ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1633/05.4TBALQ.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/15/2011
SECÇÃO 6.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR NUNO CAMEIRA

DESCRITORES ACIDENTE DE AVIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
BRISA
EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
ÁGUAS
ESCOAMENTO DE ÁGUAS
LEI INTERPRETATIVA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
VÍCIOS DA COISA
DEVER DE VIGILÂNCIA
OMISSÃO
ÓNUS DA PROVA

SUMÁRIO I - Em caso de acidente de viação em auto-estrada concessionada causado pela existência de líquidos na via, perante o disposto no art. 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18-07, cabe à concessionária o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, de modo a ilidir a presunção de culpa que sobre ela recai, e não ao lesado demonstrar que tais obrigações não foram observadas.
II - A referida presunção de culpa funciona também como presunção de ilicitude, uma vez que, nas situações previstas no preceito legal citado, estão cometidos à concessionária deveres de agir para evitar danos a terceiros (os utentes da auto-estrada), deveres esses cuja inobservância representa, em termos práticos, o cometimento (por acção ou por omissão) dum facto ilícito.
III - O art. 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18-07, é uma norma de carácter interpretativo e, por isso, aplicável a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.
IV - Provado que uma camada de água proveniente das chuvas existente na via motivou a perda do contacto dos pneus da viatura acidentada com o asfalto e a subsequente entrada em hidroplanagem, perda de controle, embate no morro junto à berma e capotamento sucessivo, até à imobilização a 50 m de distância, e não se tendo provado que a formação da referida camada de água tenha tido origem no deficiente (e insuficiente) escoamento causado pelo mau funcionamento do sistema de drenagem instalado pela concessionária da auto-estrada, associado (ou não) a algum vício ou erro de construção do pavimento, fica afastada, em concreto, a hipótese de imputar à Brisa o incumprimento de qualquer dever legalmente imposto dirigido à manutenção da auto-estrada em boas condições de segurança, ou seja, a prática de qualquer facto ilícito.
V - A presunção de incumprimento contra a concessionária da auto-estrada – presunção de ilicitude e de culpa – só pode funcionar quando, na realidade, ocorra uma situação susceptível de integrar a omissão do seu dever de manter a auto-estrada em boas condições de segurança.
VI - Não sendo a acumulação de águas atribuível a um escoamento deficiente, por drenagem incompleta, nem resultando provado que a chuva tenha criado uma poça ou lençol de água abrangendo toda a faixa esquerda da via por onde o veículo acidentado seguia, é manifesta a impossibilidade de imputar à concessionária, por acção ou por omissão, a culpa pela formação da camada de água no ponto da auto-estrada onde o lesado entrou em hidroplanagem; e isto porque, além do mais, não estava nem está ao seu alcance, como se torna evidente, impedir que chova, não podendo razoavelmente exigir-se-lhe que, numa situação como a verificada, em que se provou que estava a chover com intensidade na altura do acidente, assegure o escoamento imediato e instantâneo das águas pluviais, por forma a manter a via permanentemente seca, sem nenhum vestígio de água, quaisquer que sejam as condições climatéricas existentes no momento.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Síntese dos termos essenciais da causa e do recurso

AA, representado pela sua mãe BB, e CC, representado pela sua mãe DD, intentaram uma acção ordinária contra Brisa – Auto Estradas de Portugal, SA, e a Cª de Seguros F…, SA, pedindo a condenação das rés no pagamento de 75.000,00 € a título de dano de perda da vida, 25.000,00 € a título de danos morais sofridos pelo autor AA, 25.000,00 € a título de danos morais sofridos pelo autor CC, 26.700,00 € a título de pensão de alimentos que o autor AA deixou de receber e 50.600,00 € a título de pensão de alimentos que o autor CC deixou de receber, quantias estas actualizadas de acordo com os índices de inflação do INE desde a data do acidente até à citação e acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal também contados desde a citação.

Alegaram em resumo que no dia 22/10/02, na auto estrada A1, ao km 42,5, ocorreu um acidente de viação em consequência do qual faleceu EE, pai dos autores AA e CC, ambos menores.

 A 1ª ré foi a construtora da A1 e é a concessionária do Estado para a sua construção, conservação e exploração, cabendo-lhe assegurar a circulação em condições de segurança e comodidade, tendo transferido por contrato de seguro efectuado com a 2ª ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros naquela sua qualidade de concessionária.

No dia do acidente, pelas 16.10 horas, EE circulava na A1 no sentido Norte/Sul, a uma velocidade de 90 a 100 km/hora, do lado direito da faixa de rodagem, conduzindo o veículo de matrícula XX-XX-NG.

Ao chegar ao km 42,5 da A1, local onde a via em que seguia tem três faixas de rodagem e descreve uma curva pouco acentuada para a esquerda ao longo de mais de 600 metros, tomou a faixa esquerda; e quando se encontrava a efectuar uma manobra de ultrapassagem perdeu o domínio da viatura, entrando em hidroplanagem. 

Tal facto ocorreu porque uma camada de água proveniente das chuvas se acumulou na via, criando uma poça ou lençol de água que abrangia toda a faixa de rodagem esquerda, motivo pelo qual o veículo conduzido por EE passou a circular sobre a mesma com os quatro rodados, deixando de ter contacto com o asfalto.

Saindo do lençol de água descontrolado, atravessou transversalmente a via, saiu da faixa asfaltada, galgou a berma direita e embateu no morro junto a essa berma, capotando várias vezes e imobilizando-se no rail de protecção, a cerca de 50 metros do local do primeiro embate.

Entretanto, EE foi projectado da viatura, ficando caído a cerca de 30 metros do local onde o carro se imobilizou, sofrendo em consequência do acidente as lesões descritas nos autos, que lhe determinaram a morte.

A culpa do acidente deve ser imputada à 1ª ré, por ter omitido as suas obrigações de manter a via em boas condições de segurança de circulação e desenvolver as necessárias intervenções para que se possa circular sem perigo de acidente.

A acumulação de águas pluviais na via derivou de deficiente escoamento e drenagem, sendo que a 1ª ré nada fez para a evitar, procedendo ao seu imediato escoamento, ou até ao encerramento da via, por forma a evitar o acidente.

Violou, assim, o dever de cuidado a que se encontra obrigada, de assegurar as boas condições de utilização e comodidade da circulação na A1, tornando-se civilmente responsável quer em termos de responsabilidade contratual quer de responsabilidade extra-contratual pelo pagamento aos autores da indemnização pedida.

Contestando, a 2ª ré defendeu que nenhuma responsabilidade na produção do sinistro é de assacar à 1ª, pois o piso da via encontrava-se em perfeitas condições de conservação e utilização e a sua configuração não provocava a formação de lençol de água, pelo que o acidente, se existiu, deveu-se à intensidade da chuva. A 1ª ré procede ao patrulhamento constante da A1, o que aconteceu no dia dos factos, não tendo sido detectada qualquer anomalia ou obstáculo na via. E o mesmo sucedeu com a Brigada de Trânsito da GNR, que não comunicou à ré Brisa qualquer lençol de água no local.

A ré Brisa  também contestou, alegando, em resumo e na parte que interessa, que o acidente ficou a dever-se, não a um inexistente lençol de água no pavimento da A1, mas sim ao excesso de velocidade imprimido pelo condutor ao veículo XX-XX-NG - velocidade não adaptada às condições climatéricas que se faziam sentir; e não tendo os autores demonstrado qualquer omissão culposa ou negligente por parte da ré que fosse causa adequada e eficiente do sinistro, não pode esta ser condenada ao pagamento de qualquer indemnização.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença, confirmada pela Relação, que julgou a acção improcedente, absolvendo as rés do pedido.

Ainda inconformados, os autores pedem revista, tendo formulado, em resumo, as seguintes conclusões úteis:

1ª) - A matéria alegada no artigo 46º da petição inicial é relevante para a descoberta da verdade já que, se provada, contribuiria decisivamente para o Tribunal formar a convicção de que o acidente dos autos se deveu à existência de um lençol de água na via e, nessa medida, decidir no sentido de a ré Brisa ter violado as suas obrigações de segurança e consequentemente ser culpada na produção do acidente;

2ª) - Tendo as instâncias indeferido a reclamação dos autores no sentido de incluir essa matéria na base instrutória, impediram os autores de provar factos decisivos para a sua pretensão e, assim, violando o disposto no artº 511º do CPC, de exercer o seu acesso ao direito, previsto no artº 20º da Constituição;

3ª) - Deve, consequentemente, o STJ ordenar a inclusão do alegado no artigo 46º da petição inicial na base instrutória, anulando todo o processado subsequente, nos termos do artº. 729º, nº 3, do CPC, dado estar-se em presença de matéria de direito - interpretação e aplicação das normas indicadas na conclusão anterior - para a qual dispõe de competência;

4ª) - Os quesitos 23º, 24º e 25º da base instrutória contêm matéria conclusiva e conceitos de direito pelo que devem considerar-se como não escritos, quer o teor desses quesitos, quer a resposta que lhes foi dada, nos termos conjugados dos artºs. 511º, 646º, nº4, e 664º do CPC, com todas as consequências legais, nomeadamente não podendo tal matéria constituir fundamento para a improcedência da acção;

5ª) - A ré Brisa é concessionária para a construção, conservação e exploração da auto-estrada A-l nos termos que se estabelecem no Decreto Lei nº 294/97, de 14/10,  e como tal está obrigada a assegurar, de modo continuado e permanente, a sua conservação, devendo proceder às adequadas e necessárias intervenções para que, salvo casos de força maior devidamente verificados, nela se possa circular sem perigo;

6ª) - Nos termos do artº 12º da Lei 24/07, de 18/7 - que constitui norma interpretativa, tendo, por isso, aplicação directa ao caso dos autos - em caso de acidente rodoviário em auto-estradas que tenham origem em alguma das situações ali previstas, nomeadamente existência de líquidos na via quando não resultantes de condições climatéricas anormais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança compete à concessionária, estabelecendo-se uma inversão do ónus de prova nas situações ali tipificadas;

7ª) - Nas auto-estradas com portagens a responsabilidade da concessionária baseia-se na responsabilidade civil contratual, pelo que contra a ré Brisa funciona a presunção de culpa a que alude o artº 799º do CC, cabendo-lhe a prova de que agiu sem culpa;

8ª) - Caso se opte pela responsabilidade civil extracontratual com aplicação do artº 493º do CC, como os recorrentes entendem, haverá também inversão do ónus da prova, cabendo igualmente à ré Brisa a prova de que o acidente não procedeu de culpa sua;

9ª) - Os recorrentes demonstraram nos autos, pela factualidade provada, que o acidente em questão ocorreu devido à existência de acumulação de água na via onde circulava EE, seu pai, sendo que foi em virtude de existir essa água que os rodados da viatura perderam aderência ao piso, levando a que o condutor perdesse o controlo da viatura e nessa sequência se desse o embate;

10ª) - Competia à Ré Brisa alegar e provar factos que demonstrassem não ter tido culpa na produção do acidente e ter cumprido todas as regras de manutenção, conservação e segurança da via que lhe são impostas, o que não logrou fazer, nomeadamente porque a matéria dos artigos 23º, 24º e 25º da B.I. deve ser considerada como não escrita;

11ª) - Não tendo dado provimento à apelação, revogando a sentença da 1ª instância, a Relação violou e/ou fez errada interpretação dos artigos 20º da CRP, 511º, 646º, nº4 e 664º do CPC, 342º, 344º nº1, 350º, 493º nº1 e 799º do CC, e artº 12º da Lei nº 24/2007 de 18/07.

A ré F… contra alegou, defendendo a manutenção do julgado.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

Considerando o objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, interessa destacar os seguintes factos, de entre todos os que a Relação deu como assentes (as letras entre parêntesis indicam as alíneas da especificação e os números as respostas aos quesitos):

1.No dia 22/10/02 ocorreu um acidente de viação na auto-estrada do Norte – A1, ao km 32,5, no Concelho e Comarca de Alenquer, no qual perdeu a vida EE (A).

2.No dia 22/10/02 EE, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Audi A6, matrícula XX-XX-NG, entrou na A1, circulando no sentido norte-sul (D).

3.Na altura do acidente chovia (E).

4.No local do acidente a via direita (sentido norte/sul) da A1 tem três faixas de rodagem com a largura de 10,5 metros e berma com 2,5 metros (F).

5.Cerca do km 32,5 da A1, sentido Norte/Sul, a via da direita tem três faixas de rodagem e descreve uma curva para a esquerda, atento o mesmo sentido, a qual é pouco acentuada (3º).

6.EE conduzia a referida viatura a uma velocidade não inferior a 90 km/hora (4º).

7.Cerca das 16, 10 horas e em plena curva referida em 5), EE iniciou uma manobra de ultrapassagem de um veículo que seguia na faixa central dessa via (6º).

8.Pelo que tomou a faixa esquerda da mesma via (7º).

9.Em virtude de existir na via uma camada de água proveniente das chuvas, os pneus do rodado do veículo XX-XX-NG deixaram de ter contacto directo com o asfalto, passando o mesmo a circular com os quatro rodados sobre a água existente na via, entrando em hidroplanagem (9.º, 10.º, 12.º e 13º).

10.Em consequência directa dos factos descritos em 9) o condutor do veículo XX-XX-NG perdeu o controlo sobre o mesmo, o qual saiu de cima da água descontrolado (8º e 14º).

11.Atravessou transversalmente a via (15.º).

12. Saiu da faixa asfaltada e galgou a berma direita da via, atento o sentido norte/sul (16.º).

13.Embatendo no morro sito junto dessa berma (17º).

14.Na sequência e em consequência desse embate o veículo capotou várias vezes ao longo da berma, colidindo em vários pontos do terreno nesse percurso (18.º).

15.E vindo a ficar imobilizado no “rail” de protecção desse lado, a cerca de 50 metros do local do primeiro embate (19.º).

16.No local do primeiro embate não existiam rails de protecção (20º).

17.Em consequência do acidente EE sofreu as seguintes lesões: escoriações múltiplas da região dorso-lombar, fractura exposta dos ossos do crânio com perda de massa encefálica na região biparietal, fractura da clavícula esquerda, dos ossos do braço e da perna direitos, rinorragia e otorragia bilateral, edema cerebral difuso, perda de massa encefálica e fígado congestionado, que foram causa da sua morte (27º).

18.No local onde se deu o acidente não era, à data do mesmo, visível qualquer vício, erro ou deficiência de construção da Auto-Estrada (23.º).

19.O piso da via aparentava boas condições de conservação e utilização (25.º).

20.Em toda a rede da A1 existem sistemas de drenagem de águas pluviais (46º).

21.A velocidade do escoamento das águas pluviais depende da quantidade de água a escoar (47º).

22.O pessoal da Assistência a Utentes da Ré Brisa que patrulham as auto-estradas concessionadas 24 horas por dia, no dia do acidente nada de anormal detectaram (24.º).

23.Ao entrar na A1, o EE muniu-se no título destinado a efectuar o pagamento da utilização dessa via (2.º).

24.A ré Brisa é concessionária para a construção, conservação e exploração da A1, nos termos do que se estabelece no Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro (B).

25.A ré Cª de Seguros F…-M…, SA, é seguradora da responsabilidade civil extracontratual da Ré Brisa - Auto Estradas de Portugal, SA, nos termos da apólice nº XX/XXXXX (C).

b) Matéria de Direito

1. Análise das conclusões 1ª a 4ª

No artº 46º da petição inicial os autores alegaram o seguinte:

“Aliás, no próprio dia do acidente (22/10/2002), e sensivelmente no mesmo local e também pelo mesmo motivo de acumulação da água na via, ocorreu pelo menos um outro acidente (e crêem os AA que terão ocorrido até mais acidentes), provocando o despiste de veículos e pelo menos a morte de duas pessoas”.

Os recorrentes insistem na tese de que este facto deveria ser incluído na base instrutória, dada a sua pertinência para a boa solução da causa, competindo, por isso, ao STJ ordenar o reenvio do processo à Relação, nos termos do artº 729º, nº 3, do CPC, a fim de propiciar a sua averiguação. Segundo este preceito, o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito. É, porém, evidente que não se verifica nenhuma destas situações - insuficiência dos factos coligidos, ou contradição entre eles - impeditiva da aplicação definitiva do direito que a lei, no nº 1 do artigo citado, reserva para o Supremo Tribunal. Acontece, até, que em bom rigor os autores não alegam explicitamente a ocorrência de nenhuma delas; limitam-se, no fundo, a dizer que, na perspectiva do artº 511º, nº 1, do CPC, norma que trata da selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, o alegado naquele artigo da petição seria pertinente. Só que as instâncias recusaram fundamentadamente tal pretensão, sendo certo que o acórdão recorrido decidiu de modo claro e inequívoco não se tratar de matéria “com relevância” para se incluir na base instrutória; e acrescentou, mesmo, que a demonstração do facto alegado no mencionado artigo da petição “...nada adiantava para o apuramento deste acidente, a não ser que ainda lá estivessem os carros e se tratasse de uma situação recorrente e sucessiva. Tal não foi alegado” (fls 687). Ora, este julgamento é definitivo e, como resulta das disposições conjugadas dos artºs 712º, nº 6, 722º, nº 2 e 729º, nºs 1 e 2, do CPC, não pode ser objecto de censura do Supremo Tribunal, a não ser no quadro muito apertado do nº 3 deste último preceito, que já vimos não ocorrer. Efectivamente, os factos coligidos nas instâncias e, designadamente, os que já destacámos (supra, nºs 1 a 25), relativos ao modo como o acidente ocorreu e às circunstâncias que o rodearam, são suficientes para resolver todas as questões jurídicas que se suscitam no presente recurso, centradas na definição da responsabilidade civil da recorrida Brisa, e não colidem entre si em termos de impossibilitar a respectiva solução.

Ainda com referência à matéria de facto apurada, os recorrentes defendem que as respostas aos quesitos 23º, 24º e 25º - factos 18), 19) e 22) - devem ser consideradas não escritas, nos termos do artº 646º, nº 4, do CPC, por conterem matéria conclusiva e de direito. Mas também neste ponto lhes falta razão. Na verdade, e conforme já tivemos ocasião de afirmar noutros acórdãos desta conferência (cfr. Ac. do STJ de 19/10/04 - Revª 2288/04), o artº 646°, n° 4, proíbe que o tribunal que julga a matéria de facto responda a questões de direito, ou tire conclusões nesse âmbito. Não é esse, contudo, o caso dos factos aqui em análise: pois se qualquer pessoa medianamente instruída e diligente, mesmo não sendo jurista, pode apreender o significado e discorrer em juízo sobre o conteúdo de termos como empréstimo, arrendamento, benfeitorias, cheque, letra, factura, etc, etc - tudo realidades que, sem qualquer dúvida, apresentam uma conotação jurídica impossível de negar e ignorar assim também, por idêntica senão por maioria de razão poderá fazê‑lo relativamente ao que seja a “visibilidade” dum “erro” ou “deficiência de construção” duma auto estrada e à verificação das suas “condições de conservação e utilização”, ou à ocorrência de qualquer acontecimento “anormal”.  Nisto, como em tudo aquilo que se relaciona com o problema, nunca definitivamente resolvido, da distinção entre matéria de facto e matéria de direito, há que agir com cautela e circunspecção. Não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicadas, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis pelos sentidos e compreensíveis pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia e um exacerbado rigorismo na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. Isto torna-se particularmente evidente no domínio da responsabilidade civil e, em particular, da responsabilidade civil derivada de acidentes de viação, em que é frequente - e inevitável - o recurso a uma linguagem “técnica” para retratar e descrever os factos sob julgamento.

2. Análise das conclusões 5ª a 11ª

Nestas conclusões coloca-se a questão de saber se deve ou não a ré Brisa, SA, enquanto concessionária da auto estrada onde o acidente ocorreu, ser civilmente responsabilizada pelos danos ocasionados.

Os acidentes nas auto estradas provocados, quer pelo aparecimento de animais, quer por situações iguais ou semelhantes à ocorrida neste processo (hidroplanagem, manchas de óleo, etc) e o respectivo julgamento pelos tribunais deu azo nos últimos anos a aceso debate, centrado essencialmente na definição do regime de responsabilidade civil a que a concessionária fica sujeita perante os utentes destas vias de comunicação, definição essa que por seu turno se relaciona com a clarificação da relação jurídica estabelecida entre a con­cessionária e o utente de cada vez que este, pagando ou não portagem, acede a um lanço de auto estrada e aí passa a circular.

Formaram-se várias correntes, todas com valiosa argumentação. Uns defenderam a natureza contratual da responsabilidade, com a consequente presunção de culpa a recair sobre a concessionária, e obrigando esta, por isso, a provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (artº 799º, nº 1, do CC); outros sustentaram a sua natureza extra-contratual, o que implica fazer recair sobre o lesado o ónus da prova da culpa do autor da lesão, nos termos gerais (artº 487º, nº 2, do mesmo diploma); e outros ainda defenderam que a Brisa responde por culpa presumida, conforme o disposto no artº 493º, nº 1, do CC, pois a auto estrada tem ser considerada uma coisa móvel sobre a qual detém um poder de facto, com o dever de a vigiar [1].

No momento presente, todavia, esta discussão deixou de ter interesse prático porque entretanto foi publicada a Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, que define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto estradas concessionadas e dispõe o seguinte no seu artº 12º:

“1. Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:

a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;

b) Atravessamento de animais;

c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.

[…]

3. São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:

a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;

b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;

c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra”.

Perante esta norma legal, não há agora nenhuma dúvida de que em caso de acidente de viação em auto estrada concessionada causado pela existência de líquidos na via - é essa, precisamente, a hipótese dos autos - cabe à concessionária o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, de modo a ilidir a presunção de culpa que sobre ela recai, e não ao lesado demonstrar que tais obrigações não foram observadas; e, importa sublinhá-lo, a referida presunção de culpa funciona também, ao cabo e ao resto, como presunção de ilicitude, uma vez que nas situações previstas no texto legal citado estão cometidos à concessionária deveres de agir para evitar danos a terceiros (os utentes da auto estrada), deveres esses cuja inobservância representa, em termos práticos, o cometimento (por acção ou por omissão) dum facto ilícito. É o que resulta ainda, nomeadamente, das Bases XXXIII, nº 1, XXXVI, nº 2 e XLIX, nº 1 do anexo ao DL 294/97, de 24/10 (diploma que estabelece as bases da concessão): “A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente” (Base XXXIII, nº 1); “A concessionária está obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto estradas, quer tenham sido por si construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem” (Base XXXVI, nº 2); e “ Serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão” (Base XLIX, nº 1).

Interessa ainda acrescentar que há também generalizado consenso, quer na doutrina, quer na jurisprudência, acerca da natureza interpretativa do artº 12º da Lei 24/2007, de 18/Julho, por isso que, justamente, veio adoptar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter acolhido sobre um ponto em que a regra de direito era controvertida; consequentemente, é aplicável ao caso sub judice - integra-se na lei interpretada, conforme dispõe o artº 13º do CC - apesar dos factos aqui em apreciação terem ocorrido antes da sua entrada em vigor, sem que isso implique violação do princípio geral da não retroactividade expresso artº 12º, nº 1, segundo o qual a lei só dispõe para o futuro.

Isto posto, e passando a analisar os factos apurados pelas instâncias à luz dos princípios e normas expostos, a conclusão a extrair só pode ser a seguinte: provou-se que a camada de água proveniente das chuvas existente na via motivou a perda do contacto dos pneus da viatura acidentada com o asfalto e a subsequente entrada em hidroplanagem, perda de controle, embate no morro junto à berma e capotamento sucessivo até à imobilização a cinquenta metros de distância (factos 9 a 15); não se provou, porém, que a formação da referida camada de água tenha tido origem no deficiente (e insuficiente) escoamento causado pelo mau funcionamento do sistema de drenagem instalado pela recorrida, associado (ou não) a algum vício ou erro de construção do pavimento não corrigido a tempo e horas. Ora isto é o bastante para em concreto afastar a imputação à recorrida do incumprimento de qualquer dever legalmente imposto dirigido à manutenção da auto-estrada em boas condições de segurança, ou seja, a prática de qualquer facto ilícito, o que em linha recta conduz à improcedência do pedido por também se não verificarem, logicamente, os pressupostos da responsabilidade civil consistentes no nexo causal e na culpa. Na verdade, a presunção de incumprimento contra a recorrida - presunção, como atrás se referiu, de ilicitude e de culpa - só pode funcionar quando na realidade ocorra uma situação susceptível de integrar a omissão do seu dever de manter a auto-estrada em boas condições de segurança (no caso presente, acumulação de águas atribuível a um escoamento deficiente, por drenagem incompleta). Só que não foi isto o que sucedeu: efectivamente, não se provou que a água da chuva tenha criado uma poça ou lençol de água abrangendo toda a faixa esquerda da via em que o falecido EE seguia, nem que a acumulação de águas pluviais na via tenha ficado a dever-se a deficiente escoamento e drenagem (respostas negativas aos quesitos 11º e  21º). Por outro lado, na fundamentação do despacho que decidiu a matéria de facto a julgadora, explicitando com clareza a convicção a que chegou, idêntica à da Relação, afirma a dado passo o seguinte: “Perante a prova assim produzida impõe-se considerar que efectivamente havia água na estrada que determinou que a viatura em que seguia EE entrasse em aquaplaning e consequente despiste, porém não se pode afirmar que essa água estivesse acumulada e formasse uma poça de água ou lençol de água, pois podia ser apenas água que, proveniente da chuva, estivesse a encaminhar-se para o escoamento de acordo com a inclinação existente” (fls 522). O que da conjugação de todos estes dados de facto, em suma, pode retirar-se é a manifesta impossibilidade de imputar à Brisa, por acção ou por omissão, a culpa pela formação da camada de água no ponto da auto-estrada onde o lesado entrou em hidroplanagem; e isto porque, além do exposto, não estava nem está ao seu alcance, como se torna evidente, impedir que chova - note-se, a propósito, que quer na primeira, quer na segunda instância considerou-se provado estar a chover com intensidade na altura do acidente (fls 523, último parágrafo e fls 687, segundo parágrafo), facto que, por si só, justificaria que a velocidade do veículo acidentado fosse “especialmente moderada”, nos termos dos artºs 24º, nº 1, e 25º, nº 1, h), do Código da Estrada - sendo ainda certo não poder razoavelmente exigir-se-lhe que assegure o escoamento imediato e instantâneo das águas pluviais, por forma a manter a via permanentemente seca, sem nenhum vestígio de água, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, quaisquer que sejam as condições climatéricas existentes no momento. Conforme justamente se observa no acórdão do STJ de 30/4/02 (Pº 02A635), “as estradas devem estar construídas por forma a que as águas pluviais se escoem rapidamente da via, mas isso não significa que  tal escoamento seja instantâneo à queda da chuva: há necessariamente um tempo mínimo entre a queda da chuva e esse escoamento. Nenhum construtor pode garantir que jamais se formem momentaneamente lençóis de água em quaisquer circunstâncias”.

III. Decisão

Com os fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista.

Custas pelos autores, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa, 15 de Novembro de 2011
Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira



[1] Cfr o Ac. Rel.  Coimbra de 5.11.02 (CJ 2002, V, 14); os Ac. STJ de 17/2/00, 20/5/03, 30/4/02, 3/3/05, 31/10/06, 5/6/08, 1/10/09 e 8/2/11 (com texto integral disponível em http://www.dgsi.pt); a anotação de Sinde Monteiro ao Ac. STJ de 12.11.96 na RLJ, Ano 131º, 41 e seguintes, e Ano 132º, 29 e segs; o estudo “Responsabilidade Civil das Concessionárias das Auto-Estradas”, de Armando Triunfante, em Direito e Justiça, vol. XV, tomo I, pág. 45 e sgs; de António Menezes Cordeiro, “Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação na Auto Estrada” (Almedina, 2004); e de J. Cardona Ferreira “Acidentes de Viação em Auto Estradas - Casos de Responsabilidade Civil Contratual?” (Coimbra Editora, 2004); de Manuel Carneiro da Frada, “Sobre a Responsabilidade da Brisa por Acidentes ocorridos em Auto Estradas” (Parecer publicado no Boletim da ASJP de Setembro de 2005, pág. 13 e sgs); e de Menezes Cordeiro, “Acidente de viação em Auto Estrada - Natureza da eventual responsabilidade da concessionária” (Anotação ao acórdão do STJ de 3/3/05, na ROA, ano 65, Junho de 2005, pág. 135 e sgs).