ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
161/09.3GCALQ.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 5ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO PROVIDO PARCIALMENTE
VOTAÇÃO UNANIMIDADE COM * DEC VOT

RELATOR MANUEL BRAZ

DESCRITORES INAUDIBILIDADE DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
PROIBIÇÃO DE PROVA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
ROUBO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
OFENDIDO
PATRIMÓNIO

SUMÁRIO
I - No recurso ora interposto o arguido mantém que parte da gravação relativa às declarações que prestou na audiência (cerca de 2 m) é inaudível e que esse facto tem reflexo na apreciação da prova; sucede, porém, que o Tribunal da Relação decidiu que a gravação da prova não contém qualquer falha e essa decisão, dizendo respeito a um dado de facto, é insindicável, visto que este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de revista, não conhece da matéria de facto, nos termos do art. 434.º do CPP.
II - O recorrente invoca que o acórdão recorrido enferma de omissão de pronúncia na parte em que remeteu para a decisão de 1.ª instância; no entanto, a fundamentação por remissão para outra peça nada tem de ilegítimo, se se concordar inteiramente com o que consta das partes para onde se remete e se estas responderem a todas as questões em discussão, de tal modo que o visado fique a conhecer todas as razões pelas quais vê improceder a sua pretensão.
III -Por outro lado, defendendo o recorrente no recurso interposto da decisão da 1.ª instância que não se fez prova de haver praticado os factos integradores de alguns dos crimes pelos quais foi condenado, a Relação, apreciando essa alegação, julgou-a improcedente indicando as provas em que se baseou para assim decidir e especificando as razões pelas quais as valorou nesse sentido, ainda que utilizando, em muitos pontos da sua argumentação, passagens da fundamentação do tribunal de 1.ª instância, o que não configura qualquer vício, pois o recorrente ficou a conhecer as razões pelas quais a Relação decidiu como decidiu.
IV -Também não existe qualquer omissão de pronúncia «na parte em que considerou provada a participação» do recorrente nos crimes de sequestro, roubo e coacção sobre funcionário, porque a Relação respondeu a essa questão quando considerou que a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as provas periciais e as resultantes de escutas telefónicas realizadas, era suficiente para considerar provados os ditos factos, não sendo exigível que os autos que suportam essas últimas provas sejam lidos e discutidos na audiência de julgamento – cf. Ac. do TC 87/99, DR II Série, de 01-07-1999.
V - O recurso não é admissível quanto ao crime de resistência e coacção sobre funcionário – a pena aplicada em 1.ª instância foi de 3 anos e 6 meses de prisão, confirmada na Relação –, por aplicação do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP: nos casos de concurso de crimes em que por cada um haja sido aplicada, em 1.ª instância, pena de prisão não superior a 8 anos mas em que a pena única é superior a essa medida, sendo a condenação confirmada pela Relação, o recurso da decisão desta para este Supremo Tribunal, só é admissível no que se refere à operação de determinação da pena única, não o sendo no respeitante a cada um dos crimes e às respectivas penas.
VI -Sendo o roubo um crime complexo, que ofende simultaneamente bens patrimoniais e bens pessoais, se foram ofendidos bens pessoais de apenas três pessoas, só pode haver 3 crimes de roubo, sendo indiferente que sejam quatro os patrimónios ofendidos. O obstáculo ao preenchimento de 4 crimes de roubo não está, pois, no facto, de o arguido não saber – ou no facto de não estar provado que sabia – que subtraía coisas pertencentes a quatro pessoas, como decidiu a Relação, mas na circunstância de só ter havido três subtracções em que esteve presente um elemento essencial à integração do crime de roubo: a ofensa de bens eminentemente pessoais.
VII - Sujeito passivo do crime de roubo pode ser tanto o proprietário como outra pessoa contra a qual o agente, para atingir bens patrimoniais, actue por um dos meios ofensivos de bens pessoais descritos no tipo legal.
VIII - O recorrente e os comparticipantes actuaram com violência sobre JOS para se apoderarem de bens que lhe pertenciam e de bens que pertenciam à “Casa SL, SA ”, coagindo-o, mediante o uso de violência física, a indicar-lhes o lugar onde se encontravam alguns desses bens e a entregar-lhes as chaves dos veículos, pertencentes à sociedade. Esta conduta, ofendendo bens pessoais de uma só pessoa, constitui um só crime de roubo, sendo o seu objecto constituído pela totalidade dos bens que pertenciam ao ofendido JOS e à “Casa SL, SA”.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

      Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

            No 1º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Alenquer, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi, em 18/02/2011, proferido acórdão, que, além do mais, condenou o arguido AA.

                         -a 8 anos de prisão, pela prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), e 204º, nºs 1, alínea a), e 2, alíneas e), f) e g), do Código Penal, sendo ofendida BB;

                        -a 8 anos de prisão, por um crime de roubo agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), e 204º, nº 2, alíneas a), e), f) e g), do mesmo código, sendo ofendida “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”;

                        -a 8 anos de prisão, por cada um de dois crimes de roubo agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas desses artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), e 204º, nº 2, alíneas e), f) e g), sendo ofendidos CC e DD;

                        -a 15 meses de prisão, por cada um de três crimes de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, do CP;

                        -a 15 meses de prisão, pela prática de um crime de burla informática, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 221º e 79º do CP;

                        -a 1 ano e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nºs 1, al. c), e 2, da Lei 5/2006, na redacção que lhe foi dada pela Lei 17/2009, de 6 de Maio, e ainda, ao abrigo do artº 90º, na pena acessória de interdição do uso e porte de arma por 3 anos;

                        -a 6 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nºs 1, al. d), e 2, do mesmo diploma;

                        -a 1 ano e 8 meses de prisão, pela prática de cada um de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nºs 1 e 3, do CP;

                        -a 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347º, nº 1, do CP; e

                        -em cúmulo jurídico, na pena única de 16 anos e 8 meses de prisão.                                                                                           

            O arguido interpôs recurso desse acórdão para a Relação de Lisboa, que, por acórdão de 06/07/2011, decidiu:

                        -considerar que não opera a qualificativa da alínea g) do nº 2 do artº 204º relativamente a qualquer dos crimes de roubo, por não se terem provado factos que integrem a figura de bando;

                        -absolver o arguido da acusação relativamente ao crime de roubo de que seria ofendida “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”;

                        -manter as penas aplicadas por cada um dos restantes crimes;

                        -aplicar, em cúmulo, a pena única de 13 anos e 6 meses de prisão.

                     Ainda inconformado, o arguido AA interpôs recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo assim a sua motivação:

            «1. Existe deficiência parcial da gravação da sessão de 29.09.2010, como do suporte digital da gravação consta (CD 1) parte substancial do que o recorrente relatou ao Tribunal (protestando, no pouco que se ouve, a sua inocência), resulta completamente inaudível nas suas declarações produzidas entre os minutos 2.28 e os 4m.12, sendo que a referida omissão de gravação constitui nulidade inominada prevista no art° 201° CPC, aplicável ao processo penal por força do art° 4° do CPP.

2. Consistindo essa mesma nulidade (por violação do requisito cominado no art° 363° do CPP) na omissão de uma formalidade (gravação audível em suporte digital da totalidade das declarações do arguido).

3. Podendo essa mesma omissão influenciar no exame ou na decisão da causa (“apud”, o mencionado art° 201° do CPC, aplicado “in casu” por integração de lacuna (art° 4° do CPP). E sendo certo que se intui da parte anterior à que não se encontra audível que o recorrente falava sobre se costumava deslocar ou não a Espanha, sendo que tal circunstância assume relevo processual para a defesa do recorrente.

4. Por tal razão, a apontada deficiência tem efectivamente relevância para a decisão da causa (já que um dos argumentos utilizados no acórdão para a condenação do recorrente foi o ter-se considerado que “os arguidos já trabalharam em Espanha, local onde estavam e se deslocavam frequentemente” (relembrado no recorrido acórdão a fls. 54 – 2° parágrafo).

5. Ao assim não decidir, o acórdão ora em crise não fez a melhor nem a mais acertada interpretação do disposto no art° 201° do CPC (com interpretação subsidiária ao processo penal por força do art° 4° do CPP). Mantendo o recorrente que tal nulidade deve ser declarada.

6. Estando o arguido – ora recorrente – em tempo de invocar essa mesma nulidade (art° 204° n° 2 do CPC) entre outros ou ainda dada a previsão do disposto no art° 118°, n° 1, do CPP concatenado com o disposto no art° 363° do CPP (a omissão em causa constitui nulidade processual por violação do apontado preceito: o art° 363° do CPP), devendo por isso tal nulidade ser reparada nos termos do disposto no art° 123°, n° 2, do CPP).

7. Da omissão de pronúncia – art° 379°, 1-e), do CPP: Havendo o recorrente alegado, em sede de motivação do recurso para a Veneranda RL que ... “no essencial, os depoimentos de ofendidos e testemunhas de acusação, em tempo arroladas pelo Digno Ministério Público, depondo acerca do que viram e ouviram, não se encontraram em condições de identificar, por uma vez que fosse o aqui recorrente, como o autor de algum dos perpetrados roubos e sequestros. ” E que: “Nesta conformidade, na audiência não se logrou fazer prova da factualidade constante dos apontados itens 1 a 28 (com excepção do item 20 a fls. 10) da matéria de facto, no tocante à eventual participação criminosa do recorrente AA. E ainda que: “Não só o arguido nega peremptoriamente a prática desses crimes, (CD 1 in gravação da audiência de 29.09.2010 11h. 09 a 11h. 49) como da Acta parcelarmente consta, como os mesmos não foram confessados pelos seus co-arguidos, como ainda (e o que é mais relevante) nenhum dos ofendidos reconheceu em audiência, ou em Auto de Reconhecimento efectuado nos termos legais (art° 147° do CPP) os arguidos” deveria o douto acórdão de que ora se recorre tecer pronúncia sobre essa alegação.

8. Uma vez que a impugnação da matéria e facto cumprira os ditames e exigências legais, nomeadamente os requisitos contidos no art° 412°, n° 4, do CPP.

9. 0 recorrido acórdão, ao acentuar que o TRL “não tem de analisar todos os argumentos aduzidos pelos arguidos” e como corolário dessa análise que “não se irá rebater todos os argumentos dos arguidos recorrentes, já que o que interessa é saber se os factos estão correctamente julgados” concluindo-se que “quanto à matéria de facto constante dos autos, consideramos que a mesma foi correctamente julgada, pelo que no que respeita à apreciação e fundamentação dos factos dados como provados, bem como no que respeita ao exame critico das provas, remetemos para o acórdão recorrido em face do rigor e clareza do mesmo” (a fls. 52 do acórdão do TRL) comete a nulidade de omissão de pronúncia prevista no art° 379°, n° 1-e), do CPP, a qual deve ser declarada.

10. Já num outro ângulo de apreciação processual, (que também teria sido violado, pela primeira instância, por erro interpretativo, o disposto nos art°s 127° e 355° do CPP, na parte em que não teceu pronúncia sobre a violação alegada pelo recorrente ao se considerar provada a participação do aqui recorrente AA no tocante à comparticipação criminosa nos crimes de sequestro, roubo e coacção sobre funcionário), o douto e recorrido acórdão não teceu pronúncia, cometendo também por tal facto a apontada nulidade de omissão de pronúncia.

11. Quanto ao crime de resistência e coacção sobre funcionário deveria o recorrente ter sido absolvido, por ausência absoluta de prova nesse sentido (o exame pericial não prova que o recorrente tivesse disparado e o depoimento dos inspectores da PJ mostra-se inconclusivo como se alegou atempadamente e não mereceu reparo por parte do recorrido acórdão).

12. Das medidas das penas parcelares: Sempre sem conceder, as penas aplicadas mostram-se de grande severidade e demasiado elevadas atentos os critérios erigidos no art° 40°, n°s 1 e 2, do Código Penal e as finalidades das penas na sua dupla vertente: reposição do valor jurídico (comunitário) na norma violada e reintegração do agente na sociedade. Assim, atenta a primariedade do recorrente, a sua juventude e a confissão parcial dos factos, deveria ter este sofrido as seguintes penas parcelares:

13. Quanto aos crimes de roubo agravado a pena não deveria exceder 6 anos e seis meses por cada um deles. Quanto aos crimes de sequestro atender-se-ia como mais ajustada a pena de 12 meses de prisão por cada um. No crime de burla informática, bem como nos crimes de falsificação, na forma continuada a pena, a pena a aplicar deveria situar-se em 1 ano de prisão.

14. Ou seja, uma vez operado o respectivo cúmulo jurídico, deveria o recorrente ser condenado em pena que não ultrapassasse os 9 anos de prisão. Ao assim não decidir o recorrido acórdão violou o disposto no art° 40°, 1 e 2, e 71°, 1 e 2, do C.P.

Não tanto pelo sucintamente alegado, ao declarar as apontadas nulidades e ao absolver o recorrente da prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário (mas mantendo a condenação pela detenção de arma proibida) e libertando-o da pesada pena de prisão que lhe foi aplicada – antes reformulando o cúmulo em ordem a uma condenação que não ultrapasse os 9 anos de prisão – revogando a decisão ora em crise nos requeridos termos, e substituindo-a por outra que, por mais douta e acertada, decida como peticionado, exercerão Vossas Excelências a melhor e mais acostumada JUSTIÇA».

Respondendo, o MP defendeu a improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.

Neste Supremo Tribunal, o MP pronunciou-se deste modo:

            -não se verifica qualquer das nulidades arguidas pelo recorrente;

            -a pretendida absolvição releva do inconformismo do recorrente com a decisão da matéria de facto, de que o STJ não pode conhecer;

            -as penas parcelares, todas não superiores a 8 anos de prisão, são insusceptíveis de reexame;

            -a pena única foi correctamente fixada.

Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.

Não foi requerida a realização de audiência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                      Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 19 de Setembro de 2009, cerca das 00 horas e 30 minutos, os arguidos AA, EE acompanhados de uma terceira pessoa, dirigiram-se à residência sita na Q.........., sita em local isolado da comarca de Alenquer.

2. No respectivo interior encontravam-se o proprietário, CC, a sua tia BB, nascida a 14 de Maio de 1923, e, ainda, uma amiga da família, DD, nascida em 16 de Outubro de 1933, sendo que esta já se encontrava no quarto a dormir, enquanto a BB se preparavam para o fazer.

3. Os arguidos AA, EE e a terceira pessoa encontravam-se com o rosto encoberto, enluvados e munidos de armas de fogo de calibre 7,65 mm, devidamente municiadas e aptas a disparar e logo treparam por um muro que dá acesso à casa, onde se introduziram após, para o efeito, retirarem um vidro da porta da varanda que dá acesso ao quarto de BB, onde entraram, mantendo-se escondidos naquele quarto.

4. Logo que a BB entrou no quarto foi abordada por estes arguidos e, assustada, gritou. De imediato, os arguidos agarraram-na e manietaram-na, exigindo-lhe dinheiro e objectos de valor, que esta entregou, sendo uma pulseira em ouro, no valor de cerca de cinco mil euros, dois anéis em ouro e quatrocentos euros em numerário, bens que lhe pertenciam e que os arguidos, pelo descrito modo, fizeram seus.

5. Os gritos fizeram CC acorrer rapidamente àquele local, onde logo que ali chegou foi agredido com um murro na cabeça e pontapés nas costas e, de seguida, foi manietado pelos três arguidos, que, imediatamente, o algemaram atrás das costas.

6. Enquanto era agredido a murro e a pontapé, CC foi questionado sobre o número de pessoas que se encontravam no interior da habitação, tendo respondido que apenas existia uma outra senhora, DD, que se encontrava no quarto a dormir.

7. Com os dois primeiros ofendidos manietados, os arguidos dirigiram-se ao quarto onde DD pernoitava e, após a acordarem repentinamente, ordenaram-lhe que estivesse quieta e calada e logo lhe exigiram objectos de valor e numerário, sendo que DD assim lhes entregou três anéis em ouro, um com rubis, outro com safiras e outro com esmeraldas, no valor de cerca de cinco mil euros, bens que lhe pertenciam e que os arguidos, pelo descrito modo fizeram seus.

8. De seguida, os três referenciados homens algemaram-lhe as mãos atrás das costas e levaram-na para a sala onde já se encontravam os outros dois ofendidos, CC e BB, onde voltaram a agredir CC a murro, perguntando pelo cofre e exigindo os códigos de segurança dos cartões bancários que desta forma forneceu.

9. De novo os arguidos transportaram os três ofendidos para o quarto onde a ofendida DD antes dormia e ali foram mantidos sob vigilância de um dos arguidos, enquanto os outros dois foram revistando a residência; os dois entravam e saíam do quarto onde mantiveram os ofendidos privados da liberdade e onde iam agredindo a soco, CC e onde agrediram, igualmente, com um murro no rosto, DD, quando esta solicitou que lhe aliviassem as algemas.

10. Os arguidos levaram CC por mais de uma vez para fora daquele quarto, ordenando-lhe que indicasse o local onde se encontravam alguns bens, nomeadamente as chaves das viaturas parqueadas no exterior da residência, dos veículos automóveis de marca “Grand Cherokee”, de matrícula 00-00-00, e de marca BMW e de matrícula 00-00-00, ambos pertencentes à “Casa ........., S.A.”, de cujas chaves pelo descrito modo previamente se apropriaram.

            11. Pela descrita forma os arguidos AA, EE e a terceira pessoa lograram fazer seus os objectos melhor descritos a fls. 31 e 32 dos autos, examinados a fls. 565 a 580, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sendo pertencentes

 a CC:

            -uma espingarda automática de caça, calibre 12, com o nº0000, marca “Browning Patente Deposé”, recuperada a fls. 8, no valor de 400 euros, cfr. auto de exame de fls. 789;

-cerca de 300 euros em numerário;

-100 dólares em numerário;

            -um cartão bancário Gold, com o nº 0000 0000 0000 0000 e respectivo código;

a BB:

            -uma pulseira grossa, em ouro amarelo, com três turquesas, no valor de cerca de 5000 euros;

            -um anel em ouro amarelo, com duas pedras preciosas e uma esmeralda ao meio, em formato oval;

-cerca de 400 euros em numerário;

 a DD:

            -três anéis em ouro, um com rubis, outro com safiras e outro com esmeraldas, no valor de cerca de 5000 euros;

à Casa ......... – Companhia das Vinhas SA:

-uma espingarda automática de caça, calibre 12, com o nº 00000, marca “Browning” Patente Depose, com o saco de transporte, pertencente à Companhia das Vinhas S.A, recuperada a fls. 8, no valor de cerca de quatrocentos e trinta euros, conforme auto de exame de fls. 789;

-62 pinturas sobre tela, em óleo, aguarelas e gravuras antigas portuguesas, relacionadas a fls. 128, um estojo contendo 24 moedas de colecção em ouro amarelo e prata, oficialmente contrastadas pela Casa da Moeda de Lisboa e duas colchas de cor vermelha, examinados a fls. 565 a 580, no valor global de vinte e cinco mil quinhentos e setenta euros, conforme auto de exame e avaliação de fls. 565 a 568, recuperados no âmbito do inquérito com o NUIPC 357/09.8JALRA, apensado aos presentes autos;

-faqueiros, castiçais e salva e outros objectos decorativos em prata, dos quais foram recuperados os que constam de fls. 90 e 91, no interior do BMW apreendido nos autos;

-dois cartões bancários American Express, com o nº 00000000000000 e Business Gold com o nº 0000000000000 e respectivos códigos;

-dois telemóveis com os números 0000000000 e 000000000;

-os veículos automóveis “Grand Cherokee, de matrícula 00-00-00 e BMW, de matrícula 00-00-00, ambos pertencentes à Casa ........., de cujas chaves pelo descrito modo se apropriaram.

12. De seguida, os arguidos colocaram-se em fuga, levando consigo os descritos bens que através da violência física e psicológica exercida sobre os ofendidos pelo descrito modo fizeram seus, conduzindo cada um dos veículos automóveis de marca Grand Cherokee e de matrícula 00-00-00 e de marca BMW e matrícula 00-00-00 e, ainda, o veículo de marca Volkswagen, modelo Tiguan, que ostentava a matrícula 00000, mas ao qual correspondia a matrícula 00000, onde nesse dia os três de haviam feito transportar até à Quinta da Boavista.

13. Este veículo de marca Volkswagen e modelo Tiguan tinha aposta a matrícula 00000, que corresponde a um Renault Vin, pertencente a um cidadão italiano, de nome FF, identificado a fls. 182, sendo que ao veículo Tiguan utilizado pelos arguidos corresponde a matricula original 00000, e foi subtraído ao respectivo proprietário GG, em Espanha, no dia 4 de Julho de 2009. (cfr. fls. 190 a 202).

14. À entrada da localidade de Cadaval, cerca das 3 horas e 20 minutos, na Estrada Nacional n.º 1-5, ocorreu um despiste que determinou a colisão entre os veículos de marca BMW, de matrícula 00-00-00 e o veículo de marca Volkswagen, modelo Tiguan, que exibia a matrícula 00000, motivo pelo qual os arguidos abandonaram estes veículos no local, com os bens que continham, ocupando, de seguida, o veículo Grand Cherokee, de matrícula 00-00-00, pertencente à “Casa .........”, onde prosseguiram a fuga. (cfr. fls. 67 a 71).

15. No interior das viaturas abandonadas foram recuperados os objectos descriminados de fls. 73 a 91, designadamente, no interior do veículo BMW foram recuperados pela Guarda Nacional Republicana duas espingardas automáticas e duas caixas de cartuchos, das quais os arguidos se haviam apropriado momentos antes na Quinta da Boavista e que se encontram apreendidas a fls. 8; no interior do veículo Volkswagen, foram recuperados pela Guarda Nacional Republicana, uma picareta, um alicate de corte e, ainda quatro chapas de matrícula, duas identificadas como 00-00-00, e as outras como 00-00-00; posteriormente ainda foram recuperados, nas imediações da cidade das Caldas da Rainha, os bens descriminados a fls. 99, e no apenso 1, junto a um pinhal.

16. Na posse dos cartões bancários titularidade da “Casa .........”, de que pelo descrito modo se apropriaram na Quinta da Boavista, os arguidos efectuaram, na cidade de Caldas da Rainha, pelas 4 horas e 30 minutos, 4 horas e 42 minutos e 4 horas e 49 minutos, três levantamentos, no valor total de 1300,00 euros, quantias que logo fizeram suas e que obtiveram através da digitação dos respectivos códigos que lograram obter do ofendido CC, por meio da descrita violência física que sobre este exerceram.

17. No dia 21 de Outubro de 2009, cerca das 9 horas, na localidade de Alvor, os arguidos AA, EE e a terceira pessoa foram abordados pelos Inspectores da Polícia Judiciária HH e II, os quais logo se identificaram como autoridades policiais, exibindo as suas credenciais.

18. Apercebendo-se que se tratava de autoridades policiais, de imediato os arguidos se puseram em fuga, apeados e munidos de pistolas de calibre 6,35 mm, efectuaram vários disparos na direcção do corpo daqueles inspectores, conforme relatório do LPC de fls. 1657, com o fim de obstar à sua detenção.

19. Os indivíduos separaram-se entre si e lograram colocar-se em fuga, sendo que os arguidos AA e EE se esconderam no interior de uma arrecadação sita no Empreendimento da Penina, Alvor, onde momentos depois, nesse mesmo dia foram detidos à ordem destes autos.

20. Ao momento da detenção, na posse dos arguidos AA e EE encontravam-se uma pistola semi-automática, de marca Browning, calibre 6,35 mm, contendo cinco munições de calibre idêntico, examinada a fls. 405, 640 euros em notas do Banco Central Europeu, munições, telemóveis, luvas, gorros, um casaco com gorro e fecho em tecido, uma chave do Nissan Xtrail, e, ainda, a totalidade dos bens apreendidos de fls. 404, 412, 416, 417 e que foram utilizados na prática da descrita actividade ilícita perpetrada pelos arguidos, à excepção do dinheiro, o qual constitui produto dessa actividade.

21. Ainda nesse dia 20 de Outubro de 2009, na ocasião da detenção, na posse dos arguidos AA e EE, mas no interior da viatura Nissan, modelo Xtrail, que ostentava a matrícula 0000000 mas a que corresponde a matrícula 000000000, veículo que foi subtraído em Espanha ao legítimo proprietário JJ, no dia 6 de Outubro de 2009, foram apreendidos os seguintes objectos, conforme fls. 395 e ss:

-um spray gás; cinco munições calibre .38 Special, uma chave inglesa, uma chave de fendas, duas chaves de Philips, um par de matrículas 00000000, um par de matrículas 0000000 uns binóculos, um par de luvas brancas, uma embalagem de fitas em plástico de cor branca (próprias para amarrar vítimas durante os sequestros) e, ainda, a totalidade dos bens examinados a fls. 1141 a 1144, todos estes objectos utilizados na descrita actividade delituosa dos arguidos, à excepção de quatro CDs de música russa e moldava e um ticket com inscrições em Inglês.

            22. Os arguidos AA, EE e a terceira pessoa usaram no veículo de marca Volkswagem, modelo Tiguan, aposta a matrícula 00000 e no veículo Nissan, modelo Xtrail, usaram a matrícula espanhola 0000000, sendo que lhes correspondem as matrículas autênticas 00000 e 0000000, respectivamente, o que fizeram, sabendo que as mesmas não correspondiam às matrículas de origem e que lhes foram atribuídas pelas autoridades competentes.

23. Ao praticar os factos descritos nos artigos 1º a 12º, agiram os arguidos com o intuito conseguido de, por meio de violência física que exerceram sobre os três ofendidos, obterem para si o objectos relacionados e descritos no artigo 11º, que sabiam possuir grande valor patrimonial e que bem sabiam não lhes pertencer, sabendo, ainda, que pelo descrito modo agiam contra a vontade e em prejuízo dos respectivos proprietários.

24. Agiram, ainda, os arguidos com o intuito conseguido, de manterem os três ofendidos privados da sua liberdade de movimentação e determinação, por tempo muito superior ao necessário para a concretização dos descritos intentos, já que quando abandonaram o local os deixaram no interior de um quarto fechados à chave, apenas tendo sido libertados por voltas das 8 horas do mesmo dia por trabalhadores da quinta.

25. Ao praticarem os factos descritos no ponto 16º agiram os arguidos com o intuito conseguido de obterem para si benefício patrimonial que sabiam não ter direito, com prejuízo de terceiro o que fizeram com a digitação dos códigos de segurança dos respectivos cartões bancários, assim procedendo à utilização e processamento de dados de cujo conhecimento não dispunham legitimamente e a que sabiam não estar autorizados.

26. Ao praticar os factos descritos nos artigos 17º e 18º agiram os arguidos com o intuito de obstar a que os Inspectores da Policia Judiciária, de cujas funções como agentes de autoridade estavam bem cientes, procedessem à sua detenção, acto que bem sabiam ser legítimo e relativo às funções daqueles.

27. Ao manter na sua posse as armas referidas nos artigos 20º e 21º bem sabiam os arguidos que a sua detenção lhes era proibida e que, designadamente, não dispunham de habilitação para o efeito.

28. Ao não usar nos veículos automóveis de marca Volkswagen Tiguan e Nissan Xtrail as suas matrículas originárias usando nos lugares respectivos as matrículas 00000 e 0000000, que sabiam não ser autorizadas pelas autoridades competentes, colocando-os em circulação pelas estradas nacionais e assim os utilizando, agiram os arguidos com o intuito conseguido de usar naqueles veículos elementos identificadores que sabiam não lhes corresponder, assim alterando as identificações atribuídas pelas autoridades competentes, o que fizeram com o intuito conseguido de ludibriar as autoridades policiais e, assim, subtrair aqueles veículos à acção de fiscalização, lesando a fé pública inerente à identificação daqueles veículos.

 (…).

45. Os demais arguidos, isto é, KK, EE e AA são primários.

46. À data dos factos AA residia com a companheira e um filho, deslocando-se com habitualidade a Espanha para realizar alguns trabalhos na área da construção civil; pretende retomar a sua vida com a companheira e o filho em Espanha, local de onde tem mais referências; não tem tido visitas da companheira por dificuldades de deslocação da mesma ao Estabelecimento Prisional, devido à situação económica precária; tem como habilitações literárias o equivalente à 4ª classe, tendo tido que abandonar a escola por dificuldades económicas o agregado familiar de origem.

(…).

Conhecendo:

1. Da pretensa anomalia da documentação da prova:

1. 1. O arguido invocou no recurso para a Relação a falta de gravação de parte das declarações que prestou na audiência de julgamento, pretendendo haver aí uma nulidade.

A Relação decidiu assim essa questão:

«O arguido AA veio invocar uma alegada nulidade por deficiência parcial no registo magnetofónico da prova produzida em audiência.

“Segundo o recorrente, na sessão de 29.09.10, não ficou gravado aquilo que afirmou ao Tribunal, entre os minutos 2.28 e 4.12.

Diz o mesmo que tal omissão se refere à parte em que o mesmo protestou a sua inocência.

Não questionando esta anomalia, tal qual ela é colocada pelo arguido/recorrente relativamente à gravação que lhe foi entregue em suporte digital num CD, sempre diremos, porém, que tal não corresponde à realidade.

De facto, embora num volume de gravação baixo (ao ponto da Mmª Juiz Presidente ter solicitado para que o arguido falasse mais alto), mostra-se audível a tradução, efectuada pelo tradutor nomeado, das declarações do arguido, sendo certo que as mesmas se reportam a questões colocadas pela Mmª Juiz Presidente sobre o local de residência do arguido – em Espanha – e não a qualquer protesto de inocência do mesmo.

Por consequência, podemos considerar, apenas, que aquela anomalia se verificou, eventualmente, na transposição da gravação do sistema para o CD e não na gravação propriamente dita.

Donde se conclui pela inexistência da alegada nulidade».

Neste recurso, o arguido mantém que parte da gravação relativa às declarações que prestou na audiência (cerca de 2 minutos) é inaudível e que esse facto tem reflexo na apreciação da prova.

É certo que a falta de documentação das declarações oralmente prestadas na audiência constitui a nulidade prevista no artº 363º do CPP, podendo considerar-se ainda como nulidade uma documentação que não satisfaça a finalidade visada pela norma, que é a de permitir impugnar perante um tribunal superior a decisão proferida sobre matéria de facto pelo tribunal do julgamento.

Não há que trazer à discussão as disposições dos artºs 201º e 204º do CPC, que só poderiam aplicar-se subsidiariamente, nos termos do artº 4º do CPP, se houvesse caso omisso. E não há. A nulidade está prevista neste último código, na norma já referida, e as suas consequências, quando se verifique, também o estão: no artº 122º. Aliás, a matéria das nulidades em processo penal está exaustivamente regulada nas respectivas leis, não havendo qualquer lacuna a legitimar o recurso às normas do processo civil. Como dispõe o artº 118º, nºs 1 e 2, do CPP, só «a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal» pode determinar a nulidade de acto do processo penal, e a «violação ou inobservância» dessas disposições só constituirá nulidade se como tal a lei (do processo penal) expressamente a classificar, constituindo nos demais casos simples irregularidade. É o princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades que assim está consagrado no processo penal.

Seja como for, no caso não se pode ter como verificada a apontada nulidade. A Relação decidiu que a gravação da prova não contém qualquer falha. E essa decisão, dizendo respeito a um dado de facto, é aqui insindicável, visto que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, não conhece de matéria de facto, nos termos do artº 434º do CPP.

A Relação admite que haja deficiência na cópia entregue ao recorrente ao abrigo do disposto nos artºs 101º, nº 3, e 364º, nº 1, deste mesmo código. Mas se assim for, a situação, nada tendo a ver com a falta de documentação satisfatória e, portanto, com a pretendida nulidade, o que exigia era que o recorrente suscitasse a questão junto da secção de processos respectiva, para aí, verificando-se efectivamente a anomalia, obter nova cópia, sem custos nem prejuízo em termos de prazo, podendo provocar uma decisão judicial, recorrível, se visse desatendida a sua pretensão.

1. 2. De qualquer modo, o vício, se existisse, estaria sanado.

Senão, vejamos.

A falta de documentação das declarações oralmente prestadas na audiência de julgamento constitui uma nulidade sanável, nos termos do artº 119º do CPP, visto não estar aí prevista nem haver norma que a classifique como insanável. E, não se tratando de uma nulidade de sentença, não está sujeita ao regime de arguição previsto no nº 2 do artº 379º.

O vício tem, pois, de ser arguido perante o tribunal de 1ª instância, no prazo geral de 10 dias, nos termos do artº 105º, nº 1, podendo a questão ser levada ao conhecimento do tribunal superior apenas pela via de recurso que se interponha da decisão que aprecie a arguição.

O meio correcto para arguir a nulidade é um requerimento autónomo, dirigido, como se disse, ao juiz do processo. Se for arguida no requerimento de interposição de recurso, o meio usado não é correcto, ainda que isso não seja obstáculo a que o juiz do tribunal recorrido se pronuncie sobre ela, pois o erro na forma de processo não impede o aproveitamento dos actos que puderem ser aproveitados. O que pode acontecer, e normalmente acontecerá, considerando a diferença de prazos e momento a partir do qual estes se iniciam, é que a arguição da nulidade nessa peça seja extemporânea, pelas razões que seguem.

Nos termos dos artº 101º, nº 3, e 364º, nº 1, do CPP, o funcionário que realizar a documentação, mediante gravação, «entrega no prazo de quarenta e oito horas uma cópia a qualquer sujeito processual que o requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário». Quer isto dizer que, decorridas quarenta e oito horas sobre o termo do acto em que houve gravação das declarações orais, o sujeito processual interessado pode exigir a entrega de uma cópia, facultando ao tribunal o suporte técnico necessário. Nessa altura, fica em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência.

Por isso e porque, de acordo com o disposto no artº 9º do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro, que, regulando o registo da prova em processo civil, se aplica analogicamente ao processo penal, nos casos omissos, em conformidade com o disposto no artº 4º do CPP, a falta de gravação, ou a sua deficiência, implica a repetição da parte omitida, desde que «essencial ao apuramento da verdade», e essa repetição deve ser feita o mais rapidamente possível, sem afectação de direitos processuais, até porque em processo penal a celeridade constitui garantia de defesa com assento constitucional (artº 32º, nº 2, da Constituição), o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efectuada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário. Este modo de contar o prazo de arguição da nulidade é o propugnado por Paulo Pinto de Albuquerque (cf. Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, página 943).

Ora, a deficiência apontada pelo recorrente refere-se às declarações que prestou na sessão da audiência de 29/09/2010, sendo que só pediu cópia da gravação de toda a prova em 03/03/2011, recebendo-a logo no mesmo dia (cf. fls. 3438 e 3441), e só interpôs recurso e, portanto, arguiu o vício, em 21/03/2011 (cf. fls. 3457).

Mesmo que seja de entender que o prazo de arguição da nulidade só deve contar-se a partir da leitura, ou depósito, da sentença, por só nessa altura se colocar a questão de dela recorrer ou não e, portanto, da eventual necessidade de acesso à documentação da prova, nem assim a arguição da pretensa nulidade na motivação de recurso era tempestiva, visto o acórdão de 1ª instância haver sido lido, com a presença do recorrente, e depositado em 18/02/2011 (cf. fls. 3418-3420). Entre essa data e a interposição de recurso decorreu mais de um mês e a cópia da gravação, como se disse, foi entregue ao recorrente no próprio dia em que a pediu.

   2. Da alegada omissão de pronúncia:

2. 1. Em segundo lugar, pretende o recorrente que a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no artº 379º, nº 1, alínea c), 1ª parte, do CPP – omissão de pronúncia –, porquanto:

            -alegou no recurso para a Relação que na audiência “não se logrou fazer prova da factualidade constante dos apontados itens 1 a 28 (com excepção do item 20) da matéria de facto, no tocante à participação criminosa do recorrente”, na medida em que negou «peremptoriamente a prática desses crimes», estes «não foram confessados pelos seus co-arguidos» e os ofendidos e testemunhas de acusação não o reconheceram como «o autor de algum dos perpetrados roubos e sequestros», pelo que a decisão de 1ª instância padecia do vício previsto no artº 410º, nº 2, alínea a), do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

            -alegou ainda que o acórdão do tribunal de 1ª instância violou igualmente o disposto nos artºs 127º e 355º do mesmo código, «na parte em que considerou provada a participação» do recorrente nos crimes de sequestro, roubo e coacção sobre funcionário;

            -quanto à primeira destas alegações, a Relação limitou-se a remeter para a decisão recorrida, e quanto à segunda não se pronunciou.

2. 2. Relativamente ao primeiro ponto, não é verdade que a Relação se tenha limitado a remeter para a decisão recorrida, sendo que a fundamentação por remissão para outra peça nada tem de ilegítimo, se se concordar inteiramente com o que consta das partes para onde se remete e se estas responderem a todas as questões em discussão, de tal modo que o visado fique a conhecer todas as razões pelas quais vê improceder a sua pretensão.

Neste ponto, não obstante o inexacto entendimento que o recorrente mostra ter do vício do artº 410º, nº 2, alínea a), do CPP, pois o configura como consistindo em considerar provados factos que deviam ser tidos como não provados, por insuficiência de prova, quando o vício está antes na falta de decisão sobre factualidade relevante para a correcta de cisão de direito, a Relação afastou o vício [«Alegou o arguido AA insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artº 410º, nº 2, alínea b), do CPP) . No entanto, como resulta da matéria de facto provada, elencada pelo Tribunal a quo no acórdão recorrido, encontram-se verificados todos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, que determinaram a respectiva condenação pelos crimes mencionados nos termos aí descritos. A decisão sobre os factos – provados e não provados – bem como a decisão de direito, nomeadamente a subsunção dos factos provados ao direito, fundou-se num conjunto de elementos, para além dos depoimentos credíveis das testemunhas, como documentos, objectos e os meios identificados que serviram para a prática dos crimes, etc., ou seja, os que se mostraram determinantes para a condenação dos arguidos, como resulta quer dos factos provados quer da fundamentação»].

E apreciou a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto no âmbito do artº 412º, nºs 3 e 4, que era verdadeiramente a pretensão do recorrente nesta parte. Fê-lo nos termos seguintes:

«Desde já se consigna que este Tribunal de recurso não tem de analisar todos os argumentos aduzidos pelos arguidos (vd., v.g. Ac. do STJ de 02.03.2006, Proc. nº 461/06-5, in www.dgsi.pt.).

Aliás, os arguidos vêm expor uma série de argumentos circunstanciais que não entendemos relevarem por forma a levar a uma decisão diversa da que teve o Tribunal a quo.

O facto de determinados elementos poderem levar a conclusões eventualmente diversas, o que releva é o juízo do tribunal desde que sustentado, obviamente, como o foi.

Por outro lado, todos os elementos de facto e de prova têm de ser vistos e termos globais e não de forma isolada.

Não se irá, como se disse, rebater todos argumentos dos arguidos recorrentes, já que o que interessa é saber se os factos estão correctamente julgados. Um juízo sobre um facto permite sempre uma outra leitura, por via de regra. Não é isso que determina que por essa razão não se possa dar tal facto como provado.

Quanto à matéria de facto constante dos autos consideramos que a mesma foi correctamente julgada, pelo que no que respeita à apreciação e fundamentação dos factos dados como provados, bem como no que respeita ao exame crítico das provas, remetemos para o acórdão recorrido em face do rigor e clareza do mesmo.

Da sua motivação de recurso resulta que os Recorrentes, para além do mais, pretendem sindicar determinados pontos da factualidade dada como assente na sentença recorrida, questionando a apreciação efectuada pelo tribunal a quo da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento quanto a eles.

Seguimos de perto a argumentação da resposta do M.P., transcrevendo-a, já que merece o nosso acordo.

O arguido AA veio impugnar a matéria de facto socorrendo-se da transcrição de passagens dos depoimentos gravados de algumas testemunhas.

O arguido Vasile invoca erro de julgamento alegando, em síntese, que "nenhuma prova produzida em audiência aponta para a descrita factualidade pela qual o arguido foi condenado (à excepção do crime de detenção de arma proibida), pela circunstância de os arguidos terem negado os factos, as testemunhas não terem reconhecido os mesmos, o exame pericial de fls. 1656/1658 diz "não são encontrados quaisquer vestígios de resíduos compagináveis com disparos de armas de fogo".

O que o recorrente fez foi questionar a valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo.

Realce-se, a título de exemplo, também, nesta parte, a explicação que o Tribunal a quo deixou explanada no que toca à convicção sobre a autoria dos factos ocorridos na Quinta da Boavista.

Diz-se na fundamentação:

…cumpre agora ao tribunal fundamentar porque imputa a sua autoria aos arguidos AA e EE. É certo que os ofendidos não foram capazes, em qualquer das fases processuais, de reconhecer os arguidos, porquanto os mesmos se encontravam com as caras tapadas enquanto estiveram na sua presença. É também certo que os arguidos negaram a autoria dos factos. Contudo, esta incapacidade de reconhecimento e a posição dos arguidos em audiência de julgamento não impediu que o tribunal ficasse com a convicção, sem margem para qualquer tipo de dúvida, de que os factos foram praticados pelas pessoas identificadas na acusação. Com efeito, existem uma série de outros factos que permitem ao tribunal tirar essa conclusão de forma irrefutável.

Vejamos.

Desde logo as testemunhas referiram que os arguidos empunhavam pistolas.

Começando logo pela linguagem utilizada pelos arguidos entre si e na comunicação com as vítimas. Referiram as testemunhas supra mencionadas que os arguidos falavam entre si moldavo (nacionalidade dos arguidos) e que com as vítimas falavam uma linguagem “meio espanholada”, sendo que tinham aparência física de indivíduos do leste. Ora, quanto à utilização do moldavo há a referir que, empregando, como emprega, habitualmente, trabalhadores originários da Moldávia, era natural que a testemunha CC, facilmente reconhecesse a utilização de tal linguagem. Depois, e quanto à circunstância de se dirigirem às vítimas numa linguagem semelhante ao espanhol, há que ter em atenção que os arguidos já trabalharam em Espanha, local onde estavam e se deslocavam frequentemente.

Depois, e essencial na formação da convicção do tribunal, há a circunstância do acidente de viação ocorrido na localidade do Cadaval, na Estrada Nacional nº 1- 5. Na verdade, nele foram intervenientes os veículos Grand Cherokee e BMW subtraídos pelos arguidos na Quinta da Boavista, bem como o veículo Volkswagen Tiguan, no qual os arguidos (conforme informações dadas pela Polícia de Segurança Pública local aos Inspectores da Polícia Judiciária e conforme a testemunha NN referiu) se faziam transportar habitualmente. Este acidente de viação, participado às autoridades pela testemunha LL que o presenciou, ocorreu pouco tempo depois da hora referida pelas vítimas como sendo a hora em que os arguidos abandonaram a sua habitação, tendo sido abandonados no local o BMW subtraído e um veículo de matrícula estrangeira (conforme depoimento da testemunha LL), isto é, o Volkswagen Tiguan, prosseguido todos os ocupantes dos veículos num outro carro grande (no dizer da testemunha) isto é, certamente, o Grand Cherokee. Da descrição feita dos intervenientes pela testemunha em causa, a mesma resulta coincidente com a fisionomia dos arguidos, porquanto a mesma afirma que os intervenientes tinham os cabelos curtos. A acrescentar a esta “coincidência” do acidente há a referir as circunstâncias de terem sido encontrados no interior da viatura Volkswagen Tiguan diversos papeis do concessionário da marca do veículo emitidos em nome do arguido EE e de terem sido recolhidos vestígios lofoscópicos pertencentes a este arguido numa caixa encontrada no interior deste mesmo veículo e vestígios biológicos de ambos os arguidos no interior do veículo Grand Cherokee, o qual foi encontrado tempos depois, no Algarve, num local onde pouquíssimo tempo antes tinha ocorrido um roubo com o mesmo modus operandi, abandonado, com a chave na ignição. No mesmo local onde estava o Grand Cherokee foi encontrado, dias depois um veículo de matrícula estrangeira, utilizado pelos mesmos arguidos, os quais foram, então, detidos pelos Inspectores da Polícia Judiciária em termos em que fundamentaremos mais adiante. Aos arguidos foi apreendido tabaco da marca Marlboro, tabaco esse correspondente à marca de tabaco encontrada nas beatas que existiam no interior do Jeep Grand Cherokee aquando da sua apreensão. Por fim, embora com tanta ou mais importância, há a referir o facto de, segundo informação prestada ao Inspector MM da Polícia Judiciária, logo na altura pelo ofendido CC, um dos assaltantes envergar uma camisola de publicidade a uma empresa denominada “Gruas do Oeste” (acrescente-se que, se bem que, em julgamento, o mesmo não tenha sido capaz de referir especificamente o nome da empresa, referiu que se tratava de uma empresa do oeste e ligada à construção civil), empresa onde a testemunha NN, que dividiu a residência com os arguidos, trabalhava, sendo que, conforme o mesmo mencionou, os arguidos tinham facilmente acesso às várias camisolas que, com aqueles dizeres, possuía.

Finalmente, importa corrigir o que o recorrente afirma a fls. 9, quando se reporta ao depoimento da testemunha NN e à transcrição daquilo que, pretensamente, a mesma disse.

Com efeito, aquela testemunha afirmou: Conheço o AA e EE de um café das Caldas da Rainha (…) estavam à procura de uma casa (…) aluguei, ficaram na casa durante um mês e meio (…) deslocavam-se acho que num Volkswagen Tiguan…”.

Esta passagem e este testemunho revelaram-se fundamentais para estabelecer a relação entre os co-arguidos AA e EE (não o KK como diz o recorrente) e entre estes e o veículo automóvel Volkswagen Tiguan, bem como com a «T-shirt» com os dizeres “Gruas do Oeste” visualizada pelo ofendido ......... na Quinta da Boavista, constante da fundamentação do douto acórdão recorrido.

Resta o destaque para a fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo no que às presunções judiciais diz respeito:

…se é certo que as testemunhas presenciais não procederam a reconhecimento em virtude de os “assaltantes” estarem de cara tapada e se não é menos certo que não foram deixados vestígios biológicos ou lofoscópicos no interior da residência da Quinta da Boavista, também é verdade que todos estes factos acabados de referir, quando conjugados com as regras da experiência comum, criaram no espírito do julgador, isto é, do tribunal colectivo, a convicção inabalável supra referida. Com efeito, conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Março de 2004, in www.dgsi.pt, os meios de prova directos não são os únicos a poderem ser utilizados pelo julgador. Existem os meios de prova indirecta, que são os procedimentos lógicos, para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um ou vários factos conhecidos, ou seja as presunções. As presunções, cuja definição se encontra no artigo 349º do Código Civil, são também válidas em processo penal, importando, neste domínio as presunções naturais que são, não mais que o produto das regras de experiência: o juiz valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. O juiz utiliza a experiência da vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro, ou seja, procede mediante uma presunção natural. Na passagem do facto conhecido para a aquisição do facto desconhecidos, têm de intervir procedimentos lógicos e intelectuais que permitam, com fundamento, segundo as regras da experiência que determinado facto anteriormente desconhecido, é a natural consequência, ou resulta com probabilidade próxima da certeza de outro facto conhecido. Foi este procedimento lógico resultante dos factos supra mencionados e que por inutilidade nos abstemos aqui de repetir que levou a que o tribunal concluísse terem sido os arguidos AA e EE, acompanhados de um terceiro indivíduo, os autores do assalto à Quinta da Boavista na noite de 19 de Setembro de 2009”.

Na mesma senda do que se deixou exposto podemos incluir o demais alegado pelo recorrente, designadamente, o que respeita aos objectos encontrados no interior do veículo Nissan X-Trail e o crime de coacção sobre funcionário (com utilização de arma de fogo).

Relativamente às conclusões do exame pericial de fls. 1656/1658 (vol. VIII), dir-se-á que, diferentemente do afirmado pelo recorrente a fls. 3469 do seu recurso, o que consta relativamente aos vestígios recolhidos no arguido AA é textualmente, o seguinte: "A análise das amostras com vestígios recolhidos em AA não revelou resultados significativos quanto à presença de resíduos de disparo de armas de fogo. Assim, este resultado deve ser considerado inconclusivo".

Ou seja, a conclusão pericial, ao ser inconclusiva, não pode ser nem afirmativa nem negativa, o que é substancialmente distinto do afirmado pelo recorrente.

E o acórdão recorrido fundamenta, a fls. 3348, "que relativamente ao arguido AA não foram significativos os resíduos encontrados", invocando o exame pericial de fls. 1656/1658. Mas logo pormenoriza o acórdão, a fls. 3348/3349, os demais elementos de prova, analisados criticamente e concatenados entre si, em que o tribunal fundou a sua convicção para imputar ao arguido AA a prática de crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo art. 374°, n° 1, do CP.

Ao longo do recurso interposto, o recorrente insiste na tónica de "nenhuma prova produzida em audiência apontar para a factualidade pela qual o arguido foi condenado, pela circunstância de os arguidos terem negado os factos, as testemunhas não terem reconhecido os mesmos e teor do exame pericial de fls. 1656/1658".

Há ainda a considerar as provas periciais recolhidas nos autos e as resultantes das escutas telefónicas, as quais não têm que ser analisadas em julgamento – fls. 3340 a 3350 do acórdão, no que diz respeito às condutas imputadas ao arguido AA.

Embora o recorrente não especifique quais os meios de prova a que pretende referir-se, sempre se dirá ser a jurisprudência uniforme no sentido de considerar não ser exigível que em audiência de julgamento se proceda à leitura e discussão de autos de exame, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas, nada impedindo, contudo, que tais meios de prova possam ser apreciados, nos termos previstos no n° 2 do citado art. 355° do CPP (vd., designadamente, ac. do TC n° 87/99, DR II de 1.07.99, acórdãos do STJ de 29.11.2006, de 15.02.2007, proc. 06P4092, de 31.05.2006, proc. 06P14129, disponíveis em www.dgsi.pt)».

Daqui se vê que, defendendo o recorrente no recurso interposto da decisão de 1ª instância que não se fez prova de haver praticado os factos integradores de alguns dos crimes pelos quais foi condenado, a Relação, apreciando essa alegação, julgou-a improcedente indicando as provas em que se baseou para assim decidir e especificando as razões pelas quais as valorou nesse sentido, ainda que utilizando, em muitos pontos da sua argumentação, passagens da fundamentação do tribunal de 1ª instância, o que não configura qualquer vício, pois o recorrente ficou a conhecer as razões pelas quais a Relação decidiu como decidiu.

Não houve, pois, nesta parte qualquer omissão de pronúncia.

2. 3. Também não é exacto que a Relação não se tenha pronunciado sobre a alegação de que a decisão de 1ª instância violou ainda o disposto nos artºs 127º e 355º do mesmo código, «na parte em que considerou provada a participação» do recorrente nos crimes de sequestro, roubo e coacção sobre funcionário.

A negação da violação do primeiro destes preceitos está desde logo implícita na concordância com o raciocínio seguido pelo tribunal de 1ª instância para dar como provada a participação do recorrente nos factos que integram esses ilícitos, concordância essa claramente expressada, designadamente, nas afirmações de que o juízo do tribunal de 1ª instância é sustentado («o que releva é o juízo do tribunal desde que sustentado, obviamente, como foi»), a matéria de facto foi correctamente julgada («quanto à matéria de facto constante dos autos, consideramos que a mesma foi correctamente julgada») e na adesão à consideração do tribunal de 1ª instância de que determinados factos, que descreve, conjugados com as regras da experiência comum, são de molde a criar a convicção inabalável de que praticou tais factos («todos estes factos acabados de referir, quando conjugados com as regras da experiência comum, criaram no espírito do julgador, isto é, do tribunal colectivo, a convicção inabalável supra referida»).

E foi-o mesmo expressamente, ao afastar a igualmente alegada violação do princípio in dubio pro reo:

«Não existiu também qualquer violação do princípio "in dubio pro reo". (…).

O uso deste princípio só poderia ser censurado se da decisão recorrida resultasse que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ela, escolheu a tese desfavorável ao arguido.

No caso vertente, tal dúvida não se colocou ao Tribunal relativamente aos factos que teve como provados e que de forma exaustiva fundamentou, valorando as provas em determinado sentido e considerando provada certa versão fáctica, em conformidade com o princípio de livre apreciação da prova que resulta do artº 127º do CPP».

Também não houve falta de pronúncia sobre a alegação de violação do artº 355º. O que o recorrente alegou sobre o assunto no recurso para a Relação foi:

«O douto acórdão recorrido violou, assim, por erro de interpretação/valoração da prova produzida, o disposto nos art° 127° e 355° do CPP ao valorar de modo que não devia prova efectuada na audiência, confundindo simples coincidências com a certeza da culpabilidade do recorrente no cometimento dos roubos, dos sequestros e da "coacção" sob funcionários da PJ) quando o recorrente é que terá tido necessidade de assistência hospitalar, segundo as palavras do inspector da PJ OO.

O douto e recorrido acórdão labora então em erro interpretativo (violação do art° 127° do CPP) ao considerar (e dar como provado) que o arguido também coagiu os funcionários da PJ que o detiveram, no Alvor, quando nenhuma prova foi feita nesse sentido na audiência (nem pelas testemunhas, nem pelo arguido. Violado foi também por tal facto o disposto no art° 355° do CPP. No mais, não se logrou provar que o arguido soubesse que os inspectores que depois o detiveram, seriam efectivamente polícias, uma vez que se trajavam "à civil"».

Nos termos em que a alegação está formulada e contextualizada, aparecendo como conclusão de outra no sentido de que na audiência não se fez prova dos factos integrantes de alguns dos crimes pelos quais foi condenado, parece que o que o recorrente pretende dizer é que a violação do artº 355º consistiu no que antes já dissera, ou seja, em darem-se como provados esses factos quando na audiência não se fez prova deles, na medida em que o nº 1 do preceito estabelece que «não valem em julgamento, nomeadamente para efeito da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».

Ora, a Relação respondeu a essa questão quando considerou que a prova produzida na audiência de julgamento, conjugada com provas periciais e as resultantes de escutas telefónicas realizadas, era suficiente para considerar provados os ditos factos, não sendo exigível que os autos que suportam estas últimas provas sejam lidos e discutidos na audiência de julgamento [«sempre se dirá ser a jurisprudência uniforme no sentido de considerar não ser exigível que em audiência de julgamento se proceda à leitura e discussão de autos de exame, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas, nada impedindo, contudo, que tais meios de prova possam ser apreciados, nos termos previstos no n° 2 do citado art. 355° do CPP. (Vd, designadamente. Ac. do TC n° 87/99 (DR II de 1.07.99), acórdãos do STJ de 29.11.2006, de 15.02.2007 (proc. 06P4092), de 31.05.2006 (proc. 06P14129, disponíveis em www.dgsi.pt)»].

Por isso, Também aqui não houve omissão de pronúncia.

3. Sobre a pretensão de absolvição relativamente ao crime de resistência e coacção sobre funcionário:

3.1. Em terceiro lugar, pretende o recorrente ser absolvido da acusação pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário.

A pena aplicada em 1ª instância por este crime foi de 3 anos e 6 meses de prisão. E a Relação confirmou nessa parte a decisão de 1ª instância.

Nos termos do artº 400º, nº 1, alínea f), do CPP, «não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

Por aplicação desta norma, nos casos de concurso crimes em que por cada um haja sido aplicada, em 1ª instância, pena de prisão não superior a 8 anos mas em que a pena única é superior a essa medida, sendo a condenação confirmada pela Relação, o recurso da decisão desta para o Supremo Tribunal de Justiça, conforme este tribunal vem decidindo, só é admissível no que se refere à operação de determinação da pena única, não o sendo no respeitante a cada um dos crimes e às respectivas penas (cf., por exemplo, nos acórdãos proferidos nos processos 08P3381, em 13/11/2008, 09P0491, em 16/04/2009, e 200/06.OJAPTM, em 12/11/2009, todos disponíveis em www.dgsi.pt.)

No último foi usada a seguinte argumentação, com a qual se concorda:

«No caso de concurso de crimes, pena aplicada é tanto a pena parcelar cominada para cada um dos crimes como a pena conjunta. Por isso que, como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça, no seguimento aliás da jurisprudência largamente dominante firmada no período de vigência do regime agora alterado (embora, então, com referência à pena aplicável e não, como agora, à pena concretamente aplicada), no caso de concurso de crimes, só sejam para si recorríveis as decisões das relações que, incidindo sobre cada um dos crimes e das correspondentes penas parcelares, ou sobre a pena conjunta, apliquem ou confirmem pena de prisão superior a 8 anos.

(…) o que o Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo a este propósito é que, no caso de concurso de crimes, a (ir)recorribilidade se afere separadamente pelo conteúdo de cada uma das decisões que incide sobre cada um dos crimes e das correspondentes penas parcelares, por um lado, e sobre a pena conjunta, por outro.

E não vemos obstáculo processual que repila esse entendimento, sabido como é que o sistema português de punição do concurso de crimes é o da pena conjunta, obtida através de um cúmulo jurídico (…), sistema esse em que as penas parcelares, muito embora não venham, em princípio, a ser elas próprias efectivamente executadas, conservam a sua autonomia e a que estão associados efeitos específicos, de natureza substantiva e processual. (…).

Aliás, no caso de determinação superveniente do concurso, está definitivamente afastada a possibilidade de, por via do recurso interposto do acórdão que fixou a pena conjunta, sindicar as decisões que incidiram sobre cada um dos crimes e respectivas penas, mesmo daquela(s) que eventualmente tenha(m) sido proferida(s) no mesmo processo. E, nem por isso o tribunal deixa (pode deixar) de proceder à avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente. Conhecidas as contingências que podem levar ou obstar ao julgamento conjunto dos diversos crimes cometidos pelo mesmo agente – artº 24º, nº 2, do CPP –, não se nos afigura razoável ou mesmo conforme ao princípio da igualdade, fazer depender a (ir)recorribilidade de uma decisão de um tribunal da relação, proferida em recurso sobre um crime integrante de um concurso de infracções, que tenha confirmado pena de prisão inferior a 8 anos, da circunstância, pode dizer-se aleatória, de o julgamento desse crime ter sido feito em conjunto com os outros crimes do concurso ou separadamente. Em nossa opinião, as possibilidades de recurso, os graus de recurso admissíveis, hão-de ser os mesmos, em ambas as hipóteses. De outro modo, teríamos o Supremo Tribunal de Justiça a rever condenações por crimes que, quando isoladamente apreciados, nunca poderiam a ele ter acesso (os crimes da competência do tribunal singular, por exemplo)».

Por isso, não sendo a pena aplicada por este crime superior a 8 anos de prisão e tendo a Relação confirmado a decisão de 1ª instância, o recurso não é admissível quanto a este crime e à respectiva pena.

3. 2. Ainda que assim não fosse, a pretensão do recorrente nesta parte não teria a mínima viabilidade, devendo o recurso ser considerado manifestamente improcedente, visto que o arguido pretende ser absolvido, por falta de prova, o que coloca uma questão de facto, matéria de que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, não conhece, de acordo com o disposto no artº 434º do CPP.

4. medida das penas parcelares:

4. 1. O recorrente discute a medida das penas aplicadas pelos crimes de roubo, sequestro, falsificação de documento e burla informática. Nenhuma dessas penas é superior a 8 anos de prisão. Se relativamente aos crimes de roubo o acórdão da Relação não é confirmatório da decisão de 1ª instância, na medida em que eliminou uma das circunstâncias qualificativas do nº 2 do artº 204º [a da alínea g)], com relevo no âmbito do crime de roubo, por via da alínea b) do nº 2 do artº 210º do CP, com reflexo em sede ilicitude do facto e portanto em sede de determinação da pena, já houve confirmação no que se refere à pena aplicada pelos restantes crimes.

Assim, pelas razões apontadas em 3, o recurso, relativamente às penas parcelares, só á admissível quanto às aplicadas pelos crimes de roubo.

É, pois, da medida dessas que se conhecerá apenas.

Antes, porém, há que esclarecer um aspecto da qualificação jurídica dos factos provados.

Como se viu, o recorrente foi condenado em 1ª instância, no aqui importa, na pena de 8 anos de prisão, por cada um de quatro crimes de roubo agravado, sendo

            -um p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), e 204º, nºs 1, alínea a), e 2, alíneas e), f) e g), do Código Penal, sendo ofendida BB;

             -outro p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), e 204º, nº 2, alíneas a), e), f) e g), do mesmo código, sendo ofendida “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”; e

                        -dois p. e p. pelas disposições conjugadas desses artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), e 204º, nº 2, alíneas e), f) e g), sendo ofendidos CC e DD.

            A Relação, além de excluir relativamente a todos a circunstância da alínea g) do nº 2 do artº 204º, decidiu absolver o arguido da acusação no que se refere ao crime de roubo de que seria ofendida “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”, argumentando assim, quanto a este último ponto:

            «Consideramos, por último, não ser de autonomizar o crime de roubo efectuado à Casa ........., já que do ponto de vista subjectivo nada indica que os arguidos soubessem a quem os bens subtraídos pertenciam, com excepção dos bens retirados pessoalmente aos ofendidos. O que é “normal” é que os bens que estão numa residência pertençam às pessoas que a habitam, o que é diferente da situação em que, por exemplo, num assalto a um Banco, se roubem também alguns clientes e em que se tem de autonomizar o crime de roubo perpetrado contra o Banco dos crimes de roubo contra estes últimos. No caso sub judice entendemos que apenas poderão relevar para efeitos de qualificação jurídico-penal os crimes de roubo perpetrados contra os ofendidos DD,CC e BB, sendo que o valor dos bens pertencentes àquela sociedade se entende como agravante da conduta do arguido em termos de desvalor do resultado.

Assim, absolvemos o arguido da prática de um crime de roubo agravado previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 210º, nºs 1 e 2, com referência ao artigo 204º, nº 2, als. a), e), e f) e g), com referência ao artigo 202º, als. b) d) e e), todos do Código Penal, o qual tem como ofendida a “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”.

Subsistem assim três crimes de roubo previstos e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 210º, nºs 1 e 2, 204º, nºs 1, al. a) [um deles, relativo à ofendida BB], e 2, als. e) e f), por referência ao artigo 202º, als. a), d) e e), todos do Código Penal».

É certo que, sendo o roubo um crime complexo, que ofende simultaneamente bens patrimoniais e bens pessoais, se foram ofendidos bens pessoais de apenas 3 pessoas, só pode haver três crimes de roubo, sendo indiferente que sejam quatro os patrimónios ofendidos. O obstáculo ao preenchimento de quatro crimes de roubo não está, pois, no facto de o arguido não saber (ou no facto de não estar provado que sabia) que subtraía coisas pertencentes a quatro pessoas, como decidiu a Relação, mas na circunstância de só ter havido três subtracções em que esteve presente um elemento essencial à integração do crime de roubo: a ofensa de bens iminentemente pessoais.

É, assim, exacto que os crimes de roubo cometidos são três.

A Relação considerou que o crime de roubo relativamente ao qual o arguido deveria ser absolvido da acusação seria aquele que lhe foi imputado com referência à subtracção dos bens pertencentes à “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”, com previsão nos artºs 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas a), e) e f).

Não é isso inteiramente correcto.

Sujeito passivo do crime de roubo pode ser tanto o proprietário como outra pessoa contra a qual o agente, para atingir bens patrimoniais, actue por um dos meios ofensivos de bens pessoais descritos no tipo.

O recorrente e os comparticipantes actuaram com violência sobre o ofendido CC para se apoderarem de bens que lhe pertenciam e de bens que pertenciam à “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”, coagindo-o, mediante o uso de violência física, a indicar-lhes o lugar onde se encontravam alguns desses bens e a entregar-lhes as chaves dos veículos Grand Cherokee e BMW, pertencentes à sociedade (facto nº 10). Esta conduta do recorrente e comparticipantes, ofendendo bens pessoais de uma só pessoa, constitui um só crime de roubo, sendo o seu objecto constituído pela totalidade dos bens que pertenciam ao ofendido CC e à “Casa .........”.

Sendo o valor da totalidade desses bens consideravelmente elevado, à luz do artº 202º, alínea b), do CP (desconhece-se o valor da totalidade dos bens que pertenciam à “Casa .........”, mas só alguns deles – espingarda, 62 pinturas sobre tela, em óleo, aguarelas, gravuras antigas portuguesas, um estojo contendo 24 moedas de colecção em ouro amarelo e prata e duas colchas de cor vermelha – valiam € 26 000, valor muito superior a 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática dos factos, havendo ainda a considerar o valor das coisas subtraídas pertencentes ao ofendido CC), o crime de roubo integrado pela sua subtracção é da previsão do artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas a), e) e f), do CP.

Não há, assim, que falar em absolvição, mas simplesmente de uma diferente qualificação jurídica dos factos: a factualidade que foi tida como integradora de dois crimes, é agora qualificada como um só crime.

Os crimes de roubo cometidos pelo recorrente são, pois:

-um p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas a), e) e f), do CP [bens de CC e “Casa .........” – valor consideravelmente elevado];

-outro p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nºs 1, alínea a), e 2, alíneas e) e f) [bens de BB – valor elevado]

-um p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas e) e f) [bens de DD].

Substancialmente, a Relação não decidiu de modo diferente, na medida em que, se afirmou a “absolvição” do recorrente relativamente ao crime de roubo «previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 210º, nºs 1 e 2, com referência ao artigo 204º, nº 2, als. a), e), e f) e g), com referência ao artigo 202º, als. b) d) e e), todos do Código Penal, o qual tem como ofendida a “Casa ......... – Companhia das Vinhas, SA”», não deixou de acrescentar: «sendo que o valor dos bens pertencentes àquela sociedade se entende como agravante da conduta do arguido em termos de desvalor do resultado».

Dando a decisão da Relação desse modo relevância ao valor dos bens subtraídos à “Casa .........”, o qual, só por si, já é consideravelmente elevado, relevância essa em termos de pena, obviamente, a diferença entre o decidido ali e aqui é apenas de forma.

Deste modo, se, substancialmente, a qualificação jurídica dos factos ora efectuada não traz qualquer novidade relativamente à realizada pela Relação, não é caso de lançar mão da notificação a que alude o artº 424º, nº 3, do CPP.

 4. 2. A pena aplicável é em qualquer caso de 3 a 15 anos de prisão.          

A determinação da medida concreta da pena de cada crime, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.

À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.

Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Uma tal finalidade identifica-se com a ideia da “prevenção geral positiva ou de integração” e dá “conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o art. 18º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática”.

Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.

Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se «revelar carente de socialização», tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em «conferir à pena uma função de suficiente advertência» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, páginas 79 a 82).

O arguido e comparticipantes prepararam cuidadosamente a operação: muniram-se de armas de fogo, para anular qualquer resistência, cobriram o rosto, para não serem reconhecidos, escolheram uma hora e um método que aumentariam as possibilidades de entrarem na casa sem serem vistos e pressentidos e, uma vez lá dentro, esconderam-se num compartimento onde não se encontravam pessoas, à espera do melhor momento para iniciarem a execução das condutas projectadas. Essa cuidada preparação, que implicou necessariamente um considerável período de reflexão, traduz uma vontade muito determinada de praticar os factos, logo, dolo muito intenso.

O grau de ilicitude dos factos mede-se em função do seu modo de execução, como o meio utilizado para entrar na casa, escalando um muro e retirando um dos vidros da porta de uma varanda, a superioridade em relação aos ofendidos, que não tiveram possibilidades de defesa, em função do número, dado que os ofendidos foram abordados um a um, do efeito surpresa e da utilização de armas de fogo, da perigosidade implicada nessa utilização, do valor do objecto de cada um dos crimes, que é consideravelmente elevado num caso (devendo ter-se em conta que o referido valor de € 26 000 é apenas o de alguns dos objectos subtraídos, pois não se apurou o de muitos dos objectos que pertenciam à “Casa .........”, designadamente os dois automóveis Grand Cherokee e BMW), elevado noutro e muito perto de elevado no outro, e do tipo de violência usada, recordando-se que: a) a ofendida BB foi apanhada de surpresa ao entrar no quarto, gritando com o susto que levou, foi agarrada e manietada; b) o ofendido CC começou por ser agredido com um murro na cabeça e pontapés nas costas logo que acorreu aos gritos da BB, foi manietado pelos três intrusos e depois algemado, foi de novo agredido a murro, na sala, ao mesmo tempo que era questionado sobre a localização do cofre e sobre os códigos de cartões bancários, sendo ainda agredido a murro num terceiro momento, depois de ter sido conduzido para um dos quartos; c) a ofendida DD foi acordada repentinamente e mandada calar pelo recorrente e comparticipantes, que, depois de se apoderarem dos objectos que logo lhe exigiram, a algemaram, vindo ainda a ser agredida com um murro na cabeça, quando pretendeu que lhe aliviassem a pressão das algemas.

Nesta sede deve considerar-se em contraponto a recuperação de alguns dos bens subtraídos pertencentes ao ofendido CC e à “Casa .........”, ainda que sem a colaboração do recorrente, circunstância que, atenuando o mal do crime, releva, ainda que moderadamente, em sede de prevenção geral.

A ilicitude é, ainda assim, muito elevada no caso do roubo que teve como objecto os bens pertencentes ao ofendido CC e à “Casa .........” e elevada nos outros dois, que se equivalem em gravidade, pois, se é um pouco superior o valor do objecto da subtracção de que foi vítima BB, é mais grave a violência exercida sobre a ofendida DD.

A grande intensidade do dolo e o grau de ilicitude respectivo, já caracterizado, traduzem culpa elevadíssima no caso do roubo p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas a), e) e f) [abarcando agora não só a subtracção das coisas pertencentes à “Casa .........” mas também a das pertencentes a CC] e muito elevada nos outros dois, a permitir que a pena seja fixada muito acima do limite mínimo previsto, em qualquer dos casos, mesmo para além do ponto intermédio da moldura penal, no primeiro.

As necessidades de prevenção geral decorrentes da gravidade da violação jurídica praticada pelo recorrente, cuja medida é dada essencialmente pelo grau de ilicitude dos factos, são muito elevadas quanto ao primeiro dos referidos crimes e elevadas no que se refere aos outros dois, não sendo comunitariamente suportável uma pena cuja medida não se afaste muito do limite mínimo da moldura penal, afastamento esse que terá de ser maior no caso do primeiro crime. Porque este tipo de criminalidade está em crescendo, bem como o seu grau de perigosidade, sendo usados métodos cada vez mais ousados, de tal modo que as pessoas nem em sua casa se sentem seguras de si e dos seus bens, só uma pena daquela ordem pode assegurar a manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada.

As exigências de prevenção especial são muito consideráveis, pois, se o recorrente não tem antecedentes criminais conhecidos, o cuidado planeamento da operação e o modo de a executar, envolvendo ousadia, considerável violência sobre as pessoas e muita perigosidade, decorrente da utilização de armas de fogo, revelam uma personalidade afeiçoada ao crime, a este tipo de crime, a determinar a fixação da pena um pouco acima do mínimo imposto pela prevenção geral.

Nestes termos, entende-se adequada a pena de

-8 anos de prisão, pelo crime p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas a), e) e f), do CP [bens de CC e “Casa .........”];

-7 anos de prisão, pelo crime p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nºs 1, alínea a), e 2, alíneas e) e f) [bens de BB]

-7 anos de prisão, pelo crime p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas e) e f) [bens de DD].

5. Pena do concurso de crimes:

Por último, pretende o recorrente a fixação da única em medida não superior a 9 anos de prisão.

A pena única, de acordo com o disposto no nº 2 do artº 77º do CP, tem como limite máximo a soma das penas aplicadas por cada um dos crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, e como limite mínimo a mais elevada delas. No caso, perfazendo a soma das penas parcelares 33 anos e 1 mês de prisão, o máximo aplicável é de 25 anos, sendo o mínimo de 8 anos, medida da mais elevada delas.

Na fixação da sua medida concreta, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artº 71º – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo nº 1 do artº 77º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». Sobre o modo de levar à prática estes critérios, diz o mesmo autor: “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, páginas 291 e 292).

O recorrente praticou três crimes de roubo agravado, três de sequestro, um de burla informática, dois de falsificação de documento, agravados em função da natureza do documento, dois de detenção de arma proibida e um de coacção e resistência sobre funcionário. De entre eles, avultam os três crimes de roubo, puníveis com pena de 3 a 15 anos, com realce para aquele cuja acção foi desenvolvida sobre CC e teve como objecto a subtracção de bens pertencentes a esse ofendido e à “Casa .........”, pela maior violência envolvida e pelo valor das coisas subtraídas. É, assim, muito elevada a gravidade do conjunto dos factos, do ilícito global.

Por outro lado, não obstante os crimes de roubo haverem sido cometidos na mesma ocasião, a desenvoltura com que os executou e aos demais, lançando mão de métodos razoavelmente elaborados e eficazes, revela uma personalidade que convive bem com o crime.

Nestes termos, ponderando a medida da culpa, as exigências de prevenção, geral e especial, a muito elevada gravidade global dos factos e a facilidade com que o recorrente partiu para a prática das infracções, denunciadora de propensão para o crime, a pena conjunta deve fixar-se bem acima do limite mínimo aplicável, mas em medida que, satisfazendo as «exigências mínimas e irrenunciáveis» de defesa da ordem jurídica, não comprometa em definitivo as esperanças de ressocialização do arguido, que, tendo nascido em 12/03/1988, como informa a decisão recorrida, à data dos factos tinha 21 anos de idade, achando-se justa a medida de 13 anos de prisão.

  Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, no provimento parcial do recurso, em alterar o acórdão recorrido nos seguintes termos:

            a) Os crimes de roubo praticados pelo recorrente são os seguintes:

            -um p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas a), e) e f), do CP [bens de CC e “Casa .........”], sendo por ele condenado na pena de 8 (oito) anos de prisão;

            -outro p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nºs 1, alínea a), e 2, alíneas e) e f) [bens de BB], sendo por ele condenado na pena de 7 (sete) anos de prisão; e

            -outro p. e p. pelo artº 210º, nºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 204º, nº 2, alíneas e) e f) [bens de DD], sendo por ele condenado na pena de 7 (sete) anos de prisão.

            b) A pena única, aplicada em cúmulo jurídico destas e das demais penas parcelares, passa a ser de 13 (treze) anos de prisão, acrescendo-lhe a pena acessória de interdição do uso e porte de arma por 3 (três) anos].

No mais mantém-se a decisão recorrida.

Tendo havido provimento parcial do recurso, não há lugar a pagamento de taxa de justiça (artº 513º, nº 1, do CPP).

      Lisboa, 23 de Novembro de 2011


Manuel Braz (Relator)

Santos Carvalho («com a declaração de voto que junto», segundo a qual «Votei sem reservas o acórdão, mas com o esclarecimento de que, na minha perspectiva, a redução de duas das penas parcelares só agora feita (roubos dos bens das ofendidas MJL e ISM) apenas encontra justificação na circunstância de o Tribunal da Relação, apesar de ter retirado uma agravante qualificativa a esses crimes (pertença a um bando), não ter de algum modo reflectido nas penas esse desagravamento, pois manteve-as, o que violou o princípio da proibição da reformatio in pejus, quando entendido com o um princípio geral do processo e não apenas nos estritos termos em que o define o art. 409.º do CPP (veja-se Damião da Cunha, “O caso julgado parcial”, P.U.C., 2002, p. 654 e segs.). Já o roubo dos bens de JOS e “Casa SL” não deveria ter esse benefício, como efectivamente não teve, pois a 1ª instância considerou que existiam dois roubos e a Relação um só, mas que abrangia a totalidade de bens de um e da outra»)