Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1808
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
Nº do Documento: SJ200307080018081
Data do Acordão: 07/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7144/02
Data: 11/21/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Por apenso à execução movida pela A contra B, foram reclamados os seguintes créditos:
- O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A, alegando um crédito garantido por hipoteca sobre a fracção penhorada na execução, crédito esse resultante de quatro livranças no valor global de 110.370.468$00, vencidas em 16.6.96 (acrescido de juros à taxa de 15% no valor de 20.143.686$00), um crédito da conta bancária nº 011/18607/001 que, em 13.12.94, apresentava um saldo devedor de 310.105$00 (acrescido de juros à referida taxa no valor de. 103.949$00) e a verba convencionada na escritura de hipoteca a título de despesas judiciais no valor de 2.000.000$00, tudo no montante global de 130.942.057$00, encontrando-se a hipoteca registada na Conservatória do Registo Predial competente sob a Ap. 06/220692;
- Quinta Rita-Sociedade Imobiliária, Ldº, alegando um crédito de 128.865.000$00, e juros vincendos, gozando do direito de retenção sobre a fracção penhorada, reconhecido por sentença transitada em julgado no Proc. nº 686/95, 9º Juízo, 1ª Secção da Comarca de Lisboa, cuja certidão constitui fls. 35 a 38;
- A Fazenda Nacional, reclamando a quantia de 181.140$00 e juros de mora, proveniente de contribuição autárquica inscrita para cobrança em 1995 e 1996.; - O Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, invocando um crédito de 1.178.879$00 emergente das contribuições não pagas pela executada e devidas aos seus trabalhadores nos termos dos artºs 4º e 5º do DL 103/80 de 9 de Maio, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, sendo os vencidos até Março de 1997 no montante de 526.259$00.
A exequente veio impugnar o crédito reclamado pela Quinta Rita, Ldª, articulando, resumidamente, que o contrato promessa que fundamentou a sentença que reconheceu o direito de retenção sobre a fracção penhorada foi simulado, pretendendo a reclamante e a executada, em conluio, criar a aparência de um contrato promessa e forjar um pretenso direito de retenção destinado a comprometer os restantes credores da executada.
Alegou ainda a exequente a nulidade do contrato promessa por falta de forma, a ineficácia de tal contrato em relação a ela, nos termos do artº 610º e 612º do Código Civil, e a inconstitucionalidade dos DL 236/80, de 17/7, e 379/86, de 11/11, que concederam o direito de retenção ao promitente comprador de prédio urbano no caso de haver tradição da coisa.
Respondeu a Quinta Rita, Ldª por impugnação e defendendo a impossibilidade de o tribunal conhecer das questões colocadas pela impugnante do seu crédito atento o disposto nos artºs 813º e 866º, nº 4 do CPC.
Apreciando a referida impugnação do crédito da Quinta Rita, Ldª, ponderou a Mmº Juíza titular do processo:
«No que concerne ao crédito da Quinta Rita, estando o mesmo reconhecido por sentença, bem como o direito de retenção sobre a fracção penhorada na execução, a impugnação do mesmo só pode basear-se nalgum dos fundamentos mencionados no art. 813º do Código de Processo Civil. Ora, os fundamentos invocados pela exequente não se reconduzem a qualquer dos previstos no já referido art. 813º, pelo que a impugnação deduzida deve ser julgada improcedente e o crédito da reclamante reconhecido.
Sem prejuízo do já dito, e quanto à arguida inconstitucionalidade das normas que reconheceram ao promitente comprador o direito de retenção, não se vislumbra qualquer violação do princípio da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário já que o crédito da exequente é de constituição posterior à entrada em vigor daquelas normas, podendo e devendo a exequente acautelar os seus interesses por outras vias. Por outro lado, a matéria em causa não se insere na reserva, absoluta ou relativa, de competência legislativa da Assembleia da República (cfr. arts. 24º a 57º e 164º e 165º a contrario da Constituição da República Portuguesa), inexistindo, assim, a alegada inconstitucionalidade orgânica».
Considerando estarem assim reunidos todos os elementos necessários, proferiu a Mmº Juíza titular do processo sentença de graduação de créditos – artº 868º, nº 2 do CPC, decidindo:
Depois de precipuamente atendida as custas, são os créditos graduados pela seguinte ordem:
1º Crédito da Fazenda Nacional por Contribuição Autárquica (privilégio imobiliário);
2º Crédito do Centro Regional da Segurança Social (privilégio imobiliário);
3º Crédito da reclamante Quinta Rita (direito de retenção);
4º Crédito da exequente Caixa Económica Montepio Geral (hipoteca);
5º Crédito do reclamante BESCL (hipoteca).
Inconformada com o sentenciado, apelou a exequente A para a Relação de Lisboa que revogou a sentença recorrida, para que seja dado seguimento e a seu tempo seja proferida decisão relativamente à impugnação do crédito reclamado, seguindo os termos do artº 868º, nºs 1 e 2 do CPC.
É desse acórdão que vem a presente revista interposta pela Quinta Rita, Sociedade Imobiliária, Ldª, que fechou a minuta recursória com as seguintes
Conclusões:
1ª- A sentença que reconhece o direito de retenção sobre o bem hipotecado não causa prejuízo jurídico à Exequente credora hipotecária;
2ª- Não afecta a existência do seu direito ou a sua consistência jurídica, não obstante lhe causar prejuízo de facto ou económico;
3ª- A Sentença que reconhece à Reclamante o direito de retenção é oponível ao credor hipotecário não interveniente na acção, no caso a Exequente que é de qualificar como terceiro juridicamente indiferente e não como terceiro juridicamente interessado;
4ª- O crédito da Reclamante e ora Recorrente goza do direito de retenção e é graduado com preferência sobre o crédito garantido por hipoteca, nos termos do art. 759º, nº 2 do CC;
5ª- O Direito de Retenção opera "ope legis";
6ª- O Recorrido Banco poderia e deveria lançar mão do recurso de oposição de terceiro para "destruir" o direito consagrado na Sentença proferida pelo 9º Juízo Cível de Lisboa, face à factualidade que alegou, nomeadamente a invocada simulação;
7ª- O Acórdão recorrido afronta a lei, a Jurisprudência maioritária do STJ e a doutrina;
8ª- Subverte a "ratio" e escopo da lei ao consagrar o direito de retenção ao promitente comprador, protegendo-o dos bancos que por natureza são fortes e dotando-os de meios para se fazerem pagar do dinheiro investido que, por vezes, significa poupanças de uma vida;
9ª- O Legislador quis proteger o promitente comprador face aos consultores e agentes imobiliários que, sem escrúpulos, prejudicam e enganam os promitentes compradores, estabelecendo assim segurança e confiança no comércio jurídico de imóveis.
10ª- O Acórdão recorrido viola o art. 759º, nº 2 do Código Civil, entre outros preceitos, pelo que deve ser revisto, confirmando-se a Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª instância.
Contra-alegou a Caixa Económica Montepio Geral, concluindo, por seu turno, da seguinte forma:
- Uma vez que o crédito reclamado por Quinta Rita – Sociedade Imobiliária, Limitada, se encontra reconhecido por sentença proferida em acção na qual a A não interveio, não tem relativamente a esta A tal decisão judicial força de caso julgado;
- No caso vertente, os direitos invocados pela Exequente e pela Reclamante são ente si – quanto à substância e valor relativo – verdadeiramente conflituantes, resultando do crédito reclamado a perda total da garantia patrimonial da Exequente;
- Jamais pode o credor hipotecário ser qualificado como “terceiro juridicamente indiferente” face ao credor reclamante assistido de direito de retenção, que entre si concorrem na graduação dos respectivos créditos;
- E não se impondo a sentença que declarou o direito de retenção da reclamante Quinta Rita, Ldª, por força do caso julgado, à Exequente, nada impede esta de impugnar tal crédito ou direito, com fundamento em qualquer das causas que extinguem ou modificam a obrigação ou impedem a sua existência, como bem julgou o acórdão recorrido;
- Interpretação diversa conduziria a grave ofensa dos limites subjectivos do caso julgado, comprometedora da unidade e coerência do sistema jurídico, devendo ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, é mister agora apreciar e decidir.
Como se vê da certidão de fls. 35 a 38, a Quinta Rita – Sociedade Imobiliária, Ldª moveu uma acção ordinária contra B (processo nº 685/95 da 1º secção do 9º Juízo Cível de Lisboa), na qual a Ré (ora executada) não apresentou contestação, tendo sido proferida sentença que transitou em julgado e onde se decidiu:
- Declarar a A. Quinta Rita -Sociedade Imobiliária, Ldª credora da Ré B, no montante de 112.875.000$00, acrescido de juros vincendos desde 12.10.95 até integral pagamento, pelo incumprimento do contrato-promessa entre ambas celebrado em 15.12.84, contrato esse que declarou não cumprido por culpa da Ré;
- Reconhecer à A. o direito de retenção sobre a fracção objecto do contrato (a fracção autónoma “A” penhorada na execução supra referida), pela indicada importância de 112.875.000$00 e respectivos juros legais.
A exequente e aqui impugnante do crédito reclamado pela Quinta Rita, Ldª, sustenta que o mencionado direito de retenção não pode preferir à hipoteca que garante o seu crédito, por a sentença onde aquele direito de retenção foi reconhecido não fazer caso julgado quanto a ela.
A Relação deu-lhe razão.
O problema a decidir é saber se a sentença proferida na acção ordinária nº 685/95, do 9º Juízo, 1ª secção, da comarca de Lisboa, onde foi reconhecido o direito de retenção da Quinta Rita, Ldª sobre a fracção ora penhorada no processo principal de execução, constitui caso julgado relativamente à exequente e impugnante, aqui recorrida, apesar desta não ter tido qualquer intervenção naquela acção ordinária.
A Relação, decidiu bem.
Diz o artº 671º, nº 1 do CPC que transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497º e seguintes, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recursos de revisão de oposição de terceiro...
Como deflui do artº 497º, nº 1 do CPC, a excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário.
E a repetência de uma causa verifica-se quando se propõe uma acção idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artº 498º, nº 1, do mesmo Código).
É princípio fundamental, relativamente aos limites subjectivos do caso julgado material, a sua eficácia relativa.
A sentença só tem força de caso julgado inter partes, só vincula o juiz num novo processo em que as partes sejam as mesmas que no anterior (Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 308).
Acrescenta, porém, o mesmo Mestre (ibidem, fls. 311), que os terceiros têm de acatar a sentença quando esta não lhes cause qualquer prejuízo jurídico, porque deixa íntegra a consistência jurídica do seu direito, embora lhes cause um prejuízo de facto ou económico, tratando-se neste caso de terceiros juridicamente indiferentes.
Mas, diz ainda o Professor Manuel de Andrade, mais abaixo, que os terceiros não têm que acatar a sentença quando aquela, a valer em face deles, lhes poderia causar um prejuízo jurídico, invalidando a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito, e não apenas destruindo ou abalando a sua consistência prática, situações em que se trata já de terceiros juridicamente interessados.
Pois bem. A recorrida é terceiro relativamente à sentença onde foi reconhecido o aludido direito de retenção, e tem uma posição jurídica independente e incompatível com a da recorrente, não podendo ser atingida pela dita sentença.
Com efeito, como se vê da operada graduação de créditos, atendendo-se, como se atendeu, na sentença da 1.ª instância, à existência do direito de retenção, a hipoteca que garante o crédito da recorrida sai juridicamente enfraquecida pela prevalência do direito de retenção.
A situação é de tal maneira grave, que, por causa do reconhecimento do direito de retenção feito à revelia da recorrida, esta pode ficar sem receber um cêntimo que seja do seu crédito, apesar de este estar garantido por uma hipoteca.
Quando é certo que, no caso de os autos prosseguirem, pode eventualmente vir a lograr provar a inexistência do direito de retenção, melhorando dessa forma substancialmente a graduação do seu crédito, garantido então na mesma pela hipoteca, mas tendo esta nessa hipótese um reforçado valor jurídico face à eliminação do direito de retenção.
Tal como está feita a graduação, não é só um possível prejuízo económico que deriva para a Recorrida.
Ela vê também o valor jurídico do contrato de hipoteca esfumar-se perante a supremacia do direito de retenção (art. 759º, n.º 2 da lei substantiva, que consagra excepção à regra prior in tempore potior in iure).
A consistência jurídica do seu direito em muito sai, portanto, abalada, não procedendo destarte a pretensão da eficácia reflexa do caso julgado, já que o direito de crédito da Quinta Rita, Lda. garantido pelo direito de retenção, entra em conflito e faz recuar o direito de crédito da terceira impugnante, garantido pela hipoteca anteriormente constituída.
Tem a recorrida inteira razão nas conclusões da contra-minuta recursória.
Concorda-se com a decisão da Relação e a fundamentação atinente à questão ora abordada, naquele acórdão se chamando a atenção para que da relação estritamente bilateral a que se reporta a sentença que reconheceu o direito de retenção, emerge um efeito que interfere directamente com outra situação jurídica anteriormente constituída, e cujo titular não interveio na acção, ficando fortemente limitado o alcance da garantia hipotecária da A, anteriormente constituída, atento o art. 759º, n.º 2 do Código Civil, segundo o qual o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca constituída anteriormente.
Como também se adverte no acórdão em crise, a extensão reflexa da eficácia do caso julgado a terceiros não pode afectar os direitos destes em casos deste jaez, sob pena de, através de mero conluio, duas partes poderem deliberadamente prejudicar um terceiro.
Reconhecendo tratar-se de uma vexata quaestio, não sufragamos a tese de que o direito da credora hipotecária, apesar do direito de retenção da "Quinta Rita, Lda.", continua o mesmo, com o conteúdo e a mesma garantia hipotecária, sendo apenas afectado na graduação por ficar situado em patamar inferior ao crédito garantido pelo direito de retenção, não ficando o crédito hipotecário juridicamente afectado, sendo a credora hipotecária terceiro juridicamente indiferente (tese esta adoptada no acórdão do STJ de 16.3.99, no BMJ 485, pág. 356 e segs.)
Propendemos antes para considerar que o direito de retenção em referência, não pondo em questão a existência ou validade do direito de crédito hipotecário, não se fica pela afectação da sua consistência prática, por limitação ou redução do património do devedor, confrontando-se antes com o direito de um terceiro juridicamente interessado, de certo modo incompatível com o direito de retenção, afectando-lhe a consistência jurídica por força do disposto no art. 759º, n.º 2 da lei substantiva (tese do acórdão do STJ, de 10.10.89, no BMJ 390, pág. 363 e segs.)
Note-se que ainda antes de proceder à graduação dos créditos propriamente dita, teve a Mma. Juíza de se debruçar sobre os diversos créditos reclamados e respectivas garantias, e logo aí de ajuizar que no confronto entre o crédito beneficiado com o direito de retenção e o garantido pela hipoteca, esta última garantia sai enfraquecida, vendo o credor hipotecário desde logo comprimido o direito de ser pago com preferência, independentemente da averiguação da suficiência ou insuficiência do património executado para dar pagamento a ambos os créditos.
Entre os dois créditos, um munido da garantia do direito de retenção, e outro da garantia hipotecária, há uma incompatibilidade jurídica, relegando o primeiro o segundo para uma posição jurídica secundária.
Em suma, e para rematar, a parte da sentença do 9.º Juízo Cível que reconheceu o crédito da "Quinta Rita, Lda", sobre a ora executada faria caso julgado contra a aqui recorrida, mas na medida em que nessa sentença também foi reconhecido àquela credora o direito de retenção da fracção autónoma ora penhorada, isso obsta a que a sentença vincule a recorrida, porque o direito de retenção veio limitar fortemente a consistência jurídica da garantia hipotecária do crédito da recorrida, que desse modo cede perante aqueloutro direito.
Termos em que acordam em negar a revista, com custas pela Recorrente.

Lisboa, 8 de Julho de 2003
Faria Antunes
Moreira Alves
Alves Velho