqui recorrente é titular dum crédito que em primeira instância e quanto ao único imóvel apreendido nos autos de insolvência de que este processo é apenso, foi graduado á frente dos créditos laborais.

                               2ª- Por douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, esta douta sentença de graduação de créditos foi revogada e substituída por outra que graduou à frente do crédito hipotecário da aqui recorrente, os créditos laborais.

                               3ª- Parece à aqui recorrente que a solução jurídica encontrada no Douto Acórdão ora recorrido não é a mais feliz, parecendo à aqui recorrente mais justo e tecnicamente correcto o juízo formulado no douto Acórdão deste Supremo tribunal de Justiça datado de 26.10.2010, no processo nº 103-H/2000.C1.S2.

                               4ª- Assim, é de entender que é aplicável ao caso concreto o preceituado no artigo 152° do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência.

                               5ª- Por outro lado importa igualmente recordar que a Lei nº 99/2003, que instituiu o privilégio creditório imobiliário especial, entrou em vigor mais de um ano depois, contendo em si um normativo - o artigo 8° - que permite a defesa da tese de que quanto ao concurso de créditos hipotecários e laborais não é aquele aplicável a situações e factos já definidos.

                               6ª- Assim, deverá entender-se que as normas que regulam o concurso entre créditos laborais e hipotecários - quando a hipoteca em questão é constituída antes da entrada em vigor do Código de Trabalho de 2003 - não são as do novo Código de Trabalho, mas sim os artigos artigo 12°, nº 1, alínea b), da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e 4°, nº 1, alínea b) da Lei 96/01 de 20 de Agosto - que atribuem privilegio creditório imobiliário geral aos créditos laborais.

                               7ª- Neste caso, e porque em concurso, os créditos hipotecários devem prevalecer sobre os que beneficiam de privilegio creditório imobiliário geral, deve ser revogado o douto acórdão ora recorrido e substituído por outro que gradue em primeiro lugar os créditos hipotecários.

                               8ª- Não se ignora finalmente que há vária e meritória jurisprudência que contraria a tese aqui assumida pela recorrente.

                               9ª- Utilizando-se dois argumentos: primeiro o facto de só defendendo a existência do privilegio creditório imobiliário especial é que se assegura o direito ao salário.

                               10ª- Depois porque os privilégios creditórios são de aplicabilidade imediata.

                               11ª- Parece à aqui recorrente que estes argumentos não deverão prevalecer.

                               12ª- Primeiro porque estamos aqui perante normas que regulam a figura do concurso de créditos, não se defendendo aqui o valor salário - num concurso de créditos em processo de insolvência, a questão do direito ao salário já nem se coloca.

                               13ª- Depois porque o privilégio creditório imobiliário especial nunca teve aplicabilidade imediata porque o legislador assim o quis.

                               14ª- Importa ainda referir que o valor da segurança jurídica só é cumprido se for graduado em primeiro lugar um credito hipotecário sobre um laboral, quando a hipoteca aqui em causa foi constituída antes da entrada em vigor da norma que veio criar o privilegio creditório imobiliário especial aqui em causa.

                               15ª- Foram assim violados os artigos 12°, nº 1, alínea b), da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e 4°, nº 1, alínea b) da Lei 96/01 de 20 de Agosto e o artigo 749º do Código Civil.

                        Não houve contra-alegações.

                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

                        II- Fundamentação:

                        2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas a questão que ali foi enunciada (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).

                        Nesta conformidade, será a seguinte a questão a apreciar e decidir:

                        - Se o créditos laborais devem, ou não, ser graduados antes do crédito da recorrente garantido por hipoteca voluntária.

                       

                        2-2- Foi dada como assente a seguinte materialidade:

                        1- Foi pelo Administrador da Insolvência, apresentada a relação de créditos reclamados, conforme fls. 3 a 6, créditos esses que foram considerados como reconhecidos ou verificados, por não impugnados, conforme fls. 41.

                        2- Entre os bens da sociedade insolvente apreendidos conta-se um único bem imóvel (verba 1 dos bens apreendidos).

                        3- Da referida relação de bens constam diversos créditos ditos laborais, designadamente o crédito do Reclamante/recorrente.

                        4- A Caixa CC da Região do Fundão e Sabugal é credora da insolvente e esse seu crédito goza de hipoteca voluntária sobre o imóvel descrito sob a verba nº 1 do auto de arrolamento e apreensão de bens, hipoteca essa registada em 19/12/2002.

                        5- A sentença de declaração de insolvência é de 17/09/2010, tendo transitado em julgado em 14/10/2010. -----------------------

                       

                        2-3- A questão a apreciar e decidir será a de se saber se na graduação, os créditos (de trabalhadores) emergentes de contrato de trabalho devem, ou não, prevalecer sobre créditos garantidos pela hipoteca constituída a favor recorrente, Caixa CC do Fundão e Sabugal. Na sentença de 1ª instância, graduaram-se os créditos dos trabalhadores depois do crédito garantido por hipoteca. Por sua vez na Relação, por recurso do supra-aludido trabalhador, graduaram-se os créditos dos trabalhadores antes do crédito garantido por hipoteca de que a ora recorrente, Caixa CC, é titular. É precisamente em relação a esta circunstância de serem esses créditos laborais graduados antes do seu, que a recorrente mostra o seu inconformismo e desacordo neste recurso.

                        Dado que a sentença de declaração de insolvência é de 17/09/2010 (transitada em julgado em 14/10/2010), não se nos afigura qualquer dúvida que adjectivamente se deve aplicar à situação falimentar as normas do Dec-Lei 53/2004 de 18 de Março (que aprovou o Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE-).

                        Como se deu como assente, a recorrente Caixa CC é credora da insolvente, gozando o seu crédito de hipoteca voluntária sobre o imóvel (descrito sob a verba nº 1 do auto de arrolamento e apreensão de bens), hipoteca registada em 19/12/2002. Ou seja, a hipoteca foi registada (muito) antes de declaração de insolvência da requerida.

                        Nos termos do art. 686º nº 1 do Código Civil “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes o devedor ou terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozam de privilégio especial ou de prioridade de registo”. Isto é, o credor hipotecário tem o direito a ser pago pelo valor da coisa objecto da garantia, com preferência sobre os demais credores (desde que estes não gozem de qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo).

                        Em relação aos créditos dos trabalhadores, estabelece o art. 377º do C. do Trabalho de 2003[1] (actualmente art. 333º do mesmo Código[2]):  

                        “1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios;

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

                        2- A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747° do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

                        Quer dizer e para o que aqui importa, a lei confere privilégio imobiliário especial aos créditos laborais dos trabalhadores, sobre os bens imóveis do empregador nos quais ao tempo da declaração de insolvência eles exerciam a sua actividade (al. b) do nº 1 da disposição). 

                         Os créditos laborais, como créditos com privilégio imobiliário[3] que são, devem ser graduado antes dos créditos referidos no art. 748º e dos créditos de contribuições devidas à segurança social. Ou seja, esses créditos devem ser graduados anteriormente aos créditos do Estado pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre sucessões de doações (al. a)) e aos créditos das autarquias locais, pela contribuição predial (al. b), ambas do art. 748º) e antes das contribuições à segurança social.

                         Porque os créditos laborais goram desse privilégio imobiliário especial, devem ser (igualmente) pagos preferentemente à hipoteca, como decorre do já referido art. 686º nº 1. No mesmo sentido estabelece o art. 751º do C.Civil (na redacção introduzida pelo art. 5º do Dec-Lei 38/2003 de 8/3) que “os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores” (sublinhado nosso).

                        Flui, assim, que uma hipoteca sobre um imóvel, mesmo registada anteriormente, cede, no sentido da prioridade do pagamento, em relação a um crédito garantido por um privilégio imobiliário especial sobre o mesmo prédio.

                        No caso dos autos, dúvidas não se suscitam sobre a circunstância de o único imóvel apreendido da insolvente, ser o local “do empregador” no qual os trabalhadores prestavam a sua actividade[4]. Nesta conformidade, os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário especial e, consequentemente, face ao exposto, devem ser pagos antes do crédito da recorrente, garantido por hipoteca.

                        Quer dizer que a posição assumida no douto acórdão recorrido foi certa.

                        Diz a recorrente que se deve aplicar ao caso o disposto no art. 152° do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência. Salvo o devido respeito pela opinião contrária, só por mero lapso é que se poderá compreender este entendimento, visto que o invocado diploma foi expressamente revogado pelo art. 10º nº 1 do Dec-Lei 53/2004 de 18/3, diploma que aprovou o Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE-[5], e que revogou aquele código. De resto, tal sentido sempre seria de afastar por não ter qualquer conexão com garantia hipotecária invocada pela requerente[6].

                        Sustenta ainda a recorrente que a Lei nº 99/2003, que instituiu o privilégio creditório imobiliário especial, entrou em vigor mais de um ano depois, contendo em si um normativo - o artigo 8° - que permite a defesa da tese de que quanto ao concurso de créditos hipotecários e laborais não é aquele aplicável a situações e factos já definidos. Assim, deverá entender-se que as normas que regulam o concurso entre créditos laborais e hipotecários - quando a hipoteca em questão é constituída antes da entrada em vigor do Código de Trabalho de 2003 - não são as do novo Código de Trabalho, mas sim os artigos artigo 12°, nº 1, alínea b), da Lei nº 17/86 de 14 de Junho e 4°, nº 1, alínea b) da Lei 96/01 de 20 de Agosto - que atribuem privilegio creditório imobiliário geral aos créditos laborais.

                        Defende, assim, a recorrente que não deve aplicar-se o dispositivo do C. do Trabalho que concedeu aos trabalhadores o privilégio imobiliário especial já acima referido, visto que na altura em que foi concedido, já a recorrente possuía a garantia hipotecária sobre o imóvel em causa.

                        Esta argumentação coloca, segundo cremos, a questão da aplicação das leis no tempo. Ou seja, apesar de o não afirmar expressamente, a recorrente entende que a aplicabilidade do disposto no art. 377º (hoje 333º) do C. do Trabalho só deve ser futura, não podendo relevar em relação a hipotecas já constituídas.

                        Estabelece o art. 8º nº 1 da Lei 99/2003 (que aprovou o Código do Trabalho) invocado pela recorrente que “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.

                        Estipula, pois, de essencial, esta norma que os contratos de trabalhos, mesmo celebrados antes da entrada em vigor do código, ficam sujeitos ao regime deste. Ou seja, devem aplicar-se imediatamente as disposições do Código aos contratos de trabalho subsistentes à data da sua entrada em vigor. Exceptuam-se as condições de validade e os efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento.

                        Segundo cremos, esta disposição ao invés de apontar no sentido do afastamento da aplicação, à situação vertente, dos dispositivos do Código do Trabalho, antes inculca o seu emprego, dado que a situação que deu origem aos créditos laborais (situação de insolvência, com consequente cessão do contrato de trabalho), ocorreu posteriormente à entrada em vigor das disposições do Código, sendo que os respectivos contratos subsistiam à data da entrada em vigor desse diploma.

                        A hipoteca da recorrente sobre o imóvel, como já vimos, foi constituída anteriormente à instituição (pela lei) do privilégio imobiliário creditório especial a favor do crédito dos trabalhadores (incidente sobre prédio onde estes prestam a sua actividade laboral).

                        Para além da disposição já indicada (o art. 8º)[7], o Código do Trabalho não contem outro dispositivo sobre aplicação das leis no tempo, designadamente no respeita a privilégios creditórios emergentes de contratos de trabalho.

                        Ainda relativamente à aplicação das leis no tempo, estabelece a lei geral (Código Civil) no seu art. 12º.

                        “1- A lei só dispõe para o futuro, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

                        2- Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser sobre o conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor”.

                        Determina, pois, esta norma o princípio da não retroactividade da lei nova. A lei, em regra, só dispõe para o futuro. Mesmo que se estipule que têm eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos.

                        No nº 2 da disposição, em primeiro lugar, “previnem-se …os princípios legais relativos às condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos, ou referentes aos seus efeitos… .Se, porém, tratando-se de conteúdo do direito, for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei é já aplicável [8].

                        Quer dizer, a aplicação da lei nova só será de colocar quando versar sobre o conteúdo do direito, sendo alheio o facto que lhe deu origem. Assim, por exemplo, para fixar o conteúdo do direito de propriedade ou qualquer outro direito real, é aplicável a nova lei e não a da data da sua constituição. O mesmo sucederá com a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[9]a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando, por exemplo, a seu favor, um privilégio creditório deve aplicar-se retroactivamente”. Neste sentido, como invocam estes Professores, decidiu o Acórdão deste STJ de 29-5-1980, publicado no BMJ 297, págs. 278 e segs..

                        Ainda neste sentido e interpretando o nº 2 do art. 12º, refere Baptista Machado[10]um segundo grupo de normas abrangido na referida rubrica de direito transitório é, conforme se depreende do que acima se disse, o constituído pelas disposições relativas à garantia patrimonial dos créditos — ou, como também se, diz, pelas disposições relativas aos efeitos indirectos das obrigações. E que estes efeitos também não são de modo algum modelados pelos próprios factos geradores da obrigação — pelo que, neste sentido, são regulados abstraindo de tais factos…. Acrescente expressamente quanto aos privilégios creditórios que “outro exemplo parece ser o que nos é fornecido pelas leis relativas aos privilégios creditórios. Tem-se entendido que estas leis, quer estabeleçam novos privilégios, quer suprimam os anteriormente existentes, são sempre de aplicação imediata”.

                               Não se nos oferece dúvidas que o art. 377º ao estabelecer as garantias dos créditos dos trabalhadores (privilégios creditórios) emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, efectuou a correspondente valorização, abstraindo da concreta relação (laboral) que lhe deu origem. Por isso, também face ao disposto no art. 12º nº 2 deve aplicar-se à situação a lei nova.

                        Significa isto tudo e em síntese, que a norma que estabelece o dito privilégio imobiliário creditório especial a favor dos créditos dos trabalhadores, é de aplicação imediata, abrangendo os créditos gerados pela violação ou cessação dos contratos de trabalho subsistentes à sua entrada em vigor. A esta conclusão chega-se não só através do aludido art. 8º da Lei 99/2003 (que aprovou o Código do Trabalho), mas também através do regime geral de aplicação das leis no tempo decorrente das normas de direito civil.

                        No sentido da aplicação da nova lei, decidiu o Acórdão deste STJ de 5-6-2007 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) onde expressamente se referiu (em sumário) que “os créditos laborais que gozem de privilégio imobiliário creditório especial fundado no art. 377º- 1-b) do Código do Trabalho, preferem ao crédito garantido por hipoteca voluntária constituída e registada anteriormente à entrada em vigor daquela norma”.

                        Argumenta, por fim, a recorrente que o valor da segurança jurídica só é cumprido se for graduado em primeiro lugar um credito hipotecário sobre um laboral, quando a hipoteca aqui em causa foi constituída antes da entrada em vigor da norma que veio criar o privilegio creditório imobiliário especial aqui em causa.

                        Apesar de não ter invocada a inconstitucionalidade da norma (por violação daquele princípio (segurança jurídica) que tem acolhimento constitucional - art. 2º da Constituição -), é questão que se poderá colocar[11].

                        Desde logo diremos que a Constituição não acolheu a concepção, como princípio, da irretroactividade da lei, excepto quanto às leis restritivas de direitos liberdades e garantias (art. 18º nº 3), às leis criminais (art. 29º nº 1) e à obrigação de pagamento de impostos (art. 103º nº 3, todos da Lei Fundamental). 

                        Acrescentaremos, por outro lado, que após o Acórdão do Tribunal Constitucional de 22-10-2003 (in DR, II Série de 3-1-04 ou in www. tribunalconstitucional.pt/acordaos/20030498.html), esse Tribunal desenvolveu a jurisprudência segundo a qual não é inconstitucional a norma do art. 12º nº 1 da Lei 17/86[12]na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário nele conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho, prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do C.C”. Se assim era, face ao dito art. 12º nº 1 da Lei 17/86, não se vê qualquer razão para deste modo não se continuar a entender, perante o disposto no art. 377º (333º) do C. do Trabalho. Com efeito, nesse acórdão referiu-se, para além do mais que “…do lado do credor hipotecário está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, constitucionalmente protegidas pelo artigo 2º da Constituição e particularmente prosseguidas através do registo…”… “Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa “garantir uma existência condigna”, conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias …    “O caso dos autos coloca-nos assim perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito”. Muito embora o modo como a norma impugnada solucionou o conflito, fazendo prevalecer o direito à retribuição, não pareça poder ser avaliado, directamente, à luz do disposto no artigo 18º da Constituição, isso não significa que não deva ser analisado do ponto de vista de um critério de proporcionalidade. Na verdade, as exigências do princípio da proporcionalidade decorrem, não só especificamente do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, mas também, justamente, do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º…. Assim, e em primeiro lugar, há que observar que parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva “sobrevivência condigna”. Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida. Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional”.

                        Não vemos, assim, que a interpretação que fizemos sobre a norma em questão, incorra em qualquer juízo de inconstitucionalidade.

                        O recurso é, por conseguinte, improcedente.

                       

                        III- Decisão:

                        Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

                        Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Novembro de 2011

Garcia Calejo (Relator)

Helder Roque

Gregório Silva Jesus

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[1] Aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 (que entrou em vigor em 01/12/2003, embora o novo regime dos privilégios imobiliários que servem de garantia aos direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores, previsto no citado art. 377º apenas tenha entrado em vigor em 28/08/2004, atento o disposto nos arts. 3º, 8º, nº 1 e 21º, nº 2, als. e) e f) da Lei nº 35/2004, de 29/08, que regulamentou a dita Lei nº 99/2003.
[2] Aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/02.

[3] Como se sabe, nos termos do art. 733º do C.Civil, “privilégio creditório é a faculdade, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros”. Os privilégios creditórios, são de duas espécies, os mobiliários e os imobiliários, sendo que os primeiros são gerais, quando abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente e especiais quando compreendem só o valor do determinados bens móveis. Os segundos são sempre especiais (art. 735º nºs 1, 2 e 3 do C.Civil). O regime jurídico dos privilégios imobiliários (especiais) está definido no C.Civil, concretamente nos arts. 743º e segs.. 
[4] No próprio acórdão recorrido, sem que tenha sido colocada qualquer objecção em sentido contrário pela recorrente, referiu-se não se colocar “qualquer dúvida ou incerteza sobre o facto de ser no dito imóvel, único conhecido à insolvente e onde esta tinha a sua sede/oficina, que trabalhavam todos os seus trabalhadores”.
[5] Diploma que foi aplicado correctamente à situação dos autos, atento o momento em que foi pedida a insolvência da requerida (vide fls. 142 e segs.).
[6] Tal art. 152º do CPEREF referia que “com a declaração de falência extinguem-se imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou de falência.
[7] Que inculca a aplicação ao caso vertente, como já dissemos, do disposto no art. 377º do C. do Trabalho.
[8] In C.Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Volume I, 4ª edição, pág. 61.
[9] Obra citada, pág. 62.
[10] In Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil (Almedina, 1968), pág 27
[11] Só por invocação da inconstitucionalidade da norma (art. 377º/333º do C. do Trabalho) é que tem pertinência a objecção colocada.

[12] Norma que estabelecia, antes do referido art. 377º do C. do Trabalho, privilégios mobiliário geral e imobiliário geral, em relação aos créditos dos trabalhadores.