Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
| Relator: | FERNANDO BENTO | ||
| Descritores: | PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MATÉRIA DE FACTO PROVA PERICIAL OBJECTO PERDA DE VEÍCULO REPARAÇÃO DO DANO VALOR REAL PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO LUCRO CESSANTE DANO EMERGENTE DIREITO À INDEMNIZAÇÃO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO EQUIDADE BOA FÉ RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL MATÉRIA DE DIREITO RECURSO DE REVISTA | ||
| Data do Acordão: | 12/11/2012 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS | ||
| Doutrina: | - Adriano de Cupis, El daño, p. 551. - Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, 1997, pp.659 e segs., 669. - Esther Monterroso Casado, Responsabilidad Civil por Accidentes de Circulación, Aranzadi, 2001, p. 166 e nota 60. - Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, p. 264 e segs.; Direito das Obrigações, Sumários das lições ao 3º ano jurídico de 1971-1972, pp. 29-30. | ||
| Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 566.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 722.º, N.º2. | ||
| Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 22-05-1979, BMJ 287, PP.289-290; -DE 12-02-2009. | ||
| Sumário : | I - O aditamento de factos que constam das respostas ao objecto de uma perícia – efectuada em 1.ª instância, e na qual foram ponderados documentos, cuja falta aí não foi arguida –, e devidamente notificada às partes, não pode ser sindicado pelo STJ, por não integrar as hipóteses, de excepção, a que alude o art. 722.º, n.º 2 do CPC. II - A inutilização e perda total de veículo confere ao seu proprietário não só o direito à sua substituição, ou indemnização pelo respectivo valor, como também a ser indemnizado pelo uso de que foi privado no período compreendido desde a data do acidente até à data de entrega do veículo de substituição ou pagamento daquela indemnização (privação do uso). III - A privação do uso – imobilização de viatura afecta à exploração comercial por facto culposo de terceiro (dano de imobilização) – pode configurar (i) um dano emergente – quando o transportador tem de suportar gastos adicionais de substituição, como o seja, um aluguer – ou (ii) um lucro cessante – quando importa para o transportador uma carência de benefícios por falta de disponibilidade de viatura para a sua substituição. IV - O dano da privação do uso é um dano evolutivo (aumenta até à entrega do veículo reparado ou de substituição) que deve ser equacionado à luz de uma relação obrigacional complexa, fundada em responsabilidade civil extracontratual, a qual abrange, além do dever principal de prestação (reconstituição natural) deveres secundários de prestação: (i) sucedâneos (v.g. obrigação de indemnização), (ii) coexistentes (v.g. indemnização moratória), (iii) acessórios e, ainda (iv) laterais e de protecção da obrigação. V - Os deveres laterais são deveres de comportamento ligados ao crédito indemnizatório, impostos pela boa fé, como o seja a existência de um dever, a cargo do lesado, de atenuar e mitigar ou, pelo menos, não agravar as consequências do dano, deixando prolongar o tempo de imobilização para depois reclamar a indemnização correspondente, sobretudo nos casos em que a responsabilidade civil permanece controvertida. VI - Na falta de elementos que permitam quantificar o dano da privação do uso a sua fixação deve efectuar-se segundo um juízo de equidade no qual sejam ponderados todos os elementos de facto para apurar esse dano, como o sejam, o grau de violação dos deveres que integram a relação obrigacional, a facturação ou lucro médio mensal conseguido com o veículo, o tempo média da sua utilização e os serviços que o lesado deixou de efectuar, bem como o aproveitamento do motorista em outras viaturas. VII - A fixação dos danos segundo juízos de equidade constitui matéria de direito, sujeita à censura do STJ, em recurso de revista. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça RELATÓRIO No dia 08-10-2004, pelas 15,30 horas na EN 111, ao km 31,400, localidade de São Silvestre, concelho de Coimbra, ocorreu um acidente consistente na queda de uma ramada da parte de cima de uma árvore (freixo) plantada na berma da estrada sobre a parte da frente do tractor de mercadorias 00-00-00, pertencente a Transportes AA Lda e na altura conduzido por BB quando por ela passava. Desse acidente resultaram, entre outros danos, a perda total do veículo. Com vista a obterem a condenação de Estradas de Portugal EP – a quem imputavam a responsabilidade civil - a indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais, intentaram aquela sociedade e o referido motorista acção de processo ordinário, tendo sido em todas as instâncias (1ª instância, Relação e STJ) declarada a responsabilidade do Réu. E, concretamente quanto ao dano da privação do uso do veículo, o STJ condenou o Réu na respectiva indemnização mas relegando o apuramento do respectivo montante para liquidação em posterior incidente de liquidação. E foi para isso que a Sociedade Transportes AA Lda deduziu incidente de liquidação dos danos decorrentes da privação do uso da viatura, liquidando-os em € 254.433,50, acrescida mensalmente da quantia de € 4.634,49 vincenda até integral pagamento, bem como juros vincendos quer relativamente às mensalidades vencidas, quer às vincendas. Para tanto, alegou que: - facturou nos nove meses anteriores ao acidente (de Janeiro a Setembro de 2004) a quantia total de € 74.458,00, com uma facturação média mensal, pois, de € 8.273,11; - para cálculo do seu lucro líquido mensal deve deduzir-se despesas mensais totais de € 1.921,61, para além do valor médio do gasóleo gasto por mês, que ascende a € 1.717,01, o que perfaz uma despesa média mensal global de € 3.638,62; - assim se obtendo um lucro líquido médio mensal de € 4.634,49; - tendo decorrido 54 meses desde a data do acidente até 08/04/2009, o prejuízo da Requerente pela paralisação do veículo até esta última data ascende a € 250.262,46, a que, para além de juros moratórios, vencidos e vincendos, no montante de € 4.171,04 até à instauração desde incidente, acresce mensalmente a quantia de € 4.634,49 vincenda até integral pagamento. O requerido deduziu oposição. Prosseguindo a tramitação do incidente, teve lugar uma perícia colegial, e após julgamento foi proferida sentença que “julgou o incidente de liquidação parcialmente procedente, por em parte provado, condenando a requerida a pagar à A./Requerente, a título de indemnização pela paralisação do veículo de matrícula “00-00-00” em causa, a quantia total de € 54.500,00 (cinquenta e quatro mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal aplicável às dívidas de natureza civil, desde a data da citação para os termos do pedido incidental desde autos e até integral pagamento”. Inconformada, recorreu a Requerente per saltum para o STJ, mas o Ex-mo Conselheiro Relator, entendendo que não se verificavam os respectivos requisitos – a questão suscitada não era apenas de direito - ordenou a baixa do processo à Relação. Apreciando o recurso, a Relação de Coimbra confirmou a decisão. Continuando inconformada, recorre agora de revista para este STJ, pugnando na sua alegação pela revogação do acórdão recorrido e pela liquidação dos danos no valor peticionado inicialmente (se bem que agora limitado até à data do pagamento da indemnização correspondente à perda total do veículo). EP - Estradas de Portugal SA contra-alegou em defesa da subsistência do julgado. Remetido o processo ao STJ, após o exame preliminar, foram colhidos os vistos. Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.
FUNDAMENTAÇÃO O objecto do recurso: O objecto do recurso define-se pelas conclusões propostas pelo recorrente; daí a conveniência de as recordar:
MATÉRIA DE FACTO A matéria de facto provada é a seguinte: - Por decisão transitada em julgado foi a Requerida condenada a pagar à Requerente os prejuízos decorrentes da paralisação da viatura “00-00-00”. – Reportando exclusivamente à viatura “00-00-00”, a Requerente facturou nos nove meses anteriores ao acidente – entre Janeiro/04 e Setembro/04 – a quantia total de € 74.458,00, sendo que este montante se reporta à viatura tractor “00-00-00” e aos reboques “000000”, “0000”, “00000” e “00000”, como consta do quadro apresentado a fls. 130 destes autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e sendo ainda que a percentagem correspondente exclusivamente ao dito tractor é de 97% e, bem assim, que, por outro lado, os valores dos resultados da A., de acordo com o Modelo 22 e a Declaração Anual, antes de impostos, para os anos de 2002 a 2006, são os que constam do primeiro quadro de fls. 136, cujo teor aqui se dá por reproduzido – resposta ao quesito 1.º. – Não existindo motorista afecto à viatura “00-00-00”, a contabilidade da A. traduz encargos com motorista no valor (médio mensal) de 1.914,72 euros, de acordo com a média dos custos com o motorista de Janeiro a Abril de 2004 (os meses mais representativos face aos valores pagos de ajudas de custo no estrangeiro); atendendo-se, porém, ao conjunto dos meses de Janeiro a Setembro de 2004, a média mensal é de 1.500,61 euros – resposta ao quesito 2.º. – E paga mensalmente € 349,73 pelo seguro da viatura – resposta ao quesito 4.º. – Suportava despesas diversas com a viatura “00-00-00” (óleo, pneus, peças, manutenção e oficinas) no valor médio mensal de 245,40 euros – resposta ao quesito 5.º. – A viatura “00-00-00” gastava uma média de 30,88 litros aos 100 Kms. – resposta ao quesito 6.º. – As despesas mensais com gasóleo da viatura “00-00-00” ascendiam ao valor médio de 2.153,38 euros – resposta ao quesito 7.º. - Nos anos de 2002 a 2006 a recorrente apresentou, para efeitos fiscais, resultados de exploração que ascenderam, em média anual, a cerca de 802 euros. - No mesmo período temporal a recorrente pagou de IRC cerca de 477 euros por ano.
DIREITO Escreveu-se no acórdão do STJ de 12-02-2009 que constitui título da presente liquidação: Por outras palavras, o STJ, depois de referir que a paralisação e consequente impossibilidade de utilização da viatura sinistrada causou danos patrimoniais à Autora, reconheceu a falta de elementos para quantificar esses danos e fixar o valor da indemnização correspondente. E, exemplificando, referiu alguns dos elementos de facto relevantes para apurar esse dano, quais sejam, a facturação ou o lucro mensal médio conseguido com o veículo, o tempo médio da respectiva utilização e os serviços (internacional ou outro) que deixou de efectuar bem como o aproveitamento do respectivo motorista em outras viaturas. E porque, na falta desses elementos, nem mesmo com recurso à equidade era possível fixar a indemnização pela paralisação, é que o apuramento desta foi relegado para liquidação posterior. Nesta, a 1ª instância, recorrendo à equidade, à míngua de factos provados atinentes à quantificação do dano da paralisação, fixou em € 54.500,00 euros a indemnização total devida por tal paralisação, acrescida de juros e mora à taxa supletiva legal, justificando-se nestes termos: “Por isso, em equidade, vistos todos os elementos a ponderar, como supra exposto, designadamente o tempo de privação do uso/paralisação da viatura, por um lado, e a pouca credibilidade do valor apurado de lucro resultante do volume de facturação da Requerente, tal como a falibilidade da sua generalização a um período longo de quatro anos e meio, mormente atendendo às mutações ocorridas nas condições de exercício / rentabilidade da actividade em causa, para além de não estar garantida a utilização permanente do veículo por tão alargado período temporal, e a circunstância de a Requerente, a quem cabe o ónus da alegação e prova, não ter querido carrear para os autos outros factos caracterizadores/delimitantes, em concreto, do dano sofrido, afigura-se-nos dever, razoavelmente, considerar um lucro mensal perdido de não mais de € 1.000,00. Podendo dizer-se que este valor também é falível ou aleatório, cabe referir que é o valor que este Tribunal pode encontrar em termos de equidade e razoabilidade ante as circunstâncias do caso. Assim, obtém-se um valor indemnizatório total de € 54.500,00 (correspondente a € 1.000,00 x 54 meses e meio)”. Melhor sorte não teve a Autora na Relação. Com efeito, esta, depois de ponderar a discrepância entre os alegados lucros cessantes e os resultados económicos declarados pela Autora para efeitos fiscais, considerou que a indemnização por privação de uso de um veículo se prova com base em elementos contabilísticos, mas tal critério não vale para períodos de tempo longos desacompanhado de outros elementos, como sucede no caso em apreço, em que o tempo de privação de isso é superior a quatro anos. Escreveu-se em tal acórdão, a propósito do valor fixado na 1ª instância e depois de referir a margem de discricionariedade que deve ser consentida ao tribunal na apreciação prudencial e casuística das circunstâncias do caso e dos elementos objectivos deste na avaliação deste tipo de danos: “Porque a previsão assenta sobre danos verificáveis no futuro, relevam sobremaneira os critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que, no concreto, poderá acontecer segundo o curso normal das coisas. Releva, assim, o entendimento do tribunal, tendo em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida. Ora, tudo visto e ponderado, conclui-se que o montante atingido, está integrado dentro de parâmetros admissíveis, necessariamente delimitados por todos os factos apurados, e, por recurso ao juízo équo, com consideração de todos estes circunstancialismos e variáveis vivenciais prognósticamente perspectivados, se encontra sensata e prudenteme1te concretizado”. Na presente revista, depois de questionar a matéria de facto acrescentada pela Relação, a recorrente continua a sustentar que a indemnização pela privação de uso deve ser fixada a partir da facturação realizada anteriormente ao evento lesivo. Nos anos de 2002 a 2006 a recorrente apresentou, para efeitos fiscais resultados de exploração que ascenderam, à média anual de cerca de 802 euros. No mesmo período temporal a recorrente pagou de IRC cerca de 477 euros por ano. “…o cálculo de danos futuros é operação difícil, sendo extremamente delicado fixar com justeza a correspondente indemnização. Isto porque obriga a ter em conta a situação hipotética em que o lesado estaria se não fosse a lesão, o que implica uma previsão pouco segura sobre danos verificáveis no futuro. A ideia geral que importa reter é que, se por um lado, o montante indemnizatório relativo a danos futuros deve ser fixado por forma a que não seja de tal modo escasso que torne a reparação meramente simbólica; por outro lado, ele não deve ser tão elevado que possa encarar-se como um autêntico enriquecimento sem causa do lesado”. A lei portuguesa, porém, não vai tão longe na imposição concreta de um dever com tal extensão; o que, todavia, não significa que ao Direito seja indiferente a atitude ética do lesado que, perante um dano em evolução gradativa e progressiva, não adopta medidas para deter o seu crescimento. Porque, excluindo os casos em que uma atitude activa do lesado causa um novo dano ou aumenta o existente, perante um dano evolutivo, duas são as atitudes possíveis da vítima: non facere, isto é, total passividade e inércia, como mero espectador (a chamada “gestão inerte do dano evolutivo”) ou facere, visando inverter o sentido evolutivo do dano, seja adoptando medidas para o eliminar ou reduzir, seja para conter o seu agravamento. Caberá à doutrina qualificar estas possíveis atitudes do lesado, ao intervir no processo causal do dano, como dever jurídico ou ónus jurídico, mas a verdade é que dificilmente qualquer destas possíveis soluções encontrará abrigo na ordem jurídica portuguesa a propósito do dano evolutivo (cfr. Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, 1997, p.659 e segs). Mais curial e adequada se nos afigura a ponderação do problema a partir do conceito da chamada relação obrigacional complexa fundada em responsabilidade civil extracontratual, pois que, muito embora tal noção se manifeste com maior nitidez no domínio contratual (podendo aí ser chamada relação contratual), “também …na responsabilidade civil… ela se autonomiza do dever singular de prestação, ou seja, da obrigação singular” (cfr. Direito das Obrigações, Sumários das lições do Prof. Mota Pinto ao 3º ano jurídico de 1971-1972, p. 29-30). Por conseguinte, a relação entre os sujeitos da responsabilidade civil extracontratual (lesante e lesado) não se esgota apenas numa relação de prestação principal peticionada (a de efectuar o pagamento da indemnização, esta mesma, aliás, já sucedâneo de outra prestação – de reconstituição natural); para além do vínculo principal “há toda uma série de vínculos singulares de diferente natureza (deveres acessórios do dever principal, deveres laterais de adopção de outros comportamentos, direitos potestativos, sujeições, expectativas, ónus, etc, todos colocados ao serviço do fim visado com a prestação principal e que resultam directamente de norma legal expressa, da cláusula geral de boa fé,… etc” (cfr. Mota Pinto, ob loc cit.). O conceito de relação obrigacional complexa abrange, portanto, deveres principais de prestação (e correlativos direitos), também deveres secundários de prestação (autónomos da prestação principal, seja sucedâneos do dever primário de prestação principal – v.g., obrigação de indemnização – seja coexistentes com a obrigação principal – v.g. indemnização moratória), deveres secundários, acessórios da prestação principal (que visam auxiliar e estão ao serviço do cumprimento desta) e ainda deveres laterais e de protecção, estes funcionalmente dirigidos a auxiliar a realização e satisfação plena dos interesses globais da relação obrigacional complexa incluindo a prevenção e não verificação de danos concomitantes. Estes deveres laterais concretizam-se em deveres de consideração, cuidado e protecção da pessoa e do património da outra parte, cooperação, de aviso e de informação, de lealdade e fundamentam-se na cláusula geral de boa fé; trata-se de deveres de conduta e de comportamento, de confiança, de protecção cuja função é auxilia a realização do fim da obrigação (in casu, da de indemnização), matriz da sua determinação e impedir resultados secundários indesejados; estes deveres laterais não tendem a realizar a prestação principal mas a tutelar outros interesses da contraparte, abrangidos no fim visado com a obrigação; trata-se, em suma, de deveres de comportamento ligados ao crédito indemnizatório, impostos pela boa fé, em harmonia com o fim da indemnização e que podem ser violadas, quer pelo credor, quer pelo devedor (cfr. Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, p. 264 e segs). Ora, a atitude passiva do lesado que, perante um dano em evolução expansiva e cuja medida indemnizatória espera ser contabilizada em função do tempo (como é o tempo de privação do uso do veículo) permanece inerte aguardando o termo final da espera para depois reclamar a indemnização calculada naqueles sobreditos termos (a chamada gestão inerte do dano), não pode deixar de ser contrária à razoabilidade e à boa fé, sobretudo nos casos em que a responsabilidade civil permanecia controvertida. Por maioria de razão, sendo o lesado uma empresa transportadora e estando o veículo sinistrado afecto à exploração comercial em que a adopção de medidas para a redução do dano evidencia sensatez e razoabilidade, como é o caso da substituição do veículo, “caso dele careça com urgência e não seja preciso dispender muito dinheiro” ou do aluguer de veículo de substituição, “se o desembolso for tolerável, tendo em conta as perdas imediatas da empresa”. Se é verdade que a reparação ou substituição da viatura danificada compete ao lesante, não é menos certo que, ainda que o lesado desencadeie nos tribunais a acção com vista ao reconhecimento do respectivo direito a indemnização e sendo este controvertido pelo demandado, não está ele desonerado da obrigação de, até no seu próprio interesse, providenciar no sentido de conter a evolução crescente e negativa do dano da privação do uso, seguramente enquanto a responsabilidade civil não é definida; os deveres de lealdade e de consideração pelo património da outra parte, assim susceptível de ser atingido com uma indemnização calculada, conforme pedido, em função exclusiva do tempo (tipo taxímetro) se impelem o lesado a suscitar judicialmente a definição da responsabilidade, também o devem impelir a adoptar aquele tipo de providências, substituindo (se dela carece) a viatura sinistrada (através de aquisição ou de aluguer), se bem que sem prejuízo de reclamar do lesante o que, com isso suportou e não suportaria se não ocorressse a lesão… Escreve Brandão Proença: “…se numa correcta ponderação de interesses, a atitude individual do lesado, que não se mostre objectivamente justificada ou cuja justificação subjectiva pertença ao puro foro das convicções ideológicas, não pode levar ao agravamento da responsabilidade do lesante, também a deficiente “gestão do dano sofrido, a indiferença do lesado perante o seu próprio prejuízo, a omissão em conter, sem grandes custos, as sequelas danosas de uma lesão, a que certamente não se mostraria indiferente no caso de ser causada solitariamente, e a irrazoabilidade da sua passividade, contrária ao padrão de uma normalidade interventora (sobretudo na zona dos danos patrimoniais), permitem (na maioria dos casos) considerar «culposa» a inércia do lesado e defender uma auto-responsabilidade que, sendo actuada pela ponderação das duas condutas e pela consequente repartição do dano global, só logrará atingir o seu significado se o lesado vier a receber uma indemnização nunca superior àquela que receberia caso tivesse contido o dano” (cfr. ob cit., p. 669). E é aqui que entra em cena a equidade, chamada para definir o quantum dos danos decorrentes da privação do uso do veículo e não para proporcionar ao lesado um benefício à custa do lesante (atribuindo-lhe uma indemnização excessiva relativamente ao valor real do bem cuja indisponibilidade material o determinou) nem para beneficiar o lesante à custa do lesado (onerando aquele com uma indemnização inferior ao valor real do dano). ACÓRDÃO Pelo exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido.Custas pela recorrente. Os Conselheiros Fernando Bento (Relator) João Trindade Tavares de Paiva |