Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3795
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: REIVINDICAÇÃO
COMODATO
Nº do Documento: SJ200711060037951
Data do Acordão: 11/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Tendo o A. arquitectado a sua pretensão de reivindicação de uma loja na existência de um pretenso contrato de comodato celebrado com a R. e vindo-se a provar que, afinal, o contrato celebrado era um contrato atípico e oneroso, a acção não pode deixar de ser julgada improcedente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Relatório
AA intentou, no Tribunal Judicial de Silves, acção ordinária contra
BB Lª, pedindo a entrega da loja sita na Av......., Edifício....., loja .., fracção A, Armação de Pêra, e a condenação da R. no pagamento de uma indemnização de 1500 € mensais até à efectiva entrega.
Alegou em suma, que a ocupação por parte da R. da dita loja esteve legitimada por um comodato, mas que através de uma notificação judicial avulsa, fez cessar o contrato em causa, sendo que o valor locativo da mesma é da ordem dos 1.500 € mensais.
Contestou a R., arguindo, em primeiro lugar a excepção de ilegitimidade do A. por estar desacompanhado da sua ex-mulher, também ela comproprietária da loja em causa, para, logo de seguida, sob a capa de defesa por impugnação, ter defendido que a ocupação da loja está legitimada por um contrato de arrendamento, terminando por, em sede de reconvenção, pedir o reconhecimento da sua situação como arrendatária.
Foi requerida e admitida a intervenção da ex-mulher do A. e, findos os articulados, foi proferido o despacho saneador a julgar improcedente a arguida excepção de ilegitimidade do A. com base na conjugação do disposto nos arts. 1405º, nº 2 e 1404º, ambos do CC, facto que motivou a interposição de agravo por parte da R..
Por haver matéria controvertida com interesse para a decisão do pleito, o processo seguiu para julgamento, findo o qual foi proferida sentença a julgar improcedentes tanto a acção como a reconvenção.
Inconformados, apelaram as partes para o Tribunal da Relação de Évora: o A. a título principal, a R. subordinadamente.
Tanto um como outro recursos tiveram a mesma sorte na medida em que foram julgados improcedentes, prejudicando o resultado da apelação do A. o conhecimento do agravo interposto pela R., ut art. 710º do CPC.
O A., ainda irresignado, pede, ora, revista do aresto proferido na Relação de Évora a coberto do seguinte quadro conclusivo:
- Foi violado o art. 280º, nº 1, do CC dada a indeterminação ou indeterminabilidade do prazo do prazo do contrato, após os cinco anos.
- O A. que celebrou o contrato de comodato com a R. por tempo indeterminado, podendo reivindicar a restituição da coisa comodatada, logo que termine o prazo mínimo estabelecido, pelo que a decisão recorrida violou o disposto no art. 1311º do CC.
- Foram violados os arts. 2079º e 2088º do CC.
- A loja, objecto da presente acção, constitui um bem comum do ex-casal que, pelo A., foi comodatada à R. e ainda na pendência do casamento, foi legalmente exigida a sua restituição, quer para si, quer para a sua própria administração naquela qualidade.
- O contrato de comodato cessa com a notificação judicial avulsa.
- Pelo que a continuação do uso pela R. é ilegítimo, obrigando-se a pagar a peticionada indemnização de 1.500 € mensais a partir dessa data até à sua entrega.
A recorrida não apresentou contra-alegações.
IIAs instâncias fixaram o seguinte quadro factual:
- A loja sita na Av. ......., edifício ....., loja .., foi comprada pelo A. quando era casado, na comunhão de adquiridos, com a interveniente CC, tendo o facto sido registado em conformidade em 1.4.1998.
- Encontra-se inscrita no registo predial incidente sobre essa fracção autónoma “ hipoteca voluntária a favor do B.C.I. – Banco Comércio e Indústria, S.A. (...) – empréstimo – valor: capital: 9.000.000$00, juro anual para efeitos de registo 13%, acrescido de 4% na mora a título de cláusula penal; despesas: 360.000$00 - montante máximo do capital e acessórios : 13.950.000$00 ”.
- Por escrito de 25.5.1998, assinado pelo A. e por CC (esta em representação da R.) e intitulado “Contrato de Comodato”, o A. e a R. acordaram que o primeiro “promete ceder” à segunda, a loja, “na condição de Contrato de Comodato, por um período mínimo de cinco anos ”.
- A R. BB, Lª, tem como únicos sócios DD, com uma quota de 600.000$00, e CC, com uma quota de 400.000$00, cabendo a gerência a ambas as sócias e obrigando-se com a assinatura de uma delas.
- Por escrito datado de 3.3.1999, assinado por CC e por DD (esta em representação da R.) e intitulado “Contrato de Empréstimo”, a interveniente CC e a R. acordaram que a primeira “ empresta à segunda e esta aceita, a parte que detém na propriedade da referida loja, para que a segunda outorgante ali instale e explore um estabelecimento comercial de snack-bar ”.
- Consta deste escrito, sob as cláusulas 2ª e 3ª, respectivamente, que “o empréstimo ora contratado é feito por tempo indeterminado” e que, “ a sociedade segunda outorgante se propõe devolver à primeira outorgante o espaço e os direitos inerentes à propriedade desta logo que ela lhos peça devendo, para o efeito, dirigir-lhe carta registada com aviso de recepção com a antecedência não inferior a um ano”.
- Consta do mesmo escrito, sob a cláusula 7ª, que, a R., no período de vigência deste acordo e do acordo onde interveio o A., “obriga-se a pagar as despesas respeitantes ao consumo de energia eléctrica, bem como de água, telefone e gás e, ainda, as despesas inerentes ao condomínio e as prestações respeitantes à amortização do empréstimo que a primeira outorgante e o seu referido cônjuge contraíram junto do Banco Comercial e Industrial, S.A. – B.C.I. – para aquisição da loja em questão, a efectuar em prestações mensais, actualmente no valor de 113.900$00 (...) cada – as quais podem variar com a oscilação da respectiva taxa de juros – com início no próximo mês de Abril ”.
- A R. foi notificada em 19.2.2004, no âmbito de notificação judicial avulsa, para devolver ao A. a loja, no prazo de oito dias.
III Quid iuris?
O A. reivindicou a loja que era e, pelos vistos, ainda é propriedade também do seu ex-cônjuge com base na extinção de um contrato de comodato levada a cabo por via de notificação judicial avulsa.
Em sede de sentença, o Mº Juiz de Círculo de Portimão entendeu que a acção estava condenada ao fracasso pela singela razão de o A. reivindicar a loja apenas para si e não para o casal. A esta razão acrescentou uma outra, qual seja a de ter sido o casal (A. e sua ex-mulher) a ceder a loja pelo prazo mínimo de cinco anos, pelo que, findo este prazo, “o contrato (justamente por ser mínimo aquele período temporal) não finda”, sendo certo que, tendo sido estipulado o fim, o uso da mesma não findou.
Esta argumentação não foi convincente e daí o apelo do A. para a Relação de Évora.
Este Tribunal, partindo do princípio que a loja foi cedida numa 2ª fase à R. apenas formalmente pela ex-mulher do A., já que este tivera perfeito conhecimento do negócio, acabou por concluir que “face ao disposto no art. 406º do mesmo diploma legal (refere-se, como está bom de ver, ao Código Civil), não pode o A. pedir a entrega da loja com base contratual de que lançou mão, referindo que o contrato cessou com a notificação judicial avulsa enviado à ré em 19-2-2004”.
E, não reparando que o recorrente lhe colocou uma questão nova, ao pretender legitimar a sua posição na lide pela figura de cabeça-de-casal, permitiu-se dizer – mal, como se pode ver pela leitura atenta da certidão junta a fls. 7 – que não estava demonstrada documentalmente a aquisição da loja pois apenas estava feito o registo provisório da sua aquisição.
Ora bem.
Que dizer de tudo isto?
Assegurada a legitimidade do A. para reivindicar a loja ajuizada, como acertadamente o fez o Mº Juiz de Silves em sede de saneador (cfr. fls. 115 e 116), o que interessava saber de imediato era que tipo contrato é que tinha sido firmado pelas partes.
Teria sido o de comodato, como defendeu o A.-recorrente desde o início, como fundamentador da sua pretensão de ver restituída a loja em causa?
E isto partindo do princípio certo que, a seguir a um 1º contrato a legitimar a ocupação por parte da R., um outro surgiu celebrado entre esta e a ex-mulher do A., para vigorar por um período mínimo de cinco anos.
Vejamos.
De acordo com o art. 1129º do CC, “comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Ora, o que nos preocupa, em primeiro lugar, é saber se este contrato de cedência se pode catalogar como de comodato.
Vejamos.
O comodato é, pela própria definição legal, um contrato gratuito, não havendo, por conseguinte, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspectivo da prestação efectuada pelo comodante (as obrigações impostas ao comodatário pelo art. 1135º do CC. não representam, evidentemente, a contra-face da prestação do comodante).
Isto não significa que, neste tipo de contrato, seja de excluir que fique a cargo do comodatário o pagamento de certas despesas que seriam da responsabilidade do comodante: assim, por exemplo, certos encargos modais, como o pagamento de despesas de condomínio ou outras respeitantes ao pagamento de impostos devidos; mas já não outras despesas que contendem directamente com o uso da coisa (vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume II – 3ª edição -, pág. 660 e 661, Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Volume III – Contratos em Especial -, pág. 371).
O contrato só é verdadeiramente gratuito se beneficia uma das partes, “que em vista da vantagem alcançada não sofre qualquer sacrifício de que vá aproveitar o outro contraente” (assim, Inocêncio Galvão Telles, in Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, pág. 480).
Aplicando ao “nosso caso” estas breves mas importantes noções, forçados somos a conclui que o contrato firmado pelas partes não deixou de ser comodato pelo facto de ter ficado a cargo da R. o pagamento das despesas inerentes ao consumo de água, energia, telefone, gás e condomínio, mas o mesmo não se poderá dizer no que tange à obrigação que ficou a seu cargo de pagar as prestações respeitantes à amortização do empréstimo que o A. e sua ex-mulher contraíram junto de uma instituição de crédito com vista à aquisição da loja em causa, sendo que à data em que o mesmo foi outorgado a mensalidade era de 113.900$00 e que podiam variar com as oscilações da respectiva taxa de juro.
Esta obrigação a cargo da R. surge-nos, na economia do contrato, como uma contraprestação (onerosa) devida pelo uso da loja e, como assim, só invocando a sua nulidade ou ineficácia é que o A. como proprietário – rectius: comproprietário – poderia fazer valer a sua pretensão.
E, como assim, definitivamente terá de ser afastada a tese do comodato, tão cara às instâncias.
Como sublinha Concepción Rodrigues, “la convención dejará de ser comodato, para pasar a ser, quizás, un arrendamiento” (in Derecho de Contratos, pág. 369).
Esta ideia é também sublinhada por Pires de Lima e Antunes Varela: “se em troca do uso da coisa, o contraente, que a recebe, promete alguma prestação, o contrato deixa de ser comodato e passa a ser de arrendamento, de aluguer ou um contrato atípico, conforme os casos” (in obra e local citados).
Também Menezes Leitão faz notar que “a gratuitidade constitui aliás uma característica essencial do comodato, pelo que, se for estipulada qualquer contraprestação como contrapartida do uso da coisa, o contrato passará a ser qualificado como de locação se essa contraprestação tiver natureza pecuniária ou como um contrato atípico nas restantes situações” (apud obra e local citados).

No fundo o que as partes firmaram foi um contrato atípico de duração indeterminada, cujo cumprimento passaria, numa primeira fase, pelo pagamento das prestações mensais devidas pelos cedentes a uma instituição de crédito e até à sua amortização do empréstimo, como contraprestação da cedência (e até este ponto poder-se-ia dizer que se tratava de um puro contrato de locação – cfr. art. 1022º do CC: “a locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição) e, numa segunda fase, de duração mínima de cinco anos, ultimado o pagamento das dívidas referidas, é que passaria a gratuito.
É claro que as partes titularam este contrato com nome de empréstimo e referiram mesmo (cfr. cláusula 5ª) que “este empréstimo vem na sequência do empréstimo anteriormente concedido à Sociedade segundo outorgante, pelo cônjuge da primeira outorgante, AA, através do Contrato de Comodato …”, mas, como é sabido, a qualificação de um qualquer contrato não está dependente do nomen pelo qual as partes o baptizaram, mas sim da regulamentação que as mesmas se comprometeram a honrar (“o contrato é qualificado através do reconhecimento nele de uma qualidade que é a qualidade de corresponder a este ou àquele tipo, a este ou àquele modelo” e “traz consigo, assim, sempre um processo de relacionação entre a regulação contratual subjectiva estipulada e o ordenamento legal objectivo onde o catálogo dos tipos contratuais legais se contém, reconhece Pedro Pais de Vasconcelos, in Contratos Atípicos, pág. 164 e 165).
Como assim, não é por as partes terem catalogado o contrato como sendo de empréstimo ou comodato que definitivamente o intérprete perde a sua liberdade de procura da vontade das partes objectivamente consagrada.
No caso presente, seguramente que o contrato firmado e que legitimou a ocupação da sociedade R. não é um contrato de comodato.
A esta luz arquitectou o A. toda a sua tese no sentido de obter a restituição da loja, mas, como se viu, partiu de pressupostos falsos e a consequência não pode ser outra que não seja, por esta razão e só por esta, a improcedência da sua pretensão.
Era perante esta realidade que as instâncias deveriam ter decidido, logo em sede de saneador, não permitindo o prolongamento da acção até este momento.
É certo que a R. quis fazer o seu ponto de vista, defendendo na reconvenção a existência de um contrato de arrendamento firmado com uma renda de 500 € mensais, mas, nem um único quesito foi formulado a este respeito. O pedido, apesar de admitido de uma forma implícita, foi julgado improcedente: prova evidente da justeza do assinalado.
Esta conclusão, a que necessariamente chegamos, afasta-nos da apreciação de tudo o que vem invocado pelo recorrente na justa medida em que não ficou provada a causa pela qual ele pediu a restituição da coisa.
A decisão impugnada acaba por merecer a nossa concordância, muito embora por razões totalmente diferentes das que foram lá avançadas.
IVDecisão
Em conformidade, nega-se a revista e condena-se o recorrente no pagamento das respectivas custas.
Lisboa, 06 de Novembro de 2007

Urbano Dias (Relator)
Mário Cruz
Ernesto Calejo